Carlos Skliar - PROVOCAÇÕES PARA PENSAR EM UMA EDUCAÇÃO OUTRA.pdf

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Revista Teias v. 13 • n. 30 • 311-325 • set./dez. 2012 311 PROVOCAÇÕES PARA PENSAR EM UMA EDUCAÇÃO OUTRA Conversa com CARLOS SKLIAR... Carmen Sanches Sampaio (*) Maria Teresa Esteban (**) Há tempos que as reflexões e discussões realizadas por Skliar sobre diferença, alteridade e experiência participam de nossos estudos (e pesquisas) sobre formação docente, alfabetização, avaliação. Seus modos de dizer, pensar, escrever sempre provocativos, convidam-nos a duvidar, a perguntar, a interrogar o já sabido, a olhar e escutar com mais atenção, a afinar nossa sensibilidade para o que nos passa. Algumas conversas entre nós duas foram desenhando as perguntas (orientadoras) para essa conversa que se deu em Buenos Aires. Os muitos entrelaçamentos permitiram que fosse uma conversa a três, embora só estivessem presentes Skliar e Carmen. No acontecimento da conversa, porque acontecimento, algumas perguntas permaneceram e outras, não planejadas, no conversar, foram surgindo... Por tudo isso, não fizemos exatamente uma entrevista. Trazemos uma conversa realizada em diversos tempos e lugares em que nos encontramos, em que pensamos juntos, em que nos indagamos, momentos que adquiriram uma forma nesse encontro. Na verdade, dois encontros e uma boa e longa conversa em um tempo cotidiano corrido que se alarga na disponibilidade de Skliar para o encontro com o outro. Um encontro constituído por um falar pausado, com pausas, silêncios, pensares, afetos. Uma conversa sobre temas conhecidos que vêm exigindo pensares outros, de lugares outros. Uma conversa sobre formação, experiências, encontros... * * * (*) Professora da Escola de Educação e do Programa de Pós Graduação em Educação/UNIRIO. Pesquisadora dos grupos de pesquisa: Práticas Educativas e Formação de Professores (GPPF/UniRio), Alfabetização dos alunos e alunas das classes populares (Grupalfa/UFF) e da Rede de Formação Docente: narrativas e experiências (Rede Formad). Em estudos pós-doutoral (08/2011 a 07/ 2012), com bolsa CAPES, em Buenos Aires, na FLACSO/Argentina, com Carlos Skliar e na UBA, com Daniel Suárez. (**) Professora da Faculdade de Educação e do Programa de Pós Graduação em Educação da UFF. Pesquisadora do GRUPALFA e do CNPq. Doutora em Filosofia e Ciências da Educação pela Universidade de Santiago de Compostela (Espanha), com Pós Doutorado na UNAM (México) e na Universidade do Porto (Portugal).

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    PROVOCAES PARA PENSAR EM UMA

    EDUCAO OUTRA

    Conversa com CARLOS SKLIAR...

    Carmen Sanches Sampaio(*)

    Maria Teresa Esteban(**)

    H tempos que as reflexes e discusses realizadas por Skliar sobre diferena, alteridade e

    experincia participam de nossos estudos (e pesquisas) sobre formao docente, alfabetizao,

    avaliao. Seus modos de dizer, pensar, escrever sempre provocativos, convidam-nos a duvidar, a

    perguntar, a interrogar o j sabido, a olhar e escutar com mais ateno, a afinar nossa sensibilidade

    para o que nos passa.

    Algumas conversas entre ns duas foram desenhando as perguntas (orientadoras) para essa

    conversa que se deu em Buenos Aires. Os muitos entrelaamentos permitiram que fosse uma

    conversa a trs, embora s estivessem presentes Skliar e Carmen. No acontecimento da conversa,

    porque acontecimento, algumas perguntas permaneceram e outras, no planejadas, no conversar,

    foram surgindo...

    Por tudo isso, no fizemos exatamente uma entrevista. Trazemos uma conversa realizada em

    diversos tempos e lugares em que nos encontramos, em que pensamos juntos, em que nos

    indagamos, momentos que adquiriram uma forma nesse encontro. Na verdade, dois encontros e

    uma boa e longa conversa em um tempo cotidiano corrido que se alarga na disponibilidade de

    Skliar para o encontro com o outro.

    Um encontro constitudo por um falar pausado, com pausas, silncios, pensares, afetos. Uma

    conversa sobre temas conhecidos que vm exigindo pensares outros, de lugares outros. Uma

    conversa sobre formao, experincias, encontros...

    * * *

    (*)

    Professora da Escola de Educao e do Programa de Ps Graduao em Educao/UNIRIO. Pesquisadora dos grupos

    de pesquisa: Prticas Educativas e Formao de Professores (GPPF/UniRio), Alfabetizao dos alunos e alunas das

    classes populares (Grupalfa/UFF) e da Rede de Formao Docente: narrativas e experincias (Rede Formad). Em

    estudos ps-doutoral (08/2011 a 07/ 2012), com bolsa CAPES, em Buenos Aires, na FLACSO/Argentina, com Carlos

    Skliar e na UBA, com Daniel Surez.

    (**)Professora da Faculdade de Educao e do Programa de Ps Graduao em Educao da UFF. Pesquisadora do

    GRUPALFA e do CNPq. Doutora em Filosofia e Cincias da Educao pela Universidade de Santiago de Compostela

    (Espanha), com Ps Doutorado na UNAM (Mxico) e na Universidade do Porto (Portugal).

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    Carmen Sanches: Comeamos nossa conversa falando de seu prprio processo de formao? Seus

    estudos, interesses iniciais, relaes com a educao, com o pensar a educao a partir da

    experincia e alteridade...

    Carlos Skliar: Para mim, a formao no uma linha no tempo, uma sequncia planejada,

    consciente; muito menos aconteceu comigo de dar continuidade a algo mais. Questes, temas,

    problemas e inclusive palavras no continuaram desde o incio. Tambm a escrita mudou muito.

    Ento, eu vejo esse processo como um processo cheio de encontros e desencontros com pessoas

    concretas, com textos, com palavras ditas, com silncios, com aes, com instituies...

    Dediquei muitos anos da minha vida trabalhando na educao informal, na educao no-

    formal. Na poca, foi o que aqui, na Argentina, chamvamos de professor de recreao. Um

    trabalho realizado nas frias com adolescentes: oficinas de poesia, msica, esportes. Mas, quando

    comeou a faculdade, tudo isso mudou e nunca mais voltei a pensar nisso. interessante porque

    existem algumas coisas que pertencem ao passado e elas voltam em momentos totalmente

    inesperados. E voltam de outro jeito. Por exemplo, agora estamos discutindo algumas questes

    sobre os formatos escolares e no-escolares, e estou me lembrando muito dessa minha formao:

    uma formao no-sistemtica, realizada durante o trabalho, desde os 15 at os 21 ou 22 anos.

    Participei de muitas experincias de recreao, em cidades diferentes. Vivi, tambm, uma

    pequenssima experincia, como professor em uma creche, em uma poca em que isso era proibido

    para homens. Assumi a suplncia de um professor de educao fsica que precisava largar o

    trabalho.

    Foi um contato muito mais ligado transio entre a creche, a Educao Infantil e a

    Educao Fundamental. Nessa passagem, a necessidade de levar mais a srio a leitura; levar mais a

    srio algumas coisas e a interrupo, para as crianas, do jogo, do tempo livre. E, naquela poca,

    pensava muito por que precisava ser assim: essa passagem to violenta, sem sentido para muitas

    crianas. Consegui conversar com elas sobre o que, para elas, era o fim da infncia, naquele

    momento. E elas me falavam, atravs do desenho, da representao no geral, que sentiam muito

    essa infncia que acabava. Lembro que me sentia vontade para conversar com as crianas. Ao

    mesmo tempo, para mim, estava acabando minha juventude... Era um encontro muito interessante.

    Mas, tudo acabou quando entrei na faculdade, por muitas razes. Uma delas se relacionava com o

    tipo de formao, com o tipo de sedentarismo necessrio para cursar uma faculdade: sentar, estudar

    textos indicados pelos professores, sem nunca discutir nada!

    Fiz fonoaudiologia como primeira formao porque me interessava, desde ento, a questo

    da linguagem. Sabia que era uma formao clnica, mas pensei que podia relacionar essa

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    perspectiva com a linguagem. Um pouco mais tarde, me encontrei com o mundo dos surdos e a

    prtica fonoaudiolgica me incomodava. Ento, praticamente larguei o trabalho (de atendimento)

    individual e comecei a trabalhar mais voltado para a educao, desde muito jovem. Ainda assim, fiz

    uma licenciatura e um doutorado em fonoaudiologia s para finalizar a carreira na universidade,

    mas sabia que o meu trabalho no poderia ser um trabalho individual, a portas fechadas. Por muitas

    razes, mas a principal essa questo de estar voltado para a comunidade, para o grupo, nunca para

    um indivduo.

    Foi assim que comecei a sentir muitas interrupes; a primeira foi a passagem entre a clnica

    e a educao. A segunda foram, dentro da educao, as mltiplas leituras possveis de realizao de

    uma mesma coisa. E foi fundamental o encontro com outras pessoas e seus textos. No entanto, a

    experincia direta j era uma experincia vivida com surdos... A questo como ler essa

    experincia. Nem tanto como faz-la, mas como l-la.

    Houve vrios encontros com pessoas concretas que, sem querer, apontavam para outra

    realidade, outra linguagem, outro discurso. O encontro e a amizade com essas pessoas ampliaram o

    passo para que eu pudesse pensar de outro jeito, sem esquecer tambm do meu prazer pela poesia,

    que ficava longe das questes acadmicas. Mas, ao mesmo tempo, lembro que em todos os textos,

    inclusive em minha tese de doutorado, sempre colocava alguma poesia. Eu, como qualquer outro,

    sou fragmentos. A academia tenta fazer de ns um sujeito s. E a educao tambm tenta fazer-nos

    um sujeito uniforme, coerente, consciente... Acho que somos puro fragmento. Muitos fragmentos. E

    o melhor que podemos fazer na vida manter esses fragmentos sem poluio, sem contaminao,

    mant-los vivos. Nunca matar um fragmento em nome de um, ou por outro, fragmento que seja

    mais interessante ou mais importante.

    Nesse sentido, acho que a educao precisa contar com a presena de muitos fragmentos na

    hora de passar alguma informao, na hora de se fazer presente.

    Carmen Sanches: E, ainda hoje, como voc ressaltou, nessa passagem da educao infantil para o

    ensino fundamental, as brincadeiras e o tempo livre vo sendo substitudos pelas atividades

    srias...

    Carlos Skliar: Mas j no h outros espaos para compensar essa perda, como na minha poca... A

    cidade mesmo era um lugar de passagem, lugar de travessia, lugar de brincadeiras. Est ficando

    apenas a escola e eu diria que fica mais trgica essa desapario da infncia. Lembro-me dessa

    poca pela simples razo de que, para mim, aprender sempre foi no esquecer. Mais do que

    incorporar o novo. Eu sempre lia nas teorias da aprendizagem que aprender era reter na memria

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    uma nova experincia; aprender era uma tarefa da memria. E sempre pensava que aprender no era

    trazer o novo, mas jamais esquecer o que tinha acontecido at esse momento. No como memria

    fixa, mas, talvez, como uma leitura do novo, no sentido de que o passado quem melhor ensina a

    reconhecer o novo. Sobretudo agora, numa poca em que todo o novo parece ser melhor, eu digo

    que depende da memria das pessoas e no necessariamente da informao. Depende de como o

    corpo recebe, com sua biografia, essa novidade.

    Carmen Sanches: Nesse processo, como aconteceu o encontro com a filosofia? A relao entre

    filosofia, educao e diferena?...

    Carlos Skliar: Quando cheguei, em 1994, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),

    eu trazia uma leitura da educao especial. Mas me acompanhava, tambm, uma intuio de que era

    necessrio fazer uma leitura diferente, vista desde uma perspectiva da educao, em geral. Nesta

    universidade, encontrei vrios grupos que, claro, estavam fazendo essa leitura e gostei muito,

    particularmente, de algumas pessoas que trabalhavam com a filosofia, filosofia e educao.

    Encantei-me com algumas leituras porque no apenas retratavam o outro, mas te colocavam na

    relao com este outro. E isso o que, para mim, falta muito na educao. No tanto quem o

    outro ou o que acontece com o outro, o que lhe falta, mas talvez qual o pensamento tico que liga

    voc com o outro ou dois outros diferentes entre si. Parece-me que algumas filosofias do conta

    dessa questo.

    De um lado, a filosofia, e de outro, a literatura. No encontro com Jorge Larrosa, em uma

    Anped, em Caxambu, posso dizer que ele me libertou. No nos conhecamos pessoalmente, mas j

    havamos passado em alguns lugares comuns. Algumas pessoas me diziam: Tens de conhecer o

    Jorge Larrosa. O Jorge me disse que recebia uma mensagem parecida. Quando o encontrei foi um

    abrao j muito carinhoso, como se nos conhecssemos. E, conversando com ele, na Anped, ouvi:

    Por que tu ls filosofia, poesia e escreve ainda como um acadmico clssico? No era uma crtica,

    mas uma dvida que ele explicitava. Ele me dizia que eu possua uma oralidade to literria, to

    filosfica, mas, na hora da escrita, o meu trabalho era muito mais... Entrava num sistema. Acho

    que isso me libertou, me autorizou, me deu uma permisso para poder... E algum tem de dar essa

    permisso.

    por isso que penso que a formao feita de encontros e desencontros, e no

    necessariamente de decises pessoais ou de uma tomada de conscincia, de repente. Relaciona-se

    com tudo isso. Muitas pessoas podem te falar ao ouvido da importncia da leitura, a importncia da

    escrita, mas, na verdade, tem um momento em que isso precisa acontecer contigo mesmo. Um

    momento em que voc sente: Eu j sei que importante, mas hoje eu descobri esse fato no meu

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    corpo. como o amor, quando as pessoas dizem o amor importante, no d para viver sem.

    Mas as pessoas tm de descobrir esse momento para elas o amor. Ainda que a experincia do

    amor seja universal e se repita ao longo da histria, s nesse momento, que no uma novidade

    no sentido moderno da palavra, mas a primeira vez. Acho que muito da educao relaciona-se

    com essa primeira vez. Esse momento no qual o aluno, o outro, descobre, pela vez primeira, uma

    coisa que tem sido repetida j muitas vezes. importante a educao, sim, mas foi hoje que eu

    percebi que de fato importante. Eu descobri em mim, no porque voc me disse. Ou no porque

    vocs me contaram, mas porque eu descobri em mim mesmo.

    Carmen Sanches: Esse encontro com a filosofia, com a literatura, com o Jorge... Aconteceu no

    Brasil!

    Carlos Skliar: Sim! E tm vrias coisas que s me aconteceram, reconheo, no Brasil ou graas ao

    Brasil. As condies de trabalho, na poca, eram muito diferentes das que tnhamos aqui, na

    Argentina, e isso permitia uma dedicao um pouco mais sria e mais continuada do que aqui, com

    a necessidade de trabalhar em vrios lugares assumindo muitas aulas. E, quando cheguei ao Brasil,

    verdade que cheguei como pesquisador visitante na ps-graduao, o que me garantia um trabalho

    com muita tranquilidade e serenidade. Muito tempo para pensar e para escrever. Mas, acho que

    alguns encontros s acontecem em alguns lugares. No podem acontecer em qualquer lugar. E o

    Brasil um lugar de encontros mesmo, pois ainda que algumas pessoas no gostassem das coisas

    que fazamos, escrevamos ou dizamos, possibilitavam o encontro. E essa minha experincia no

    Brasil foi bem isso... Saber de coisas que algumas pessoas no gostavam e ainda assim poder

    conversar sobre isso. Parece-me que o Brasil tem muito essa possibilidade, no sei como analisar

    historicamente, geograficamente, politicamente. Mas tem mesmo. O importante que essas relaes

    continuam existindo. Ainda que j sejam seis anos que no mais estou no Brasil, quando volto a

    alguns lugares, para onde me convidam, sinto que continuo a conversa. No aquela coisa de

    desapario. Ou seja: o Brasil me deixou existente l dentro. Existente!

    Carmen Sanches: Skliar, ao ler Pedagogia improvvel da diferena e se o outro no estivesse

    a?, encontrei a seguinte afirmao: a mesmidade da escola probe a diferena. E, desde ento, a

    vontade de interrogar essa afirmao passou a me acompanhar. Portanto, a pergunta: a mesmidade

    da escola probe a diferena?

    Carlos Skliar:A primeira coisa que eu gostaria de dizer que esse livro foi escrito em 2001, nas

    madrugadas de Barcelona, no tempo em que fui professor visitante na universidade de Barcelona.

    Foi a que consegui que a minha escrita me acompanhasse bem... E, tambm, que tomasse o seu

    prprio rumo, sem me ser fiel completamente. O livro, que primeiro foi publicado em espanhol,

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    teve o ttulo invertido: E se o outro no estivesse a, como ttulo, e notas para uma pedagogia

    improvvel da diferena. Quando chegou ao Brasil, o editor pensou que era melhor trocar o ttulo

    porque pensava que deveria aparecer primeiro a questo da pedagogia. Esse livro, na Argentina, na

    Espanha, nos pases de lngua espanhola e no Brasil, teve uma histria completamente diferente.

    um livro muito conhecido nos pases de lngua castelhana. J so oito ou mais edies e, em

    portugus, ele ficou diferente, no sei por qu. A traduo foi muito boa. Eu trabalhei muito com a

    tradutora (Giane Lessa), pois achava o livro literrio... No eram apenas questes pedaggicas, mas

    tambm culturais, polticas, epistemolgicas... com todas as leituras que estava realizando sobre

    alteridade, durante o perodo em Barcelona. Ento, existem vrias afirmaes muito fortes, que

    pode(ria)m ser lidas como violentas...

    Meu desejo era de que a escrita funcionasse como um lugar para fazer perguntas ou fazer

    afirmaes um pouco diretas, um pouco fundamentais. Nesse caso, lembro-me muito bem dessa

    frase, da relao entre mesmidade, mesmice e alteridade. E, ento, pensei que poderia ser uma

    metfora para melhor compreender porque aconteciam algumas coisas no interior das instituies

    educativas. Para mim, era uma metfora que me deixava ler algumas questes acontecidas nas

    instituies, no cotidiano das instituies educativas, na hora em que uma criana ou um jovem,

    qualquer um, era de alguma forma repreendido em nome do normal ou do correto. Sei que a escola

    um lugar da mesmidade, sempre foi! No sei se poderia ser de outro jeito, mas eu sei que uma

    coisa educar e outra coisa so as instituies educativas. Nesse sentido, o que seria educar? No

    que eu ache que a escola j est feita de uma vez e para sempre. Depende muito do que fazemos no

    interior das instituies educativas. O que seria a escola? Prefiro no dizer o que a escola , mas

    tentar ver o que acontece no seu interior. Mas vejo uma diferena entre o ato de educar e o que so

    as instituies educativas. Para mim, no so duas coisas idnticas. Continuo pensando que temos

    ainda muito por pensar e fazer sobre o que significa educar. Agora, o que significam as instituies

    educativas? Elas tm fragmentos de muitas coisas que no dependem de ns. Educar, essa relao

    singular entre quem est na posio de transmitir alguma coisa e quem recebe; h muito para se

    pensar. E naquele momento, na escrita do livro, pensei mais no ato de educar do que no ato de

    pensar as instituies educativas. verdade que as instituies so lugares de mesmice, da

    homogeneidade. Ainda que haja muitos novos discursos sobre a diversidade, me parece que

    continua sendo e continuar sendo lugar pensado para a homogeneidade.

    Ainda assim, acho que, na hora da relao (o que eu chamo educar: uma relao, no

    uma instituio), uma relao com pessoas concretas, que esto frente a frente, nesse momento,

    acho que uma das questes principais do ato de educar seria acabar com a mesmice do professor e

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    do aluno. Educar seria criar a alteridade todo o tempo. Outros autores chamam isso de outra forma;

    podemos abrir um orifcio na ideia do normal. E isso tambm acabar com a mesmice. A

    pedagogia do acontecimento; a pedagogia das experincias, das narrativas, mas todas elas me

    parece se voltam para uma questo do ato de educar que seria o fato de poder criar alteridade, o

    que na sntese seria como ser outras coisas diferentes daquilo que j pensamos que somos e como a

    educao poderia contribuir para alm de ns mesmos. A educao no poderia ser apenas afirmar,

    confirmar, reafirmar o que j somos e ficarmos felizes e contentes, porque essa seria a escola mais

    desigual - simplesmente permanecer no que j somos, no que j temos, na incapacidade de criar

    mudanas de alteridade.

    Carmen Sanches: Ainda nessa perspectiva, podemos afirmar que as polticas de incluso, cada vez

    mais, colocam no centro do debate educativo a questo do atendimento diversidade como

    equivalente ao trabalho com a diferena. No entanto, como voc afirma, a identificao, nomeao

    e discriminao do outro, do diferente (que necessita ser includo) tem provocado um processo de

    diferencialismo, de obsesso pelos diferentes. Nesse sentido, o que pode ser a educao fora da

    obsesso pelo outro?

    Carlos Skliar: Poderia ser muitas coisas. Penso que no precisa dessa obsesso. Na poca, eu

    tambm fiz uma oposio, ainda que eu no seja muito amigo de trabalhar com oposies todo o

    tempo, mas so duas palavras bem diferentes para mim, que tm uns sons, feitos na prtica, bem

    diferentes. De um lado, seria a obsesso e, do outro, ficaria a preocupao.

    Posso observar polticas educativas, prticas escolares sobre essa diferena: uma

    preocupao e uma obsesso. Eu acho que a preocupao forma a parte da tica e a obsesso forma

    a parte da poltica. Nesse sentido, so bem diferentes. Em todo caso, eu preferiria que as pessoas

    tivessem mais obsesso pela ideia da igualdade do que pela ideia da alteridade, porque,

    necessariamente, uma ideia obsessiva sobre as diferenas acaba sendo diferencialismo e acaba

    marcando sujeitos concretos como se fossem sujeitos equivocados, como se estivessem errados etc.

    Por que uma obsesso pela igualdade? No no sentido sociolgico do termo, mas ainda

    assim continuo a pensar o quanto as polticas que falam da diversidade, do outro, em nome do

    outro, representaes dos outros, continuam achando que a igualdade vai ser um resultado final,

    quando, na verdade, para mim, e para muitas outras pessoas, a igualdade o ponto de partida.

    pensar o outro como igual a voc, os outros so iguais. Nesse sentido, falo no sentido de uma ideia

    de qual alteridade ou... No sei como chamar isso em portugus, necessariamente um neologismo,

    que seria, assim, uma imagem inicial de que voc est trabalhando com qualquer um, para alm das

    especificidades individuais, porque a responsabilidade do educador no tem a ver com medir,

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    avaliar as diferenas individuais, mas tem a ver com passar tudo aquilo que achar possvel para

    qualquer um. No fazer isso j criar desigualdade. Ento, me parece que as polticas de incluso

    precisariam ser repensadas, retraduzidas como polticas de qualqueridade. Porque, seno, ficam

    presas a questes da presena ou ausncia de sujeitos concretos quando, na verdade, o acesso

    universal j resolveu tudo isso, de a maioria estar na escola...

    A questo : como eu fao para ensinar a qualquer um? Sei que isso no seria suficiente.

    Isso seria como uma parte do trabalho, na medida em que seria a primeira parte do trabalho.

    Pensaria em uma formao que atendesse a qualquer um. S que a educao, e j disse isso um

    pouco antes, tambm tem a ver com ser outras coisas. Ento, sei que o que h em qualquer um, h

    tambm em cada um: algo especfico, singular.

    Logo, seriam dois momentos: uma arte de saber que no incio o trabalho com qualquer um

    e, com o passar do tempo, com o passar da conversa, com a experincia, com o trabalho, vamos

    saber identificar o que tem de cada um nesse qualquer um. Mas no se trata apenas dos outros como

    cada um e como qualquer um; ns tambm somos qualquer um e cada um. Parece que vale a pena

    pensar o quanto essas polticas tm parado na primeira questo, que seria: como ensino a todos;

    quando, na verdade, no se trata tanto de pensar quem o aluno, quem o professor, quais so as

    suas caractersticas, quais so as suas especificidades. Mas, sim, o que fazemos juntos, o que seria

    possvel fazer juntos. E isso independente de quem um e quem o outro. Fazer alguma coisa

    junto j alteridade; j a terceira coisa. E no nem voc nem eu. Para mim, a educao tem

    muito mais a ver com essa terceira coisa ler, escrever, brincar, pensar, olhar, tocar etc. do que

    quem voc e quem sou eu?.

    Tenho um colega na Espanha (Jos Garca Molina) que fala muito da educao ao

    desconhecido, no sentido de que temos de educar, temos de criar essa terceira coisa com o

    desconhecido. No precisamos conhecer uma pessoa para criar uma terceira coisa. A gente tem de

    fazer muitas experincias para fazer coisas... E no esperar conhecer o outro no sentido mais

    disciplinar, acadmico do termo, para depois fazer. Porque esse depois fazer tem muito... de

    analtico, pouco educacional.

    Carmen Sanches: Talvez... prescritivo?

    Carlos Skliar: Prescritivo no sentido de um saber mais racional e no um saber relacional com o

    outro. A pedagogia, para mim, um saber de relao, no um saber de disciplina. Nesse sentido,

    me parece que seria bom pensar que todas essas polticas da diversidade, da diferena, elas no

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    valorizam o fazer coisas em comum, porque primeiro preciso se conhecer. Eu acho que a gente se

    conhece fazendo coisas juntos. No fazer que estranho para mim!

    Carmen Sanches: Podemos afirmar, ento: encontrar o outro, ouvir o outro e conversar so

    constitutivos das relaes pedaggicas?

    Carlos Skliar: Sim, eu concordo. Mas precisa mudar muito como pensamos a figura do professor

    porque estamos formando professores pesquisadores, professores falantes, professores ativos. E

    penso em um outro tipo de professor: um professor que escuta; um professor que l, no tanto que

    pesquisa. Vejo uma diferena fundamental entre ler e pesquisar. Um professor atento, disponvel!

    Parece que, com as caractersticas que a formao est tendo, no estamos deixando muito espao

    para o estudo, para a leitura. H uma ao, mas sem o outro. Sem a conversa, no possvel escutar.

    Se no escutamos, no h conversa. H depoimento, h discurso, mas no h conversa. E entendo a

    conversa como uma conversao sobre o que voc e eu podemos fazer para alm do que voc e eu

    podemos fazer sozinhos.

    O problema que o modelo de conversa que se tem na academia um modelo diferente.

    Temos muito mais convencimento do que conversao. Porque, na conversa, a questo no pode ser

    planejada e a conversa vai tendo a sua histria, o seu prprio desenvolvimento. preciso ter

    coragem para trabalhar a partir de uma conversa, porque o que fazemos depende do que escutamos.

    E no tanto do que planejamos.

    verdade que temos uma responsabilidade diferente nessa conversa. Diferena de idade,

    diferena de profisso, diferena de responsabilidade, de posio na instituio. Sinto-me

    responsvel pelo o que ensino. Mas no me sinto responsvel pelo o que o outro aprende. Hoje, a

    educao no ensina quase nada praticamente e avalia quase tudo. avaliar como controle, como

    regulao. Ainda no est aprendida essa lio de recuperar nossa responsabilidade de ensinar e

    deixar para o aluno a responsabilidade de aprender. Muitos no gostam dessa ideia porque acham

    que ensinar e aprender vm juntos, que temos tambm responsabilidades sobre o que aprendem as

    crianas. Falo, entretanto, de uma coisa muito mais especfica e, quem sabe, mais honesta, pois

    sabemos que no se sabe o que se aprende. Ainda que seja muito interessante pens-lo, averigu-lo,

    analis-lo, sabemos que aprender acontece em outro momento, em outro tempo, em outro espao

    em relao quele momento em que alguma coisa foi ensinada.

    Ento, gosto muito da ideia de ensinar como a de oferecer. uma definio grega no sentido

    mais clssico do termo, que seria oferecer alguma coisa signos que o outro necessita decifrar no

    seu tempo, do seu jeito. No posso controlar o tempo e o jeito do outro. Isso , para mim, o

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    principal empecilho para imaginar essa relao de conversa, porque se eu converso com voc, mas

    eu controlo, regulo e avalio todo o tempo, me parece que uma posio hipcrita. Logo, assumo

    para mim e para as instituies nas quais trabalho, assessoro e com quem compartilho algumas

    ideias essa sensao de que precisamos ser responsveis, precisamos nos preocupar pelos signos

    que oferecemos mais do que pela forma como o outro vai aprender e vai decifrar esses signos.

    Carmen Sanches: Voc atuou como coordenador do Ncleo de Pesquisas sobre as diferenas e

    Formao Docente na Secretaria de Municipal de Ensino de Porto Alegre durante o tempo em que

    esteve no Brasil, como professor e pesquisador. A partir dessa experincia, o que significa, para

    voc, pensar (e praticar) processos de formao inicial e permanente de professores e

    professoras, na perspectiva de uma pedagogia da(s) diferena(s)? Uma pedagogia comprometida

    com a ideia de responsabilidade frente singularidade e alteridade do outro?

    Carlos Skliar: necessrio dizer que vivemos e continuam acontecendo boas experincias, nesse

    sentido. Lembro que conseguimos criar um programa novo de formao. Naquela poca, na

    educao de surdos, no havia cursos de especializao. Levamos esse projeto para muitos lugares

    no Brasil e, depois, para outros pases. E dava resultados por uma questo que, no caso dos surdos,

    era essencial: um professor que sabe conversar com o outro para fazer coisas juntos, para alm do

    que cada um ou acha que . No existia outra possibilidade do que no comear pela Lngua de

    Sinais. Inexistia a discusso sobre qual era a lngua dos surdos, a lngua majoritria, minoritria...

    Essas discusses a gente apagou e passou a dizer: Bom, para educar temos que conversar. Se no

    tem conversa, no tem educao. Esse era o nosso posicionamento mais concreto porque trabalhei

    com pessoas que conversavam com surdos. Isso permitiu registrar sensaes, biografias, histrias

    de vida de muitos estudantes surdos, e foi possvel acompanharmos muito rapidamente os efeitos de

    um certo tipo de formao.

    Fomos radicais nesse sentido: precisamos de outro programa. Precisamos fazer essa

    experincia de um modo que as pessoas se sentissem vontade, aprendendo ou j sabendo outra

    lngua, a deles [dos sujeitos surdos]. E esse gesto: para educar um outro preciso primeiro aprender

    a sua lngua, para mim, era um gesto tico, fundamental, que no se v em muitos outros casos.

    Querem educar, mas sem fazer esse gesto tico de conversar e, portanto, de se apropriar, conhecer

    outra lngua, que no a prpria.

    Foi uma experincia no apenas sobre a questo da lngua. Uma vez que a conversa se d, a

    questo da lngua desaparece. Mas, em alguns grupos e comunidades se discute todo o tempo

    questes superficiais que levam todo o tempo de formao. Discute-se se eles [os surdos] so

    pessoas ou no so; se so como os demais ou no. Diretamente, te convencem de que eles so

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    anormais e que, portanto, a pedagogia tem de ser superespecfica. E um dia chega a incluso e

    deixam de ser especiais, anormais e passam a ser diversidade. Penso que ainda no sabemos como

    nos colocar frente a isso.

    A experincia que vivemos era muito simples: aprender a lngua com eles e, durante essa

    aprendizagem, cuja referncia a conversa e no o ensino formal, o processo de conhecer como

    essa comunidade e os indivduos se posicionam, como aprendem, como escrevem, quais so as

    vontades, iluses, desejos... E, no momento de estar frente de uma turma, no esquecer esse

    processo. E desse modo funciona, outra vez, a questo da aprendizagem pessoal como memria,

    no como esquecimento do velho para o novo, como j falei antes. Parece-me que, no mnimo, se

    formaram duas ou trs geraes que ainda permanecem trabalhando na rea. Tem professoras

    surdas que realizaram concurso pblico para professor universitrio. Esses so efeitos de que no se

    pode duvidar. Efeitos de uma formao que muda uma gerao, que muda uma histria que no

    tem porque ser natural. possvel atuar quando a conjuntura poltica e a lgica cultural de um lugar

    o permitem, porque tem vezes em que os contextos no so favorveis para podermos fazer essas

    transformaes. Agora, tambm a pedagogia e a formao em pedagogia geral podem mudar. Por

    exemplo, colocando isso que chamam prticas no incio da formao e no fazendo com que a

    prtica seja a prtica na sala de aula como a nica relao e nico formato espacial e temporal que

    temos. Essa mudana de ir conhecer, ir conversar, mudou muito os olhares!

    Porm no se trata apenas de conversar na formao. Foi preciso criar literatura, porque nos

    deparamos com a seguinte situao: as representaes dos estudantes sofreram mudanas, mas a

    literatura na rea se mantinha um passo atrs. Sentamos falta de uma bibliografia outra que

    acompanhasse essas mudanas. Acho que foi nessa poca que comeamos a publicar alguns livros,

    resultados desses processos. A discusso sobre identidade, sobre diferenas, sobre movimentos,

    sobre artes. Enfim, muitas discusses que precisavam aparecer em livros para que as pessoas

    pudessem ter acesso a uma literatura mais prxima das experincias vividas.

    Foi muito legal esse momento. Um momento muito radical, de muita produo, mas tambm

    um momento no qual as comunidades [surdas] cresceram. E o ideal que a mo que eu ofereo

    possa se retirar; possa sair, para que as coisas continuem para alm das pessoas que as esto

    fazendo. Para mim, esse momento era fundamental para criar um boom da literatura, uma hiper-

    produtividade e que a formao no precisasse se voltar para uma literatura que ficasse atrs. Essa

    foi um pouco a poltica vivida na poca.

    Carmen Sanches: Skliar, voc pode falar um pouco mais desse deslocamento vivido por vocs, o

    de levar as prticas para o incio da formao?

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    Carlos Skliar: Poderia dar um exemplo dentro dos equvocos e dos problemas que acontecem,

    resultado dessa forma de compreender a formao: eu sei tudo sobre uma questo, por exemplo, sei

    tudo sobre infncia, para trabalhar com crianas...

    Carmen Sanches: Tudo sobre alfabetizao para poder alfabetizar...

    Carlos Skliar: Exato. E tem muita descontinuidade. Por exemplo, estou trabalhando sobre uma

    dessas descontinuidades, para mim, muito srias, que a leitura; nem tanto a alfabetizao, mas a

    leitura mesmo. A gente se forma pensando como seria convencer o outro da importncia da leitura.

    E que deveriam existir boas razes, bons motivos para que os outros leiam. Comecei a procurar o

    que dizem os escritores Por que escrevem? , o que fecharia um pouco essa relao entre eu vou

    ler, porque algum escreveu antes... Mas, ser que as minhas boas razes compartilham as

    motivaes de quem escreveu?

    Comecei a procurar depoimentos de escritores ao longo da histria, quando eram

    perguntados do porque escreviam. O que encontrei? No havia nunca boa razo do tipo: eu

    escrevo porque quero ser algum no mundo, porque preciso entrar no mercado de trabalho. Todas

    as razes que a educao apresenta a algum para ler so na verdade, para os escritores, motivos

    ruins. E, estou pensando, agora: uma pedagogia ruim para a leitura, no sentido de que essa

    descontinuidade entre a leitura e a escrita, por exemplo, produz efeitos terrveis; um deles que no

    lemos; os professores no leem. Mas, se consegussemos entender que a escrita tem sempre motivos

    terrveis, como o que falam muitos contemporneos, pois sem a escrita no poderiam fazer outra

    coisa na vida e que no para ser algum, como a educao pretende, mas porque, sem a escrita,

    eles ficariam praticamente sem respirao. Penso que precisamos ensinar essas razes, que so

    ruins, no so boas. No so boas ou sedutoras, inclusive. Elas so terrveis, tm a ver com a

    existncia mesmo!

    Convencer algum a ler a grande tarefa da educao. Algum diria tambm que preciso

    convencer o outro a aprender matemtica... Mas todas elas [as disciplinas] precisam de leitura. E

    aparece, ento, o desafio da formao. Fazer uma indagao muito sria sobre os gestos de leitura e

    escrita que apareceram na vida, porque sem eles no h transmisso de coisa alguma. E essa a

    principal descontinuidade que percebo na formao; apenas um exemplo, mas, para mim, muito

    contundente.

    preciso procurar outra didtica que no seja aquela das boas razes, porque essas boas

    razes j no existem mais. As pedagogias tm de agora, infelizmente, pensar o lado ruim da

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    questo e no o lado bom; quase o diablico da questo. E os depoimentos dos escritores, dos

    grandes escritores, so todos eles terrveis nesse sentido.

    Carmen Sanches: Gostaria de retomar a discusso sobre professor-pesquisador e professor-leitor

    porque para voc h uma diferena fundamental entre ler e pesquisar...

    Carlos Skliar: Tenho sempre a sensao de que, nos ltimos anos, o professor tem se transformado

    em um pesquisador porque foi levado para isso. No natural o fato de que o professor ensine e,

    alm disso, necessite pesquisar a realidade da aula, a realidade dos alunos, a realidade da

    comunidade, a realidade da instituio; enfim, esse desejo do real. Para mim, isso no seria um

    problema se no tivessem acabado com a figura do professor leitor. Ento, me parece que, no

    movimento de recuperar o professor leitor, eu pediria para o professor no pesquisar tanto; no

    pesquisar em um formato atual de pesquisa. E palavra pesquisa claramente relaciona-se com o

    que as agncias esto pensando sobre o que pesquisar.

    Para mim, acabou sendo uma oposio muito clara na noo do tempo; o tempo que tm os

    professores que, hoje, precisam pesquisar. E, isso ocupa o tempo da leitura. Na verdade, nos poucos

    estudos que se tem sobre o que os professores esto lendo, a literatura converteu-se em uma

    literatura de pesquisa; uma literatura da psicologia, da didtica. E, ento, no final do processo, j

    no no dia-a-dia, mas como modelo de ensino, sempre vou preferir um professor que seja leitor do

    que um professor que seja pesquisador. Para mim, isso se d tambm entre os colegas com quem

    converso. Prefiro uma pessoa que goste da literatura, que conhea de outros tempos e outros

    espaos, que possa imaginar outras possibilidades geogrficas, temporais etc., do que o professor

    que sabe o real e fica preso ao real. Essa a questo colocada por mim.

    Talvez eu esteja pensando na figura de uma paixo, e da tambm poderamos ir para alm

    da literatura; no temos apenas a literatura. Mas, sempre prefiro algum apaixonado que, ainda sem

    saber muito das didticas contemporneas, tenho certeza de que vai criar uma coisa que vai ser

    lembrada no futuro. Pensar, todo o tempo, sobre aquelas coisas que esto acontecendo com um

    pouco de saudades para frente; no tanto de saudades para trs.

    Continuo a pensar, nesse tom, que a literatura pode ser esse passado que ainda est hoje, mas

    acho que j est acabando. As novas geraes no tero a mesma relao com a literatura e

    praticamente est desaparecendo uma relao como a conhecemos atualmente, com a literatura.

    Ento, no sei se tenho de pensar a educao como essa relao urgente com o presente, com o que

    tem de ser aprendido hoje, mas talvez como, no hoje, voc aprende coisas do passado, de outras

    pocas, de outras pessoas.

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    A escola no est feita, precisa ser feita. E, para mim, tambm o nico lugar que ainda

    pode pensar o tempo livre. J comentei sobre isso. Pensar esse tempo da instituio como um tempo

    totalmente diferente dos outros tempos que j chegaram; outros tempos carregados de obrigaes,

    de preocupaes... O incio da morte, nesse sentido. Prefiro pensar em um professor que consiga

    deter um tempo, um artista da deteno do tempo. E, nesse sentido, toda uma relao com o que

    chamamos de gestos mnimos...

    No falei apenas da diferena entre o professor pesquisador e o professor leitor, mas tambm

    entre o professor explicador e o professor que escuta. Pensar em uma formao de um professor que

    escute, um professor escutador... uma ideia muito criticada, mas escutar para conversar, no

    escutar apenas passivamente. No existe outra ao na educao seno escutar primeiro. o outro

    quem fala; o outro quem traz, o outro quem diz, o outro quem inaugura esse tempo. Ento,

    precisa escutar, mas a formao atual no deixa escutar.

    Carmen Sanches; Compreendo o que discute, mas penso o(a) professor(a) pesquisador(a) como

    aquele(a) que investiga no sentido de refletir, de se interrogar, de fazer perguntas sobre a prpria

    prtica...

    Carlos Skliar: ...Mas a fora dos nomes e dos modelos faz com que muitas pessoas achem que essa

    seria uma nica figura possvel. Assim como dizer da reflexo-ao, da teoria baseada na ao;

    acabam sendo modelos. O problema no tanto de quem apresenta os modelos, mas, sim, de quem

    escuta, porque essa figura cobre todos os aspectos da vida do professor. A frase poderia ser mais

    longa, mais alargada... Tem um professor leitor que claramente precisa se perguntar sobre as coisas

    que acontecem no interior da experincia educativa. Pesquisar, sim, tambm! Mas como retirar da

    palavra pesquisar todos os cheiros que ela j tem? No gosto quando as pessoas me perguntam: o

    que voc est pesquisando?. Parece que essa pergunta vincula-se mais com o que voc est

    fazendo, est lendo, porque pesquisar parece uma atividade... um artifcio, como se fosse uma

    atividade no relativa vida. Penso, na verdade, que no pesquisamos. Lemos. Estudamos.

    Conversamos. E depois chega um momento em que tudo isso vai para um formato mais ou menos

    aceitvel para a poca. Mas isso a ltima parte. Necessrio, portanto, comunicar esse processo.

    Para mim, verbos mais simples so suficientes. Verbos que utilizamos na vida cotidiana, para

    muitas outras coisas, no apenas para a academia. Sempre que aparece um artifcio, prefiro

    continuar falando a minha lngua e ficar com as palavras que sei. Qual a imagem que se cria de um

    professor que se sente pesquisador? preciso perguntar para ele (ou para ela) se ele leitor ou no!

    Na educao, tudo est impregnado dessa sensao de que mudar a educao sempre

    questo de heris. E a histria da educao est cheia de grandes pensadores, grandes professores,

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    grandes obras. Mas, quando comeamos a conversar com pessoas que viveram experincias

    institucionais em educao, as lembranas so de pequenos gestos.

    No sei se uma questo da memria, mas voc sabe muito bem que s se aprende quando a

    memria toma a deciso de com o que ficar e de com o que no ficar. Portanto, me parece muito

    interessante pensar que, ao lembrar a educao, o que se lembra o pequeno gesto. Aquele

    professor que um dia... Aquela palavra...

    Carmen Sanches: Aquele professor ou professora que me ouviu, que se debruou sobre mim e

    segurou na minha mo...

    Carlos Skliar: Isso! Aquele toque, aquela ajuda na hora X. Sei l. Tem tantos exemplos para falar

    disso. As pessoas deveriam fazer um esforo de lembrar e reconstruir o educativo a partir dessa

    lembrana. Gosto da figura do professor lembrador. Eu no sei se existe essa palavra... Aquele que

    sempre est se lembrando do importante que se traduz no pequeno. No do importante que exija

    grandes momentos; preciso lembrar todo o tempo de experincias, do seu passado ou do passado

    dos outros; ter disposio muitos exemplos de gestos mnimos para saber provar, para

    experimentar... Para saber o que seria responder com gestos mnimos a uma situao emergencial.

    As biografias, no apenas dos grandes pensadores, dos grandes escritores, podem ser uma

    coleo de gestos mnimos. No sei se j te contei que tomei essa expresso do Nietzsche. Ele

    falava de experincias mnimas. Literalmente, de uma passagem quando ele vai falar de escritos

    autobiogrficos e est pensando qual seria o relato de uma vida, como se poderia construir um

    relato de uma vida. Ele fala das pequenas experincias, experincias mnimas que todo homem e

    toda mulher tem para compor a sua vida. Um passeio, um encontro, uma leitura... E, eu diria... um

    pargrafo de um livro...

    No sei se a ideia dos gestos mnimos est precisando de uma teoria. Ainda no sei, por isso

    no posso falar nunca muito mais do que j falo sobre os gestos mnimos... Penso, todo o tempo, na

    vida mesmo; penso que o nico lugar onde pensar esses gestos mnimos na vida, na experincia

    da vida. Fico pensando: ser necessria uma teoria sobre os gestos mnimos? Ou essa apelao de

    pensar na vida j suficiente? Sempre pensei que poderamos retratar muitos gestos mnimos e...

    conversar sobre eles!