Capitulo Introdutorio Tese Versão 1

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Inventando um país 1. A terra da magia Even in our low-attention span, information overload electronic age, there is no doubting the power of the story to fire the imagination - and no nation tells a story like the Irish (Simon Evans – The Birmingham Post September 2004) Ouvir histórias bem contadas realmente incendeia a imaginação, pois além de se deliciar com os detalhes narrados, cada ouvinte cria e apreende a narrativa de forma única e individual. Talvez advenha daí o fascínio pela Irlanda, nação que sabe contar histórias, e o faz muito bem. A profissão de contador de histórias ainda tem lugar na modernidade tardia irlandesa, quer com características de performance ou mais tradicionais, tanto na República da Irlanda quanto na Irlanda do Norte. A tradição dos bardos e contadores de história e estórias está profundamente enraizada na cultura irlandesa e remonta aos tempos em que as tribos celtas antigas habitavam a região 1 . A inexistência de uma escrita celta fez com que fossem desenvolvidas as habilidades de memorização e transmissão oral do conhecimento 1 A historiografia aponta como provável a data de 350 a.C para a chegada dos primeiros celtas (provavelmente da Gália) à Irlanda. 1

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pensamentos sobre a Irlanda

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Inventando um país

1. A terra da magia

Even in our low-attention span, information

overload electronic age, there is no doubting

the power of the story to fire the imagination -

and no nation tells a story like the Irish

(Simon Evans – The Birmingham Post

September 2004)

Ouvir histórias bem contadas realmente incendeia a imaginação, pois além de se

deliciar com os detalhes narrados, cada ouvinte cria e apreende a narrativa de forma única e

individual. Talvez advenha daí o fascínio pela Irlanda, nação que sabe contar histórias, e o

faz muito bem. A profissão de contador de histórias ainda tem lugar na modernidade tardia

irlandesa, quer com características de performance ou mais tradicionais, tanto na República

da Irlanda quanto na Irlanda do Norte. A tradição dos bardos e contadores de história e

estórias está profundamente enraizada na cultura irlandesa e remonta aos tempos em que as

tribos celtas antigas habitavam a região1. A inexistência de uma escrita celta fez com que

fossem desenvolvidas as habilidades de memorização e transmissão oral do conhecimento

das tribos, fossem leis, lendas ou contos de fadas. Embora narrar seja parte do processo

cognitivo de todo ser humano, e ainda que os guerreiros narrassem suas batalhas e

provavelmente todos os membros das tribos narrassem suas experiências, a classe

legitimada para desempenhar esta tarefa nas sociedades celtas era a classe sacerdotal que

cumpria também funções religiosas, mágicas, científicas, jurídicas e políticas. De acordo

com os textos clássicos gregos e romanos, era preciso cerca de 20 anos para se formar um

druida, e certamente as técnicas de oratória e de memorização faziam parte do extenso

treinamento a que eram submetidos. Druidas, fili2 e bardos ocupavam papel central nas

sociedades celtas, principalmente na Irlanda, que não foi ocupada pelos romanos e, que,

1 A historiografia aponta como provável a data de 350 a.C para a chegada dos primeiros celtas (provavelmente da Gália) à Irlanda. 2 Poetas irlandeses

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portanto, preservou sua identidade celta até a cristianização, ocorrida no século V3. O

processo de cristianização se deu através de missionários cristãos, dos quais destacamos

São Columba (521-597), Santa Brígida da Irlanda (451-525) e São Patrício (?-493), este

último patrono do país. Mesmo após a cristianização, a igreja irlandesa manteve

características celtas, sendo, portanto, denominada Igreja Céltica4. Certos rituais, tradições

e práticas eram únicos, distintos daqueles da Igreja de Roma. A organização religiosa se

dava através dos mosteiros, verdadeiros centros de conhecimento e letramento na Idade

Média. Nos mosteiros viviam os monges, liderados por um abade de origem nobre que

estabelecia os monastérios em suas terras5. Os monges irlandeses são considerados

sucessores dos fili (Chadwick,1966). Registraram em manuscritos dos séculos VI a XII, em

gaélico e em latim, as leis, contos e lendas da Irlanda que circulavam desde a era pré-cristã.

As lendas dos famosos ciclos: mitológico6, de Ulster7 e de Finn8, e o antigo livro das leis

irlandesas9 (Bechbretha), bem como compilações de contos de fadas celtas são exemplos

dessa literatura ancestral até hoje estudados pelos pesquisadores do passado irlandês.

A literatura irlandesa reconhecida mundialmente por sua qualidade, guarda uma

herança muito antiga, fruto da tradição oral, que é contar histórias e estórias sobre o seu

povo e a sua terra. Esta tradição está tão arraigada na identidade cultural irlandesa e na

forma pela qual o país é representado, que podemos encontrar não só na literatura, mas

também no cotidiano irlandês, referências a mitos, lendas e heróis ancestrais. O próprio

nome do país em irlandês, Eire, em gaélico Éire está ligado à mitologia celta. Segundo a

3 O chamado mundo celta já se encontrava incorporado pelo império romano desde o século I d.C., com exceção das tribos celtas da Irlanda, terras altas da Escócia e País de Gales. 4 A Igreja Céltica refere-se ao cristianismo praticado na Idade Média e que se desenvolveu ao redor do Mar da Irlanda nos séculos V e VI. 5 No continente, a organização religiosa da Igreja de Roma previa um bispo para cada diocese. O bispo deveria residir em uma cidade que pudesse comportar uma catedral.6 O ciclo mitológico trata da origem dos povos que colonizaram a Irlanda. Deuses do bem e do mal são retratados.7 O ciclo de Ulster trata dos heróis e do desenvolvimento da civilização irlandesa. O período definido nas narrativas se situa por volta do ano do nascimento de Cristo e seus personagens são muitas vezes seres presentes no ciclo mitológico, semideuses e deuses incorporados em humanos. O herói central deste ciclo é Cú Chulainn, que guarda semelhanças com Aquiles.8 O ciclo de Finn retrata os séculos II e III, sendo o mais popular dos ciclos da antiga literatura irlandesa. O personagem central é o guerreiro Fionn Mac Cunhail e sua milícia. Seu filho Oisin é o narrador das sagas e considerado o maior poeta da Irlanda.9 O livro das antigas leis irlandesas foi escrito entre os séculos VI e IX, em irlandês antigo (Old Irish) e refletem as leis que circulavam no período pré-cristão embora se observem influências cristãs nos textos. Trata de questões de hierarquia e propriedade. Seu estudo possibilita uma melhor compreensão da sociedade irlandesa pré-cristã.

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lenda, a deusa Éire, esposa de Mac Gréine10 pediu ao líder dos invasores gauleses, Donn,

após ter seu marido assassinado, que pudesse dar seu nome à terra que lhe fora tomada. O

líder tratou-a com desprezo e ignorou seu pedido, provocando uma guerra entre os

invasores e os deuses e morrendo afogado no mar. Atribuindo este fato à recusa de Donn

em atender ao pedido de Éire, o druida Amairgen, assassino de seu marido, prometeu que

ela daria nome à terra invadida, e Eire permanece sendo o nome irlandês moderno para a

Irlanda (cf. Ellis, 1992). Outro exemplo marcante é o do herói mítico Cú Chulainn 11, figura

central do ciclo de Ulster, que entre outras re-apropriações, foi utilizado pelos nacionalistas

republicanos do início do século XX como símbolo de resistência de uma Irlanda livre. Sua

estátua em bronze imortaliza o momento em que o herói agoniza para demonstrar que nem

mesmo a morte poderia vencê-lo12. A estátua foi erguida em frente ao Correio Geral de

Dublin (GPO - General Post Office), local onde ocorreu o emblemático episódio

nacionalista conhecido como o levante de Páscoa de 1916. Naquela ocasião, os rebeldes

republicanos da organização militar Irish Volunteers (Voluntários Irlandeses) sob o

comando de Patrick Pearse se juntaram ao Irish Citizen Army (Exército de cidadãos

irlandeses) de James Connolly e cerca de 200 simpatizantes e membros de associações

militares e paramilitares; tomaram pontos-chave em Dublin, como o prédio do Correio

Geral, declararam a independência irlandesa e proclamaram a república em 24/04/1916 em

documento lido por Pearse. Por seis dias, até que o levante fosse sufocado pelo exército

britânico, a república irlandesa existiu. Curiosamente, o mesmo herói mitológico serve

também aos interesses unionistas13 da Irlanda do Norte. A figura do herói, aqui com postura

guerreira, relembra Cú Chulainn como um nativo de Ulster que defendeu a cidade de

ataques dos irlandeses do sul. Sua imagem está estampada em murais de Belfast como um

símbolo de apoio aos realistas. Outro símbolo nacional extremamente popular para os

10 Segundo a mitologia, Mac Gréine é filho de Ogma, deus da poesia. Foi esposo da deusa Éire, que nomeia a Irlanda, e foi morto pelo druida gaulês Amairgen (cf. Ellis, 1992). 11 Seu nome significa “o cão do ferreiro”. Segundo a mitologia, o herói, filho de uma mortal e um deus, aos sete anos matou o cão do ferreiro de Ulster. Este ferreiro, que forjava as armas do rei, era a encarnação do principal rei dos mares, Manannán Mac Lir, em forma humana. O seu cão era o guardião de Ulster, e o ferreiro ficou furioso com a criança por tê-lo matado. O herói prometeu ao ferreiro substituir o cão como guardião, e teve seu nome mudando de Sétanta para Cú Chulainn. É o herói épico do ciclo de Ulster, considerado nas lendas irlandesas o guardião do país (cf. Ellis, 1992). 12 Na lenda que narra a morte de Cú Chulainn o herói é atingido por uma flecha e pede a seus soldados que o amarrem a uma árvore para que permaneça de pé. 13 Unionistas ou realistas são aqueles que apóiam a união da Irlanda do Norte ao Reino Unido e não aprovam a integração desta com a República da Irlanda.

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irlandeses é a mão vermelha de Ulster, símbolo que enfeita a bandeira do condado. Sua

origem reside em uma lenda associada à cultura gaélica, de que dois chefes de clã que de

barco avistaram Ulster, então sem um rei legítimo e concordaram que aquele cuja mão

primeiro tocasse a terra seria seu rei. Ao perceber que perderia a disputa, um deles cortou a

própria mão fazendo com que ela chegasse primeiro em terra firme, e assim pode ser o

soberano do local. Além da bandeira de Ulster, a mão vermelha enfeita a sede do partido

unionista de Belfast.

Ainda hoje, no século XXI, encontramos muitos autores irlandeses que escrevem

sobre a Irlanda medieval, como Morgan Llywelyn e Frank Delaney, cujos livros são

sucessos de vendas dentro e fora das fronteiras irlandesas, e muitos outros que escrevem

sobre outros temas e outras eras, mas suas narrativas, se observadas com cuidado, são

tecidas com os fios de tradição, da história antiga de seu país. Muito desta tradição é de

origem celta, mas as influências anglo-saxãs e vikings não devem ser descartadas já que se

encontram presentes nos relatos e textos provenientes da tradição oral e, muitas vezes

torna-se difícil determinar em que ponto começa uma e termina outra. Por esta razão,

preferimos nos referir neste trabalho à tradição irlandesa, com exceção de momentos em

que estejamos tratando diretamente de aspectos reconhecidamente pertencentes a cada uma

daquelas culturas individualmente. Como pudemos verificar nos exemplos acima, a

tradição irlandesa serviu a diversos propósitos na narrativa da nação, e ainda hoje

acreditamos estar presente na expressão literária, seja através de um forte sentido de lugar

ou de certa nostalgia em relação ao passado, ainda que recriado, reconstruído ou

reinventado. Não é por acaso que a profissão de contador de estórias ainda exista na

Irlanda, e que autores contemporâneos narrem o seu país levando em consideração o

aspecto mitológico trazendo à tona fantasmas do passado, tocando aqui e ali em aspectos do

que poderia se considerar uma Irlanda mítica e atemporal. Não temos dúvidas de que os

contextos sócio-econômico e político irlandeses exercem influência decisiva na construção

de uma representação da Irlanda, ou melhor, da representação de um país dividido em 1922

em sul e norte e consolidado em 1937 em República da Irlanda e Irlanda do Norte,

respectivamente. Trataremos mais adiante das representações de país após essa cisão

ocorrida na segunda década do século XX e de como os fatores políticos foram

determinantes para a representação de lugar na literatura dos dois lados da fronteira

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irlandesa contemporânea. Antes disso, porém, seguindo uma cronologia histórica,

gostaríamos de comentar brevemente a história da Irlanda, principalmente no século XIX

com a re-apropriação da tradição irlandesa pelos românticos na formação da identidade

nacional.

Os nacionalistas buscaram na ancestralidade o argumento necessário para seus

propósitos separatistas, e se auto-identificaram como celtas. Cabe ressaltar que a identidade

celta foi uma escolha dentre tantas outras possíveis, como a saxã, a viking ou a normanda,

por exemplo, mas como aquelas foram comuns também à Inglaterra a identidade celta

mostrou-se mais adequada, sendo reforçada inclusive pelo idioma gaélico (celta) que

embora tivesse sofrido diversos apagamentos ainda resistia no país. Largamente utilizada

pelos nacionalistas como um traço distintivo da poderosa Inglaterra, cujo relacionamento

com a Irlanda se manteve conflituoso desde o século XII, a herança celta trazia em si a

legitimação para uma nação independente, de raízes mais nobres e mais antigas do que a

própria Inglaterra, não podendo, portanto, ser subjugada pela última. O papel do

movimento de renascimento da literatura irlandesa, conhecido como o Celtic Revival

(renascimento celta) do início do século XX foi um movimento bastante significativo para a

reafirmação daquela identidade e para o projeto nacionalista irlandês como um todo. O

movimento encorajava a criação de obras tipicamente irlandesas, de características distintas

das inglesas. Buscou-se resgatar e manter vivo o folclore, os mitos e o passado da Irlanda,

reavivar a literatura e a poesia irlandesas, além do ritmo nativo do gaélico-irlandês. Nomes

como William Butler Yeats, Lady Gregory, J.M. Synge e Sean O’Casey foram marcantes

para o movimento e escreveram muitas peças e artigos sobre a situação política da Irlanda

na época. Um grande símbolo do movimento foi o Abbey Theatre ou Teatro Nacional da

Irlanda, em cujo palco muitos autores e dramaturgos da época foram encenados.

Comentamos brevemente a importância da identidade celta para os nacionalistas

irlandeses do século XIX, mas não discutimos este fenômeno conhecido como

nacionalismo, que surgiu após o iluminismo europeu e a revolução industrial e literalmente

mudou o mapa mundial. Criou países, nações, estados nacionais, fez com que o Ocidente

entrasse na era moderna. Propomos então uma breve reflexão acerca deste movimento.

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2. Comunidades Imaginadas

We need a new discourse for a new relationship between our idea of human subject and our idea

of human communities.Seamus Deane

Desde que nascemos absorvemos a noção de nacionalidade como parte de nossa

essência. Somos brasileiros, portanto assumimos com outras tantas pessoas a mesma

condição identitária, como algo que nos fosse intrínseco e inquestionável. Mas afinal, o que

significa ser brasileiro? A quem estamos nos referindo ao utilizarmos o vocábulo

brasileiro? Aos goianos, gaúchos, cariocas, paulistas, sergipanos, acreanos? Aos homens,

mulheres ou crianças - sejam eles letrados ou analfabetos; ricos ou pobres, empresários,

intelectuais, estudantes, donas-de-casa, empregados ou desempregados... O que é ser

brasileiro? Essa identidade nos parece tão natural, como se desde que o mundo passou a ser

habitado por seres humanos existisse um pedaço de terra chamado Brasil e o único povo a

habitá-lo fosse o povo brasileiro, ou nossos antepassados. De qualquer modo, não temos

condições de definir o que é ser brasileiro. Talvez possamos responder com meia dúzia de

estereótipos que não resistem a uma indagação mais profunda.Se iniciarmos nossa reflexão

sob essa perspectiva, reconheceremos claramente a falácia da essência da identidade

nacional. Torna-se evidente então, o caráter artificial da nacionalidade. Os conceitos de

nação e de nacionalidade são construções culturais, nascidas à custa de guerras, massacres e

apagamentos. Para exemplificar podemos mencionar o genocídio dos povos nativos dessa

porção de terra denominada Brasil. Quantas etnias indígenas aqui existiram? Quanto desses

povos reside em nós? Desde quando somos uma nação? De que maneira nós nos tornamos

uma? A nação não é atemporal ou inquestionável em si mesma por algo que lhe seja

próprio. Os indivíduos é que a consideram assim a partir de mecanismos criados pelo

sistema cultural e o momento histórico em que se inserem. Se hoje nós, sujeitos

fragmentados14 do século XXI podemos questionar e até desconstruir as noções de nação e

de nacionalidade surgidas nos séculos XVIII e XIX, é porque o sistema que as construiu,

14 O sujeito contemporâneo não é mais uno como o sujeito iluminista, mas sim múltiplo e fragmentado (cf. Stuart Hall em A identidade cultural na pós-modernidade).

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fortaleceu e legitimou já estava pronto quando nascemos, e através da investigação racional

podemos escrutiná-lo, questioná-lo e entendê-lo como fenômeno histórico e sociológico.

Partirei do início do século XIX, não muito tempo depois das rupturas revolucionárias de

1776 nos Estados Unidos e de 1789 na França, consideradas movimentos nacionalistas de

primeira geração, para comentar que as primeiras cátedras acadêmicas de História da

Europa foram criadas, em 1810 e 1812 nas universidades de Berlim e de Sorbonne,

respectivamente, para dizer que gradativamente iniciava-se o processo de leitura do

nacionalismo de forma genealógica – como a expressão de uma tradição histórica de

continuidade serial.

Segundo Georg Lukács em seu livro The Historical Novel, as guerras

revolucionárias americanas, a Revolução Francesa e a ascensão e queda de Napoleão

fizeram da história uma experiência de massa. As pessoas começaram a entender a história

como um processo ininterrupto de mudanças que têm reflexos sobre a vida de cada

indivíduo. Além disso, em períodos anteriores da história, as guerras eram mantidas, em

certa medida, à parte da vida dos cidadãos. Os exércitos eram mercenários e buscava-se

manter tanto quanto possível a normalidade da vida cotidiana das cidades. Nos eventos

supracitados o exército era formado por cidadãos comuns, que deveriam ser informados dos

propósitos da guerra através da propaganda oficial (Lukács 1969: 22). Essa propaganda

deveria justificar a guerra, conectá-la às possibilidades de desenvolvimento da nação. Os

primeiros movimentos nacionalistas ocidentais surgiram no fim do século XVIII, tanto no

chamado Novo Mundo, com a declaração de independência das Treze Colônias da América

do Norte (1776) quanto no Velho Mundo, na Europa, com a Revolução Francesa (1789).

Pouco tempo depois, diversos outros movimentos eclodiram, como por exemplo, no

México e na América do Sul. Naquele momento, fortemente influenciada pelos ideais

iluministas e humanistas, surgia algo de novo, uma consciência de direitos humanos

universais que se sobrepunham ao direito divino da monarquia. Foram essas idéias de

valorização do indivíduo que deram feição a esses movimentos revolucionários. Cabe

ressaltar que naquele momento histórico ainda não havia sido estabelecido o conceito de

identidade nacional, presente nos movimentos nacionalistas do século XIX. Como

exemplo, podemos observar que na Declaração da Independência das treze colônias

americanas usa-se a palavra povo, mas não nação. Esta última só se fará presente na

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Constituição dos Estados Unidos da América no ano de 1789. Não é de se estranhar que

não existisse em um primeiro momento uma idéia de nação americana. Para Benedict

Anderson em seu livro Imagined Communities, há nos movimentos nacionalistas das Treze

Colônias um senso de paralelismo, já que no Novo Mundo os imigrantes europeus e seus

descendentes ascendiam sobre as populações nativas por seu desenvolvimento tecnológico,

e eles se percebiam como comunidades européias vivendo em terras distantes15. Era

possível compartilhar-se a mesma língua, fé religiosa, costumes e tradições da metrópole,

sem maiores expectativas de vir a encontrar seus compatriotas, visto que a distância que

separava os dois grupos era significativa; no caso, a vasta extensão do oceano Atlântico (cf.

Anderson, 1991: 188). Essa grande distância e a numerosa migração européia para a

América até o final do século XVIII fortaleceram esse sentimento de os colonos

pertencerem a uma comunidade européia fora da Europa. O objetivo dos colonos, nas

palavras de Anderson, “não era fazer com que New London sucedesse ou derrubasse Old

London, mas sim salvaguardar a manutenção do paralelismo entre ambas” (ibid., p.191).

Não havia também uma noção de identidade nacional entre os habitantes do Novo Mundo.

Ao pensar nos habitantes das colônias inglesas da América naquela ocasião identificamos

os seguintes grupos: criollos16 (que se consideravam os americanos), negros, índios17 e

mestiços. O preconceito étnico existia tanto dos metropolitanos face aos criollos quanto

destes pelos outros habitantes das colônias. Se por um lado os ingleses da metrópole

consideravam os criollos inferiores a eles – em parte influenciados pelos escritos de

Rosseau (1712-1778) e Herder (1744-1803)18 – os próprios criollos se julgavam superiores

aos outros grupos étnicos citados.

Os criollos, protestantes e falantes do inglês, das diferentes colônias americanas

eram ligados entre si pelo comércio e por jornais que circulavam nas cidades americanas.

Movidos por interesses econômicos e pelo arsenal ideológico proveniente dos ideais

iluministas e liberais europeus, os criollos iniciaram os movimentos revolucionários. Por

15 Entre 1500 e 1800 um acúmulo de inovações tecnológicas nos campos de construção naval, navegação e cartografia divulgadas pela mídia impressa tornava possível aos colonos imaginarem-se assim. (Anderson, Imagined Communities, p. 188).16 Denominação dada aos descendentes de europeus nascidos nas colônias inglesas 17 Povos nativos 18 Esses pensadores postulavam que o clima e a ecologia tinham impacto sobre a cultura e o caráter dos homens. Para os ingleses da metrópole, o nascimento em um local selvagem fazia dos criollos naturalmente inferiores.

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mais amargas que fossem, diz Anderson, as guerras revolucionárias eram guerras entre

“parentes” assegurando que passado certo período de acrimônia os laços entre as antigas

metrópoles e as novas nações seriam reatados (ibid p.203). De fato, em 1783, o Império

Britânico reconheceu a soberania dos Estados Unidos da América através do tratado de paz

conhecido como Tratado de Paris, que fixava fronteiras entre os Estados Unidos da

América e a América do Norte Britânica, que compreendia as províncias inglesas

localizadas no Canadá. A Declaração de Independência das treze colônias e sua bem

sucedida defesa militar nos anos seguintes foi algo novo, e uma vez implantada, passou a

ser vista como absolutamente sensata. Estranhamente, diz Anderson, não se propõem

fundamentos históricos que justifiquem a independência. Não se faz qualquer referência a

Cristóvão Colombo ou aos Pilgrim Fathers19, nem se enfatiza o passado do povo

americano. Ao contrário, acreditava-se que o que estava acontecendo era uma ruptura

radical com o passado – a criação de uma república, os Estados Unidos da América,

independente do Império Britânico – o que era extremamente positivo e estava em

consonância com os ideais iluministas da época, “que demonstravam a necessidade de se

transformar a sociedade irracional do absolutismo feudal e criar uma sociedade racional”

(Lukács,1969, p.18). Podemos considerar “irracionais” o direito divino dos reis e a

legitimidade da linha de sucessão ao trono. Os súditos não tinham quaisquer direitos de

escolha em relação ao seu monarca. A república, por sua vez, daria oportunidade, pelo

menos em tese, aos mais preparados de assumirem o poder.

A mesma motivação de se criar uma sociedade racional e justa era o mote da

Revolução Francesa de 1789. Os revolucionários, de tanta confiança no novo propuseram a

inauguração de uma nova era para o mundo com a adoção do Ano I, que teria início com a

abolição do antigo regime e a proclamação da república em 22 de setembro de 1792. Sem

dúvida, a perspectiva dos primeiros revolucionários era a de romper com um passado

desonrado e inaugurar uma época inteiramente nova e livre de vícios. A substituição da

monarquia pela república representava a supremacia da razão humana sobre o que a Igreja

considerava os “desígnios de Deus”. Não muito tempo depois das revoluções, em 1810 e

1812 as primeiras cátedras acadêmicas de História foram criadas na Europa, nas

universidades de Berlim e de Sorbonne, respectivamente. As rupturas revolucionárias de

19 Pioneiros que estabeleceram a colônia de Plymouth, em Massachusetts no ano de 1620.

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1776 e 1789 passaram a ser representadas como antecedentes históricos das sociedades

contemporâneas

Entendemos então o foco dos nacionalismos do século XIX: as guerras deveriam

ser justificadas historicamente como sendo importantes para o desenvolvimento da nação e,

consequentemente o passado deveria ser valorizado e percebido como uma etapa

importante em direção ao progresso. Além disso, a própria existência humana estava

historicamente condicionada. Como resultado, um sentimento de nacionalidade foi

experimentado indistintamente por todas as classes sociais. Lukács nos oferece como

exemplo as guerras napoleônicas, que “evocaram em diversos países europeus uma onda de

patriotismo, de resistência nacional às conquistas” (idem: 23). Os países resistiam para

preservar não somente o seu presente, mas também o seu passado, a sua tradição, que

ratificaria a soberania nacional. Sob essas perspectivas surgem na Europa do século XIX os

chamados movimentos nacionalistas de segunda geração, notadamente no período de 1815

a 1850. Não se pretendia mais descartar o passado e inaugurar uma nova era como nos

primeiros movimentos nacionalistas que mencionamos aqui. Os novos nacionalismos

imaginaram a si próprios como redentores de um passado heróico e glorioso de seus

ancestrais. É buscando esse passado que se justificaria no presente o sentimento de nação.

Passa-se a crer que o que une determinado grupo de pessoas é a herança de um passado

comum. Ernest Renan, pensador francês daquele século, em defesa do conceito romântico

de nação em voga na época, reforça a idéia do legado histórico e chama a atenção para a

importância do passado para a consolidação de uma identidade nacional. Para o homem do

século XIX, a essência de uma nação residia no fato de que todos os indivíduos tivessem

um passado comum. Como homem de seu tempo, mergulhado em valores românticos,

Renan definiu a nação como uma alma, um princípio espiritual. O povo se une por amor à

pátria. Esse amor entre as pessoas de uma mesma nação nasce da posse comum de um rico

legado de lembranças e do consentimento, do desejo de viver juntos, da vontade de fazer

valer a lembrança recebida do passado. Para Renan a nação é o resultado de um longo

passado de esforços, sacrifícios e devoções. “O culto aos ancestrais é entre todos o mais

legítimo; os ancestrais fizeram de nós o que somos. Um passado heróico, de grandes

homens, glória, eis o capital social sobre o qual se assenta uma idéia nacional” (Rouanet

1997: 39). Fica evidente nas palavras de Renan de qual passado deve-se lembrar: glorioso e

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heróico, construído por grandes homens – provavelmente conquistadores europeus que

trouxeram com eles a “civilização”.

Em seu texto “O Que é a Nação?”, Renan argumenta que a tentativa de dominação

universal propagada pelos impérios medievais como o romano, por exemplo, não mais se

sustentaria na Europa moderna das nações. Essa colocação de Renan sugere uma crítica

explícita aos planos de seu conterrâneo Napoleão Bonaparte. Ele utiliza-se da história para

legitimar seu ponto de vista. O autor narra de forma linear os acontecimentos históricos a

fim de estabelecer uma continuidade entre o passado e o presente e investigar o que seria

uma nação. Renan argumenta que o que serviu de base para a existência das nacionalidades

européias foi a invasão germânica. Desde as grandes invasões do século V até as últimas

conquistas normandas do século XI, os germanos impuseram dinastias e uma aristocracia

militar a regiões do antigo império do ocidente, locais estes que tomaram o nome de seus

invasores. Daí a França, a Lombardia e a Normandia, por exemplo. Renan acrescenta que

“o tratado de Verdun traça divisões imutáveis e logo a França, a Alemanha, a Inglaterra, a

Itália, a Espanha rumam, por caminhos muitas vezes tortuosos e através de mil aventuras,

para sua existência nacional plena, tal como a vemos desabrochar hoje em dia”.

(ROUANET, 1997.p.37). Para Renan, “uma existência nacional plena” era algo que se

devia a um progresso histórico, ao desenvolvimento da história das nações para que se

chegasse àquela situação ideal de equilíbrio.Ao refletir sobre as nações, Renan defende que

o que as caracteriza é a fusão das populações que as compõem. Podemos pensar que nesse

ponto ele evidencia o preconceito europeu em relação ao Oriente ao utilizá-lo como modelo

negativo: “nos países que acabamos de enumerar (referindo-se às nações européias

modernas) não há nada de análogo ao que se encontrará na Turquia, onde o turco, o eslavo,

o grego, o armênio, o árabe, o sírio e o curdo continuam hoje tão distintos quanto no dia da

conquista” (ibid., p.39). E prossegue: “nas nações ocidentais, o que permitiu esse

resultado20 foram dois aspectos fundamentais: a adoção do cristianismo pelos povos

germânicos e o esquecimento, por parte dos conquistadores, de sua própria língua” (ibid.,

p.80). A questão do esquecimento foi abordada por Renan não só por parte dos

conquistadores em relação à língua, mas, principalmente, dos descendentes dos povos

conquistados face à violência sofrida por seus antepassados, como essencial ao

20 O uso da palavra resultado reflete a idéia de um ideal a ser atingido (progresso) e de superioridade européia sobre o Oriente.

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nacionalismo. É interessante notar como o francês considerava essa memória uma ameaça à

união nacional:

O esquecimento, diria até o erro histórico, é um fator essencial na criação de uma nação, e é por isso que o progresso dos estudos históricos é muitas vezes um perigo para a nacionalidade. Na verdade, a investigação histórica traz de volta à luz fatos de violência ocorridos na origem de todas as formações políticas, mesmo aqueles cujas conseqüências tenham sido as mais benéficas. A unidade é sempre feita brutalmente. (ibid., p.19)

Para o homem do século XIX, aqui representado no texto de Renan, a essência de

uma nação reside no fato de que todos os indivíduos tenham muito em comum, e também

que todos tenham esquecido muitas coisas. É importante que tenham esquecido os

massacres, a barbárie cometida contra os povos nativos, toda a violência cometida em nome

de um processo civilizador. Quando o pensador se refere aos benefícios das formações

políticas citadas ele valoriza o modelo europeu. “Nações servem à obra comum da

civilização; todas contribuem com uma nota para este grande concerto da humanidade que

é em suma a mais alta realidade ideal que possamos atingir” (ibid., p.42). O texto de Renan

prossegue falando do amor à casa que construímos e transmitimos aos nossos descendentes.

Os sacrifícios e as honras passadas, o espírito sadio e o coração caloroso são fatores que

para ele, criam uma consciência moral que se chama nação. Essa consciência moral prova

sua força através dos sacrifícios exigidos pela abdicação do indivíduo em prol da

comunidade. Enquanto for dessa forma essa comunidade será legítima e terá o direito de

existir (ibid., p.43). Trata-se aqui de uma exaltação ao patriotismo como hoje o

concebemos. O indivíduo se sacrifica pela pátria e é possível até morrer por ela em nome

da salvação de todos os seus pares. O ensaio de Renan termina de forma passional:

Se surgirem dúvidas quanto às suas fronteiras, que consultem as populações disputadas. Elas têm o direito efetivo de serem ouvidas nessa questão. Isto fará sorrir os transcendentes da política, esses infalíveis que passam a vida enganando-se e que, do alto de seus princípios superiores, tem pena do nosso terra-a-terra. “Consultar as populações, ora essa, que ingenuidade! Aí estão essas mesquinhas idéias francesas que pretendem substituir a diplomacia e a guerra por meios de uma simplicidade infantil” - Esperemos senhores; deixemos passar o reinado dos transcendentes; saibamos suportar o desdém dos fortes. Quem sabe, depois de muito tatear em vão não voltemos a nossas modestas

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Page 13: Capitulo Introdutorio Tese Versão 1

soluções empíricas. A maneira de ter razão no futuro é, em certas horas, saber resignar-se a estar fora de moda. (ibid., p.43)

Renan inclui em seu texto as verdades trazidas pelo Romantismo. Renan é um

reflexo de sua época. A Europa do século XIX encontrava-se imersa nos ideais românticos

que sucederam a razão e a lógica do Iluminismo. Os românticos privilegiavam a intuição, a

estética da emoção, da imaginação e da liberdade individual. Esse movimento, que na arte e

na literatura rompeu não só com as formas rígidas do classicismo, também valorizou

sobremaneira o passado, tomou a Idade Média como idílica, percebeu a natureza como algo

sublime e transcendente ao homem, e elegeu como símbolo o nobre selvagem – o homem

ainda muito ligado à suas origens naturais e não corrompido pela sociedade -, ou, por

extensão, pela civilização. A partir do movimento romântico, como nos aponta Guinsberg

em seu livro O Romantismo, o discurso histórico sofre mudança revolucionária. “Ele deixa

de ser meramente descritivo e torna-se interpretativo e formativo. É a história que produz a

civilização. Ela aglutina as sociedades em mundos, comunidades, nações, raças, que tem

antes culturas do que civilizações” (Guinsberg 2002: 15). É possível vislumbrar de que

forma a narrativa da história é desenvolvida na época, a partir de um passado comum a

cada grupo de indivíduos que o diferencia de outros. Esse passado mitológico comum

justifica a identidade nacional. O culto ao passado e a restauração das tradições antigas nos

leva a refletir a respeito do peso dessas tradições, quer reais ou inventadas, total ou

parcialmente, como mecanismo de fortalecimento da nacionalidade. Eric Hobsbawm em A

invenção das tradições trata deste assunto de forma muito precisa. A definição oferecida

pelo autor para tradição inventada é digna de destaque:

Por tradição inventada entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita e abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica automaticamente uma continuidade com o passado. Aliás, sempre que possível tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado. (Hobsbawm 2006: 9)

A criação de um passado histórico apropriado é algo que nos interessa discutir e investigar.

As tradições criam continuidade com um passado memorável e permitem que se utilize a

história como legitimadora de ações e alicerce para a coesão de um povo. Podemos citar

algumas tradições inventadas, como por exemplo, os feriados, as comemorações cívicas, os

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Page 14: Capitulo Introdutorio Tese Versão 1

símbolos e os heróis nacionais. A história oficial é apresentada conforme seja conveniente

para a legitimação do Estado, e atribui-se valor também aos simbolismos, aos rituais,

cerimoniais e mitos. Obviamente as interpretações históricas norteiam a criação das

tradições e permitem que o cidadão se sinta parte de um contexto não vivenciado por ele. A

compreensão desse fenômeno é importante para que possamos entender como determinadas

identidades são escolhidas como representativas de uma nação. E é justamente essa escolha

de identidades que reforçará o Estado e atuará como resistência cultural no caso de povos

que tiveram parte de seu passado apagado, quer por guerras e conquistas ou em nome de

uma suposta modernização.

O século XIX nos assegurou que cada povo é uma nação com território, cultura e

história. Já os pensadores modernos assumem claramente que as identidades nacionais

foram forjadas, manipuladas, inventadas. Esta tese da invenção é posta assim pelo filósofo

francês Ernest Gellner (1925-1995): "O nacionalismo não é o despertar da auto-consciência

das nações. O nacionalismo inventa nações onde elas não existem"(Gellner, 1964). Eric

Hobsbawm trilha o mesmo caminho:

Tal como Gellner realço os elementos de artefato, invenção e engenharia social presentes na construção das nações. Em síntese, o nacionalismo vem antes das nações. Não são as nações que engendram os Estados e os nacionalismos, mas exatamente o contrário. (Hobsbawm, 1990).

Naturalmente, este trabalho de criação e lapidação de tradições e identidades

nacionais responde diretamente aos interesses do estado-nação. Elites dirigentes e

intelectuais projetam suas construções compondo uma etnografia, resgatando símbolos,

mitos, heróis e altares nacionais e instituindo rituais de exaltações dos valores patrióticos. A

primeira metade do século XX assistiu à luta feroz de alguns povos por cada pedaço de sua

terra legítima e cada gota de seu sangue ancestral. Após a segunda grande guerra (1939-

1945), porém, o mundo configurou-se em dois blocos geo-político-econômicos: o capitalista

e o socialista, contando com a cooperação entre as nações através de organizações como a

ONU. O século XX assistiu a uma proliferação de nações, não apenas as velhas nações da

Europa ocidental e das Américas, mas por todo o mundo, devido à descolonização e à

importação do modelo ocidental. No final do século XX, porém, após acontecimentos

marcantes para a humanidade, como por exemplo, o desenvolvimento da psicanálise e da

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Page 15: Capitulo Introdutorio Tese Versão 1

filosofia, o avanço do capitalismo e o fracasso dos regimes totalitários, a experiência de

duas guerras mundiais, entre outros, fizeram com que o homem questionasse convicções e

crenças antes inabaláveis. A ciência, Deus, a razão humana, a evolução da humanidade

rumo ao progresso, são verdades que se dissolveram em uma época cujo desenvolvimento

tecnológico e econômico atingiu níveis nunca vistos. A noção de estado-nação já não se

sustenta na contemporaneidade, pois diversos aspectos problemáticos de uma pretensa

homogeneidade cultural foram levantados pelos estudos culturais e, sem pretender nos

aprofundarmos nesse assunto, comentaremos brevemente por que os conceitos de nação e

identidade nacional estão sendo desarticulados em nossa era. O sujeito contemporâneo vive

uma crise de valores humanos e um senso de esvaziamento histórico. As chamadas grandes

narrativas do mundo ocidental como o patriarcado, o marxismo, o feminismo e as narrativas

que formam as nações são desarticulados, pois se consegue reconhecer a impossibilidade da

hegemonia cultural e também o processo de naturalização a que essas narrativas foram

submetidas em nome do chamado evolucionismo histórico. Os estudos antropológicos nas

populações da África e Ásia em meados do século XX foram de notável importância para a

desarticulação do evolucionismo histórico e também para os estudos culturais “por conta da

emergência de um debate crítico acerca “das relações de autoridade envolvidas nos

encontros travados entre os cientistas sociais e os chamados grupamentos nativos”

(TEIXEIRA, 2005, p.2). Segundo Teixeira, a experiência da colonização ao ser incorporada

criticamente pelos pesquisadores que a vivenciaram permitiu o surgimento de novos pontos

de vista, até então impossíveis, já que os primeiros tratados antropológicos pressupunham

um distanciamento necessário entre observador e objeto.

Passou-se a questionar a idéia de que a cultura de determinado grupamento étnico

pudesse ser definida a partir da investigação de categorias bem definidas capazes de dar

conta de um discurso coletivo coeso. Foi então a partir das experiências híbridas e

fronteiriças das vivências em condição neocolonial que se tornou

possível visualizar a artificialidade de construções como nação e

identidade nacional, uma vez que a unidade e a coerência exigidas da

nação como narrativa não encontravam território propício no sincretismo

das mediações culturais em espaço cultural híbrido (TEIXEIRA, 2005 passim

2-6). A partir do estudo daquelas populações pôde-se claramente observar que não é

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Page 16: Capitulo Introdutorio Tese Versão 1

possível tomar como pertinente o sentido de progresso das populações a partir de um

modelo europeu, que apresentou uma continuidade desde a fase tribal inicial, seguida de

uma fase agrária e por fim industrializada. As falácias da hegemonia cultural das nações e

da identidade nacional são facilmente postas em xeque quando se propõe um estudo das

populações habitantes das fronteiras, por exemplo. Nesses locais percebe-se certo

hibridismo, certa mistura de narrativas nacionais. O fenômeno da globalização, por sua vez,

também fratura os pilares das culturas nacionais hegemônicas. O modelo ocidental de

nações não é único, não é superior a outros modelos de sociedade, não representa a

evolução da humanidade como queriam os românticos nacionalistas do século XIX. A

sociedade ocidental, dominada pela mídia, pelo espetáculo e pelo capital, interconectada

globalmente, não tem mais a utopia de que marcha para o progresso. A experiência da

violência, do terrorismo, o medo do outro21 povoa as mentes ocidentais e suas múltiplas

subjetividades e faz-nos a todos sentir certo “mal-estar” próprio da era moderna. Anthony

Giddens em seu livro As Conseqüências da Modernidade, enfatiza que o fenômeno da

globalização é uma das conseqüências da modernidade. Este fenômeno constitui “um

processo de desenvolvimento desigual, que tanto fragmenta quanto coordena – introduz

novas formas de interdependência mundial, nas quais, não há outros, mas sim grandes

desigualdades de riqueza e poder dentro de um sistema global que abarca tanto cenários

ocidentais quanto não ocidentais” (Giddens, 1990: p.174).

As novas formas de interdependência mundial que foram levantadas por Giddens

estabelecem uma consciência planetária que vislumbra riscos e abordam questões que

afetam a segurança global, como por exemplo, as questões ambientais. Acreditamos que

hoje desconstruímos as noções de história, nações, crenças e grandes narrativas para, como

em um quebra-cabeças reorganizá-las de outro modo, que venha possibilitar relações

humanas mais justas. Essa concepção é influenciada pelo conceito de realismo utópico

proposto por Giddens. Para ele “a história não está do nosso lado” (ibid., p.154) e não nos

proporciona garantias, mas o pensamento reflexivo da modernidade nos permite buscar

alternativas futuras possíveis cuja propagação pode ajudá-las a se realizar. Uma teoria

crítica do realismo utópico deve compreender alguns pressupostos: ser sensível

sociologicamente – atenta às transformações da modernidade; geopoliticamente tática, no

21 O outro é o não europeu, não homem, não branco, não letrado... não civilizado?

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Page 17: Capitulo Introdutorio Tese Versão 1

sentido de criar modelos de uma sociedade boa para os seres humanos, que não se limitem à

esfera do estado-nação nem às dimensões institucionais da modernidade; e deve reconhecer

que a política emancipatória – relacionada à liberação das desigualdades e da servidão – tem

que estar vinculada à política da vida, ou, em outras palavras, a uma política de auto-

realização (ibid., pp. 154-155). Por política da vida Giddens se refere a uma política que

possibilite uma vida satisfatória para todos e para a qual não existam outros. Tanto a política

emancipatória quanto a política da vida precisam se articular com as conexões entre o local

e o global. A coordenação do benefício individual e da organização planetária deve ser o

foco da preocupação a fim de minimizar os altos riscos a que toda a humanidade está

sujeita, tais como o crescimento dos poderes totalitários, conflito nuclear ou guerra em

grande escala, colapso dos mecanismos de crescimento econômico e deterioração ou

desastre ecológico. Gostaria de finalizar nossa reflexão com as palavras de Giddens, que

vaõ além das fronteiras do nacionalismo e têm alcance global:

Do outro lado da modernidade, como virtualmente ninguém na Terra pode continuar sem perceber, pode não haver nada além de uma “república de insetos e grama”, ou um punhado de comunidades humanas danificadas e traumatizadas. Nenhuma força providencial vai intervir inevitavelmente para nos salvar. O apocalipse tornou-se corriqueiro, de tão familiar que é como um contrafatual da vida cotidiana; e, como todos os parâmetros de risco, ele pode tornar-se real. (Giddens, 1990: p.32)

Embora concordemos que estejamos vivendo a era das transnacionalidades e das

culturas globais, observamos que, em pleno século XXI, muitos países ainda não resolveram

suas questões nacionais. A Irlanda é um desses casos embora esteja situada na Europa e faça

parte do mundo desenvolvido, além de oferecer excelentes condições de vida a seus

habitantes (em termos sociais, econômicos e de tecnologia). Estamos falando de um país

dividido, composto por 32 condados, dos quais 26 fazem parte da República da Irlanda e 6

da Irlanda do Norte. A República da Irlanda atingiu excelentes índices de crescimento nos

idos de 1990, entrou para o mercado comum europeu e se mantém em situação

economicamente privilegiada ainda hoje. A Irlanda do Norte, por sua vez, faz parte do

Reino Unido e do Commonwealth e pode ser vista, de modo muito simplificado, como uma

colônia inglesa no mundo atual. Sua participação no mercado comum europeu se dá via

Reino Unido, e seu grau de autonomia é menor do que os outros países do bloco, como

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Page 18: Capitulo Introdutorio Tese Versão 1

Escócia e País de Gales. Soma-se a isto o fato de a Irlanda do Norte apresentar gravíssimos

conflitos de ordem sectária que levam a efeito freqüentes ações terroristas. Os conflitos se

estendem desde a cisão do país em 1922. A época mais crítica da violência se deu nas

décadas de 70 e 80, e desde o final da década de 90 vive-se o dia-a-dia de um processo de

paz com seus avanços e recuos. Para entendermos melhor do que estamos tratando faz-se

necessária uma breve exposição do conflito anglo-irlandês, que se estabeleceu desde o

século XII com a chegada à Irlanda dos normandos, em 1169.

3. Irlanda Sangrenta

A fim de melhor entendermos o conflito anglo-irlandês que se estende já por nove

séculos, traçaremos um breve e simplificado panorama histórico da relação entre os dois

países desde o século XII, quando a Irlanda foi colonizada pela Inglaterra. Antes disso,

porém, cabe comentar um pouco sobre a Irlanda medieval e como esta se encontrava nos

aspectos políticos, econômicos e religiosos no período pré-colonização. Desde o século V,

na chamada era de ouro, ou era dos santos22, a estrutura de poder na Irlanda era dividida

entre cinco grandes províncias, a saber: Ulaid (Ulster), Midhe (Meath), Laigin (Leinster),

Muma (Munster) e Connacht. Os seus líderes eram considerados reis supremos (High

Kings), que exerciam influência sobre os pequenos reinos, cerca de uma centena, existentes

nas cinco províncias. Embora saibamos que, por vezes alguns lendários reis supremos

tenham exercido autoridade sobre as cinco províncias, o mais comum era que o poder fosse

dividido entre os cinco reis. Aquela estrutura monárquica demonstra que a Irlanda não

chegou a desenvolver um poder central e, por conseguinte, não desenvolveu o senso de

unidade em toda extensão do país. Este fato, e o modelo colonial adotado séculos depois

pela Inglaterra explicam grande parte dos conflitos sectários ainda existentes na Irlanda. A

unidade irlandesa medieval deu-se por força da cultura, na utilização de um mesmo idioma

(gaélico), leis (Brehon laws) e religião. A falta de comando centralizado tornou a resistência

irlandesa difícil quando em 1169 os anglo-normandos desembarcaram no país e o rei inglês

Henry II, apoiado pela igreja e pelo papa Adriano IV - que entendia a submissão da Irlanda

22 No século V todo o continente europeu encontrava-se sob o domínio dos bárbaros. A Irlanda encontrava-se preservada, e os mosteiros abrigavam religiosos e literatos de regiões continentais. O termo santos da igreja céltica era utilizado para se referir aos missionários e professores que alcançavam distinção (cf. Ellis, 1992: 62).

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Page 19: Capitulo Introdutorio Tese Versão 1

à Inglaterra como um retorno da igreja irlandesa ao poder de Roma23 - tentou interferir nas

questões políticas irlandesas conquistando a cidade de Dublin e arredores. O domínio anglo-

normando na Irlanda se intensificou após 1171 quando o rei Henry II foi acusado de ser o

mandante do assassinato do arcebispo Thomas a Becket24, morto na catedral de Canterbury.

O rei foi banido da igreja até que a acusação fosse considerada improcedente. Buscando

melhorar sua imagem junto à igreja e ser inocentado da grave acusação recebida, Henry

reuniu um conselho da igreja irlandesa em Cashel e conseguiu, com o apoio dos líderes

locais alterar a hierarquia da igreja irlandesa para que esta se reportasse a Canterbury e, por

conseguinte, se alinhasse aos preceitos da igreja de Roma. A colonização da Irlanda se

provou bem sucedida na época de Henry II, que conseguiu aprovação da maioria dos nativos

e estabeleceu um clima de paz no país. No entanto, ao retornar à Inglaterra deixando como

representante do poder real um oficial, Hugh de Lacy, e não estabelecendo claramente uma

política para a colônia - atitudes que foram seguidas pelos monarcas ingleses que o

sucederam, muitos deles mais interessados nos assuntos continentais e envolvidos em

guerras contra outros reinos - deram origem a quatrocentos anos de lutas pelo poder e a

reafirmação de um modo de vida irlandês distinto do inglês. Sobre este assunto Barker

esclarece que as leis reais inglesas predominavam apenas nas cidades costeiras e em suas

redondezas (the Pale). Fora delas eram os barões anglo-normandos que exerciam sua

autoridade, e nas regiões mais selvagens e inóspitas, de difícil acesso, os chefes nativos e os

camponeses seguiam suas próprias leis. Com o passar do tempo os barões normandos

estabeleceram laços com os chefes de distritos distantes, muitas vezes através de casamentos

consangüíneos (Barker, 1979). Com o período de paz que se seguiu ao fim da Guerra das

Rosas (1413-1485), Henry VII e os seus sucessores puderam voltar sua atenção para os

assuntos da colônia irlandesa, mas as tentativas de se implantar as leis inglesas na Irlanda

geraram conflitos com a população local, como por exemplo, o sistema de transferência de

propriedade, que na Inglaterra baseava-se na primogenitura e no sistema irlandês tradicional

obedecia a outros princípios.

23 A igreja da Irlanda, subordinada a Canterbury desde a época de Santo Agostinho (século V) tornou-se independente e afastou-se do poder de Roma quando o Conselho de Kells foi preferido à Canterbury desde a cristianização dos vikings que se estabeleceram na Irlanda a partir do século IX. 24 Thomas à Becket é considerado um mártir da igreja católica. Geoffrey Chaucer em Os Contos da Cantuária (The Canterbury Tales) conta histórias de peregrinos a caminho de Canterbury para visitação à tumba de Becket.

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Page 20: Capitulo Introdutorio Tese Versão 1

Apenas no século XVI o rei inglês Henry VIII tomou o controle da situação e

passou a controlar diretamente a colônia irlandesa. A submissão da Irlanda tornara-se

imperiosa após a reforma protestante inglesa, pois “a Irlanda Católica Romana era um canal

aberto à aproximação da Espanha, sua arquiinimiga” (Barker, 1979). Unida à Inglaterra

desde 1541 quando o parlamento irlandês aceitou oficialmente Henry VIII como rei da

Irlanda, o país passou a ser firmemente controlado pela Inglaterra, e um processo intenso de

anglicização teve lugar, a despeito das profundas diferenças culturais e principalmente

religiosas existentes, já que a Irlanda era um país católico e a Inglaterra protestante

(anglicana). A identidade inglesa nos séculos XVI e XVII se configurava como protestante.

O catolicismo era odiado, associado ao terrorismo, à traição e aos reinos inimigos da

Inglaterra, especialmente a Espanha, muito poderosa na época. Para utilizarmos um

conceito da teoria pós-colonial25 podemos dizer que a Igreja Católica Romana representava

para a Inglaterra o outro, o diferente. Muitos conflitos ocorreram desde então,

principalmente porque, aos olhos de muitos irlandeses, o rompimento com Roma por parte

de Henry VIII invalidaria a Bula Papal26 pela qual a Coroa Inglesa exercia jurisdição sobre

a Irlanda. A opção religiosa desde o início do relacionamento anglo-irlandês mostrava-se

complexa, e a situação tornou-se mais desafiadora em função do modelo de colonização

adotado pela Inglaterra, como veremos a seguir. Sucessivas expedições militares inglesas

foram enviadas ao país a fim de pacificá-lo, mas a decidida resistência liderada no norte por

Hugh O’Neill27 estimulou a resistência em outras partes do país. A resistência irlandesa se

intensificou, pois contou com o apoio da Espanha, que em 1601, enviou uma pequena força

militar ao país. Esta desembarcou perto de Kinsale para dar apoio a uma revolta geral.

Barker nos conta que a Inglaterra enviou para a Irlanda no mesmo ano o “implacável Lorde

Mountjoy, a fim de cuidar de O’Neill. Em três anos Mountjoy causou ali tal devastação,

que a fome que se estabeleceu logo depois, reduziu os irlandeses à virtual impotência”

(1979). Naquela ocasião, tudo o que era tipicamente irlandês deveria ser destruído sob o

25 Utilizaremos conceitos da teoria pós-colonial nesta pesquisa por entendermos que a Irlanda foi a primeira colônia inglesa e que ainda hoje sofre um processo de colonização interna no caso da Irlanda do Norte. Sabemos, porém que há restrições ao uso desta teoria no contexto de um país europeu que fez parte do império britânico. A Irlanda é ao mesmo tempo, centro e margem, oprimido e opressor, próprio e outro. Trataremos com cuidado das premissas da teoria pós-colonial, pois dela faremos uso neste trabalho quando julgarmos necessário. 26 Bula papal 27 O’Neill

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Page 21: Capitulo Introdutorio Tese Versão 1

poder do fogo e da espada. Granjas, plantações e áreas de criação de gado foram

completamente arrasadas. Para garantir a submissão irlandesa, a fase seguinte à destruição

consistiu na implantação de colonos ingleses e escoceses no país. Em 1610 iniciou-se no

norte da Irlanda, na área de Ulster, a mais concentrada das muitas colonizações, conhecidas

como Plantações (plantations). Na ocasião, o rei James I confiscou dos irlandeses cerca de

quatro milhões de acres de solo fértil e os dividiu entre protestantes ingleses e escoceses.

Os colonos tinham permissão de explorar a terra como melhor lhes conviesse, mas foram

orientados a admitirem em suas terras somente trabalhadores ingleses, escoceses e

irlandeses não católicos. Devido a esta discriminação religiosa, uma grande quantidade de

ingleses e escoceses migrou para a Irlanda para trabalhar nas terras confiscadas. Os

escoceses eram em geral presbiterianos, e os outros trabalhadores tornaram-se membros da

pequena Igreja Oficial da Irlanda (protestante). Como conseqüência verificamos a

diminuição do número de católicos na região de Ulster durante o século XVII. Para se

protegerem de ataques de nativos descontentes, muitos deles antigos donos de terra que

foram expropriados, os colonos ingleses e escoceses construíam casas fortificadas e

mantinham em suas propriedades homens armados.

A herança católica nas primeiras décadas do século XVII ligava-se às tradições

gaélico-irlandesas (celtas) e do inglês antigo (anglo-saxãs). Embora distintas aquelas

tradições uniam-se na representação de uma história e cultura comuns: a história da Irlanda

católica. É interessante perceber como os textos produzidos na Irlanda na época

representavam os ingleses como invasores e os irlandeses católicos como legítimos

soberanos das terras irlandesas. Podemos citar os Anais dos Quatro Mestres (Annals of the

Four Masters)28 compilados no período de 1632 a 1636 por monges franciscanos da região

de Donegal, e A Origem do Conhecimento sobre a Irlanda (Foundation of Knowledge on

Ireland – Foras Feasa ar Eirinn)29 que pode ser considerada uma auto-etnografia irlandesa.

A discriminação aos católicos por parte da elite protestante de novos latifundiários ingleses

acirrou a rivalidade entre antigos e novos donos de terra, e entre católicos e protestantes.

Por volta de 1641 a situação em Ulster tornara-se bastante tensa, com uma nova geração de

irlandeses fervilhando de descontentamento e contando com aliados e simpatizantes de

outras regiões do país. No ano seguinte, os irlandeses atacaram seus opressores a fim de

28 Annals of the Four Masters29

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Page 22: Capitulo Introdutorio Tese Versão 1

reaver as terras que lhes haviam sido tomadas no processo inicial de colonização. Muitos

colonos foram massacrados e com a extensão do movimento entre a população, ambos os

lados cometeram atrocidades. Na ocasião era possível identificar claramente quatro grupos

distintos: os “velhos irlandeses” – católicos oprimidos que queriam a total separação da

Inglaterra, os “velhos anglo-irlandeses” – católicos, porém leais ao rei da Inglaterra,

Charles I, os “puritanos” – presbiterianos e escoceses da Irlanda do norte, inimigos tanto do

catolicismo quanto do rei inglês Charles I, e os realistas – em sua maioria, dublinenses e

protestantes da igreja irlandesa leais a Charles I. Nenhum desses grupos confiava em

outros, e todos se encontravam em plena desordem durante a rebelião. Naquela ocasião, a

Inglaterra encontrava-se mergulhada em uma guerra civil30 ocasionada pela acusação de

que o rei, que fechara o parlamento por duas vezes, governando de forma ditatorial e

aumentando os impostos para sustentar as ofensivas à Escócia católica havia traído a

Inglaterra. As forças da monarquia lutaram contra as do parlamento e foram derrotadas em

1649. O rei foi decapitado e entrou para a história como o único rei inglês a ser condenado

à morte. Este episódio marcou o fim da monarquia inglesa e o estabelecimento do

protetorado sob o comando do puritano Oliver Cromwell, líder do parlamento.

A colônia irlandesa foi tratada com rigidez e crueldade pelo Lord Protector31. As

terras de Munster, Ulster e Leinster, na parte norte da ilha foram confiscadas e distribuídas

entre os soldados ingleses. Como podemos inferir essas desapropriações não se efetivaram

senão pela violência. Na ocasião, as tropas inglesas mataram cerca de 2.000 homens, e os

donos de terra católicos foram exilados na região de Connaught, a mais pobre e árida da

Irlanda.O objetivo era empobrecer todos os católicos e liberar terras para a “plantação” de

mais colonos ingleses. Surgiu então uma classe dominante de senhores de terra britânicos e

protestantes que considerava inferiores os irlandeses nativos, “símios, negros brancos32”

bem como a cultura gaélica. Esta tensão entre católicos e protestantes se manteve por todo

o século XVII, e, por exemplo, verificamos que, no ano de1656 cerca de 60.000 irlandeses

católicos foram enviados como escravos para Barbados e outras ilhas do Caribe. A

população irlandesa, cerca de 1.500.000 habitantes antes da chegada de Cromwell, 30 A guerra civil inglesa teve lugar entre 1642 e 1649. Foi um embate entre a monarquia e o parlamento e culminou com a vitória do último, a decapitação do rei Charles I e a extinção da monarquia. Oliver Cromwell, líder das forças do parlamento, estabeleceu o protetorado na Inglaterra, Escócia e Irlanda, então colônia inglesa. 31 Título assumido por Cromwell32 Referencia do historiador britanico que cunhou o termo (bookshelf questia)

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Page 23: Capitulo Introdutorio Tese Versão 1

encontrava-se reduzida a aproximadamente 500.000 habitantes quando de sua morte em

1658. Com a restauração da monarquia em 1660, sob o comando do rei Charles II e nos

anos seguintes a triste situação colonial da Irlanda continuou a mesma, e há registros de que

em 1672 mais de 6.000 mulheres e crianças irlandesas foram vendidos como escravos

desde que a Inglaterra ganhou o controle da Jamaica33. Com a morte de Charles II em

xxxx, o trono britânico foi assumido por seu irmão católico James II. Como era de se

esperar, o rei mostrou favoritismo para com os súditos da mesma religião que a sua. As leis

anti-católicas foram suspensas e católicos começaram a substituir os protestantes em postos

governamentais e judiciários na Irlanda. Quando o filho de James II nasceu em 1688, o

processo de catolização parecia assegurado e constituía uma ameaça ao anglicanismo da

Inglaterra. No entanto, os ingleses depuseram o rei católico em favor do protestante

William de Orange. A coroa britânica foi oferecida ao casal Mary e William de Orange,

respectivamente filha e genro de James II. Este episódio ficou conhecido como a Revolução

Gloriosa, em que nenhuma gota de sangue foi derramada e a coroa foi ofertada, por vontade

do povo inglês, a um casal e não apenas a um deles.

Aquela revolução despertou paixões violentas na Irlanda. Os católicos no sul do

país favoreciam a causa do rei deposto e formavam um exército, enquanto que no norte os

protestantes declaravam-se fiéis a William e preparavam-se para a guerra. Quando William

de Orange desembarcou na Irlanda, seu exército poliglota contava com regimentos ingleses,

escoceses, holandeses, dinamarqueses, suecos e soldados irlandeses do norte. As tropas

eram bem treinadas, bem equipadas e superiores em número e em recursos ao exército

irlandês de James II. A Batalha do Rio Boyne foi vencida pelas forças do rei William. Até

hoje, anualmente, a 12 de julho, os Orangistas34 de Ulster celebram a vitória de William no

Boyne com desfiles e festas. Após ser derrotado naquela batalha James fugiu para a França,

mas a guerra prosseguiu até 1691 quando a resistência irlandesa entrou em colapso.

Seguiram-se novos confiscos de terra e um parlamento irlandês protestante aprovou uma

série de leis anti-católicas conhecidas como “Código Penal” (penal laws) para manter a

população católica em permanente condição de inferioridade. A este respeito Barker nos

apresenta algumas leis da época:

33 Inserir nota sobre a conquista da jamaica34 Assim denominados por serem protestantes e apoiarem William de Orange

23

Page 24: Capitulo Introdutorio Tese Versão 1

“Nenhum católico poderá ter assento no parlamento irlandês” “Nenhum católico pode ser procurador, policial ou guarda-caça”“Nenhum católico pode possuir um cavalo de valor superior a 5 libras. Qualquer protestante que disponha dessa soma pode apossar-se do cavalo de caça ou de tração do seu vizinho católico romano”“Nenhum católico pode freqüentar universidade, ter escola ou enviar seus filhos para serem educados no exterior. Oferece-se 10 libras pela descoberta de um mestre-escola católico romano”“Nenhum católico pode morar em Limerick e Galway ou adquirir propriedade dentro dos limites de suas muralhas”“Nenhum católico pode comprar terra ou recebê-la como presente de um protestante”“Nenhum católico pode ser tutor de criança. Os filhos órfãos de católicos têm de ser criados como protestantes”(Barker, 1979: 20)

Podemos perceber o quão cruéis foram essas leis e como o conflito entre católicos e

protestantes na Irlanda tem suas origens em épocas remotas, ainda no século XVI, desde

que a Inglaterra se tornou protestante e a Irlanda, devido a sua posição geográfica e ao fato

de ser colônia inglesa passou a representar uma ameaça à Coroa. Percebemos também

como a população nativa foi empobrecida através de leis discriminatórias e como a cultura

gaélica foi perdendo o seu valor e o processo de assimilação da cultura anglo se tornando

cada vez mais necessário para a vida da colônia. Outro ponto que merece destaque em

relação à Irlanda é o fato de que o país permaneceu predominantemente rural e agrário até a

metade do século XIX, o que dificultou o desenvolvimento econômico do país, como

veremos adiante.

A dificuldade econômica dos irlandeses, que se estendia desde a época das

primeiras “plantações” do século XVI, agravou-se ao longo do século XVIII, e as colheitas

ruins devidas ao frio intenso e ao tempo chuvoso levaram à grande fome de 1740,

conhecida historicamente como “a fome esquecida” (the forgotten famine) já que a “grande

fome irlandesa” usualmente comentada é a de 1845, quando grande parte de população

emigrou para o “Novo Mundo”, a saber: os Estados Unidos, o Canadá e a Austrália. Não

menos séria, porém, foi a grande fome de 1740, que vitimou cerca de 250.000 irlandeses e

levou a Irlanda a reivindicar um grau maior de autonomia para o país. porque? comentar..

Em 1782, o Reino Unido outorgou à Irlanda o direito ao livre comércio e a

independência legislativa. O final do século XVIII assistiu à ascensão de movimentos

contrários ao controle inglês na Irlanda, como a rebelião de 179835, inspirada nos ideais 35 O Levante de Wexford (Wexford Rising) que tentou estabelecer a república no país.

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Page 25: Capitulo Introdutorio Tese Versão 1

republicanos estadunidenses e franceses. O grupo de rebeldes, chamado de Sociedade dos

Irlandeses Unidos, fora formado em Belfast no ano de 1791 como uma sociedade de

debates da classe média. Todos os membros do grupo, excetuando-se dois de seus

fundadores, Theobald Wolfe Tone e Thomas Russell, eram presbiterianos. Os objetivos da

sociedade eram equivalentes aos de igualdade, liberdade e fraternidade da Revolução

Francesa. Pouco a pouco católicos foram sendo admitidos em suas fileiras e o movimento

pela independência irlandesa ganhou força. Desorganizados e mal coordenados, porém, os

rebeldes foram esmagados assim que se mostravam. “Terminada a luta, a maioria dos que

escaparam à forca fugiu para a América”(Barker, 1979). Cabe destacar que pela primeira

vez patriotas das classes média e baixa protestantes e católicos, foram parceiros contra o

domínio inglês na Irlanda. A ameaça da independência da colônia, porém, fez com que a o

Primeiro-Ministro britânico, William Pitt, decidisse reverter a autonomia irlandesa,

tornando o parlamento irlandês extinto com o ato de união de 1800, que agregou o país a

um novo estado denominado Reino Unido da Grã Bretanha e Irlanda. Em 1º de janeiro de

1801 cem representantes irlandeses (protestantes) tomaram lugar na Câmara dos Comuns,

todos os cidadãos irlandeses passaram, por decreto, a ser cidadãos britânicos e a economia

da Irlanda uniu-se à da Grã-Bretanha. Podemos inferir os problemas advindos dessa união,

certamente pouco natural, tanto em termos religiosos quanto culturais. A Irlanda

representava a alteridade: era predominantemente católica e rural, falava gaélico e era

aliada à França e à Espanha - países inimigos da Inglaterra. Além disso, apenas o norte do

país, industrializado, se beneficiou economicamente da união e as diferenças sectárias

apareceram com mais violência do que antes. A relação colonizador/colonizado fora

conflituosa e complexa, e não menores foram os problemas a partir da união com o país

vizinho, rico e poderoso. Os conflitos se estendem por séculos, tendo-se acirrado o seu

amargor nas primeiras décadas do século XX, em grande parte decorrente da grande fome

de 1845. Nos idos de 1840, 2/3 da população irlandesa vivia no campo e era dependente da

agricultura, especialmente do cultivo da batata. Com a perda de sucessivas colheitas

atacadas por um fungo (de 1845 a 1848), a população foi dizimada pela fome, miséria e

doenças. O governo britânico na época era o mais rico do planeta e os latifundiários da

Irlanda continuaram exportando grãos e lã para a Inglaterra, gerando volumosos lucros para

si e para os mercadores ingleses enquanto os camponeses morriam de fome. Houve a

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Page 26: Capitulo Introdutorio Tese Versão 1

emigração massiva de irlandeses (cerca de 250.000) e de acordo com estatísticas do ano de

1851, a população irlandesa havia sido reduzida à metade (de seis para três milhões). As

medidas adotadas pelo governo britânico através dos empregos públicos, especialmente na

construção de estradas desnecessárias, não foi suficiente para atender ao número de

necessitados, e provou-se de fato extremamente ineficaz para a solução do problema. O

país recebeu ajuda internacional, tanto financeira quanto de alimentos, vinda

principalmente dos Estados Unidos, que chegou a importar grão indiano para enviar à

Irlanda, mas o que se recebia em um ano era menor do que o que se exportava em um

mês36. Os irlandeses acusaram os ingleses de genocídio, e, certamente, esse episódio ajudou

a fomentar a discórdia entre a Irlanda e a Inglaterra e a fortalecer os ideais separatistas

irlandeses.

Além da redução drástica da população irlandesa após a Grande Fome, outra

questão que merece destaque é a lingüística, com o enfraquecimento do idioma gaélico

após a tragédia. Este enfraquecimento deveu-se principalmente ao fato de que as famílias

pobres, em sua maioria composta por camponeses eram aquelas falantes apenas do gaélico.

Para elas não era necessário o domínio da língua inglesa, pois, sua área de atuação era

bastante reduzida e localizada. O idioma então permanecia vivo no campo, e a língua

inglesa não conseguia penetrar naquela região. Por ocasião da Grande Fome, aquelas

famílias camponesas, em sua maioria, morreram ou emigraram. Na Irlanda, a classe

dominante já era bastante familiarizada com a língua inglesa, já que esta era o idioma dos

negócios e dos documentos oficiais, desde que passara a ser a língua oficial do país em

1801 com a criação do Reino Unido da Grã Bretanha e Irlanda. Dois anos após a Grande

Fome, em 1851, apenas 25% da população falava em gaélico37. Portanto, a língua nativa já

passara a ser minoritária. O apagamento do idioma gaélico vinha ocorrendo desde os

tempos coloniais, já que não se estimulava o ensino do idioma, e a sua utilização se

restringia ao âmbito familiar. Algumas iniciativas de preservação do idioma nativo

emergiram no calor dos movimentos nacionalistas e da celtomania38 que invadiu a Europa,

especialmente a Escócia e a Irlanda no século XIX. Em 1877 a Sociedade para a

36 The Great Calamity, The Irish Famine 1845-1852 by Christine Kineally;published by Roberts Rinehart Publishers, Boulder, Colorado ISBN 1-57098-140-X

37 Antes de 1845 x% da população falava o gaélico38 Ao escolher a identidade celta como típica, original, fundadora de suas nações, a Escócia e a Irlanda buscaram resgatar em seu passado muito da mitologia e cultura celtas que pudessem fundamentar e justificar a soberania de suas nações.

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Page 27: Capitulo Introdutorio Tese Versão 1

Preservação da Língua Irlandesa foi fundada, mas a despeito dela, no ano de 1891 o

número de falantes do gaélico reduzira-se ainda mais, somando apenas 14,4% da população

irlandesa. No ano de 1893 foi criada a Liga Gaélica (Gaelic League) por Eoin Mac Neill,

editor do jornal Irisleabhar na Gaedhilge39, para a preservação da “legítima” língua

irlandesa. O termo“legítima” refere-se diretamente ao projeto nacionalista irlandês que

buscou a justificativa da ancestralidade para a soberania irlandesa. Toda a cultura gaélica

deveria ser resgatada e preservada, pois a identidade irlandesa residia naquela cultura nativa

que remetia a eras pré-cristãs de uma sociedade ainda tribal. A liga e os sindicatos

apoiavam um grupo extremista da época conhecido como os Fenianos, ou Irmandade

Republicana Irlandesa, fundada em Dublin em 1958. No parlamento em Westminster o

anglo-irlandês Charles Stuart Parnell, latifundiário protestante, liderava o grupo que

defendia um acordo que permitisse a autonomia irlandesa. O primeiro-ministro britânico,

do Partido Liberal, Gladstone, introduziu o primeiro dos seus projetos de lei da autonomia

(Home Rule) no parlamento em 1856, mas o projeto foi rejeitado. O Tory, partido

conservador inglês, por sua vez, prometeu apoio aos Unionistas da Irlanda do Norte. Estes

acreditavam que deveriam estar preparados para se tornarem responsáveis pelo governo da

província protestante da Irlanda do Norte no caso da autonomia, já que não aceitariam ser

governados de Dublin e seu parlamento dominado por católicos.

Em 1912 meio milhão de irlandeses do norte assinaram, muitos com seu próprio

sangue, um juramento em que se comprometiam em derrotar a autonomia “usando todos os

meios considerados necessários” (Barker, 1979). Em 1914 100.000 homens armados

estavam decididos a rejeitar a autonomia; eram os Voluntários da Irlanda do Norte. No sul

os patriotas queriam a independência irlandesa, quer por meios pacíficos ou pela força. A

demora em conceder a lei da autonomia fez com que muitos perdessem a fé nas boas

intenções da Grã-Bretanha e acreditassem que a força seria o único caminho para a

independência. Assim foi criado o movimento denominado Voluntários da Autonomia

Irlandesa. A situação política irlandesa estava tensa. Unionistas e Republicanos estavam

contra o governo britânico – os voluntários da Irlanda do Norte se preparavam para lutar

pela manutenção da união da Grã-Bretanha e Irlanda, e os voluntários irlandeses estavam

39 O jornal circulou de 1882 a 1909.

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Page 28: Capitulo Introdutorio Tese Versão 1

exigindo o fim da união. A primeira guerra mundial adiou a questão da autonomia e

milhares de irlandeses do norte e do sul ingressaram nas forças britânicas.

Em 1916 os Voluntários Irlandeses da Autonomia, chefiados por Eoin MacNeill,

haviam crescido e se tornado uma facção que congregava nacionalistas de todas as opiniões

– desde os de extrema direita, que apoiavam o esforço de guerra da Grã-Bretanha até a

Irmandade Republicana Irlandesa, liderada por Patrick Pearse, cujo conselho militar

planejava uma insurreição (Barker, 1979). Havia ainda outros grupos nacionalistas, como o

Sinn Féin, fundado em 1908, e o Exército de Cidadãos Irlandeses, dirigido por James

Connolly. No início do ano, a Irmandade Republicana Irlandesa aprovara um plano para um

levante conjunto dos Voluntários e do Exército de Cidadãos, que ocorreria na Páscoa.

MacNeill acreditava ser suicídio para os Voluntários entrarem em ação, mas a Irmandade

de Pearse estava decidida a lutar. Sob seu comando os voluntários que atenderam ao seu

chamado e o pequeno Exército de Cidadãos Irlandeses (cerca de uma centena de homens)

ocuparam prédios importantes da cidade. Os britânicos esmagaram a revolta

metodicamente: reforços foram trazidos até que Pearse ficasse em grande inferioridade

numérica. Dezesseis líderes da rebelião foram executados e uma onda de revolta se

propagou pela Irlanda. O Sinn Féin recebeu a adesão da maioria dos irlandeses, e os

rebeldes que sobreviveram foram aceitos como heróis e líderes de uma nova Irlanda. Os

membros do partido com assentos no parlamento de Westminster recusaram-se a tomar

seus lugares e criaram a sua própria Assembléia Nacional, a Dail Eireann, em Dublin, que

se reuniu em janeiro de 1919 e ratificou a República Irlandesa proclamada por Pearse em

1916.

Nos anos de 1919 a 1921 ocorreram as guerras anglo-irlandesas de independência,

em que os voluntários atacavam repetidamente a administração britânica na Irlanda. Para

fortalecer a Real Polícia Irlandesa, reforços britânicos foram trazidos, e o país entrou em

uma guerra de guerrilhas. Canhões tomaram as ruas da Irlanda do sul, e houve muito

derramamento de sangue, tanto de tropas do exército e policiais quanto da população civil.

Como as autoridades não conseguiam enfrentar os problemas de segurança interna, os

postos policiais do interior foram abandonados para reforçar a segurança nas cidades. Em

conseqüência, grandes áreas do interior foram tomadas por oficiais do governo Dail e pela

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Page 29: Capitulo Introdutorio Tese Versão 1

Irmandade, então liderada por Michael Collins40. As forças republicanas se estabeleceram

nos campos – seus tribunais e sua polícia substituíram as forças britânicas e a população

passou a utilizá-los. Em setembro de 1920 o parlamento britânico aprovou um projeto de lei

de Autonomia que previa a criação de dois parlamentos irlandeses: um em Belfast, para

governar seis dos nove condados da Irlanda do Norte, e um em Dublin, para governar o

resto da Irlanda. Além disso, a Irlanda teria membros no parlamento britânico em

Westminster, e um Conselho Federal da Irlanda administraria os serviços comuns e

coordenaria as atividades legislativas de Belfast e Dublin. O Sinn Féin votou pela rejeição

integral da lei, pois apenas o desligamento total do país, sul e norte, da tutela do Reino

Unido era de seu interesse. Conciliar esta exigência com os Unionistas do norte era

impossível, então podemos dizer que a Lei de 1920 marcou a divisão do país em norte e

sul, de interesses políticos diversos. A lei entrou em vigor, embora o Conselho Federal da

Irlanda nunca tenha sido criado. Em 1921 foi assinado o tratado anglo-irlandês, com a

separação do país em dois, o Estado Livre da Irlanda (Irlanda do Sul) e a Irlanda do Norte.

O primeiro era republicano, católico e independente e a segunda monárquica, parte do reino

Unido, de maioria protestante (anglicana). As tropas britânicas deixaram a Irlanda do Sul

em janeiro de 1922, e placas escritas em gaélico com sua tradução inglesa foram colocadas

nas ruas de Dublin. Durante a retirada das tropas o governo provisório realizou uma eleição

que resultou na ratificação do tratado. No entanto, os deputados republicanos do Dail,

liderados por Eamon de Valera recusavam-se a aceitar o tratado. O sul enfrentou uma

guerra civil entre os partidários do estado livre e os que o repudiaram. O norte também não

estava nada tranqüilo. Oito mil membros armados do IRA41, a ala militar do Sinn Féin,

haviam cruzado suas fronteiras numa ofensiva republicana contra a união do norte com a

Grã-Bretanha. Além disso, a violência sectária, entre católicos e protestantes, continuava

com muitos tiroteios e incêndios, principalmente em Belfast e Derry. Houve muitos

confrontos também entre a Real Polícia Irlandesa e o IRA.

No Estado Livre a guerra civil terminou em 1923 sob a administração de William

Cosgrave, que buscou resolver os problemas econômicos do país e criou a Guarda Cívica,

nova polícia civil desarmada. O IRA foi proscrito e muitos extremistas foram presos. No

norte os problemas continuavam, e economicamente o país não era viável, pois se ressentia

40 Michael Collins41 IRA

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Page 30: Capitulo Introdutorio Tese Versão 1

muito do período pós-primeira guerra mundial, já que a sua indústria era concentrada na

produção de navios e de linho, mercadorias suscetíveis a flutuações no mercado mundial.

Dependia-se inteiramente do Tesouro Britânico para o desenvolvimento da nação. Houve

muito desemprego, as taxas de mortalidade infantil e materna eram as mais altas do Reino

Unido e a população vivia em casas inadequadas. Muitos jovens nacionalistas ingressaram

nas fileiras do IRA em busca de um futuro melhor para seu país, enquanto unionistas

desempregados viviam com subsídios do governo britânico. A violência crescia

assustadoramente, e em 1935 as paradas e demonstrações foram proibidas. No sul o partido

Fianna Fail, liderado por de Valera, subiu ao poder e começou a cortar os laços ainda

existentes com a Grã-Bretanha como pagamentos territoriais. Em 1937 o sul se declarou

“estado soberano, independente e democrático. De Valera garantiu a devolução de três

portos controlados pela Grã-Bretanha desde 1921e passou a utilizá-los como bases navais”

(Barker, 1979). A eclosão da Segunda Guerra Mundial realçou ainda mais as diferenças

entre o sul e o norte. A Irlanda do Sul adotou postura neutra durante a guerra, o que foi mal

visto pela Grã –Bretanha, já que legações alemãs, japonesas e italianas continuaram em

funcionamento em Dublin e em ampla comunicação com seus governos. A Irlanda do

Norte, por sua vez não contava com muita proteção durante a guerra tendo sido duramente

bombardeada, principalmente em Belfast. Após a guerra, no entanto, o governo britânico

promoveu grandes melhorias sociais no país, tanto em termos de moradia quanto saúde e

educação. As atividades do IRA, por sua vez, reiniciaram nos anos 50 no norte, com

ataques a quartéis para a obtenção de armas e explosivos. Os Estados Unidos enviavam

dinheiro e também coletas feitas no sul rendiam grandes somas à organização. A campanha

contra a fronteira norte-sul da Irlanda se acirrou após 1956. O governo de Dublin introduziu

a Lei de Crime contra o Estado, criou campos de detenção para internar os extremistas e

por considerar o IRA uma organização ilegal proibiu o uso do termo nos jornais. As

relações norte-sul estavam bastante danificadas,muitos inocentes foram mortos e qualquer

viagem ao norte, especialmente em áreas de fronteira se tornou extremamente perigosa. As

estradas eram fechadas e todos os veículos detidos para rigorosa inspeção. O cessar-fogo do

IRA deu-se em 1962 e muitos de seus membros se envolveram em reclamações sociais

pacíficas, organizando demonstrações de protesto contra as más condições de moradia,

emprego e direito de voto entre católicos e protestantes. A ala radical da organização,

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Page 31: Capitulo Introdutorio Tese Versão 1

porém, defendia o uso da violência e apoiava uma “Irlanda unida pela força física” (Bartes,

1979). Em 1969 a violência recrusdeceu, houve uma cisão no IRA e formou-se o IRA

provisório (ilegal). Os conflitos persistiram entre unionistas e separatistas, tendo o início da

década de 1970 representado, na Irlanda do Norte, a época “dos problemas” (“The

Troubles”) Ressaltamos aqui a questão problemática da área de Ulster, fronteira entre as

duas Irlandas, pois dos nove condados que a formam, seis passaram a constituir a Irlanda

do Norte e três pertencem à República da Irlanda. Devido aos graves conflitos entre

católicos e protestantes na Irlanda do Norte, em 1972 a Inglaterra suprimiu a autonomia

política norte-irlandesa ao dissolver a sua assembléia, vigente desde 1921 (Home Rule)42 e

governando diretamente o país.

4. Narrando a nação...

As tradições inventadas e os mitos que perpassam as estratégias e atitudes políticas

no país nos reporta a Benedict Anderson em seu livro Comunidades Imaginadas (Imagined

Communities), em que o autor afirma que as nações são inventadas e que suas diferenças

residem nas diversas formas que elas assumem ao serem imaginadas, e não a partir de uma

legitimidade ou falsidade intrínseca a elas (1983, p.6). Utilizando-nos do conceito de

Anderson podemos dizer que a forma assumida pela nação irlandesa ao ser imaginada no

século XIX foi a de uma nação celta. Além das tradições inventadas, o papel dos escritores

irlandeses foi fundamental para a preservação da cultura do país. O Celtic Revival...

Se para Stuart Hall “a cultura nacional pode ser entendida como uma narrativa composta

pelas histórias e literaturas nacionais, pela mídia e pela cultura popular” (2002, p.52) e

concordamos com esta afirmação, podemos dizer que as obras do Celtic Revival...

O teórico indiano Homi Bhabha na introdução de seu livro Nação e Narração (Nation and

Narration) aprofunda a idéia da criação textual das nações ao dizer que “a partir das

tradições do pensamento político e da linguagem literária a nação surge no Ocidente como

uma poderosa idéia histórica” (1990, p.5). Na perspectiva de Bhabha, como toda narrativa,

o alicerce político de uma nação contém estratégias textuais, deslocamentos metafóricos,

subtextos e artifícios figurativos. Ao estudarmos a nação através de seu discurso narrativo

42 Home-Rule

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Page 32: Capitulo Introdutorio Tese Versão 1

estamos tentando alterar o próprio objeto conceitual do estudo. A partir da desarticulação

dos elementos da narrativa sob a qual a nação foi inventada podemos identificar os

interesses que a originaram e legitimaram, bem como os mecanismos que a naturalizaram,

o que contribui para entendermos a “impossibilidade da unidade da nação como força

simbólica” (Bhabha, 1990). Para o teórico, embora os historiadores utilizem a nação como

signo de modernidade social, a temporalidade cultural da nação implica uma realidade

social em transição. Na narrativa da Irlanda independente podemos traçar uma seqüência

linear de acontecimentos desde o levante de Wexford em 1798, o levante de Páscoa de

1916 e as guerras anglo-irlandesas de 1919-1922 até as barricadas e o terrorismo do IRA

que perdura de 1969 a 1974 e depois, em ações nos anos 70 e 80 até 1990 e a demanda pela

paz.

Não podemos hoje, no entanto encerrar aqui a discussão do nacional. A noção de

estado-nação já não se sustenta na contemporaneidade, pois diversos aspectos problemáticos

de uma pretensa homogeneidade cultural foram levantados pelos estudos culturais e, sem

pretender nos aprofundarmos nesse assunto afirmamos que os conceitos de nação e de

identidade nacional estão sendo desarticulados em nossa era. No entanto, na Irlanda do

Norte muito há que se refletir e agir acerca da nação.

5. A Irlanda hoje

A questão nacional não foi ainda resolvida na Irlanda do Norte, embora o

processo de paz venha se desenrolando desde os anos 90 e alguns acordos de “cessar-fogo”

tenham sido cumpridos e tenha até mesmo havido, recentemente, a “devolução” legislativa

ao país com o acordo de Belfast em 199843. Através deste acordo, que previa a presença no

governo de representantes das diferentes comunidades norte-irlandesas, a Assembléia da

Irlanda do Norte foi re-estabelecida. Esta assembléia, no entanto, seria novamente

dissolvida em 2002 com a interrupção do processo de paz, e só retornaria em outubro de

2006, para legislar de fato a partir de março de 2007. Em 26 de março de 2007 o líder do

Partido Democrata Unionista (Democratic Unionist Party), Ian Paisley, pela primeira vez

43 Assinado a 10/04/1998 e também conhecido como Good Friday Agreement. A maioria dos partidos políticos apoiou o acordo, com exceção do DUP (Democratic Unionist Party), maior partido político da Irlanda do Norte e quarto maior na casa dos comuns britânica.

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Page 33: Capitulo Introdutorio Tese Versão 1

junto ao líder do partido republicano do Sinn Féin, Gerry Adams, anunciaram publicamente

a devolução do governo à Irlanda do Norte. O poder compartilhado teve início em 08 de

maio de 2007, demonstrando a viabilidade de um governo conjunto para o país. Teóricos

comentam a importância da política externa inglesa e a atuação firme do ex-primeiro-

ministro Tony Blair para o sucesso do processo de paz na Irlanda do Norte. Pensa-se que a

política de Blair em relação à Irlanda do Norte seja seguida e que a intervenção britânica no

país seja reduzida dia-a-dia. Em 01 de agosto de 2007 o jornal O Globo noticiou: “Exército

britânico se retira da Irlanda do Norte”. As tropas britânicas, que de acordo com o jornal

chegaram a contar com 27.000 homens no país no auge dos confrontos entre unionistas e

republicanos, foram retiradas e os ingleses deixaram o controle da ordem a cargo da polícia

norte-irlandesa. Mesmo após a retirada das tropas, uma guarnição de 5.000 homens

permanecerá baseada na Irlanda do Norte. Pensamos que ainda acompanharemos

significativas mudanças na trajetória política do país, que a nosso ver, segue rumo à

autonomia em relação à Inglaterra. Esta separação, porém, não significa necessariamente

uma “devolução” dos seis condados norte-irlandeses para a República da Irlanda. Existem

outras opções, como a de uma Irlanda do Norte independente ou a anexação dos condados à

República da Irlanda ou ao Reino Unido dependendo de sua maioria ser republicana ou

unionista. Aspectos econômicos, de política internacional, religiosos e culturais serão

levados em consideração para que se chegue a uma definição. Certamente há espaço para

muito debate antes que uma solução definitiva seja encontrada para o país.

33