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A Psicologia Transpessoal Carlos António Fragoso Guimarães A Psicologia Transpessoal − Parte I Este texto foi originalmente publicado no Jornal Infinito, em 28 de abril de 2003 O termo “Psicologia” é familiar à maioria das pessoas, embora nem sempre seja compreendido no seu real aspecto. A ideia ou senso comum ainda dominante é a de que esta área apenas trate de criaturas com problemas mentais e emocionais, sendo, portanto, quase sempre à imagem de uma terapia mais ou menos isolante das pessoas com problemas emocionais ou mentais. Embora a Psicologia realmente adote a terapia para o tratamento de “problemas” este é apenas um dos ramos da Psicologia. Sua área de atuação é de uma grandeza muito mais ampla, inclusive na psicoterapia, cujo potencial de auxílio abarca muito mais que os problemas emocionais, já que o termo grego “psique”, de onde derivam as palavras Psicologia, Psiquiatria, Psicanálise e outras, significa “alma”, sendo, pois, a Psicologia, etimologicamente, o “Estudo da Alma”. Dentro das várias ramificações da Psicologia – Psicologia Clínica, Psicologia da Educação, Psicologia das Organizações, Psicologia Jurídica, etc. – vamos encontrar várias abordagens, ou seja, maneiras de se explicar a ação humana com base em determinados pontos de vista, ou formas de se interpretar o ser humano, que constituem escolas baseadas em teorias da personalidade: comportamentalista, humanista, psicanalista, etc. Estas áreas e diferentes abordagens, porém, não devem ser mais vistas como contrárias entre si, mas complementares. Uma forma de se entender isso é lembrarmo-nos da unidade em que se constitui, na sua bela variedade de cores, o arco-íris. São sete cores visíveis, mas não se sabe ou pode determinar onde começa uma ou termina a outra. Antes, uma vai se transformando paulatinamente em outra, e, apesar de diferentes, estão juntas em um mesmo todo: o todo que constitui o arco-íris. Da mesma forma, as diferentes abordagens das psicoterapias, embora se atenham a uma determinada característica essencial do ser humano, formam, em 1

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A Psicologia Transpessoal

Carlos António Fragoso Guimarães

A Psicologia Transpessoal − Parte I

Este texto foi originalmente publicado no Jornal Infinito, em 28 de abril de 2003

O termo “Psicologia” é familiar à maioria das pessoas, embora nem sempre seja compreendido no seu real aspecto. A ideia ou senso comum ainda dominante é a de que esta área apenas trate de criaturas com problemas mentais e emocionais, sendo, portanto, quase sempre à imagem de uma terapia mais ou menos isolante das pessoas com problemas emocionais ou mentais. Embora a Psicologia realmente adote a terapia para o tratamento de “problemas” este é apenas um dos ramos da Psicologia. Sua área de atuação é de uma grandeza muito mais ampla, inclusive na psicoterapia, cujo potencial de auxílio abarca muito mais que os problemas emocionais, já que o termo grego “psique”, de onde derivam as palavras Psicologia, Psiquiatria, Psicanálise e outras, significa “alma”, sendo, pois, a Psicologia, etimologicamente, o “Estudo da Alma”.

Dentro das várias ramificações da Psicologia – Psicologia Clínica, Psicologia da Educação, Psicologia das Organizações, Psicologia Jurídica, etc. – vamos encontrar várias abordagens, ou seja, maneiras de se explicar a ação humana com base em determinados pontos de vista, ou formas de se interpretar o ser humano, que constituem escolas baseadas em teorias da personalidade: comportamentalista, humanista, psicanalista, etc. Estas áreas e diferentes abordagens, porém, não devem ser mais vistas como contrárias entre si, mas complementares.

Uma forma de se entender isso é lembrarmo-nos da unidade em que se constitui, na sua bela variedade de cores, o arco-íris. São sete cores visíveis, mas não se sabe ou pode determinar onde começa uma ou termina a outra. Antes, uma vai se transformando paulatinamente em outra, e, apesar de diferentes, estão juntas em um mesmo todo: o todo que constitui o arco-íris. Da mesma forma, as diferentes abordagens das psicoterapias, embora se atenham a uma determinada característica essencial do ser humano, formam, em seu conjunto, um espectro de “cores” que constituem diferentes estados, ou etapas, ou níveis de consciência. Ao estar em um determinado nível ou estado de consciência, tem-se a tendência de explicar tudo a partir daquela determinada “cor”, o que hoje sabemos ser algo bastante limitador da realidade.

Pois bem, esta compreensão aprofundada do “espectro” da consciência é melhor dada por uma área bastante recente da Psicologia, denominada Psicologia Transpessoal, ou a Psicologia dos Estados de Consciência, sendo que a denominação “Transpessoal” significa “para além dos limites do pessoal”, este pessoal, entenda-se, se referindo a uma pequena parte de nossa consciência “consciente”, classicamente denominada “ego”. Expliquemo-nos:

A abordagem Transpessoal é uma área da psicologia que estuda as possibilidades psíquicas (mentais, emocionais, intuitivas e somato-sensoriais) do ser humano pelos diferentes estados ou graus de consciência pelos quais passa a pessoa (para se ter ideia do que seja estados de consciência, lembre-se que o estado de consciência de quando se está acordado é diferente do estado de consciência de quando se está dormindo; que o estado de consciência de quando se resolve um problema de matemática é diferente de quando se assisti a um filme, etc.). Em cada um destes estados de consciência (que são vários, alguns ainda desconhecidos) é experimentada uma forma diferente de se perceber ou interpretar a realidade (quando estamos com raiva ou frustrados, percebemos o mundo de uma maneira muitíssimo diversa de quando

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estamos apaixonados). A Psicologia Transpessoal, portanto, volta-se para o estudo destes diversos estados, não os encarando como contrários, mas como complementares, dando, porém, especial ênfase aqueles estados de consciência superiores, espirituais ou “transpessoais”, porque em tais estados, o sentimento de separação e de egoísmo tornar-se um segundo plano em relação a um sentimento e identificação mais ampla, cooperativa, fraternal, transpessoal para com todos os seres vivos (consciência crística, búdica, nirvânica, universal ou ecológica). E foram exatamente os grandes mestres, quer religiosos (Cristo, Buda, Francisco de Assis), quer científicos (Einstein, Tesla, Heisenberg), quer políticos (Gandhi, Luther King), quer artísticos (Bach, Da Vinci) que experimentaram, em graus variáveis, picos de “Consciência Cósmica” que mudaram não só suas próprias percepções da realidade, como ajudaram a outros (embora de modo diferente, pois a experiência não pode ser facilmente posta em palavras) a atingirem ao menos uma intuição desta “outra maneira de ver e sentir” o mundo, natural e humano.

Vejamos esta descrição, feita por Stanislav Grof, de experiências correlacionadas com o declínio de uma patologia (extraído, com comentários meus, de Fadiman & Frager, 1986, página 168):

“No estado de consciência “normal” ou usual, o indivíduo se experimenta existindo dentro dos limites de seu corpo físico (a imagem corporal), e sua percepção do meio ambiente é restringida pela extensão, fisicamente determinada, de seus órgãos de percepção externa; tanto a percepção interna quanto a percepção do meio ambiente estão confinadas dentro dos limites do espaço e do corpo. Em experiências psicadélicas (área explorada por Grof em fins dos anos 50, na Checoslováquia, e nos anos 60 nos EUA) de cunho transpessoais, uma ou várias destas limitações parecem ser transcendidas (este fenómeno também se encontra, de modo esporádico, nas várias terapias psicológicas, tendo recebido nomes como “Experiências Oceânicas” em Freud, “Experiências Culminantes” em Maslow, “Consciência Cósmica”, em Weil, “Experiência Mística”, etc.). Em alguns casos, o sujeito experiencia um afrouxamento de seus limites usuais de ego e sua consciência e autopercepção parecem expandir-se para incluir e abranger outros indivíduos e elementos do mundo externo. Em outros casos, ele continua experienciando sua própria identidade, mas numa percepção de tempo diferente, num lugar diferente ou em um diferente contexto. Ainda em outros casos, o individuo pode experienciar uma completa perda de sua própria identidade egóica e uma total identificação com a consciência de uma “outra” entidade. Finalmente, numa categoria bastante ampla destas experiências psicadélicas transpessoais (experiências arquetípicas, união com Deus, etc.), a consciência do sujeito parece abranger elementos que não têm nenhuma continuidade com a sua identidade de ego usual e que não podem ser considerados simples derivativos de suas experiências do mundo tridimensional”.

São, pois, estas experiências culminantes e transumanas, bem como suas consequências no comportamento humano, que são o foco central da Psicologia Transpessoal.

Foi em meados da década de sessenta, durante o rápido desenvolvimento e aceitação dos pressupostos básicos da psicologia humanista, com Maslow e Rogers, que alguns psicólogos e psiquiatras começaram a discutir quais os limites e características a que seria possível chegar o potencial da consciência humana. Muitos pesquisadores achavam que a visão da psique dada pela Psicanálise e pelo Behaviorismo eram, no mínimo, bastante simplificadas e reducionistas, não explicando uma grande gama de fenómenos mentais que escapavam − e muito − do campo de alcance de tais teorias. E a Psiquiatria dava ainda menos clareza sobre uma ampla gama de estados de consciência claramente chocantes e, ao mesmo tempo, fascinantes, que não se podiam restringir unicamente à história orgânico-biográfica de alguns pacientes. Ademais, existiam pessoas de grande capacidade humana que possuíam

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experiências de consciência que não se enquadravam nas teorias vigentes da Psicologia. Daí a necessidade de estudar os estados não-ordinários positivos, ou “Transpessoais”, de percepção e consciência...

Eis as palavras de Maslow anunciando o desenvolvimento da Psicologia Transpessoal:

“Devo também dizer que considero a Psicologia Humanística, ou Terceira Força em Psicologia, apenas transitória, uma preparação para uma Quarta Força ainda “mais elevada”, transpessoal, transumana, centrada mais na ecologia universal do que nas necessidades interesses restritos ao ego, indo além da identidade, da individuação e congéneres... Necessitamos de algo “maior do que somos”, que seja respeitado por nós mesmos e a que nos entreguemos num novo sentido, naturalista, empírico, não-eclesiástico, talvez como Thoreau e Whitman, William James e John Dewey fizeram”.

A Psicologia Transpessoal − Parte II

“Não apenas é o homem parte da natureza − e esta é parte sua −, como deve ser minimamente isomórfico (semelhante a) com ela para nela ser viável. Ela o gerou. Sua comunhão com aquilo que o transcende não precisa ser definida, portanto, como não-natural ou sobrenatural. Pode ser vista como uma experiência “biológica”. − Abraham Maslow

O que é e como surgiu a Psicologia Transpessoal

A grande maioria dos teóricos da personalidade toma por fundamento básico a consciência em estado de vigília, ou consciência normal, como sendo a única possibilidade saudável de nível de percepção cognitiva. As características básicas desta consciência normal, segundo Fadiman & Frager, é que a pessoa sabe “quem é”, tem perfeita noção de si mesma como uma individualidade, e seu sentido de identidade é estável. Ou seja, a pessoa tem uma ideia clara de ser uma individualidade diferenciada do meio que a cerca. Estudos vários sobre a imagem corporal e do sentido do ego concluem que qualquer desvio desses limites é um grave sintoma psicopatológico. Só que tal conclusão começou a ser seriamente questionada com vários relatos e pesquisas sérias realizadas em várias partes do mundo.

Às vezes, experiências correlacionadas com um declínio de uma psicopatologia e com a restauração da saúde psíquica podem muito bem expor experiências subjetivas que ultrapassam e muito os chamados limites normais do ego. William James já o havia notado em fins do século passado. O resultado de muitas destas pesquisas, muitas delas envolvendo psiquiatras e psicólogos famosos, levantou uma séria questão: seria possível que algumas das distinções que mantemos entre nós mesmos e o resto do mundo sejam arbitrárias e/ou culturalmente condicionadas? Talvez a consciência humana seja um vasto campo ou espectro, semelhante ao espectro eletromagnético, onde cada “frequência” expressaria um modo de percepção, muito mais que um conjunto firme de traços ou características rigidamente definidas de expressão, já que em certas experiências − algumas delas envolvendo psicadélicos ou drogas psicoativas − a consciência do sujeito parece abranger elementos que não têm nenhuma continuidade com sua identidade do ego usual e que não podem ser considerados simples derivativos de suas experiências no mundo convencional.

Muitos renomados psicólogos humanísticos e alguns psiquiatras insatisfeitos com a abordagem excessivamente mecanicista e biomédica de sua disciplina mostraram crescente interesse por áreas de estudo antes negligenciadas, e por tópicos de psicologia próximas a estes estados alterados de consciência, como, por exemplo, as experiências místicas, ou de

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consciência de transe. As tendências isoladas começaram a unir-se graças aos trabalhos de Abraham Maslow e Anthony Sutich, o que acabou por consolidar a chamada Quarta Força em Psicologia (esta classificação é feita com base em características próprias de cada escola, não pelo contexto histórico. Assim, a primeira seria o Behaviorismo, a segunda a Psicanálise e a terceira o Humanismo). Foi assim que nasceu a Psicologia Transpessoal, como disciplina autónoma, no final dos anos sessenta, mas as tendências desse movimento já existiam há muito tempo. Por exemplo, Carl Gustav Jung, Roberto Assagioli e o próprio Maslow já haviam lançado as bases para o movimento transpessoal (Grof, 1988). Outros psicólogos, como Carl Rogers, acabaram, na evolução de seu trabalho e de sua prática clínica, por se encontrarem com dimensões transcendentes trazidos à tona por clientes e grupos terapêuticos.

Carl Gustav Jung

Carl Gustav Jung pode ser considerado o mentor máximo e o primeiro psicólogo transpessoal. As diferenças entre a Psicanálise Freudiana e as teorias de Jung são muito bem representativas das diferenças entre uma psicoterapia mecanicista e biomédica e uma mais humana e holística. Ainda que Freud e muitos dos seus discípulos tenham ido muito a fundo nas suas revisões da psicologia ocidental, atingindo os limites do paradigma cartesiano em Psicologia, apenas Jung questionou radicalmente seus fundamentos filosóficos: a visão de mundo de Descartes e Newton. Jung salientou, de modo convincente, aspectos não racionais e não lineares da psique, que inclui o misterioso, o criativo e o espiritual como meios válidos, ou formas holísticas-intuitivas de conhecimento.

Jung via a psique como uma interação complementar entre elementos conscientes e inconscientes, com uma constante troca de informação e fluidez entre ambos. O inconsciente não seria um mero depósito psicobiológico de tendências instintivas reprimidas. Ele seria um princípio ativo inteligente, que, em seu estrato mais profundo, ligaria o indivíduo a toda a humanidade, à natureza e ao cosmos. Ele não seria governado apenas pelo determinismo histórico, como postulado por Freud, mas também por uma ânsia evolutiva com uma função projetiva e teleológica.

Estudando a dinâmica do inconsciente, Jung descobriu as unidades funcionais que chamou de complexos e, como tais, foram adotadas por Freud. Os complexos são constelações de elementos psíquicos − ideias, opiniões, atitudes e convicções − associados com sensações diversas e que se juntam ao redor de um tema nuclear. Partindo de áreas biograficamente determinadas do inconsciente, Jung chegou aos padrões de criação dos mitos, lendas e símbolos universais, aos quais ele deu o nome de arquétipos e que expressam, de forma simbólica, conteúdos psíquicos de significação emocional universal, como o processo de maturação psíquica e outros. Jung não acreditava que o ser humano fosse uma mera máquina biológica. O conceito de máquina é extremamente antropomórfico para ser um conceito natural. Além disso, ele reconhecia que o processo de maturação psíquica pode, em certos casos, transcender e muito os estreitos limites do ego e do inconsciente individual. Por isso ele é considerado o primeiro representante da orientação transpessoal em psicologia.

Pela subtil e cuidadosa análise de seus próprios sonhos, tal como antes fizera Freud, bem como dos sonhos de seus pacientes e dos delírios de pacientes psicóticos, Jung descobriu que os sonhos têm, algumas vezes, imagens e motivos que se repetem e que podem ser encontrados não só nas diversas partes do mundo, como também em diferentes períodos da história. Assim, ele chegou à conclusão de que, além do inconsciente individual, há um inconsciente coletivo ou racial, comum a toda a humanidade, manifestação da criatividade universal. As únicas fontes de informação sobre os aspectos coletivos do inconsciente seriam o estudo das religiões comparadas e da mitologia universal. Para Freud, os mitos podem ser

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interpretados em termos de problemas e conflitos característicos da infância e sua universalidade reflete o conjunto da experiência humana compartilhada culturalmente. Jung rejeitou tal explicação reducionista. Ele havia observado que os enredos mitológicos universais ocorriam em indivíduos que não tinham, de maneira alguma, qualquer conhecimento deles. Isso lhe sugeriu que haveria elementos estruturais formadores de mitos na psique inconsciente. Tais elementos originariam tanto a fantasia viva e os sonhos pessoais quanto a mitologia dos povos. Assim, os sonhos podem ser encarados como mitos individuais e os mitos, como sonhos coletivos. De qualquer modo, estas matrizes primárias são como a expressão instintual do potencial psíquico que cada indivíduo terá de, em seu crescimento, desenvolver.

Freud sempre demonstrou durante toda a sua vida um apaixonante interesse por religião e espiritualidade, mas como expressão de recalques do desenvolvimento psicossexual do homem expresso na forma da cultura religiosa. Ele acreditava que era possível uma compreensão do processo irracional conflitivo, que viria das que fases do desenvolvimento psicossexual, responsável pelo surgimento da religião. Jung, ao contrário, dispunha-se a aceitar o irracional e o paradoxal como válidos em si mesmos. Ele estava convicto da realidade da dimensão espiritual no esquema universal das coisas. Sua suposição básica era que o elemento espiritual é uma parte orgânica integral da psique. A verdadeira espiritualidade, ou a sua busca, é um aspecto pulsional do inconsciente coletivo, independente do condicionamento da infância e da vida do indivíduo, do ponto de vista cultural e educacional. Assim, se a análise e a auto-exploração alcançam suficiente profundidade, os elementos espirituais emergem espontaneamente na consciência. A maior contribuição de Jung para a psicoterapia é seu reconhecimento das dimensões espirituais da psique e suas descobertas nos campos transpessoais.

O que faz de Jung um génio na psicologia moderna é sua ampla visão, que vai bem além de sua época, e o seu método científico. O enfoque de Freud era estritamente histórico e determinístico, bem ao gosto do paradigma cartesiano-newtoniano; ele interessava-se em encontrar explicações lineares-racionais para todos os fenómenos psíquicos, seguindo uma génese histórico-biográfica. Jung estava convencido de que a causalidade linear não era o único princípio mandatório na natureza. Ele criou um termo, sincronicidade, para designar um princípio de ligação entre eventos de forma não-causal, o que explicaria as chamadas coincidências significativas de eventos separados no tempo e/ou no espaço. Também se interessava intensamente pelo desenvolvimento da Física Moderna e mantinha estreito contacto com seus representantes mais proeminentes. Foi Einstein que, durante um encontro pessoal, encorajou Jung a perseguir o conceito de sincronicidade, e Wolfgang Pauli, um dos fundadores da teoria quântica, publicou um ensaio conjunto com Jung sobre sincronicidade, bem como escreveu um estudo sobre os arquétipos na obra do físico Johannes Kepler. Não deixa de ser tremendamente irónico o fato de que, embora Freud se orgulhasse de a Psicanálise ser atrelada ao mecanicismo newtoniano e de que os psicanalistas serem “mecanicistas incorrigíveis”, ter sido a psicologia “esotérica” de Jung a que tenha exercido maior impacto entre os génios da ciência moderna.

Mas o que tem a ver Física e Psicologia? Bem, os Físicos modernos têm muito a dizer sobre a importância da consciência na definição do que seja realidade. Eles, juntamente com os místicos genuínos, parecem estar cada vez mais próximos uns dos outros em suas tentativas para descrever o que seja o universo (ver os excelentes livros de Fritjof Capra e de Lawrence LeShan). Os resultados das experiências transpessoais sugerem que a natureza da génese da consciência podem ser mais realisticamente descritas por místicos e físicos modernos do que pela mais estável e aceita linha psicológica académica.

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Muitos autores (Abraham Maslow, Pierre Weil, Stanislav Grof, Ken Wilber, Walsh, Vaughan entre outros) oferecem a evidência de que os assim chamados “estados alterados” são, não só naturais, como também necessários para o bem-estar e a saúde do indivíduo, após atingir um certo grau de desenvolvimento cognitivo e ter atendido as necessidades básicas mais urgentes. Maslow acredita que, a menos que tenhamos oportunidade de mudarmos nosso estado de consciência, podem desenvolver-se sintomas emocionais graves se impedirmos o afloramento dos níveis transcendentes da personalidade. Da mesma forma como existe uma pulsão para a experiência sexual, também parece haver uma pulsão para o desenvolvimento de níveis de percepção.

Roberto Assagioli

Outro autor de importância para o desenvolvimento da Psicologia Transpessoal é Roberto Assagioli. Ele é o criador da psicossíntese, que é um tipo de resposta ao método fragmentar da psicanálise, onde está claro a responsabilidade do indivíduo no processo do próprio crescimento, que é um impulso constante em todos as pessoas, apesar de relativamente ténue, embora poucas se dêem a chance de se desenvolverem plenamente.

A cartografia de Assagioli sobre a personalidade humana tem muito em comum com o modelo junguiano da psique, uma vez que inclui os campos espirituais e os elementos coletivos da psique. Ela constitui-se por sete constituintes dinâmicos: o inconsciente inferior orienta as atividades psicológicas básicas, como as pulsões sexuais e os complexos emocionais. O inconsciente médio seria algo como o subconsciente. O campo superconsciente é o local dos sentimentos e aptidões superiores, onde se localizam a intuição e a inspiração. O campo da consciência inclui os pensamentos e sentimentos analisáveis. O ponto central da psique é o self. Todos esses componentes são anexados ao inconsciente coletivo.

O processo terapêutico fundamental da psicossíntese envolve quatro estágios consecutivos. Primeiro, o cliente toma conhecimento dos vários elementos (didaticamente falando) de sua personalidade, o que inclui seu ego ideal e o seu ego real, com todos os defeitos que a pessoa gostaria de suprimir. Depois que estiver bem familiarizado com eles, ele terá que começar a desidentificar-se com esses elementos (conhecer-se a si mesmo e perceber que suas várias características são apenas características, não o fundamento do ser, ou self). Depois que a pessoa descobre seu centro psicológico unificador, é possível a realização total da psicossíntese, caracterizada pela culminância do processo de auto-realização pela integração dos componentes da personalidade à volta do novo centro, o self.

Abraham Maslow

Foi Abraham Maslow quem primeiro formulou, explicitamente, os princípios da psicologia transpessoal como uma abordagem diferenciada. Uma de suas mais importantes contribuições é o seu estudo sobre pessoas que vivenciaram, espontaneamente, as chamadas experiências místicas de “pico”. Na psicoterapia tradicional, experiências místicas de qualquer tipo são sempre taxadas como sérias psicopatologias. Em seu estudo muito bem feito, Maslow demonstrou que as pessoas que tiveram experiências espontâneas de “pico” beneficiavam-se delas e mostravam uma claríssima tendência para a auto-realização, que é o objetivo da psicoterapia humanística. Ele julgou estas experiências como supernormais em vez de subnormais. A partir desse fato, erigiu os fundamentos da nova psicologia.

Um outro aspecto importante do trabalho de Maslow é a análise das necessidades humanas e sua revisão geral da teoria dos instintos. Ele descobriu que as maiores necessidades representam um aspeto importante e autêntico das estrutura da personalidade humana e que

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não pode ser reduzido a uma mera derivação de instintos básicos (a ideia de instinto sugere uma busca da ligação do comportamento humano dentro das diretrizes da ciência mecanicista convencional). Segundo ele, as maiores necessidades têm um papel importante na doença e na saúde mental. Valores superiores (metavalores) e os impulsos para alcançá-los (metamotivações) são intrínsecos à natureza humana, possuindo uma fundamentação tão biológica quanto a pulsão sexual, por exemplo.

Eis as palavras de Maslow anunciando o desenvolvimento da Psicologia Transpessoal (Maslow, 1968, página 12):

“Devo também dizer que considero a Psicologia Humanística, ou Terceira Força em Psicologia, apenas transitória, uma preparação para uma Quarta Força ainda “mais elevada”, transpessoal, transumana, centrada mais na ecologia universal do que nas necessidades e interesses restritos ao ego, indo além da identidade, da individuação e congéneres... Necessitamos de algo “maior do que somos”, que seja respeitado por nós mesmos e a que nos entreguemos num novo sentido, naturalista, empírico, não-eclesiástico, talvez como Thoreau e Whitman, William James e John Dewey fizeram”.

Carl Rogers

Apesar de não ser incluído, pela maioria dos autores, como um psicólogo transpessoal, mas como um dos mais significativos psicólogos humanistas, não escapou a Carl Rogers as chamadas dimensões transcendentes ou espirituais que frequentemente emergiam no contexto terapêutico, especialmente em termos de Terapia de Grupo, na qual Rogers foi grande pioneiro. E foi exatamente a partir do revolucionário trabalho com Grandes Grupos e em Workshorps, na última fase de sua formulação teórica, que a temática transpessoal começa a delinear-se nos escritos do criador da Abordagem Centrada na Pessoa, e nos escritos de seus principais colaboradores. John K. Wood, por exemplo, escreveu o seguinte comentário (Rogers, 1983b) sobre as ocorrências transpessoais que costumam ocorrer em Grandes Grupos:

“Frequentemente as pessoas compartilham e falam de sonhos sem interpretação ou comentário. Sonhos comuns muitas vezes ocorrem. Algumas pessoas reportam “experiências místicas” (...). As mesmas ideias e mitos [imagens arquetípicas] frequentemente emergem de várias pessoas ao mesmo tempo.” (Rogers, 1983b, p. 34)

O próprio Rogers se refere muitas vezes, em suas últimas obras, às perceções transpessoais e fenómenos congéneres de estados subtis de consciência, e estabelece que estes são eventos observáveis e inerentes ao trabalho bem sucedido com Grandes Grupos e Workshops: “O outro aspecto importante do processo de formação de [Grandes Grupos] com que tenho tido contacto é a sua transcendência e espiritualidade. Há alguns anos eu jamais empregaria estas palavras. Mas a extrema sabedoria do grupo, a presença de uma comunicação profunda quase telepática, a sensação de que existe “algo mais”, parecem exigir tais termos” (Rogers, 1983a, p. 62).

“Tenho a certeza de que este tipo de fenómeno transcendente às vezes é vivido em alguns grupos com que tenho trabalhado, provocando mudanças na vida de alguns participantes. Um deles colocou de forma eloquente: “Acho que vivi uma experiência espiritual profunda, senti que havia uma comunhão espiritual no grupo. Respiramos juntos, sentimos juntos, e até falamos uns pelos outros. Senti o poder de força vital que anima cada um de nós, não importa o que isso seja. Senti sua presença sem as barreiras usuais do “eu” e do “você” − foi como uma experiência de meditação, quando me sinto como um centro de consciência, como parte de uma consciência mais ampla, universal” (Rogers, 1983a, pp. 47-48).

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De certa forma, Rogers parecia estar indicando que a ACP por ele elaborada, junto com seus colaboradores, estaria a desenvolver-se ao ponto de incluir as dimensões transpessoais em seu arcabouço teórico, mas a sua morte impediu-o de levar adiante seus insights:

“Tenho a certeza de que nossas experiências terapêuticas e grupais lidam com o transcendente, o indescritível, o espiritual. Sou levado a crer que eu, como muitos outros, tenho subestimado a importância da dimensão espiritual ou mística” (Rogers, 1983a, p. 53).

Características de uma nova Psicologia

A nova psicologia que surge, apoiada numa concepção holística e sistémica, considera o organismo humano como um todo integrado que envolve padrões físicos, mentais, sociais e espirituais. Assim, a base conceitual da Psicologia dever ser compatível tanto com a da Biologia quanto a da Sociologia, Antropologia e Filosofia. No modelo académico moderno, a estrutura voltada à especialização do conhecimento tornou muito difícil a comunicação entre as disciplinas, e entre biólogos e psicólogos o entendimento era muito sofrido. E pior era a comunicação, cheia de medos e ressentimentos, entre psicólogos e médicos. Mas a abordagem sistémica fornece um terreno propício para a compreensão das manifestações psicossomáticas do organismo na saúde e na doença, permitindo um intercâmbio, desde que se queira, entre biomédicos e psicólogos.

O foco central da psicologia está tendendo a transferir-se das estruturas psicológicas para os processos relacionais subjacentes. A psique humana é vista como um sistema dinâmico que envolve uma variedade de fenómenos ligados à auto-atualização e crescimento contínuos. Assim, a psique teria um tipo de inteligência intrínseca que a habilita a envolver-se a tal ponto com o meio, que este processo pode levar não só a uma doença, mas também ao processo de cura e crescimento, como a concepção de auto-transcendência da teoria dos sistemas.

O Espectro da Consciência

Um dos sistemas didáticos, em psicologia, que procura integrar os diferentes insights das várias escolas psicoterapêuticas do ocidente entre si, e estas com as várias abordagens orientais, é a Psicologia do Espectro, proposta por Ken Wilber, como um modelo da compreensão transpessoal das diferenças entre psicoterapias. Nele, cada uma das diferentes escolas é vista como uma faixa que se dedica a um aspecto específico do total a que se pode apresentar a consciência humana. Cada uma dessas escolas aponta para um estado de consciência que se caracteriza por possuir um diferente senso de identidade, indo da pequena identidade restrita ao ego até à suprema identidade com todo o universo, que é o nível extremo da consciência transpessoal. Este espectro pode ser entendido a partir de quatro níveis: o do ego, o biossocial, o existencial e o transpessoal.

No nível do ego, a pessoa não se identifica, a rigor, com o seu organismo, mas com uma representação mental, ou com um conceito do mesmo, como uma auto-imagem construída, ou egóica. É, pois, um problema de identificação com um modelo que a pessoa aceita, num investimento, como sendo seu “eu”. Existe − para ela − um “eu” que é diferente e independente de tudo e de todos. A pessoa não se interessa muito em cultivar relações interpessoais sem que haja uma vantagem específica para o ego, e muito menos se preocupa com aspectos ecológicos ou sociais.

O nível biossocial já envolve a consciência e a preocupação com o nível e com os aspectos do ambiente social da pessoa. A influência preponderante é a de padrões culturais e sociais. A pessoa sente como fazendo parte − e tendo alguma responsabilidade − pelo seu meio ambiente social e natural.

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O nível existencial é o nível do organismo total, caracterizado por um senso de identidade corpo/mente auto-organizador. É o nível dos ideais humanistas e do pensamento mais sofisticado, em termos de filosofia de vida. Emoção e razão estão mais ou menos associadas para o crescimento e o desenvolvimento das potencialidades do homem, desde que os meios sejam razoavelmente propícios. Quando não, ainda assim a pessoa luta para se auto-atualizar e a ajudar seus semelhantes. Alto grau de desenvolvimento moral é frequentemente associado a este estágio.

O nível transpessoal é o nível da expansão da consciência para além das fronteiras do ego, correspondendo a um senso de identidade mais amplo. Elas podem envolver percepções do meio ambiente, onde tudo está, de uma forma subtil mas muito presente, ligado − de forma não linear − a tudo. É o nível do inconsciente coletivo e dos fenómenos que lhe estão associados, tal como descritos por Jung e seguidores. É também neste nível de percepção que podem − mas não necessariamente ocorrem ou são regra geral próprias de uma percepção transpessoal − surgir, como eventos secundários, certos fenómenos parapsicológicos, como telepatia, precognição ou − o que não tipifica um fenómeno parapsicológico, mas sim psicológico − lembranças de vidas passadas. É uma forma extremamente sofisticada e não ordinária de consciência em que a pessoa não aceita mais a crença uma separação rígida entre ela e todo o universo, a não ser como uma forma de atuar praticamente sobre o meio em que vive com outras pessoas. Essa forma de consciência transcende, e muito, o raciocínio lógico convencional, e aproxima-se das assim chamadas experiências místicas. E é este estado que é objeto mais íntimo de estudo da Psicologia Transpessoal.

Enfim, para terminar, é preciso definir o relacionamento entre a prática da psicologia transpessoal e os enfoques tradicionais de psicoterapia. O que caracteriza um terapeuta transpessoal não é o seu conteúdo, mas o contexto. O conteúdo é determinado pela relação terapêutica em si, entre cliente e terapeuta, como bem o estabeleceu Carl Rogers. Um terapeuta transpessoal lida com os problemas que emergem durante o processo terapêutico, incluindo acontecimentos mundanos, fatos biográficos e problemas existenciais. O que realmente define a orientação transpessoal é um modelo da psique humana que reconhece a importância das dimensões espirituais e o potencial para a evolução da consciência. O terapeuta transpessoal deve ser consciente do espectro total e deve sempre acompanhar o cliente a novos campos experienciais, quando há oportunidade, não importando qual o nível que o processo terapêutico esteja focalizando.

Bibliografia

Capra, Fritjof − O Ponto de Mutação, Editora Cultrix, São Paulo, 1986

Grof, Stanislav − Além do Cérebro, Editora McGraw-Hill, São Paulo, 1988

Fadiman, J. & Frager, R. − Teorias da Personalidade, Editora Harbra, São Paulo, 1986

Maslow, Abraham − El hombre Autorealizado, Editora Kairós, Barcelona, 1990

Walsh, R. & Vaughan, F. − Além do Ego: Dimensões Transpessoais em Psicologia, Editora Cultrix, São Paulo, 1991

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