Carla Rodrigues - Tornar-se Mulher, Devir Feminista
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Tornar-se mulher, devir feminista
Filósofa percebeu que para a mulher só havia uma definição negativa: aquela que não é homem
Zélia Gattai, Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Jorge Amado e Mãe Senhora no Axé Opó Afonjá, 1960 | Foto Acervo Zélia Gattai / Fundação
Casa de Jorge Amadopor Carla Rodrigues
“Não se nasce mulher, torna-se mulher”, tradução brasileira para o original “On ne naît pas femme, on devient femme”, é a frase célebre com a qual
Simone de Beauvoir começa o segundo volume de O segundo sexo, em 1949 (o primeiro volume havia passado praticamente despercebido), cujo
eco se ouve ainda hoje na política e na teoria feminista. O recurso ao original tem aqui o objetivo de chamar a atenção para a importância do verbo
reflexivo “tornar-se”, que supõe, na sua definição, um movimento de transformação, promove uma mudança e faz com que algo ou alguém deixe um
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estado e passe a outro. Na obra da filósofa Simone de Beauvoir, a atualidade do verbo “tornar-se” só é compreensível em toda a sua profundidade e
extensão a partir do seu original – “devenir” – , que carrega nele tanto o sentido do movimento quanto o de futuro, resultado da sinonímia entre
verbo e substantivo no idioma francês. Esse entrelaçamento pode ajudar a compreender a importância da herança deixada por Beauvoir não apenas
para o presente, mas para o devir, uma das palavras da língua portuguesa com a qual se pode traduzir “devenir”.
O segundo sexo vem reverberando desde sua publicação e, mais recentemente, seu cinquentenário foi comemorado como um grande feito da
filosofia política feminista. A primeira grande contribuição da filósofa foi perceber que a mulher tinha sido reduzida, desde o início da modernidade, aolugar de Outro do homem, excluída do conceito supostamente neutro e universal de humano, sob o qual, de direito, estava abrigado apenas o
homem. Por isso, Beauvoir começa observando que a ninguém nunca teria ocorrido escrever um livro sobre a condição do homem, por que esta
sempre esteve abarcada pela condição humana. Cumpre, assim, uma tarefa histórica, a de denunciar o fracasso do projeto moderno de
universalidade ao perceber que só havia uma definição negativa para a mulher: aquela que não é homem.
Essa concepção inferiorizava a mulher em uma posição secundária, argumentava Beauvoir, ainda que o segundo sexo não estivesse fundamentado
em nenhum aspecto da natureza humana, mas na educação, na cultura e nas formas de sociabilidade. O corpo biológico de uma fêmea torna-se
mulher a partir da cultura, e não de regras até então tidas como naturais. Com este ponto de partida, ela influenciou pensadoras ocidentais em
diversos campos da teoria feminista, que estabeleceu, a partir dos anos 1970, sob influência da antropóloga Gayle Rubin e em debate com o
antropólogo Lévi-Strauss, o sistema sexo/gênero, indicação de que a todo corpo biológico é atribuído um gênero, este submetido a regras sociais.
Em diálogo com as aberturas proporcionadas por Beauvoir, sob influência de Rubin, de Monique Wittig e de tantas outras, no final da década de
1980 a filósofa norte-americana Judith Butler escreve uma série de artigos que serão reunidos no livro Problemas de gênero – feminismo e
subversão da identidade (Civilização Brasileira, 2003). O primeiro texto é inteiramente dedicado a fazer avançar o sistema sexo/gênero a partir de
um componente até então ausente, o desejo. É por perceber essa ausência que Butler dá um passo a mais na teoria feminista, abre espaço para a
emergência da teoria queer – que tem entre seus objetivos a crítica da heterossexualidade normativa – e ainda propõe a performatividade de
gênero, possível a partir de uma certa radicalização do verbo “tornar-se”. Performatizar é uma forma de fazer gênero, expressão já indicativa de que
o gênero não é da ordem do ser, não é estático, não está previamente dado.
De certa forma, Butler desconstruiu – aqui lembrando que desconstruir não é destruir, mas decompor camadas sedimentadas do pensamento – o
sistema sexo/gênero como o filósofo franco-argelino Jacques Derrida já havia feito com o par significante/significado da linguística estruturalista de
Ferdinand Saussure. Há nos dois gestos, no entanto, o reconhecimento de que esses pensamentos se fazem a partir das brechas abertas pelos
pensadores anteriores.
Quando Butler estabelece com Beauvoir um debate sobre o par sexo/gênero, o faz por perceber que essa distinção ainda está submetida à tradição
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laboratório Khôra de Filosofia das Alteridades.