CAPÍTULO 1 DINÂMICA SETORIAL EVOLUÇÃO DA … do Timm... · para o crescimento da economia...
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CAPÍTULO 1 DINÂMICA SETORIAL, EVOLUÇÃO DA PRODUTIVIDADE
E CRESCIMENTO DA ECONOMIA GAÚCHA NOS ANOS 2000
Cecília Rutkoski Hoff Martinho Roberto Lazzari
A perda de participação da economia gaúcha na economia nacional não é um
fenômeno recente. Estima‐se que o PIB estadual tenha representado em torno de
8,5% do PIB brasileiro entre os anos 1950 e 1970. A partir dos anos 1980, teve início
um processo de redução da parcela da produção gaúcha na produção nacional, que se
intensificou em dois períodos distintos: na primeira metade dos anos 1990, em
resposta à abertura comercial da economia brasileira e ao Plano Real, e, mais
recentemente, desde meados dos anos 2000, com a retomada do crescimento
brasileiro, liderado pela expansão da produção de commodities para o mercado
internacional e pelo crescimento da renda e a ampliação do consumo doméstico.
Atualmente, o PIB do Rio Grande do Sul representa 6,36% do PIB nacional (segundo
dados consolidados das Contas Regionais de 2011), figurando, ao lado de São Paulo e
Rio de Janeiro, entre os estados que mais perderam participação na última década.
Há que se considerar que a análise comparada de informações das contas
regionais em séries temporais longas deve ser conduzida com cautela, uma vez que
está sujeita a diferenças de mensuração. A qualidade das informações estatísticas e a
metodologia costumam ser alteradas e aprimoradas com o passar do tempo, de sorte
a acompanhar as mudanças ocorridas na economia e melhor retratar a realidade.
Também é esperado que regiões menores aumentem a sua participação, na medida
em que o país se desenvolve econômica e regionalmente. Porém, a perda de
participação do Rio Grande do Sul tem sido persistente, podendo ser visualizada com
clareza nas séries cuja metodologia é uniforme temporalmente, como é o caso da série
mais recente, que abrange o período de 1995 a 2011.
Entretanto, esse fenômeno não se constitui, isoladamente, em evidência de
crise estrutural na economia gaúcha. De um lado, setores que se destacaram no
crescimento nacional nos últimos anos não fazem parte da estrutura produtiva do
estado, como, por exemplo, aqueles vinculados à indústria extrativa mineral. Da
mesma forma, setores tradicionais da estrutura produtiva gaúcha enfrentaram
dificuldades competitivas na última década, associadas à condução da política
macroeconômica que agravou as dificuldades na produção de bens comercializáveis.
De outro lado, a população do Rio Grande do Sul cresceu menos do que a nacional, de
modo que, apesar da perda de participação no PIB, a renda per capita mostrou
crescimento em relação à média nacional nos últimos anos, ao mesmo tempo em que
a taxa de desemprego na região metropolitana de Porto Alegre é a menor dentre as
demais regiões nas quais esse indicador é calculado – em que pese o fato de que os
níveis de renda per capita e desenvolvimento do estado ainda serem baixos se
comparados aos vigentes nos países avançados. Ou seja, a resposta da economia
gaúcha ao modelo de expansão nacional tem sido mediada, entre outros fatores, pelas
suas especificidades setoriais e pela sua dinâmica demográfica e do mercado de
trabalho.
O objetivo deste capítulo é analisar o crescimento da economia do Rio Grande
do Sul nos dez anos compreendidos entre 2002 e 2011, buscando avaliar o
desempenho da economia gaúcha frente ao modelo de crescimento que vigorou na
economia brasileira na última década. Na próxima seção, decompõe‐se o crescimento
da economia gaúcha setorialmente, a fim de identificar as principais transformações
setoriais ocorridas no período. Na seção seguinte, é abordado o impacto da
demografia e do crescimento da produtividade no diferencial de crescimento do
estado em relação à média nacional. Por fim, são apresentadas algumas conclusões.
Estrutura produtiva e transformações setoriais
Será analisado o desempenho setorial da economia gaúcha, a fim de identificar
se as especificidades da estrutura produtiva do estado podem explicar o diferencial de
crescimento em relação à média nacional. A economia do estado representava 7,22%
do Valor Adicionado Bruto (VAB) nacional em 2002, reduzindo a sua participação para
6,45% em 2011. O estado de São Paulo também reduziu a sua participação de 33,70%
para 31,40%, enquanto o Rio de Janeiro viu a sua parcela na economia nacional cair de
11,57% para 11,19%. Por fim, o Paraná reduziu a sua parcela de 6,07% para 5,79%, e a
Bahia de 4,14% para 3,96%. As demais regiões mantiveram ou aumentaram as suas
participações. Já os ganhos foram mais difusos, com destaque para as regiões Centro‐
Oeste, Norte e Nordeste (Gráfico 1). Nota‐se que as regiões com maiores ganhos
foram aquelas em que houve uma maior expansão da produção de commodities
agrícolas e minerais, como Mato Grosso, Goiás, Pará e Minas Gerais.
Gráfico 1 – Perdas e ganhos de participação no VAB nacional, 2002‐2011. NOTA: variação em pontos percentuais. Fonte: IBGE
O modelo de crescimento da economia brasileira na última década privilegiou
as regiões produtoras de commodities. É verdade que a economia gaúcha também se
beneficiou da elevação dos preços relativos de alguns produtos no mercado
internacional – no caso, a soja e os derivados de petróleo –, mas isso ocorreu em
menor proporção do que em outros estados. Em primeiro lugar, porque alguns
produtos que tiveram uma forte valorização ao longo da década, como os minérios e o
petróleo em bruto, não são produzidos no estado. Em segundo lugar, porque a
capacidade de expansão da fronteira agrícola no estado é reduzida, principalmente
quando comparada à da região Centro‐Oeste. A produção agropecuária do Mato
‐3,5 ‐3 ‐2,5 ‐2 ‐1,5 ‐1 ‐0,5 0 0,5 1
Minas Gerais
Espírito Santo
Pará
Mato Grosso
Santa Catarina
Maranhão
Ceará
Mato Grosso do Sul
Rondônia
Distrito Federal
Goiás
Pernambuco
Piauí
Amazonas
Tocantins
Rio Grande do Norte
Alagoas
Paraíba
Acre
Roraima
Sergipe
Amapá
Bahia
Paraná
Rio de Janeiro
Rio Grande do Sul
São Paulo
Grosso, por exemplo, saltou de 3,0% do Valor Adicionado Bruto (VAB) brasileiro, em
meados da década de 1990, para 8,04% em 2011. No mesmo período, a produção
gaúcha acompanhou a média brasileira e ficou estável em cerca de 11,0% do VAB. De
todo modo, sem a valorização dos preços relativos, a perda de participação da
economia gaúcha teria sido ainda mais acentuada (Gráfico 2).
Gráfico 2 – Participação do PIB do Rio Grande do Sul no PIB brasileiro, em %. Fonte: IBGE, FEE
A perda de participação esteve associada, portanto, ao desempenho real
inferior à média nacional. O Gráfico 3 mostra a evolução do índice de volume do PIB do
Brasil e do Rio Grande do Sul. Nota‐se que, até 2003, as taxas de crescimento da
economia gaúcha coincidiam, em média, com as observadas na economia brasileira. E
que, após a queda da produção em 2005, a economia do estado voltou a crescer em
um ritmo próximo do nacional (medido pela inclinação da curva), porém sem
compensar a perda relativa. A forte estiagem que atingiu a economia gaúcha nesse
período frequentemente induz à interpretação de que a agropecuária foi a responsável
pelo menor crescimento do estado no período. Porém, essa conclusão é equivocada.
As estiagens, que ciclicamente atingem a produção agropecuária gaúcha, tornaram a
taxa de crescimento do PIB estadual mais volátil do que a nacional, mas não inferior.
6,36
7,05
7,35
5,89
5,00
5,50
6,00
6,50
7,00
7,50
1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012
Preços correntes Preços constantes de 2000
Na média entre 2002 e 2012, e a despeito das estiagens ocorridas em 2004, 2005 e
2012, a produção agropecuária do estado cresceu em linha com a nacional, tendo
apresentado um crescimento superior ao brasileiro entre 2006 e 2011 (Gráfico 4). Ou
seja, a análise de um período mais longo não permite atribuir à agropecuária a
responsabilidade pelo menor crescimento relativo da economia gaúcha.
Gráfico 3 – Índice de Volume do PIB, Brasil e Rio Grande do Sul. Fonte: IBGE, FEE
65,0
75,0
85,0
95,0
105,0
115,0
125,0
135,0
145,0
155,0
1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012
Brasil Rio Grande do Sul
Gráfico 4 – Índice de Volume do VAB da Agropecuária, Brasil e Rio Grande do Sul Fonte: IBGE, FEE
Entre 2002 e 2011, o PIB brasileiro acumulou um crescimento de 44,6%, uma
média de 3,8% ao ano. No mesmo período, o Rio Grande do Sul cresceu 32,9%, ou
2,9% ao ano. Entre os setores, a agropecuária gaúcha acumulou um crescimento de
75,2%, enquanto na média nacional o crescimento foi de 44,7%. A estiagem de 2012
reduziu esse diferencial de crescimento, mas a safra recorde de 2013 o recompôs, de
modo que a comparação ponta a ponta do desempenho da agropecuária no período
não parece superestimada. A contribuição estimada da agropecuária para o
crescimento da economia gaúcha no período foi maior do que a contribuição do setor
para o crescimento da economia brasileira (5,3 pontos percentuais da expansão de
32,0% do VAB), seja devido à maior participação desse setor na economia estadual
(7,9% do PIB em 2011), seja devido ao maior crescimento relativo.
Conforme mostra a Tabela 1, as maiores perdas relativas ocorreram na
indústria e nos serviços. A indústria gaúcha acumulou um crescimento de 17,5% entre
2002 e 2011, enquanto na média nacional o setor cresceu 35,0%. Nos serviços, o
crescimento acumulado foi de 34,7% no estado e 45,5% no Brasil. Embora o diferencial
de crescimento nos serviços seja significativo, a análise se concentrará nos segmentos
0,0
50,0
100,0
150,0
200,0
250,0
1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012
Brasil Rio Grande do Sul
da indústria, uma vez que muitas atividades de serviços (como comércio, transportes,
instituições financeiras, por exemplo) ainda possuem o desempenho vinculado à
dinâmica industrial. Tem‐se que o crescimento da indústria gaúcha foi menor em todos
os segmentos (extrativa, transformação, construção civil e produção e distribuição de
eletricidade e gás, água, esgoto e limpeza urbana). Porém, os maiores diferenciais
foram observados nas indústrias extrativa e de transformação.
Tabela 1– Contribuições dos setores para a taxa de crescimento do VAB, Brasil e Rio Grande do Sul.
No caso da indústria extrativa, a produção no estado é pouco relevante,
representando 0,2% do PIB em 2011, de modo que o seu desempenho tem pouca
influência na taxa de crescimento total. Na economia nacional, porém, a indústria
extrativa vem ganhando participação – esta passou de 1,4% do PIB em 2002 para 3,5%
em 2011. Ademais, esse segmento da indústria cresceu 69,3% entre 2002 e 2011, e
estima‐se que a sua contribuição para o crescimento do PIB brasileiro no período
tenha sido de 1,2 ponto percentual. No que diz respeito à indústria de transformação,
a participação desta é maior no PIB do Rio Grande do Sul (16,5% em 2011, contra
12,4% na economia brasileira), e o dinamismo deste segmento foi bastante inferior na
economia gaúcha, apesar de ambas mostrarem dificuldades e terem registrado
crescimento abaixo do PIB no período. Enquanto a indústria de transformação nacional
cresceu 26,6% entre 2002 e 2011, a indústria gaúcha cresceu 12,9%.
Var. % 2002‐2011
Participação % em 2011
Contribuição em p.p. (a)
Var. % 2002‐2011
Participação % em 2011
Contribuição em p.p. (b)
PIB 32,9 100,0 ‐ 44,6 100,0 ‐ ‐VAB 32,0 86,4 32,0 42,4 85,2 42,4 ‐10,4Agropecuária 75,2 7,9 5,3 44,7 4,7 2,5 2,8Indústria 17,5 23,2 5,3 35,0 23,5 9,7 ‐4,4Extrativa 2,2 0,2 0,0 69,3 3,5 1,2 ‐1,1Transformação 12,9 16,5 3,4 26,6 12,4 5,0 ‐1,6Construção 23,1 3,9 1,1 39,7 4,9 1,9 ‐0,8
SIUP(1) 34,8 2,6 0,8 54,2 2,6 1,7 ‐0,9Serviços 34,7 55,2 21,4 45,5 57,1 30,2 ‐8,8(1) Produção e distribuição de eletricidade e gás, água, esgoto e limpeza urbana
Fonte: IBGE
Rio Grande do Sul BrasilDiferença (a) ‐ (b)
Tabela 2 – Índice de volume e participação das atividades da indústria de transformação, Brasil e RS – 2011.
Conforme pode ser observado na Tabela 2, entre os setores que possuem
participação similar na indústria de transformação do estado e no Brasil, destaca‐se o
menor crescimento do setor de Alimentos, bem como a queda da produção nos
setores de Bebidas e Borracha e Plástico. Por outro lado, alguns setores cuja
participação no estado é elevada, quando comparada com a importância no País,
como Fumo, Calçados e Mobiliário, apresentaram quedas expressivas na década. Por
fim, entre os setores que apresentaram desempenho superior ao nacional na década,
contribuindo para que o desempenho do estado não fosse ainda mais baixo, estão os
de Máquinas e Equipamentos e Veículos Automotores.
Em suma, no contexto do crescimento nacional, liderado pela expansão da
produção de commodities e pelo consumo interno de massas, os setores da indústria
gaúcha que tiveram melhor desempenho relativo foram aqueles vinculados à
BR RS(2) BR RSTotal 130,2 111,0 ‐ ‐Alimentos 120,4 104,5 16,5 16,3Bebidas 128,0 81,3 3,7 3,2Fumo 57,0 30,5 0,7 4,2Têxtil 83,9 ‐ 1,8 1,0Vestuário e acessórios 78,5 ‐ 2,6 1,4Calçados e artigos de couro 65,5 51,6 1,8 7,8Madeira 87,1 ‐ 1,0 1,1Celulose, papel e produtos de papel 138,4 143,0 3,3 1,9Refino de petróleo e álcool 108,7 103,1 11,8 0,7Farmacêutica 168,5 ‐ 2,4 0,3Outros produtos químicos 102,1 98,4 7,8 9,6Borracha e plástico 109,6 84,0 3,9 4,1Minerais não metálicos 126,4 ‐ 4,0 3,1Metalurgia básica 122,2 123,3 5,3 2,6Produtos de metal ‐ exclusive máquinas e equipamentos 126,1 120,6 4,3 6,9Máquinas e equipamentos 170,3 201,2 5,5 10,2Veículos automotores 198,9 260,7 11,3 13,0Outros equipamentos de transporte 351,2 ‐ 1,7 1,2Mobiliário 120,2 84,3 1,4 3,9(1) Valor da Transformação Industrial.
Participação %
no VTI(1)Índice de volume
2001=100
Fonte: IBGE, Pesquisa Industrial Mensal (PIM‐PF) e Pesquisa Industrial Anual (PIA‐Empresa)
Setores e atividades
(2) No caso do Rio Grande do Sul, a amostra do IBGE não incorpora todos os setores pesquisados nacionalmente. É o caso das atividades Têxtil, Vestuário e acessórios, Madeira, Minerais não metálicos e Outros equipamentos de transporte.
produção de veículos e bens de capital. Ao contrário, aqueles segmentos produtores
de bens de consumo não duráveis e mais intensivos em trabalho, como calçados,
alimentos e mobiliário, enfrentaram dificuldades competitivas maiores, associadas à
maior concorrência externa em um contexto de valorização cambial e aumentos
salariais acima da produtividade.
PIB per capita, demografia e produtividade
Conforme mostrado nos parágrafos anteriores, nos dez anos compreendidos
entre 2002 e 2011, o PIB do Rio Grande do Sul cresceu, em média, 2,9% ao ano,
enquanto o do Brasil apresentou taxa média de crescimento de 3,8% ao ano. Por outro
lado, as taxas médias de expansão das populações gaúcha e brasileira foram de 0,7% e
de 1,2% ao ano respectivamente. Se o objetivo for medir da melhor maneira possível o
desempenho econômico do estado na comparação com a média nacional, essas duas
medidas, PIB e população, devem ser analisadas conjuntamente. É isso o que o PIB per
capita faz. De certo modo, esse indicador normaliza o crescimento do produto
agregado de uma economia a partir da variação do número de habitantes. O resultado
é uma medida mais fidedigna da evolução da capacidade de geração de produção e
renda de um território e sua população.
O objetivo desta seção é analisar de forma mais abrangente a evolução da
economia gaúcha no período e sua comparação com a brasileira, utilizando
informações que levem em conta não apenas a variação do produto, mas também a
variação da população, a sua estrutura etária e a sua inserção no mercado de trabalho.
Em outras palavras, a ideia é avaliar o desempenho da capacidade produtiva do Rio
Grande do Sul no âmbito nacional. Para isso, o estudo focará na análise da evolução do
PIB per capita e em sua decomposição. Isso permitirá, por um lado, entender melhor
as diferenças de desempenho econômico entre o Rio Grande do Sul e o Brasil e, por
outro, responder concretamente se, a despeito do menor crescimento econômico, o
Rio Grande do Sul tornou‐se menos produtivo relativamente ao Brasil nos primeiros
anos do novo século.
A finalidade da decomposição do PIB per capita é possibilitar a observação de
outros indicadores importantes para entender a evolução da economia gaúcha no
período recente. O principal deles é a relação entre o produto agregado e o pessoal
ocupado, que será o principal indicador a ser usado para responder à questão principal
da seção. De certo modo, o PIB per capita e o produto por trabalhador medem a
mesma coisa, a produtividade do trabalho, sendo que um considera a população total
e outro, apenas a envolvida diretamente na produção. A vantagem da produtividade
do trabalho é que este pode ser decomposto setorialmente, fornecendo, assim,
informações mais desagregadas sobre as alterações produtivas e os seus impactos
sobre o crescimento econômico de mais longo prazo. A decomposição também
permite enxergar com maior clareza o papel que a demografia tem no crescimento
econômico.
O PIB per capita (PIB/Pop) pode ser reescrito, portanto, como o produto
(PIB/PO).(PO/Pop), em que Pop é a população total e PO é o pessoal ocupado. Assim, o
PIB per capita é dado pela multiplicação da produtividade do trabalho (PIB/PO) e do
quociente entre pessoal ocupado e população total (PO/Pop). A decomposição
algébrica do PIB per capita pode ser estendida para adicionar dados do mercado de
trabalho e demográficos. Desse modo,
(PIB/Pop)=(PIB/PO).(PO/PEA).(PEA/PIA).(PIA/Pop) (1)
Na equação acima, o PIB representa o produto agregado da economia, Pop a
população total, PO o pessoal ocupado, PEA a população economicamente ativa e PIA
a população em idade ativa. Manipulando algebricamente a equação 1, pode‐se
concluir que a taxa de variação do PIB per capita é resultado das taxas de variação da
produtividade do trabalho (PIB/PO), da taxa de ocupação (PO/PEA), da taxa global de
participação (PEA/PIA) e da parcela da população total com idade de 10 e mais anos
(PIA/Pop):
∆(PIB/Pop)=∆(PIB/PO).∆(PO/PEA).∆(PEA/PIA).∆(PIA/Pop) (2)
A Tabela 3 apresenta as informações para o Rio Grande do Sul e o Brasil para o
período entre 2002 e 2011.
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Os cinco anos seguintes foram diferentes. Entre 2007 e 2011, o PIB gaúcho
cresceu 4,1% ao ano em média. A ausência de estiagens mais severas e o aumento da
produção industrial explicam o maior crescimento da segunda parte da década.
Entretanto, a economia gaúcha não cresceu mais que a brasileira, que avançou à taxa
de 4,2% ao ano na média do período. Mas como a população do estado apresentou
um crescimento mais lento, a reduzida diferença entre as taxas do PIB refletiu‐se num
crescimento superior do PIB per capita no Rio Grande do Sul. Entre 2007 e 2011, o
indicador gaúcho cresceu 3,6% ao ano em média, e o brasileiro, 3,1%. Vê‐se na prática
que a menor expansão da população verificada no estado exige uma menor taxa de
crescimento do produto para que seu PIB per capita acompanhe o nacional.
O segundo ponto importante que a Tabela 3 mostra é a decomposição
propriamente dita do PIB per capita. Dado que o produto por habitante aumentou, os
números informam a origem do maior esforço produtivo. Analisando‐se a tabela da
direita para a esquerda, o primeiro número indica a variação (e sua contribuição) da
parcela da população apta a trabalhar; o segundo, a alteração da parcela da população
no mercado de trabalho (ou trabalhando ou procurando trabalho); o terceiro, a
mudança na taxa de emprego; e, por fim, o quarto indica a variação na produtividade
do trabalho. Ou seja, qualquer aumento de produção per capita é resultado do
aumento da produtividade de quem já estava empregado ou da incorporação de novos
trabalhadores ao processo produtivo, seja do maior engajamento da população no
mercado de trabalho, seja no maior crescimento populacional propriamente dito.
Especificamente neste ponto da análise, vale a pena observar diretamente os
subperíodos de 2002‐2006 e de 2007‐2011. Os dados do Brasil mostram que nos
primeiros cinco anos, quase dois terços (62,1%) do aumento do PIB per capita tiveram
origem na incorporação de novos trabalhadores, a maioria explicada ou pelo
crescimento da população em idade ativa (29,0%) ou pelo aumento da parcela da PEA
(23,9%). Somente 37,9% do crescimento do PIB per capita originou‐se do aumento da
produtividade do trabalho. No caso do Rio Grande do Sul, a divisão entre
produtividade e incorporação de novos trabalhadores foi praticamente meio a meio
(51,0% e 49,0%, respectivamente). Nos cinco anos seguintes (2007‐2011) os pesos das
contribuições foram mais parecidos entre o estado e o País. A produtividade do
trabalho respondeu por mais de 90,0% das variações dos produtos per capita nos dois
casos.
Resumindo, esses dados informam que o crescimento brasileiro do período
2002‐2006 foi ancorado na incorporação de novo pessoal à produção. No quinquênio
posterior (2007‐2011), esse efeito perdeu um pouco de sua força, mas ainda foi
fundamental para explicar as robustas taxas de crescimento de 2007 e 2008 (6,1% e
5,2%, respectivamente). Segundo trabalho do IPEA, “[...] foram a incorporação de um
grande contingente populacional ao mercado de trabalho e a redução dos níveis de
desemprego que explicaram uma parcela significativa do crescimento do PIB per capita
no período 2001‐2009 (RADAR, 2013, p. 10)”. Nos anos seguintes, com o mercado de
trabalho mais pressionado, a incorporação de novos trabalhadores perdeu força.
No Rio Grande do Sul, o mercado de trabalho já estava pressionado ainda no
período inicial. Não havia espaço para aumentos significativos da PIA sobre a
população (que é um aspecto demográfico), nem aumentos das taxas de participação e
de emprego. A variação da taxa de participação (PEA/PIA), que já era negativa no Rio
Grande do Sul no primeiro período, e continuou assim no segundo, também se tornou
negativa no Brasil nos cinco anos finais.
Isso quer dizer que a economia gaúcha não pôde contar com a incorporação
expressiva de novos trabalhadores ao processo produtivo, pelo menos não na
magnitude que ocorreu nacionalmente, principalmente nos primeiros anos da década.
A explicação é de natureza demográfica e possui duas razões principais. Em primeiro
lugar, a população gaúcha cresceu menos do que a nacional, o que se refletiu na
menor expansão da PIA no estado; em segundo lugar, a existência de uma parcela
mais representativa de idosos na população total fez com que a PEA também
apresentasse uma taxa de crescimento menor que a do Brasil.
O terceiro ponto trata da produtividade do trabalho, medida e apresentada na
segunda coluna da Tabela 3. Entre 2002 e 2011, o indicador para o Rio Grande do Sul
cresceu, em média, 1,86% ao ano. Durante os primeiros cinco anos, no entanto, o
baixo crescimento do PIB redundou em uma reduzida taxa média de variação da
produtividade (0,45% ao ano). Em contrapartida, entre 2007 e 2011, o indicador
cresceu 3,3% ao ano, em média. Além de significar uma importante recuperação, a
taxa ganhou ainda mais relevância ao representar 92,9% da taxa de crescimento do PIB
per capita no período. A mesma recuperação da produtividade ocorreu no Brasil. O
crescimento médio da produtividade brasileira passou de 0,76% ao ano entre 2002 e
2006 para 2,84% ao ano entre 2007 e 2011.
No período todo (2002 a 2011), a produtividade do trabalho da economia
gaúcha (1,86% ao ano) cresceu, portanto, a uma taxa superior à nacional (1,80% ao
ano). De acordo com esse indicador e para os anos selecionados, pode‐se concluir que
a economia do Rio Grande do Sul tornou‐se relativamente mais produtiva que a do
Brasil e não menos. Em média, o trabalhador gaúcho aumentou o seu valor adicionado
um pouco acima do aumento do trabalhador brasileiro.
O comportamento da produtividade do trabalho também pode ser visto de
forma desagregada, para as atividades da Indústria de transformação, Comércio,
Serviços e produtos agrícolas selecionados.
Entre 2002 e 2011, a taxa média de crescimento da produtividade da indústria
de transformação do Rio Grande do Sul foi de 2,82% ao ano, superior, portanto, à do
Brasil, que foi de 1,92% ao ano (Tabela 4). Até 2006‐07, a produtividade industrial
gaúcha avançou praticamente no mesmo ritmo da nacional. Daquele biênio em diante,
passou a apresentar uma velocidade de crescimento maior que a brasileira, explicando
a diferença ao final do período. Em 2007, conforme comentado na seção anterior, tem
início um processo de mudança setorial na indústria gaúcha, que acaba por determinar
o arranque na produtividade. Atividades tradicionais, como Alimentos, Calçados, Fumo
e Mobiliário perderam espaço, enquanto atividades de Veículos Automotores e de
Máquinas e Equipamentos conquistaram maiores parcelas na produção industrial do
estado. Essa alteração, ao substituir parcialmente atividades de menor produtividade
por atividades mais produtivas, acabou por determinar um salto nos níveis gerais da
produtividade do trabalho da indústria de transformação do Rio Grande do Sul no
período.
As produtividades do Comércio e dos Serviços também apresentaram
desempenhos mais positivos no Rio Grande do Sul. O indicador do Comércio cresceu
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limitações financeiras do Governo estadual. Neste quadro é exemplar a construção e
consolidação da indústria naval e oceânica no Rio Grande do Sul, como forma da
economia gaúcha ligar‐se ao crescimento da indústria nacional do petróleo.
Referências
BANDEIRA, Marilene Dias. Uma visão demográfica do Estado do Rio Grande do Sul no contexto brasileiro: análise dos principais indicadores demográficos. In: CONCEIÇÃO, Octávio A. C. et al. (org.). A evolução social. Porto Alegre: FEE, 2010. (Três décadas de economia gaúcha, 3).
DE NEGRI, Fernanda; CAVALCANTE, Luiz Ricardo. Evolução recente dos indicadores de produtividade no Brasil. RADAR: tecnologia, produção e comércio exterior, IPEA, n. 28, ago. 2013.
FUNDAÇÃO DE ECONOMIA E ESTATÍSTICA – FEE. Estatísticas. Porto Alegre: FEE, 2013. Disponível em: <http://www.fee.tche.br>.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. Banco de dados. Rio de Janeiro: IBGE, 2013. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br>.
LAZZARI, Martinho Roberto. A economia gaúcha na visão das Contas Regionais – 1981‐2009. In: CONCEIÇÃO, Octávio A. C. et al. (org.). O movimento da produção. Porto Alegre: FEE, 2010. (Três décadas de economia gaúcha, 2).
O RIO GRANDE DO SUL: FRONTEIRA
ENTRE DUAS FORMAÇÕES HISTÓRICAS
Luiz Roberto Pecoits Targa
Ao meu pai, que lendo vai saber por que, e ao
Rubinho que não vai entender mais nada.
"Separada a Província Gsplatina, que significava o Rio Grande do Sul? Que se lucrava em, derribadas as muralhas de ílion, guardar o cavalo de Tróia? "
Capistrano de Abreu, 1900
Introdução
Neste ensaio, pretendemos desenvolver os conteúdos referentes a um dos aspectos fundamentais da formação histórica do Rio Grande do Sul, o que se refere às relações entre a sociedade dessa região com a guerra, com o mihtarismo e com a ditadura. Esse aspecto da história rio-grandense, pelos desdobramentos que apresentou, permite caracterizar essa sociedade como uma formação histórica diversa das sociedades que se constituíram em regiões como a Nordeste ou a L^ste do Brasü. Mostraremos que, no sul, as lutas engendradas pela existência da fronteira meridional produziram uma sociedade diversa da brasileira.
Inicialmente, veremos que, desde as suas origens o Rio Grande do Sul constituiu uma formação social particular dentro do Brasil, pois que esteve sempre envol-
* Este ensaio explora alguns aspectos do trabalho de tese do autor. Dessa forma, por ura problema de tempo para o amadurecimento de algumas questões, não foi possível levar em consideração todas as excelentes sugestões e críticas da Professora Helga Iracema L. Piccolo. Registre-se o seu reconhecimento à sua autoridade e disponibilidade. O mesmo deve ser dito sobre as "provocações", as "sinalizações" e os encaminhamentos realizados pelo Prof. François Chesnais. Agradece, também, à Marinês Z. Grando e à Naira Lápis pelas meticulosas críticas e sugestões a este texto.
** Economista da FEE.
F E E - C E f í Ü C
Ensaios FEE, Porto Alegre, 11(2):308-344,1991 \ ^ ^ . ^ ^ ^ ' ^ ' ^ ^ ^ 9 „_ •
vido com guerras de fronteiras, dadas as características e o período de formação dos Estados limítrofes. Em seguida, mostraremos que derivou de sua condição de fronteira em guerra um conjunto de peculiaridades estruturais da sociedade gaúcha em relação à do Brasil: sua estrutura da propriedade da terra, suas classes sociais rurais, assim como a relação que sua classe dominante possuía com as classes dominantes de outras regiões e com o Governo Imperial. Por isso, o território do Rio Grande do Sul serviu de palco para uma experiência social nova no Brasil do século XIX. Tal como veremos ao longo deste ensaio, essa sociedade inédita colocou-se problemas novos dentro do contexto brasileiro da transição do escravismo para o capitalismo. Por fim, durante a I Repúbhca, no Rio Grande do Sul, o partido político que esteve no Poder Executivo estadual estabeleceu, por um lado, laços muito estreitos com o Exército Nacional, por outro, tornou-se o primeiro partido político moderno do Brasil, tendo reahzado, à nível regional, uma longa experiência ditatorial.
1 — Orepto
À guisa do repto, apresentaremos um "retrato" dos gaúchos feito por José Honório Rodrigues. Daremos como ilustração esta página, que se encontra num estudo em que o autor critica as teses de Ohveira Viana no O Campeador Rio--Grandense. O estudo de José Honório, polêmico e ensandecido em si mesmo, é uma violenta crítica ás teses de Viana sobre a superioridade dos gaúchos frente ás outras populações regionais do Brasil. Precisamos alongar a citação, pois é difícil passar ao leitor toda a indignação e a virulência de José Honório face ao texto de Viana, face aos gaúchos e ao papel que Viana lhes atribuiu e ao papel que o próprio José Honório üies atribui na história do Brasil. Nesta página, José Honório utihzou-se de Capistrano de Abreu para iniciar a refutação das teses de Viana. Neste texto de 1984, diz José Honório:
"Capistrano de Abreu ( . . . ) já havia dito em 1900, antes de 1930 e 1964, em que os gaúchos desempenham papel dominante, palavras importantes sobre o caráter gaúcho e os males que os dominados pela influência platina traziam á fabricação histórica nacional. Havia sido forte a sua expressão, mas está lá e Oliveira Viana não podia desconhecê-la. "'Separada a Província Cisplatina, que significava o Rio Grande do Sul? Que se lucrava em, derribadas as muralhas de Ilion, guardar o cavalo de Tróia? A resposta não se fez esperar. Em 1835 rebentou uma revolução que durou dez anos. Desde então ( . . . ) grassa o antigüismo. O doutor Francia pôde prender o corpo: mas a alma de José Artigas (Chacal conjugado a Moloch) ulula, duende, impropiciável, pela campanha e sobre as coxilhas'. "Sabe-se como piada que nenhum ditador platino — Rosas, Urquiza, Vargas — deixou de tomar banho no rio Uruguai. E, ao contrário do que diz Oliveira Viana, nunca nenhum brasileiro deu para ditador. Só e só
nascido nos Pampas. Eis uma imigração que o Brasil inteiro rejeita e maldiz. E que aconteceu, depois das palavras proféticas de Capistrano de Abreu? Tivemos Getúlio Vargas e infelizmente esta fileira de ditadores, todos generais gaúchos, e quando não gaúchos, formados e educados no ambiente da Escola Militar de Porto Alegre, a escola dos ditadores brasileiros. "Capistrano de Abreu pensa em afastar o Rio Grande do Sul da comimi-dade brasileira pelos males que iria nos trazer. O cavalo de Tróia na sociedade democrática [sic] brasileira. E o que sucedeu? Até agora a ditadura de Vargas e os vinte nesfastos anos de ditadores gaúchos ( . . . ) . "Reeducar o Rio Grande do Sul e sobretudo retirar-lhe qualquer resquício de platinismo, de positivismo é a tarefa da Repúbhca. E é nessa hora que Ohveira Viana, numa bajulação sem medida, vem louvar a guerra e as qualidades de mando dos caudilhos gaúchos, que deveriam ser reprimidas no território brasileiro.
"Disso tudo, desse louvor exaltado do caudilho, ao gaúcho do Extremo--Sul, irmão do tiruguaio e do argentino mais do que do brasileiro, faz ele [O. Viana] nascer o espírito democrático do Sul e as singularidades da história política rio-grandense. Sim, a singularidade de Júlio de Cas-tilhos, que, se a morte não levasse cedo, talvez se tivesse perpetuado no poder, assim como Borges de Medeiros foi o ditador mais longo de toda a história do Brasil, e esses generais, sob o disfarce de sucessão, escolhida por eles, com exclusão inclusive de companheiros melhores, perpetuaram um sistema ditatorial, autoritário, totaUtário de vinte anos até agora (1964-1984), e que levou o Brasil á maior e mais grave crise de sua história colonial e nacional" (os grifos são nossos) (Rodrigues, 1988,p.56-7,63).
Poderíamos multiplicar os exemplos encontrados neste estudo de José Honó-rio, mas essa página parece-nos suficiente para sugerir uma caracterização da formação gaúcha conío diversa da brasileira. Por outro lado, essa página é imi eloqüente depoimento da presença, ainda tão viva entre nós, dos regionalismos brasileiros (no seu sentido mais reacionário), pois ela atesta que mesmo um historiador do porte de José Honório mergulha nas águas turvas do regionalismo excludente e cego. Segundo ele, o Rio Grande do Sul (e não alguns homens de sua classe dominante) foi o principal responsável do mal maior - a ditadura - que afligiu a sociedade brasileira no século XX. Ocorrendo mesmo ao autor propor a reeducação e a reforma cultural!
José Honório vê o gaúcho e não as classes sociais, vê o positivismo dos gaúchos e não o das instituições. É certo que a Escola Militar de Porto Alegre foi responsável pela formação positivista dos generais que chegaram ao poder em 1964, mas também foram positivistas tanto a Escola Militar do Rio de Janeiro quanto a Faculdade de Direito dç São Paulo, esta, pelo menos até o final do século XIX. Nós examinaremos, ao longo deste ensaio, os laços entre a guerra e a sociedade.
entre o exército e o Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) e deixaremos claro que o Exército brasileiro não é um produto exclusivo dos gaúchos, ou um resultado da cultura regional.
Ainda sobre essa página de José Honório, assinalemos, enfim, a xenofobia, pois a perversidade e a origem de todos os males estão no estrangeiro: os inimigos são os caudilhos sangüinários do Prata, introjetados na sociedade brasileira, porque o Rio Grande do Sul "caiu no lado de cá da fronteira". É a partir do Rio Grande do Sul, quando ele "imigra" sobre o Brasil, que este se torna mais semelhante aos outros países sul-americanos: ditatorial, sangüinário, hberticida. Pelo que se pode depreender desse texto, o Brasil foi invadido e dominado pelos gaúchos como um território estrangeiro. Eis a í a moderna invasão dos bárbaros sobre uma sociedade tão civiHzada e democrática quanto a brasileira! José Honório esqueceu seja o escravismo, seja a circunstância maior criada pela "modernização conservadora" que freqüentemente passou por ditaduras. Se, na passagem do século XIX para o XX, o único caminho era a modernização e se esse caminho passava pela ditadura, então os gaúchos tinham experiência a passar. Mas foram seguramente segmentos das classes sociais de outras regiões que lucraram com essa experiência.
2 — 0 pano de fundo: formação de estados e de fronteiras
Os territórios atuahnente ocupados pelo Estado do Rio Grande do Sul e pelo Uruguai eram, ainda no século XVIII, uma terra de ninguém entre as regiões ocupadas pelas colônias americanas dos Impérios Português e Espanhol. O gado selvagem que ai se multiplicava passou a ser disputado em função de dois epicentros: o comércio exportador de couro (e de outros derivados do gado) de Buenos Aires e de Montevidéu e a demanda de animais de corte e de transporte dos minera-dores da região do hoje Estado de Minas Gerais. A luta entre os dois epicentros pelo usufruto dos rebanhos levou à formação de bandos armados de preadores de gado pelas duas facções. As planícies e o gado do sul da América Latina tornaram-se objeto de disputa entre populações que pertenciam a formações históricas diferentes.
Após as independências das colônias americanas, o Rio Grande do Sul passou a constituir a única verdadeira fronteira do Império do Brasil com as repúblicas hispano-americanas que rivalizavam política, mihtar e economicamente com ele: a Argentina, o Uruguai e o Paraguai. Quando o Brasil fazia a guerra ou quando a sofria, o palco brasileiro afetado era sempre o território do Rio Grande do Sul: local de fácil passagem das tropas entre os Estados em guerra. As outras fronteiras com os Estados platinos eram "protegidas" dos movimentos de tropas por serem florestas ou pântanos; assim, por exemplo, o principal acesso brasileiro ao Mato Grosso era fluvial e se fazia através da bacia do Prata.
Durante o século XVIII, depois das lutas, das "invasões" e dos vários tratados (feitos e desfeitos) entre os Impérios Português e Espanhol em torno da posse dos
' O ciclo de guerras e os eventos mais significativos podem ser resumidos da seguinte maneira: • 1811-14, José Artigas organiza a sublevação do Uruguai contra Espanha, forças militares portuguesas e rio-grandenses invadem a Banda Oriental. • 1816, Artigas organiza a resistência contra os portugueses. • 1820, Artigas é derrotado e refugia-se no Paraguai, onde Fran-cia é ditador desde 1814. • 1821, tratado entre o Rio de Janeiro e Buenos Aires, pelo qual o território do Uruguai passa a fazer parte do Reino Unido de Portugal, Algarves e Brasil com o nome de Província Cisplatina. «1822 , recomeça a resistência no Uruguai. • 1 8 2 8 , independência do Uruguai. Em 1830, a Inglaterra, as Províncias Unidas do Prata (futura Argentina) e o Brasil reconhecem a existência da República Oriental do Uruguai. • 1835, início da ditadura de Rosas na Argentina. • 1835-45, os estancieiros do Rio Grande do Sul promovem uma Euerra civil contra o Império (inicialmente federalista, depois separatista). • 1848--51, Guerra Grande onde o Brasil intervém no Uruguai apoiando caudilhos da oposição. A situação uruguaia era apoiada por Rosas (Peregalli, 1984, p.58-61). Vitória "brasileira". • 1851-52, o Brasil faz guerra à Argentina;derrota e deposição de Rosas. • 1864-70, guerra do Brasil, e depois do Uruguai e da Argentina, contra o Paraguai de Solano Lopez (Pesaven-to , 1982,p.57-9).
^ Helga Piccolo resume assim: "O longo processo de Independência do Uruguai não se esgotou na luta contra a dominação espanhola (em 1814, a luta contra o poder espanhol está terminada). Ela se prolonga contra o domínio luso-brasileiro (1817-1828) e teve seu último capítulo com a Guerra Grande (1843-1851), quando, com a queda de Rosas - para a qual o Brasil se mobiUzou - se encerra a luta contra a política de sujeição e incorporação da antiga Banda Oriental ao governo de Buenos Aires." (Piccolo, 1985, p.42).
' Não se pense, no entanto, que o Brasil fora agredido pelo Paraguai. As questões pendentes de fronteira entre os dois países prolongavam-se há muitos anos. O Brasil, contando com o financiamento inglês, podia partir para a guerra; o objetivo maior dessa guerra parece ter sido o de abrir o mercado interno do Paraguai para os ingleses (Pomer, 1986, p.20), como veremos mais adiante.
territórios do Uruguai e do Rio Grande do Sul, um longo ciclo de guerras abalou
intermitentemente o território do Rio Grande do Sul durante o século XIX.'
Durante esse período, constituíram-se os Estados do Prata. Sua configuração
atual, no entanto, só foi atingida ao longo dessas guerras, durante as quais diferen
tes soluções foram aventadas. A questão do equilíbrio do poder no Prata jogou um
papel decisivo na constituição desses países. Ainda depois da independência do
Uruguai, o Brasil e as Províncias Unidas do Prata (futura Argentina) tentaram apo
derar-se do território do Uruguai.^
No entanto, ainda em 1864, os estancieiros do Rio Grande do Sul com pro
priedades no Uruguai forçaram o Império a intervir militarmente nesse país para de
fender seus interesses particulares (Pomer, 1986, p.36-7). Essa intervenção serviu de
pretexto final para que o Paraguai se sentisse ameaçado na sua saída para o mar e
declarasse guerra ao Brasil.'
Grosso modo, o domínio de um só Estado sobre a Bacia do Prata ou a sua in
ternacionalização gerou o ciclo de guerras que terminou por dar origem aos Estados
de hoje. A Argentina esposava o controle único sobre o Prata, enquanto o Brasil, o
' ' Em 1835, quando Rosas tomou o poder em Buenos Aires apoiou a ascensão de Oribe à Presidência do Uruguai, e os dois caudilhos utilizaram seu apoio aos revolucionários do Rio Grande do Sul para negociar com o império brasileiro (trataremos dessa revolução mais adiante). Os caudilhos propuseram ao Império do Brasil exigências humilhantes e inaceitáveis para a retirada se seu apoio aos revolucionários (Leitman, 1979, p.35).
' Helga Piccolo assinala que as disputas entre os caudilhos uruguaios pelo poder, que em geral se faziam através da luta armada, afetaram tanto o Rio Grande do Sul como a Argentina, e, vice-versa, a guerra civil do Rio Grande do Sul contra o Império e as lutas entre as facções argentinas intervieram nas lutas internas uruguaias (Piccolo, 1985, p.51).
* Bem mais tarde, em 1883, os rio-grandenses representavam 5.500 dos 18.237 proprietários do Uruguai (Leitman, 1979, p.169).
Paraguai, mas também a França e a Inglaterra desejavam a sua internacionalização. A variedade de soluções alternativas e sucessivas demonstram a complexidade dos interesses em jogo e as dificuldades de constituição desses Estados. Assim, por exemplo, além dos projetos brasileiro e argentino de simples anexaçâo do Uruguai, em 1832 uma das soluções fazia do Uruguai e do Rio Grande do Sul um só Estado (Sousa,1985,p.114); uma outra, aventada em 1844, reunia Corrientes e Entre -Rios -hoje províncias argentinas - ao Uruguai e ao Brasil numa Federação (Love, 1975, p . l5 ) ; Piccolo assinala que o projeto de Artigas visavg à integração do quadrilátero formado pelo Uruguai, Missões (inclusive as rio-grandenses), Entre-Rios e Corrientes em um Estado (Piccolo, 1985, p.34-5). Por fim, desde 1810, Buenos Aires estava interessada na independência do Rio Grande do Sul para enfraquecer os esforços portugueses em direção ao Prata. Para Buenos Aires, era interessante a criação de um Estado "tampão" entre o Império Português e as Províncias Unidas do Prata (Leit-man, 1979, p.51-2)f Mais tarde, entre 1825 e 1828, quando Rivera e depois La-valleja retomaram as lutas pela independência do Uruguai, ambos tentaram organizar a sublevação dos pecuaristas do Rio Grande do Sul (Leitman, 1979, p.53-6).
Caudilhos das várias Províncias do Prata, do Uruguai e do Rio Grande do Sul possuíam suas alianças particulares (militares ou não) que eram estabelecidas e desfeitas ao sabor das necessidades econômicas e de suas lutas pelo poder. Essas alianças - que envolviam a cedência de homens, cavalos, aumentos, dinheiro, armas e a concessão de asilo — se faziam à revelia mesmo das políticas e alianças dos governos dos respectivos 'Estados Nacionais', entre eles o Brasil. Esses caudilhos possuíam 'políticas externas' autônomas, por assim dizer. Em outras palavras, os Estados nãó estavam formados.^
Para os estancieiros do Rio Grande do Sul, as lutas internas do Uruguai eram importantes, pois, em 1857, calcula-se que " ( . . . ) os rio-grandenses possuíam um total de 428 estâncias sobre a fronteira, ocupando 1.780 léguas quadradas, ou seja, 30% do território Oriental" (PeregalU, 1984, p.69). Por seu lado, Leitman indica que, em 1860, a população brasileira no Uruguai representava 11% da população total (Leitman, 1979, p.l69).* Segundo Piccolo, a luta armada era o único meio
Assinale-se que a autora, aparentemente, imprimiu, no trecho referido, um cunho passivo às ações dos pecuaristas do Rio Grande do Sul diante das lutas internas uruguaias, como se eles tivessem sido envolvidos e não como se eles fossem agentes imediatamente interessados nos resultados dessa luta, como ela deixara transparecer em outras passagens desse seu texto. Em um texto anterior (Piccolo, 1979, p.101-2), ela havia sido muito clara a respeito dessa interferência causada pela existência de propriedades de rio-grandenses no Uruguai. De qualquer forma, ela negou explicitamente a passividade dos pecuaristas rio-grandenses (Piccolo, 1989) e forneceu um belo exemplo ao assinalar que os rio-grandenses aceitavam com entusiasmo a idéia de fazer guerra ao Uruguai, mas que "espernearam" quando da convocação para a guerra do Paraguai, dizendo "essa guerra não nos diz respeito". Ela assinala, então, que eles não possuíam propriedades no Paraguai.
' Helga Piccolo foi muito clara a respeito da revolução artiguista: "Deve-se considerar ainda que a intervenção luso43rasileira concretizada e vitoriosa, ao menos temporariamente, contribuiu para a denota do projeto emancipacionista de Artigas, que ( . . . ) não podia ser bem visto pelas elites proprietárias, tanto as platinas como as do Rio Grande do Sul. Um projeto em que era defendido o Uvre acesso à terra ( . . . ) ameaçava o tipo de dominação então vigente. As classes sociais privilegiadas (latifundiários e comer-
para que a oposição uruguaia chegasse ao poder. Assim, a fronteira tornou-se fonte de asilo político para os excluídos do poder e base para a ação política dos caudilhos uruguaios. Piccolo diz, então: "Os caudilhos uruguaios, ao fazerem da fronteira a base de sua ação política, envolveram o Rio Grande do Sul" (Piccolo, 198.5, p .42) . '
Essa visão mais geral se complexifica se apresentarmos outros elementos das formações históricas do Uruguai e do Paraguai. Chamamos atenção para as opções realizadas por essas formações no que tange ao acesso à terra ou à sua propriedade pelas populações desfavorecidas e para o projeto realizado no Paraguai, até a guerra de 1864-70, dê um "desenvolvimento voltado para dentro" nos marcos de um monopólio de Estado.
Em 1815, a revolução que Artigas promoveu na região que hoje é o Uruguai distribuiu terras a índios, negros e aos "pobres do lugar". Artigas atraiu os escravos, aí compreendidos os do Rio Grande do Sul, para a luta de independência com a promessa de liberdade e terra (Peregalli, 1984, p.48). Isso não só o afastou das Províncias Unidas do Prata (cuja independência era promovida pela burguesia comercial de Buenos Aires) como preocupou os senhores de terra e os charqueadores escravistas do Rio Grande do Sul. De uma forma mais longínqua, a proposta de Artigas ameaçava também as bases de toda a sociedade brasileira. Forças militares luso-rio--grandenses invadiram o território do Uruguai, esmagando a revolução de Artigas. A proposta de Artigas foi vista como um sinal de perigo tanto pelas classes dominantes luso-brasileiras em geral quanto pelas do Rio Grande do Sul em particular, assim como pelas que governavam em Buenos Aires. Quando Artigas foi derrotado, iniciou com seu exército uma longa marcha em direção ao exílio, no outro lado do rio Uruguai. O povo seguiu atrás do seu exército. Entre 1810 e 1820, a população do Uruguai (excluída a de Montevidéu) reduziu-se de 30.000 habitantes para 6.000 (Peregalli, 1984, p.46-8).^
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dantes) não só aceitaram a conquista luso-brasileira como também foram agentes ativos da desintegração do projeto artiguista. Assim, a anexaçâo de 1821 afastou a possibilidade de uma mudança nas estruturas herdadas da colônia. Com a derrota da etapa artiguista do processo de descolonização do Uruguai não só foi vencida a etapa radical da revolução mas foram vencidas as massas de pequenos proprietários, posseiros, gaúchos, peões, índios, mulatos, e t c , que eram a base do projeto de Artigas. Esse projeto reformista, no referente à construção do Estado, visava à integração do quadrilátero - Uruguai, Missões (incluindo as brasileiras), Entre-Rios e Corrientes - e era, pois, por sua vizinhança, uma ameaça latente ao sistema de dominação tradicional no Rio Grande do Sul. Assim como Artigas não era apoiado pelas classes privilegiadas platinas - que a ele preferiram o conquistador (que lhes devolveu os bens confiscados por Artigas) esse conquistador, instrumento de uma dominação tradicional e senhorial, só teria a ganhar com a derrota do caudilho" (Piccolo, 1985, p.34-5).
Léon Pomer assinalou que o projeto paraguaio no século XIX se caracterizava: a) por ter dado às camadas pobres da população, inclusive aos índios, acesso à terra, em es
tâncias do Estado, a qual era arrendada a preços acessíveis. Nessas "estâncias da Pátria", praticava-se a agricultura, a pecuária e também o artesanato. As terras arrendadas pelo Estado haviam sido anteriormente ocupadas pelos jesuítas ou haviam sido latifúndios particulares que foram expropriados;
b) pela estatização das plantações de erva-mate e dos bosques que forneciam madeira para construção;
c) pelo controle do Estado sobre a produção industrial e sua promoção (a fundição, por exemplo, onde se fabricavam implementos agrícolas e armas para o exército). Fábricas do Estado construíam barcos à vela e a vapor, construíam estradas de ferro, telégrafos, produziam papel, pólvora, louça, tintas, enxofre, exploravam o saütre e produziam cal. Em síntese, era um projeto de auto-suficiência, onde não era permitida a importação de bens suntuários e onde a produção agrícola do País não se integrava à divisão internacional do trabalho nos moldes então vigentes. Não existia, pois era incipiente e seus poucos representantes haviam sido eliminados, uma burguesia comercial ligada a interesses estrangeiros. O Estado monopolizava os meios de produção e dirigia o "desenvolvimento"; o comércio internacional do País estava sob o controle do Governo. A produção de algodão, enfim, interessou à indústria inglesa, assim como a abertura do "mercado interno" paraguaio (Pomer, 1986, p . l4 ,16-7) . A guerra tornou-se necessária para desmantelar esse projeto exótico.
Derrotado, Artigas refugiou-se no Paraguai, onde o Doutor Francia concreti
zava um projeto semelhante ao seu. Francia assumira o poder no Paraguai em 1814
e, em 1816, foi designado Ditador Perpétuo, governando até 1840. Foi sucedido
por Carlos Lopes e, depois, por Francisco Solano Lopes, seu filho, que continuaram
as políticas traçadas por Francia até a derrota do Paraguai em 1 8 7 0 . .
Celso Furtado indicou que a formação dos Estados latinos-americanos com a
conseqüente deUmitação de fronteiras "que possuíam precária base histórica" pro
vocaram a eclosão de guerras e também a modernização das forças militares desses
países, através de assistência técnica mihtar, sobretudo européia. Furtado assinala
também que as primeiras instituições a se modernizarem nesses países foram as mili
tares (Furtado, 1979, p.5).
2.1 — A revoluçáo dos pecuaristas contra o Império do Brasil
E preciso destacar nesse contexto de formação de Estados o caso da Revolução Farroupilha no Rio Grande do Sul. Entre 1835 e 1845, os pecuaristas rebelaram-se contra o Império do Brasil, proclamando, em 1837, a RepúbHca do Piratini na Província do Rio Grande do Sul . '" Entre 1837 e 1845, essa República constituiu--se num Estado à parte do Império do Brasil. A região da Província que esteve sob o controle da Repúbhca foi a da pecuária. Porto Alegre e a região colonial (São Leopoldo) continuaram fiéis ao Império e sob o seu controle, assim como o Utoral dos charqueadores de Pelotas e de Rio Grande. Foram 10 anos de guerra. A pacificação não envolveu punições aos revoltosos. Pelo contrário, eles foram anistiados, integrados ao Exército Imperial com os mesmos postos militares que detinham no exército da Reptíbhca do Piratini e adquiriram o direito de escolher o Presidente da Província. Este último garantiu aos estancieiros (mas também aos charqueadores) a hegemonia política da região até o final do século (Freitas, 1985, p . 119). Para o Império, a pacificação do Rio Grande do Sul era sumamente importante, pois virtualiza-va-se um novo conflito entre o Brasil e a Argentina de Rosas.
À parte o fato de que os mercados do charque rio-grandense estavam no Brasil, um outro fato opunha pecuaristas e charqueadores. Os pecuaristas queriam que as fronteiras fossem abertas de maneira a deslocar seu gado para o Uruguai e para Cor-rientes, tanto para a engorda quanto para vendê-lo em Montevidéu. Os charqueadores queriam o fechamento da fronteira e a tributação do gado exportado para o
José Honório Rodrigues sustenta que as revoluções populares do Nordeste do Brasil foram reprimidas a ferro e fogo, enquanto esta do Rio Grande, assim como a de São Paulo e Minas Gerais em 1842 não sofreram o mesmo tratamento. A razão, para o autor, está no fato de as rebeliões do Rio Grande do Sul, de Minas e de São Paulo terem sido rebeliões entre iguais (isto é, rebeliões de frações da classe dominante) e que eram, portanto, rebeliões que não desejavam mudar as estruturas do País, em oposição às rebeliões nordestinas (Rodrigues, 1988, p.49). Nestas, não só as elites regionais se revoltaram, mas também o povo. Essas elites regionais optaram pela submissão ao poder do Rio de Janeiro diante do levante popular (Freitas, 1985, p . l l 4 ) e da ameaça das rebeliões de escravos.
Assim, OS Estados constituíram-se ao longo do século XIX, realizando experiências sociais, políticas e econômicas diferenciadas; o Rio Grande do Sul foi a parte do território brasileiro mais afetada pelos problemas criados pela fronteira, pela vizinhança de projetos políticos e sociais que eram opostos à sua constituiçío e pelas guerras engendradas pelo processo de formação desses Estados. Por fim, até o final da guerra dos Farrapos (em 1845), não era clara a opção da classe dominante do Rio Grande do Sul pela integração ao Brasil, como veremos a seguir.
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Vejamos o que diz Spencer Leitman: "A esse respeito, quase todos os historiadores brasileiros têm posição contrária às interpretações do rio-grandense Alfredo Varela. Nas suas minuciosas pesquisas sobre a Guerra dos Farrapos, Varela demonstrou o caráter separatista da revolução. Foi imediatamente alvo da hostilidade de grande niímero de escritores. Seu ponto de vista, principalmente no Brasil nacionalista de hoje, é considerado como tendo atingido o limiar da traição. Não é minha intenção tomar partido nesta permanente controvérsia histórica, mas considero as pesquisas de Varela as mais sóhdas e as mais completas" (Leitman, 1979, p,10).
Almeida analisou o discurso historiográfico oficial no Rio Grande do Sul entre 1920 e 1935, período em que se inscreve a "escalada dos gaúchos" no cenário poh'tico nacional, como veremos nas duas últimas partes deste ensaio. Em 1935, o ano do centenário da Revolução, foi realizado o Primeiro Congresso de História e Geografia, promovido pelo Museu e Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Nesse Congresso, as teses separatistas de Varela foram ácida e insistentemente corabatif'-? (Ahneida, 1987, p.61-3, 69-79, 81). No contexto brasileiro dos anos 30, com Getúlio Vargas na Presidência, a mobilização geral dos historiadores gaúchos contra as teses separatistas de Varela justificava-se para combater a idéia de que o Rio Grande do Sul "invadira" e submetera o Srasil, defendo assim, ilegitimamente, a Presidência da República.
As mais importantes entre essas revoluções foram: em 1824, a Confederação do Equador em Pernambuco; em 1831, a Federação dos Guanais na Bahia; em 1835, a Guerra dos Farrapos no sul e a Cabanagem no Pará; em 1837, a Sabinada na Bahia; em 1838, a Balaiada no Maranhão;e, em 1848, a Praieira em Pernambuco (Freitas, 1985,p.111).
Uruguai. Pretendiam, com isso, reservar-se a oferta do gado do Rio Grande do
Sul (Leitman, 1979, p..26-31).
" ( . . . ) que o conflito representou uma rebelião dos senhores de terra e
gado do Rio Grande do Sul contra a dominação que a oligarquia do cen
tro do país, empresária da independência, buscava impor sobre as pro
víncias da jovem monarquia brasileira" (Pesavento, 1985, p.6).
No entanto, os historiadores dividem-se na interpretação dessa guerra civil: as
sim, Alfredo Varela compreendeu-a como repubUcana, separatista e como fazendo
parte do ciclo de guerras platinas. ' ' Em resposta, historiadores como Dante de Lay-
tano a viram como pertencente ao ciclo de guerras civis que explodiram durante as
décadas de 30 e 40 do século passado em todo o País e que expressavam a luta fede
rativa (se necessário separatista), republicana e liberal das províncias contra o centra-
hsmo e a monarquia do Rio de Janeiro. De qualquer modo, I^ytano afirmou que o
nacionahsmo (brasileiro) dos Farroupilhas não poderia ser posto em discussão (Lay-
t ano ,1983 ,p . l 7 -36 ) . ' 2
Para a nossa questão, a de que a formação histórica do Rio Grande do Sul é di
versa da brasileira das Regiões Leste e Nordeste, a simples existência do debate é su
ficiente, pois ela atesta a dificuldade de determinação da appartenance histórica des
sa Revolução.
Historiadores de hoje, como Pesavento, preferem compreendê-la dentro dos marcos do processo de descolonização do inicio do século XIX(Pesavento, 1985, p.9). Mas foi Helga Piccolo quem precisou a questão da descolonização para os pecuaristas do sul, ao assinalar que eles não somente não tinham acesso ao poder decisório superior do Império como não tinham forças para enfrentar os interesses opostos dos grupos dominantes das outras regiões, mas também porque eles atribuíam ao sistema de tributação colonial "todos os males de sua economia", e este continuava em vigor, ou seja, para os pecuaristas do sul, a descolonização não se completara (Piccolo, 1985, p.36). Do ponto de vista deles, a Independência não alterara o estatuto colonial das regiões, o poder centraHzador de Lisboa fora substituído pelo do Rio de Janeiro (Freitas, 1985, p . l l 2 ) ; o que se alterara fora somente o centro, não a relação do Rio Grande do Sul com o mesmo.
A "lista" das reclamações gaúchas frente ao Governo Imperial era extensa. Em primeiro lugar, o sistema fiscal continuava o mesmo do período colonial: 2% sobre o gado enviado ao Uruguai, um quinto do valor do couro exportado ao Uruguai e 15 % do gado importado do Uruguai (Leitman, 1979, p.l 33). Esses tributos afetavam o deslocamento do gado para engorda no Uruguai e oneravam o couro. Roberto Si-monsen indicou que, em 1835, segundo o Manifesto da República Rio-Grandense, os pecuaristas reclamavam da existência de pagamentos de direitos de entrada dos animais em cada uma das províncias no percurso até São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro (Simonsen, 1962, p . l77 , 197). Isso elevava, sobremaneira, o preço dos animais e restringia o mercado. Mas os pecuaristas também desaprovavam as despesas da Corte no Rio de Janeiro e se sentiam roubados pelo Governo Imperial: Leitman indica que o Rio Grande do Sul acumulava superávits todos os anos; o Governo Imperial pagava suas dívidas com as outras províncias, mas não as com o Rio Grande do Sul. E mais, a parte mais importante da dívida interna do Governo Imperial era a favor de credores particulares do Rio Grande do Sul (soldados, agricultores, pecuaristas) e derivavam de dívidas de guerra. O Governo Imperial deslocava dinheiro diretamente dos cofres púbHcos do Rio Grande do Sul para pagar suas dívidas com os bancos ingleses (Leitman, 1979, p.126-7).
Do ponto de vista do resultado dessa guerra, uma vez que o Rio Grande do Sul acabou por fazer parte do Brasil, a segunda interpretação seria, talvez, a mais correta. Pensamos, no entanto, que esse resultado político não estava definido. Os pecuaristas dó sul possuíam o mesmo modo de vida dos platinos (o que poderia aproximá--los), conviviam com suas experiências repubUcanas, eram o único segmento das classes dominantes brasileiras que se defrontara militar e continuamente com outras nacionalidades, e a política centraUstado Império contrariava seus interesses. Por outro lado, seus mercados estavam no Brasil, assim como seus povoadores eram provenientes de São Paulo, de Minas Gerais, do Rio de Janeiro e dos Açores - sobre os povoadores ver Rodrigues (1986, p.34). Pensamos, então, que a classe dominante regional hesitou entre a solução federativa e a separatista.
'•^ Em outro texto, já indicamos as diferenças maiores entre as estruturas fundiária, agrícola e social que foram criadas no Rio Grande do Sul e as do Brasil em geral (Targa, 1988). Assinalávamos, então, que elas repousavam sobre trinômios básicos diferentes: a grande propriedade no sul não era agroexportadora, nem essencialmente escravista. No presente texto, ümitar-nos-emos à exposição dos traços particulares do Rio Grande do Sul como derivação de sua condição de fronteira em guerra.
3 — A sociedade do Rio Grande do Sul enquanto fruto da fronteira em guerra Durante o século XIX, a sociedade que se foi estruturando no Rio Grande do
Sul foi fruto da fronteira em guerra. Essa sociedade foi então simultaneamente produzida pelo "Estado-Naçãò" em fase de constituição — o Brasil — e pelas forças regionais propriamente ditas. Esse território, assolado pela guerra intermitente, lastreou a formação de uma sociedade peculiar em relação à brasileira. Com efeito, essa sociedade alcançou o final do século XIX com uma estrutura social inédita para o Brasil "de então. Essa estrutura social multiplicou e aprofundou os laços já existentes entre a economia do Rio Grande do Sul e as cidades dos subsistemas agroexportadores do Brasil; e o Rio Grande do Sul tornou-se o único subsistema brasileiro voltado para as trocas inter-regionais. Como veremos ao longo deste texto, a precocidade da sociedade que se gestou no sul não se limitou ao destino que dava à sua produção. Em primeiro lugar, veremos como essa sociedade brotou da fronteira em guerra eque forças - internas e externas à região - entraram em jogo para estruturar, no sul, uma sociedade original em relação à sociedade brasileira do século XIX.
Sublinhamos, inicialmente, a peculiar estrutura fundiária do Rio Grande do Sul em relação à do resto do Brasil. Na magnitude da experiência sulina, nenhum outro estado do Brasil possuiu sua área rural estruturada dessa forma: de um lado, uma região de grandes propriedades (região da pecuária), de outro, uma região de pequenas propriedades (primitivamente região de policultura-pecuária).' ^ Essa estrutura, que marca até hoje a paisagem agrária do Estado, teve sua origem na situação fronteiriça do Rio Grande do Sul.
Faremos, então, um inventário das estruturas econômicas, sociais e políticas do Rio Grande do Sul que derivaram da sua situação fronteiriça.
Os preadores de gado que inicialmente ocuparam o território do Rio Grande do Sul o fizeram á revelia do Império Português. A Espanha protestava contra sua presença, e o Estado português remetia admoestaçOes aos preadores de gado. Mas a ocupação privada do território foi ocorrendo mesmo assim. Décio Freitas denomina--os de "empresários-guerreiros" e assinala que o Rio Grande do Sul foi "(...) a única porção do território brasileiro conquistada pelos próprios moradores, através de gueri ras contra uma potência européia" (Freitas, 1985, p . l l 5 ) . O Estado português\veio a reboque, diistribuindo títulos que legitimavam a propriedade e, assim, caucionan-
''^ Helga Piccolo vê de outra forma: dado que o Estado português e os preadores tinham, no fundo, os mesmos interesses, Portugal simplesmente "fingia" frente aos espanhóis, posto que era mais fraco (Piccolo, 1989).
do O controle privado dos rebanhos e da terra (Rodrigues, 1988, p.47). Dessa ocupação resultou a formação dos latifúndios pecuários do Rio Grande do Sul. ' ' '
Ainda segundo Rodrigues, eram os bandos armados, criados e comandados pelo poder privado que possuíam eficácia militar nos combates fronteiriços e não o exército regular do Império Português (Rodrigues, 1988, p.48). De 1821, data da incorporação militar do Uruguai ao Reino de Portugal, até o final da guerra do Paraguai (1870), foram as populações do Rio Grande do Sul que forneceram grande parte dos contingentes humanos e materiais necessários às guerras. Os Impérios, tanto o português quanto o brasileiro, negUgenciaram o pagamento das indenizações devidas aos habitantes do território.
A produção das estâncias e das charqueadas destinava-se, predominantemente, ao mercado brasileiro, fato qtie criava conflitos de interesse entre os pecuaristas do sul e os senhores de terras e escravos do resto do País. O produto era utihzado para a aUmentação dos escravos no Brasil, não possuía tarifa protecionista em relação ao similar platino e era onerado pelas taxas de importação sobre o sal de Cadiz. Como, em geral, predominaram os interesses dos fazendeiros agroexportadores do resto do País, derivamos, desse fato, uma menor força política dos senhores de terra do sul face a seus congêneres de outras regiões do Brasil.
É necessário saHentar que para os agroexportadores escravistas brasileiros era tão importante manter dentro do território brasileiro uma área fornecedora de charque e de animais de transporte, quanto deixar as portas abertas á concorrência estrangeira, dada a importância estratégica dos dois produtos. No caso particular do charque, o Rio de Janeiro podia então jogar com a oferta interna e a externa do produto.
Ora, a fraqueza da classe dominante gaúcha não era senão relativa, ela possuía sua contrapartida. Pois, se os pecuaristas e charqueadores do sul não conseguiram a reserva do mercado nacional para o seu produto, eles se tornaram um segmento con-testador dentro da classe dominante dos grandes proprietários de terra no Brasil (Piccolo, 1988). E mais, constituíram um segmento que possuía um poder militar privado não desmobiUzável, posto que necessário, dada a existência da fronteira sempre virtualmente èm conflito. Assim, em função da fronteira em guerra, do que produziam, dos mercados dos seus produtos, de seus concorrentes e da posição que ocupavam em relação aos outros segmentos dos grandes proprietários de terra do Brasil, os latifundiários pecuaristas do sul estabeleceram uma relação com o Estado do Brasil que era de mútua complementaridade, dependência e oposição.
Se a preação dogado criou a fronteira e foi responsável pela formação da grande propriedade no Rio Grande do Sul, em seguida foi a fronteira que determinou tanto o tipo de grande proprietário-soldado quanto a criação de uma região de pequenas propriedades no sul. Vejamos por quê.
Existem outras, também, como a que se refere à admiração que José Bonifácio de Andrada e Silva possuía pelos cossacos (como veremos mais adiante).
' * Tomamos conhecimento do texto de Browne através de um participante do Seminário de História Econômica realizado em 1979 na Universidade Federal de Santa Catarina, quando este estudo foi apresentado.
' ^ É verdade que em Santa Catarina houve uma outra experiência de sucesso com os imigrantes alemães, nas regiões de Blumenau e Joinville. Mas a magnitude da experiência foi consideravelmente menor do que no Rio Grande do Sul. Um dos motivos residiu na ausência de um mercado urbano significativo nos arredores. Essa experiência não teve as repercussões históricas e políticas da que ocorreu no Rio Grande do Sul. Por outro lado, Santa Catarina não teve nenhum papel no jogo poh'tico do Império e da I República.
No final do século XVIII, existirani tentativas de criação de uma classe média rural não escravista durante a administração pombalina. Fizeram parte dessa iniciativa as experiências de colonização açoriana no Brasil, aí compreendida a que se realizou no Rio Grande do Sul, no século XVIII. Um dos determinantes do fracasso dessas experiências foi que os colonos se transformavam em senhores de escravos (Obe-racker Jr., 1985,p.221).
Por outro lado, a historiografia aceita que a idéia da tentativa seguinte de criação de uma área de pequenas propriedades no Rio Grande do Sul partiu da Imperatriz Dona Leopoldina, esposa de Dom Pedro I, que era de origem austro-húngara.' ^ O cinturão de pequenas propriedades que existiam nas fronteiras do Império Austro--Húngaro com a Turquia teria sugerid(ífseu estabelecimento nas fronteiras do sul do Brasil (Oberacker Jr., 1985, p.223). Mas era também um projeto que se referia à necessidade de introduzir o trabalho livre (e branco) no País, respondendo, assim, também às pressões inglesas pela abolição do tráfico negreiro (abolição esta que ameaçava a existência do Estado escravista a médio e longo prazo).
George Browne' ^ assinalou com extrema pertinência que o projeto do Trono de criar suas próprias bases sociais (fora do latifúndio escravista) envolvia a criação de colônias militares de pequenos proprietários, necessariamente imigrantes europeus, e a importação de mercenários para constituir tropas de eMte, a fim de manter as guerras externas e de evitar os movimentos separatistas ou republicanos intemos (Browne, 1979, p.1-2).
Considerado o Brasil de então, o significado desse projeto era de transformação da estrutura social via introdução da pequena propriedade e do trabalho livre. Para o Trono, a função desse projeto era criar um apoio político alternativo ao da grande propriedade; esse projeto poderia liberar a Coroa, a longo prazo, da sua dependência vis-á-vis ao latifúndio escravista. Somente no Rio Grande do Sul, a experiência concretizou-se plenamente e com sucesso, através da Fundação de São Leopoldo. E f oi aí que, ao longo do século XIX, ela foi sendo ampliada. ' ' Mais adiante, neste texto (na parte referente á ditadura), veremos que, a longo prazo, o projeto terminou por atingir seu objetivo: ele acabou transformando a sociedade, não dire-
' No que diz respeito, particularmente, ao projeto de colonização no Rio Grande do Sul, Pesavento sublinha a intenção de criar uma classe fiel ao Governo Imperial para contrabalançar o poder dos latifúndios (Pesavento, 1985, p.13).
* ' A cúpula portuguesa do Exército, as tropas mercenárias e a impopularidade das guerras contribuíram decisivamente para que as classes dominantes e o "povo" formassem uma idéia razoavelmente antimilitarista. Esses fatos constituíram uma das raízes das dificuldades do Exército brasileiro em afirmar-se enquanto instituição e força política frente a outras instituições da sociedade brasileira. Mas a diferença aindaé maiorquando a posição social do Exércitobra-sileiro no século XIX é comparada à dos outros exércitos da América do Sul. Os exércitos desses países foram vistos como patrióticos e nacionalistas pelas suas populações, pois estiveram engajados em longas guerras de independência contra a Espanha. O Exército do Imperador, pelo contrário, com seu oficialato português e suas tropas de elite mercenárias (o que dividia o Exército e provocava brigas entre os diversos grupos e os brasileiros), era visto como um exército de ocupação, uma força alienígena. Ã diferença dos outros povos da América do Sul, o tipo de independência que ocorreu no Brasil não oportunizou o endividamento da sociedade para com heróis militares de guerra (Johnson, 1966, p.183-6). Por fim, a exclusão social do Exército no Brasil tornou-se patente quando da criação da Guarda Nacional, poder militar concorrente ao do Exército, controlado pelos grandes proprietários rurais (a face armada das oligarquias rurais brasileiras) e corporação onde a elite era incorporada militarmente. O Exér-
tamente a brasileira, mas uma parte dela, a sociedade do Rio Grande do Sul. Com
efeito, Browne deixou muito claro:
"(...) a queda do Imperador diminuiu as possibilidades de um fim mais próximo para a escravidão e do desenvolvimento de alternativas ao do-mínimo de uma agricultura orientada para [a] exportação e baseada na grande propriedade" (Browne, 1979, p . l ) .
Portanto, a sugestão da Imperatriz também respondia à necessidade de criação de um poder agrário alternativo ao dos grandes proprietários de terras e de escravos pela implantação de uma classe média rural em pequenas propriedades.' *
A razão para que a Coroa decidisse incentivar a formação de uma classe alternativa vinculou-se ás desavenças surgidas, e que foram se aprofundando, entre o Imperador Dom Pedro I e o Legislativo do Império, composto por grandes proprietários e comerciantes. O Legislativo tentava restringir, na Constituição em elaboração, os poderes do Imperador. Dom Pedro I usou suas tropas mercenárias, comandadas por oficiais^çortugueses, para dissolver o Legislativo. O comando do Exército e a cúpula da administração do Império (cargos ocupados por portugueses) passaram a constituir as forças de apoio do Imperador, progressivamente mais isolado em relação aos grandes proprietários e grandes comerciantes "brasileiros". As próprias guerras que Dom Pedro I promoveu no Prata e na Guiana eram impopulares no Brasil e vistas cdmo atendendo mais aos interesses dos portugueses e de Portugal do que os dos brasileiros e do Brasil." O conflito estendeu-se até 1831, quando Dom Pedro I foi forçado a abdicar.
cito brasileiro deixaria, assim, de poder recrutar seus oficiais entre as elites proprietárias do País. As conseqüências disso ficam claras quando recordamos, com Murilo de Carvalho, que o recrutamento é a relação entre a corporação militar e a sociedade (Carvalho, 1977, p.184). O exército vai, então, recrutar seus oficiais fora da classe dominante, e isso terá conseqüências importantes ao determinar as posições antioligárquicas dos tenentes durante a I Repiibüca.
O que importa reter é que esse projeto de implantação da pequena propriedade emanou do Estado, representando uma solução para as dificuldades da monarquia no seu relacionamento com a classe proprietária do País. De fato, ele foi concebido como alternativo ao poder da grande propriedade, mesmo que tenha sido um projeto que se vinculou à necessidade de povoamento de uma região de fronteira. Nesse sentido, esse projeto era uma solução a vários problemas que o poder central do Estado brasileiro enfrentava: por um lado, frente à pressão inglesa pela abolição da escravidão, às convulsões advindas da formação dos Estados do Prata e ao conseqüente estabelecimento de fronteiras; por outro, esse projeto permitia ao Trono dar-se uma base social alternativa à dos criadores-soldados, dentro da própria região dominada por eles.
Do fato de não terem conseguido a reserva do mercado nacional para o seu produto, havíamos derivado a 'fraqueza relativa' dos pecuaristas e charqueadores do sul face aos outros segmentos da classe de grandes proprietários de terra e de escravos do Brasil. Dessa fraqueza, teria decorrido a aceitação do estabelecimento de pequenas propriedades no Rio Grande do Sul. Por certo que os pequenos proprietários seriam assentados em áreas que não interessavam á pecuária, pela presença de florestas, de montanlias e de índios, ou seja, onde a pequena e a grande propriedade não disputariam o mesmo solo, nem mesmo se avizinhariam. No entanto os grandes proprietários das províncias do Rio de Janeiro, de Minas Gerais e de São Paulo conseguiram afastar de suas regiões a instituição da pequena propriedade. Dessa forma, seguimos Helga Piccolo (Piccolo, 1988) quando afirma que a instituição de um poder agrário alternativo ao da grande propriedade se tornava mais necessário na região onde os grandes proprietários mais contestavam o poder central, ou seja, no Rio Grande do Sul.
As tropas de eUte do Imperador, como já referimos anteriormente, foram recrutadas entre populações da Alemanha e da Irlanda. Os emigrantes eram atraídos corno colonos a quem eram prometidas pequenas propriedades. Mas os emigrantes eram informados tardiamente da condição imposta de prestação de serviço militar por seis anos antes de terem acesso à terra. Os irlandeses só foram informados quando de sua chegada ao Brasil, e as populações do sul da Alemanha, que já haviam vendido seus bens, eram informadas quando de sua chegada a Hamburgo. Alguns desses soldados acabariam por integrar o primeiro núcleo colonial alemão do Rio Grande do Sul - o de São Leopoldo, fundado em 1824 - depois que a Assembléia do Império dissolveu os batalhões de mercenários em 1828.
Tabela 1
Ntimero de imigrantes colocados nas colônias estratégicas
COLÔNIAS IMIGRANTES
São Leopoldo (Rio Grande do Sul) 4 856
São Luís da Leal Bragança (Rio Grande do Sul) 100
São Pedro de Alcântara das Torres (Rio Grande do Sul) 360
São Pedro de Alcântara (Santa Catarina) 635
Rio Negro (Paraná-São Paulo) 247
TOTAL 6 198
FONTE: BROWNE, George P. (1979). Soldados ou colonos: uma visão da estrutura política do 19 Reinado. In: SEMINÁRIO DE HISTÓRIA ECONÔMICA. /Santa Catarina/, UFSC.(mimeo). p.26.
Vejamos as instruções que José Bonifácio de Andrada e Silva dera ao emissário que fora tratar com Francisco I, em Viena, o reconhecimento da independência do Brasil; o texto é exemplarmente claro no que tange ás intenções e objetivos:
"Depois de ter sondado às vistas da corte de Viena e dos outros Prínci'-pes d'Alemanha e de ter procurado interessá-los a favor do Brasil, passara a outro ponto essencial de sua missão que vem a ser; ajustara uma colônia rural-iriilitar que tenha pouco mais ou menos a mesma organização dos cossacos dO Dome do Ural;a qual se comporá de duas classes. 19de atiradores que debaixo do disfarce de colonos serão transportados para o Brasil, onde deverão servir como militares pelo espaço de seis anos. 2? de indivíduos puramente colonos, aos quais se concederão terras para o seu estabelecimento, devendo porém servirem como militares em tempo de Guerra, à maneira de cossacos, ou milícia armada, vencendo no tempo de serviço ô mesmo soldo que têm as milícias Portuguesas quando se acham em campanha" (os grifos são nossos) (Andrada e Silva apud Browne, 1979, P..5-6).
Browne assinalou que, entre 1823 e 1830, o projeto do Imperador atraiu de 12.000 a 15.000 mercenários e imigrantes. Os imigrantes foram distribui'dos em colôni agrícolas no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina (as entradas dos caminhos de tropas na floresta com índios) e uma a 300 quilômetros de São Paulo (onde o caminho saía da floresta). Segundo Brovme, a distribuição dos colonos foi a seguinte:
Havia embutido no projeto de colonização em pequenas propriedades com europeus um projeto racista de branqueamento da população do Brasil (Piccolo, 1988). De fato, a pergunta que o Trono poderia fazer a si próprio era:o que é um Imperador que reina sobre uma massa de negros-escravos?
^ ' Essa é uma "classe média" em relação à estrutura social da época. Os pequenos proprietários podem tornar-se, mais tarde, camponeses pobres e serem expropriados.
Por onde se olhar, existiam sempre e somente dois pólos:grandes proprietários e escravos; homens Hvres-propiietários-ricos e homens Hvres-despossuídos-pobres.
Entre as colônias criadas pelo projeto do Trono, São Leopoldo foi de longe a mais importante, e sua prosperidade esteve atrelada à proximidade do merCado urbano de Porto Alegre. Torres é, ainda hoje, uma pequena cidade, e as outras desapareceram. O projeto do Trono não foi continuado por decisão da Assembléia em 1830, quando de um mesmo golpe desapareceram as tropas de ehte e a continuidade do projeto de colonização.
Por fim, não é demais repetir que a criação de uma área de pequenas propriedades agrícolas np Rio Grande do Sul procurava também sanar outros problemas que derivavam da fronteira: ahmentos para as tropas, contingentes populacionais mobihzáveis, população sedentária, concentração populacional, Hquidação dos índios nas florestas.^"
Mostramos, até aqui, como a fronteira e a guerra engendraram as estruturas econômica, fundiária e social do Rio Grande do Sul: seu latifúndio pecuário e sua classe dominante, o poder privado armado dessa classe, mas também a formação de uma classe de pequenos proprietários rurais que valorizavam a terra através do trabalho famiUar Üvre. Emanaram, portanto, da fronteira e da guerra tanto os projetos privados daqueles que se tornaram a classe dominante regional como os projetos criados pela monarquia do Brasil. O projeto do Governo Central - de formação de uma classe média rural no sul — devia constituir um duplo contrapeso ao poder regional dos grandes proprietários: por um lado, contra-arrestar o poder da grande propriedade em geral e, por outro, contra-arrestar o poder miUtarizado (e não obrigatoriamente fiel ao Império) da classe dominante da região.
Vejamos, então, nessa inovação social — concretizada no território do Rio Grande do Sul pelo Governo Imperial — o verdadeiro fundamento da idéia que Antônio Barros de Castro formulou: a economia do Rio Grande do Sul foi precoce-mente voltada para o mercado interior brasileiro (Castro, 1980, p.42). Ora, essa precocidade econômica foi efeito de uma precocidade social que derivou das necessidades do Trono (ou, do Estado em formação), tal como foram acima expostas. Essa inovação social foi concretizada no Rio Grande do Sul: por razões políticas foi criada uma classe média rural proprietária.^' Num país onde a segmentação social era simphfícada ao máximo,^^ criou-se, por necessidades políticas, uma classe proprietária rural diversa da que detinha o poder. Insistimos, o quadro era agrário e, do ponto de vista do tipo de poder que era a monarquia brasileira, a solução encontrada para contra-arrestar o poder dos grandes proprietários foi a de criar uma classe, também proprietária, mas cuja organização da produção fosse outra que a escravista.
2 3 Estamos utilizando « termo inovação no sentido de introdução de uma novidade, de aparecimento de algo que não existia; por outro lado, no que tange ao uso de "modernização", neste contexto, estamos supondo que uma sociedade mais complexa é uma sociedade mais moderna, se tivermos presente o ponto de partida: a estrutura social do Brasil de então.
O território do Rio Grande do Sul serviu de palco para uma experiência original no Brasil de então; a diversificação social. Nesse sentido, a estrutura social clássica brasileira foi precocemente transformada no Rio Grande do Sul na medida em que foi criada uma nova classe social rural. Podemos afirmar, também, que a sociedade agrária do Rio Grande do Sul se modernizou precocemente em relação à sociedade brasileira.^'
Na verdade, o binômio fronteira em guerra mais diversificação social resume, por excelência, o traço original da trajetória histórica do Rio Grande do Sul. No final das contas, foi bem desse binômio que penderam todas as outras originaUdades econômicas, sociais e políticas da história regional, como veremos mais adiante. Nesse caso, o primeiro termo do binômio criou a possibilidade do segundo, mas, em definitivo, foi exatamente a diversificação social que encaminhou a história do Rio Grande do Sul por uma estrada diferente da percorrida pelo conjunto da sociedade brasileira.
A experiência do Rio Grande do Sul foi única no Brasil, pelo conjunto (simultâneo, portanto) dos argumentos que apresentaremos a seguir.
a) somente três estados desempenharam um papel político decisivo na I Repúbhca: por um lado, São Paulo e Minas Gerais, que se alternaram na Presidência da República, e, por outro, o Rio Grande do Sul, que substituiu a Bahia depois de 1910;
b) a partir do final do Império, em nenhum estado a diversificação social rural alcançou o nível de concretitude atingido pela sociedade do Rio Grande do Sul;
c) a existência de um segmento de pequenos proprietários rurais alternativo ao dos grandes proprietários não provocou em qualquer outro estado da Federação as conseqüências políticas, econômicas e históricas que ela criou no Rio Grande do Sul. Em São Paulo, porque ele não existiu, uma vez que se formou a partir da I Repúbhca, nas crises do café, mas, sobretudo depois de 1930, e em Minas Gerais, porque ele era pohticamente inexpressivo.
Pelo bem ou pelo mal, a diversificação social do sul teve iim peso definitivo na história da região. Foi por sua causa, por exemplo, que a classe dominante gaúcha pôde se cindir, e daí o sangue corrido entre 1893 e 1895, como veremos mais adiante. Um exercício muito simples é o de tentar imaginar a história do Rio Grande do Sul na ausência dessa classe de pequenos proprietários: sem sua presença na cena, qual teria sido a história do Rio Grande do Sul? Qual seria o seu presente? Sem eles, os cenários social, econômico e político do Rio Grande do Sul teriam sido outros.
4 — 0 Rio Grande do Sul e o Exército nacional
A partir da prodamação da República, os laços entre o poder regional do Partido Repubhcano Rio-Grandense (PRR) e o Exército nacional foram, progressivamente, se estreitando. A bancada do Rio Grande do Sul na Câmara Federal apoiava medidas necessárias ao Exército, ou defendia os pontos de vista dos militares. O poder regional do PRR e o poder do Exército eram duas forças em expansão no Brasil da I Repúbhca, sendo alijadas do acesso ao poder político maior pelas oh-
2 4 A inovação política e a econômica exprimiram dois momentos distintos de diversificação social, fundiária e produtiva. As pequenas propriedades do Rio Grande do Sul foram exemplo da inovação política, que resultou numa articulação com as economias regionais agroexpor-tadoras do Brasil. Na região cafeicultora, essa "classe média rural" foi um produto da oportunidade econômica: surgiu muito mais tarde, mais de um século depois (Loureiro, 1987, p.22), e multiplicou-se com maior rapidez. Na origem do seu aparecimento esteve o fraciona-mento das velhas fazendas de café tornadas improdutivas, seja por queda de rendimento dos solos, seja pelas medidas de política econômicado Governo Federal. Na região cafeicultora, as pequenas propriedades locahzaram-se nas proximidades de vias férreas ou de mercados urbanos de tamanhos significativos. Nesse caso, essa nova classe rural proprietária foi um produto da diferenciação econômica que porejou na região do café, a partir dos momentos de crise da história deste subsistema regional.
irreconhecíveis. A história teria percorrido outras estradas, a sociedade se teria colocado outros problemas, mas seguramente não os que a sociedade rio-grandense se colocou na passagem (brasileira) do escravismo para o capitahsmo. E mais, salientamos que a origem dessa inovação social, ou seja, o móvel do agente empreendedor, foi fundamentalmente política e nãó econômica. No caso do Rio Grande do Sul, insistimos na inovação política do social e não na sua inovação econômica. A cadeia seria a seguinte: as necessidades políticas (da Coroa), a criação do social (a nova classe proprietária rural), o resultado econômico (a diversificação econômica e a articulação ao mercado brasileiro).^'*
Podemos afirmar, então, que foi a fronteira conflituada que engendrou as estruturas sociais no sul. De forma imediata ou não, á partir das necessidades das populações locais ou das necessidades do poder central do Brasil, as estruturas sociais do sul podem ser sempre referidas á situação criada pela fronteira em guerra. De fato, a fronteira é uma questão de Estado. Essas estruturas foram a resposta do político ás necessidades criadas pela guerra. Elas atestam o surgimento de uma sociedade nova no Brasil de então; uma sociedade cujo aparecimento viria a ter conseqüências importantes para a história nacional. É por isso que afirmamos que o Rio Grande do Sul foi uma encruzilhada entre duas formações sociais — a platina e a brasileira — e que, ao terminar por fazer parte do Brasil, se tornou, até um certo ponto, uma formação histórica estranha a ele.
No entanto essas três forças não foram as únicas a participar da Revolução. A oligarquia de Minas Gerais, apoiada numa produção cafeeita em decadência, recebera um golpe de parte da oligarquia paulista que rompera com o pacto de rotatividade, impondo um segundo candidato sucessivo à Presidência. Enfim, as oligarquias do Nordeste faziam-se representar no candidato à Vice-Presidência, João Pessoa, cujo assassinato serviu de estopim para a Revolução.
Lemos, em Love:
"O mito em torno da vocação militar do gaúcho, de fato, tinha sua base na época republicana, tanto quanto na imperial. O Rio Grande continuou a contribuir com mais do que lhe cabia, para as lideranças miUtares, Neste aspecto, o contraste com Minas e São Paulo é particularmente relevante: em 189.'5, oito dos 30 generais-de-divisão e de brigada haviam nascido no Rio Grande; nenhum era de Minas e somente um de São Paulo. No fim da Repúbhca Velha, oito dos 30 generais novamente eram gaúchos, sem nenhum paulista ou mineiro. Dos 25 Presidentes do Clube Militar, na República Velha cinco vieram do Rio Grande, um de São Paulo e nenhum de Minas. E dos 20 Ministros da Guerra entre 18 89 e 1930, sete eram do Rio Grande, nenhum de São Paulo e apenas um de Minas - o único civil que ocupou o cargo. Tendência que persistiu na década de 20" (Love, 1975, p.l24).
Assinalamos, por exemplo, que os dados referentes às duas primeiras colunas apresentam, em bloco, os "generais" e os "mihtares no Congresso" provenientes do Rio Grande do Sul e da Corte para o período 1860-89 e do Rio Grande do Sul e do Distrito Federal para o ano de 1890. Não existem informações sobre a origem de 12 ministros da guerra da 1 República.
garquias de Minas Gerais e de São Paulo. Freqüentemente, o PRR e o Exército foram forças aliadas. Foram as duas forças que desestabilizaram a I República: ern 1910 e em 1930, quando estiveram aliadas, impuseram-se às oligarquias cafeiculto-ras. Ern 1920, a oligarquia política do sul tentou enfrentar a cafeicultora sem o Exército e fracassou. Em 1922e 1924, os tenentes do Exército, rompendo a hierarquia militar, rebelarain-see foram derrotados (Love, 1975, p.112-261).
Foi a união da classe dominante do Rio Grande do Sul que, aliada ao Exército sediado no Estado e aos tenentes exilados, tornou possível a intervenção da pligar-quia gaúcha, do Exército nacional e dos tenentes no poder central da República em 1930, encerrando a República oligárquica e iniciando os 15 anos de Vargas 110 poder.^'
Boris Fausto indicou os seguintes itens como os laços mais importantes entre o Partido Republicano Rio-Grandense e o Exército nacional: o Rio Grande do Sul era a região onde se concentravam os maiores efetivos do Exército fora da Capital Federal; Porto Alegre era a sede do Comando da III Região Militar do Exército (criada em 1919), e, nesse Comando, foram recrutados muitos Ministros da Guerra; durante a I República, foram os militares gaúchos que forneceram o maior número de Ministros da Guerra e de presidentes do Clube Mihtar, organização do Exército aparentemente recreativa e realmente política (Fausto, 1977, p.404).^* A Tabela 2, malgrado a imprecisão e insuficiência das informações^'', é o exemplo quantitativo disponível para o que acabou de ser dito.
MILITARES MINISTROS ORIGEM ISTA^ NO CONGRESSO DA GUERRA
1860-89 jg^Q 1889-930
Nordeste 21 24 SSo Paulo e Minas Gerais 3 1 — Estado do Rio de Janeiro 3 3 1 Rio Grande do Sul, Corte e
Distrito Federal 15 9 Alagoas - - 1 Rio Grande do Sul _ _ 7 Santa Catarina - - 1 Outros 9 15 Sem informação — — 12 Exterior 10 — —
TOTAL 61 52 22
FONTE: Adaptado de: CARVALHO, José Murilo de (1977). As forças armadas na Primeira Reptiblica: o poder desestabilizador. In: FAUSTO, Boris, org. História geral da civilização brasileira, III. O Brasil Republicano 2. Sociedade e Instituições (1889-1930). Rio de Janeiro, Difel. p.205.
A intermitente luta armada na região aproximou os políticos dos oficiais e comandantes militares; a elite política do Rio Grande do Sul da I República professava uma versão regional crioula do positivismo de August Comte, o Exército nacional também possuía um bom número de oficiais positivistas (Love, 1975, p.l 10). A Constituição estadual reforçava o poder Executivo, fato que já então agradava aos militares de formação positivista, e a política econômica e financeira preconizada pelo PRR coincidia com as opções dos tenentes que também se opunham às políticas do bloco do café: tanto o PRR quanto os tenentes preconizavam preços estáveis e equiliiDrio orçamentário (Fausto, 1977, p.404).
Por fim, assinale-se ainda que de 20% a 30% do Exército nacional (tanto no Império como na I República) estava lotado no Rio Grande do Sul, como se pode ver na Tabela 3 . Além disso. Porto Alegre sediava a única escola de oficiais mihtares fora do Rio de Janeiro. Esses fatos suportam a idéia de convivência, de interesse comum e de coincidência de pensamento entre os políticos no poder, na região, e
Tabela 2
Origem geográfica dos oficiais do Exército no Brasil - 1860-930
OS oficiais do Exército.^* Observe-se, na Tabela 3, a importância relativa dos efeti
vos do Exército no Rio Grande'do Sul e no Rio de Janeiro e a relação com as res
pectivas populações quando comparados com os de São Paulo e Minas Gerais.
Tabela 3
Efetivos do Exército e relação com a populaçío em províncias e estados escolhidos do Brasil - 1888-1920
PROVÍNCIAS E
ESTADOS Exército Soldados
p/mil hab.
Exército
1920
Soldados
p/mrl hab.
Sffo Paulo 3,29
Minas Gerais 0,96
Subtotal 4,25
Pernambuco 5,54
Bahia 5,26
Mato Grosso 10,80
Corte e Distrito Federal 15,6 5
Rio Grande do Sul 31,13
Subtotal 46,78
TOTAL 100,00
0,28
0,03
0,11
0,63
0,32
13,67
1,31
4,08
2,39
0,82
8,56
8,82
17,38
1,64
3,60
2,60
16,18
21,68
47,86
100,00
0,80
0,64
0,72
0,33
0,46
4,52
9,70
4,26
6,15
1,40
FONTE: Adaptado de: CARVALHO, José Mutilo de (1977). As forças armadas na Primeira República: o poder desesta-bihzador. In: FAUSTO, Boris, org História geral da civílizaçío brasileira, III O Brasil Republicano 2, Sociedade elnstituiçBes (1889-1930). Rio de Janeiro, Difel. p .203.
Joseph Love resumiu assim as relações entre o PRR e os oficiais do Exército:
"Havia muitas razões satisfatórias justificando as ligações estreitas entre o PRR e o Exército Federal. Convicções ideológicas (positivismo), vínculos estabelecidos durante a luta de 1893--95 e lealdade regional (...). Outro fator consistia na constante defesa das verbas militares, pelo PRR, no Congresso, onde os rio-grandenses se colocaram emposições-chave. Por fim, o PRR significava o único aliado potencial do Exército, em caso de disputa pelo poderio corpo de oficiais isoladamente não podia derrotar a aliança mineiro-paulista, nem muito menos contar com as máquinas dos demais estados num levante contra organizações mais poderosas. Nas ocasiões em que os gaúchos não disputavam o poder nacional, o Exército permanecia leal ao Presidente" (Love, 1975, p.124).
2 9
30
Segundo Murilo de Carvalho:
"E a Revolução de 30, como quase todos os movimentos militares de âmbito nacional até 1964, se caracterizaria por choques, reais ou previstos, entre tropas que subiam do Rio Grande do Sul e tropas que desciam do Rio de Janeiro" (Carvalho, 1977, p.204).
Durante a I República, a Constituição do Rio Grande do Sul designava o Executivo estadual por Presidente do Estado do Rio Grande do Sul. Para evitar mal-entendidos com o cargo de Presidente da República, anacronizamos o posto de Presidente do Estado e o chamamos de Governador;no que seguimos Love (Love, 1975, pXIV) .
Um exemplo eloqüente porque tardio da importância dessa relação de forças foi dado em 19 61 , quando da tentativa de golpe militar para impedir a posse de João Goulart à Presidência da República: um dos fatos militares significativos parece ter sido a coincidência de posições entre Brizola e a Comandância do III Exército. Nelson Werneck Sodré cita telegrama dessa Co-mandância, que indica a eclosão de uma guerra civil caso o Comandante do III Exército se posicionasse a favor da junta militar golpista. Brizola teve a Brigada Mihtar unida dentro de seu propósito legalista, distribuiu armas à população e cercou o Palácio Piratini. Os Ministros golpistas ordenaram o bombardeio aéreo de Porto Alegre, fato que não ocorreu (Werneck Sodré, 1979, p.378-80). Esse fato aconteceu dentro de um quadro em que, após 1930, o equilíbrio entre os efetivos militares estaduais e federais no Rio Grande do Sul já havia sido rompido em favor do Exército.
Segundo Love, por expressivo que fosse o volume de efetivos da polícia baiana, ele se dispersava por um território muito maior e era muito mal-armado e desorganizado (Love, 1975, P.XIV, 123).
Tendo presente a magnitude da presença militar no Rio Grande do Sul, assinalamos que Murilo de Carvalho mostrou que o recrutamento de oficiais se fazia predominantemente entre as famílias dos próprios oficiais (Carvalho, 1977, p.204), por isso era freqüente a existência de oficiais gaúchos. Carvalho indica ainda que as guarnições militares decisivas para qualquer atitude que o Exército fosse tomar eram as do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul (Carvalho, 1977, p.204)? '
A importância da Brigada Militar, criada e organizada pelo PRR para sustentá--lo no poder, assim como a magnitude dos corpos provisórios rapidamente mobihzá-veis pelo Governador do Estado''* faziam com que fossem necessárias boas relações entre os mihtares das forças estaduais e do Comando da III Regiío, uma vez que a divergência de pontos de vista ou de tomadas de posição poderiam levar a enfrenta-mentos mihtares. Em 1920, os efetivos da Brigada Mihtar e dos corpos provisórios gaúchos somavam cerca de 12.000 homens, contra uma força de 9.000 homens do Exército no Rio Grande do Sul. Em outras palavras, deveria haver afinidade entre o Governo do Estado e o Comando da III Região (transformada depois em III Exército ) . ' ' Vejamos na Tabela 4 a importância dos números.
O Exército desejava ser reconhecido e ter prestígio social. Ele queria o mono-póho do poder armado sobre o território do País. Durante a I Repúbhca, ele conseguiria somente a extinção da Guarda Nacional, o que fora um passo importante para deter o monopóHo virtual do recrutamento no País. Mas removido esse poder concorrente, logo surgiram os exércitos estaduais de Minas Gerais, São Paulo e do Rio Grande do Sul.'^
Tabela 4
Efetivos das Polícias Militares e do Exército em províncias e estados
escolhidos do Brasil - 1889-1920
1920
PROVÍNCIAS E
ESTADOS Polícia Exército Polícia Exército
Bahia
Corte e Distrito Federal
Mato Grosso
Minas Gerais
Pernambuco
Rio Grande do Sul
São Paulo
TOTAL
779
1 096
37
1 230
908
780
1 424
9 892
712
1 839
1 296
113
651
3 6 5 8
386
11 748
3 019
3 987
734
2 874
1 402
2 052
7 538
30 564
1 545
11 236
1 116
3 787
706
9 304
3 675
42 920
FONTE: Adaptado de: CARVALHO, José Murilo de (1977) As forças armadas na Primeira RepúbUca; o poder desesta-
bilizador. In: FAUSTO, Boris, org História geral da civiUzaçío brasileira, III O Brasil Repu
blicano 2, Sociedade einst i tuiçees (1889-1930). Rio de Janeiro, Difel p.230.
Os tenentes, por seu lado, representam um tipo de força com propostas muito difusas, com um ideário não claro ou definido. O mais simples tem sido identificá--los com as classes médias urbanas e suas insatisfações com uma estrutura política rural (o coronelismo) que não deixava espaço para a participação e a representativi-dade das novas camadas sociais urbanas. Os tenentes eram insurretos simultaneamente em relação aos seus oficiais superiores, portanto à organização da sua própria corporação e ao Presidente da República. Assim, é mais seguro indicar contra o que eles lutavam do que pelo que lutavam.
Insistimos, enfim, no fato de que tanto o Exército quanto os tenentes insurretos, assim como o Partido Republicano Rio-Grandense (e, por extensão, a oligarquia gaúcha) eram forças em expansão no quadro político brasileiro da I República. A imutabilidade do poder da Repúbhca, pela força do coronehsmo com o peso do seu voto rural e pelo poder da oligarquia mineiro-paulista controlando o acesso à Presidência da RepúbUca, terminou por soldar essas três forças que se encontravam bloqueadas nos seus avanços. Em 1930, elas reuniram seu máximo poder de fogo contra a repúbhca oligárquica.
Por fim, a oUgarquia política do Rio Grande do Sul, unida após o Pacto de Pedras Altas, que encerrou a Revolução de 1923, podia pretender disputar o poder central da República.^ ^ Apresença da oposição armadae o tipo de poder exercido pelo executivo no Rio Grande do Sul da I Repúbhca serão anaUsados no próximo item.
' Na Nota 25 deste ensaio, já indicamos as outras forças que participaram desse movimento.
' ' ' Existe uma tese sobre uma diferenciação entredois gruposde cafeicultores paulistas nos anos que antecederam à abolição da escravidão. Grosso modo, ela define dois grupos com posições diversas face à escravidão: os das regiões novas, do oeste paulista, que utilizavam trabalho assalariado e que seriam contra a escravidão; e os das regiões velhas, do Vale do ParaiTia, que "se agarravam" à escravidão. Entre outros, a tese encontra-se em Viotti da Costa (Viotti da Costa, 1989, 36-7, 50-2), Essa tese parece ter relação com as afirmativas freqüentemente veiculadas por economistas paulistas a propósito da "modernidade" de um segmento da classe dos cafeicultores. Porém, Eisenberg, estudando as diferenças de mentalidade dos fazendeiros no Congresso Agrícola de 1878, não só não encontrou evidências suficientes em apoio a essa tese na sua dimensão espacial como desenvolve uma argumentação que se opõe a ela (Eisenberg, 1980, p.167-94), De qualquer forma, essas diferenças não apresentaram, mesmo remotamente, um conteúdo que permita uma analogia com a cisão da classe dominante que ocorreu no Rio Grande do Sul durante a 1 RepúbHca.
5 - 0 Rio Grande do Sul e a ditadura
Se, por um momento, esquecermos o Governo Provisório e os primeiros anos ditatoriais da república no Brasil, poderemos dizer que, entre os povos do Brasil, o do Rio Grande do Sul foi o primeiro a experimentar a ditadura: a ditadura regional do Partido Republicano Rio-Grandense, que durou 37 anos. Em 1930, Getúlio Vargas partiu do Governo do Rio Grande do Sul para instalar-se na Presidência da República por 15 anos, dos quais os últimos sete foram ditatoriais; mais tarde, a partir de 1964, três dos cinco generais que exerceram a ditadura no Brasil erain gaúchos. Quais são, então, as origens da ditadura no sul? Por que a ditadura germinou no sul com tanta força? Uma vez mais vamos encontrar as respostas nesta sociedade que brotou da fronteira em guerra.
A primeira idéia importante a reter foi proposta por Antonacci no seu estudo sobre as oposições e a Revolução de 1923, onde ele constata a cisão precoce, na história do Brasil, da classe dominante rio-grandense em duas forças políticas inconciliáveis durante a República Velha. Em outras regiões, essas cisões ou não aconteceram ou ocorreram mais tarde. ' ' ' Antonacci pergunta-se, então, pela razão dessa pre-cocidade e encontra sua resposta na diversificação da estrutura produtiva do Rio Grande do Sul (Antonacci, 1981, p . l9 ) . Essa diversificação teria tornado possível e oportunizado a formulação de dois projetos políticos divergentes para a sociedade rio-grandense, dentro da classe dominante regional.
No entanto, como já estabelecemos páginas atrás, definitivamente não poderia ter sido a diversificação econômica o ponto de referência, pois ela pode ser compatível com outras estruturas sociais e econômicas na produção de mercadorias. No caso do Rio Grande do Sul, foi a diversificação social que jogou a cartada decisiva.
Durante o Império, tanto no Brasil quanto na Região da Campanha do Rio Grande do Sul, o poder político tradicional estruturava-se segundo a rede coronelís-tica, território por excelência da classe dominante regional. Nos anos que antecede-
i í . * 3 " 1 n í
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ram a Proclamaçío da República, a expressão política maior desse poder congrega-vase no Partido Liberal que controlava politicamente o Rio Grande do Sul. Era na Campanha que estava a base tradicional do controle político do Rio Grande do Sul', território dos monarquistas hberais, depois dos federaUstas e, por fím, dos revolucionários de 1923. ,,
Nos primeiros anos da República (1889-93), o grupo de ativistas repubÜcanos que disputavam o controle do aparelho de Estado do Rio Grande do Sul, o qual controlariam de maneira intermitente nesse período, não eram somente minoritários, como não possuíam a rede tradicional de apoio coronelístico que estava nas mãos dos Liberais, no final da monarquia. Não que os republicanos não fossem também grandes proprietários de terras e pecuaristas, mas eram uma geração sem compromisso histórico com a política imperial e sem prática de controle do aparelho de Estado. Enquanto os repubUcanos de outras regiões do País saíram de divergências do Partido Liberal (Pinto, 1986, p . l05) , no Rio Grande do Sul eles se formaram autonomamente.
5.1 — A conjuntura de violência
Os anos que se seguiram ao golpe de Estado militar que implantou a República
no Brasil em 1889 foram anos convulsionados pelas lutas entre os repubUcanos ra
dicais e os restauradores da monarquia. A nível de Brasil, fora estabelecida imia
ditadura miUtar. Essa ditadura reinstalou no poder do Rio Grande do Sul o Partido Repubhca
no Rio-Grandense, pois, entre novembro de 1889 e janeiro de 1893,17 governadores haviam passado pelo Governo do Estado (Ferreira Filho, 1960, p.124-7). Júlio de Castilhos, chefe do PRR, elaborara uma Constituição para o Estado do Rio Grande do Sul que era sui generis no contexto brasileiro. Ela trazia embutida uma ditadura (mais adiante, voltaremos a falar dessa Constituição). Contra o domínio do PRR e contra a sua Constituição para o Estado, levantaram-se em armas os federa-listas'^ e, uiúdos aos monarquistas e aos republicanos dissidentes do PRR, iniciaram uma guerra civil. Pensamos que essa conjuntura de violência teve muito a ver com o autoritarismo das instituições repubhcanas rio-grandenses.
Os federalistas não eram "federativos", eles propunham a predominância do poder federal sobre o estadual, ao contrário doque resultarada Constituição Federal republicana. O PRR havia pugnado por uma ainda maior autonomia dos estados do que a Constituição Federal consagrara; os federalistas apareciaiti, assim, como centralizadores e unitários,propondo também o parlamentarismo, tal como havia existido durante a monarquia (Ferreira Filho, 1960, p.126).
' * Antes da eclosão da guerra civil, o Presidente da Reptiblica enviou um emissário seu para tratar com os exilados no Uruguai. O telegrama do emissário ao Presidente expressa bem a situação: "Pelo modo como chegaram as coisas por aqui, acho que V.Exa. deve declarar já o Rio Grande em Estado de Sitio, nomeando imediatamente umgovemo mUitar, masque este seja alheio às paixões poh'ticas do Rio Grande. V.Exa. não faz idéia dos horrores que se têm praticado; os assassinatos são em número muito elevado, pois já por toda a parte se degolam homens, mulheres e crianças, como se fossem cordeiros; o saque está por demais desenvolvido, assim é que não há nenhuma garantia, quer individual, quer material" (Reverbel, 1985, p . l8) .
Degolava-se o prisioneko como uma ovelha. O prisioneiro, de mãos atadas, ajoeUiava-se entre as pernas do degolador. Existiam dois métodos: no criolo, a faca cortava a garganta de orelha a orelha; no brasileiro, duas pontadas de faca furavam^as carótidas (Reverbel, 1985, p.52).
' ' Um outro exemplo do nível de brutalidade é a notícia da morte do coronel uruguaio-brasilei-ro Gumercindo Saraiva (Saravia, para os uruguaios) saída no jornal do PRR, A Federação: "Miserável! Pesada como os Andes te seja a terra que generosamente cobre teu cadáver maldito. Caiam sobre essa cova asquerosa todas as penas concentradas das mãos que sacrificaste, das virgens que violaste, besta, fera do sul, verdugo do Rio Grande".
Quando o túmulo de Gumercindo foi descoberto por um chefe militar do PRR, seu cadáver foi exumado e mutilado (Reverbel, 1985, p.91).
A revolução partiu do Uruguai, onde cerca de 10.000 pessoas haviam se refugiado entre junho de 1892 e fevereiro de 1893 (Love, 1975, p.64-5).'* O fato de utilizarem mercenários uruguaios fez com que o PRR caracterizasse a guerra civil como uma invasão estrangeira, pois os mercenários eram de um região do Uruguai povoada por gente oriunda da Maragateria (Espanha); eles dariam o nome aos revolucionários: maragatos. No entanto também o PRR recrutava soldados mercenários entre os uruguaios.
Partindo do Uruguai, por três vezes os maragatos invadiram o Rio Grande do Sul. Essa guerra de 31 meses levou à morte de 10% a 12% da população do Rio Grande do Sul que, na época, estava em tomo de um milhão (Love, 1975, p.77). No período anterior ao inicio da revolução, os assassinatos de chefes políticos das duas facções e de suas famílias culminariam com a bestiahzação das populações rurais desfavorecidas, envolvidas na guerra (Love, 1975, p.77). Toda a sociedade rural rio-grandense foi enleada nas atrocidades. Duas batalhas são exemplares para dimensionar a brutaUdade: a batalha do Rio Negro, vencida pelos maragatos, onde 300 dos 1.000 prisioneiros foram degolados, segundo a lenda, por um só hOmem, Adão Latorre, peão de fazenda e tenente-coronel do exército maragato (Reverbel, 1985, p.54-5) - nessa batalha, foram degolados também oficiais do Exército, o que aproximou mais os laços entre o PRR e o Exército brasileiro - ; a segunda batalha foi a do Boi Preto, vencida pelo PRR, onde 300 prisioneiros maragatos foram degolados, como vingança pelos mortos de Rio Negro.'"'
Essa revolução extrapolou os limites do Rio Grande do Sul. Gumercindo Saraiva chegou a capturar Curitiba, enviando um ultimato ao Presidente da Repú-
5.2 - A ditadura do Partido Republicano Rio-Grandense
Para controlar o Estado e conseguir reproduzir-se no poder, os republicanos tomaram uma série de medidas. Uma das mais importantes foi cooptar para as fileiras do Partido Repubhcano os contingentes populacionais urbanos e coloniais que tinham muita dificuldade em participar de um partido oligárquico tradicional como o Liberal. Em geral, a bibliografia refere-se a esses contingentes como sendo grupos politicamente disponíveis. Na verdade, o Partido Liberal não possuía condições de absorvê-los (tinha por base a grande propriedade e o poder rural do coronel). O PRR, assim, enquanto partido de um grupo minoritário da classe dominante regional e enquanto grupo desprovido da rede de poder tradicional para o exercício da política no Brasil, buscou na diversificação social das populações da região as bases para o exercício do seu poder (Pinto, 1986, p.104-5). O PRR ampliou a diversificação social que encontrou e que lhe serviu imediatamente de lastro político. Durante os seus quase 40 anos de controle do poder, todos os 22 novos municípios criados tiveram por sede a zona colonial (Ferreira Filho, 1960, p.l71).^^
Essa relação positiva entre o PRR e a zona colonial é um dos pontos controversos para a Professora Helga Piccolo, que sustenta que a criação dos municípios visava enfraquecer politicamente as demandas oriundas da zona colonial.
blica. Por fim, a revolta da esquadra no Rio de Janeiro associou-se aos revoltosos gaúchos. A revolta da Marinha fora um fracasso, e os navios revoltados acabaram se exilando em Buenos Aires. José Maria Bello diz que o Rio Grande do Sul foi o campo de provas para a sobrevivência do regime repubhcano no Brasil (Love, 197.5, p.70). Entre as seqüelas menores da guerra, esteve o fato de circularem rumores de iminentes invasões federaüstas, quase todos os anos, até 1923 (Love, 1975,p . l41) . Segundo Carlos Reverbel, os ódios que restaram das atrocidades dessa guerra fizeram com que os historiadores do Rio Grande do Sul chegassem a se recusar a falar dela (Reverbel, 1985).
Desde 1893, quando da eclosão da Revolução Federalista, Júlio de Castilhos iniciara a construção de uma das principais bases do poder do PRR, a estruturação da Brigada Mihtar, exército regional sob o comando do Governador do Estado, freqüentemente melhor treinada e equipada que o Exército nacional. Joseph Love assinalou que a Brigada Militar possuía mais rifles que as outras polícias mihtares estaduais e que somente após 1930 o Exército nacional passou a ser melhor equipado que essas forças estaduais (Love, 1975, p . l23) . Essa corporação foi um instrumento de poder decisivo nas mãos do Executivo do Rio Grande do Sul para enfrentar tanto as desobediências internas do PRR quanto a oposição gaúcha e para intimidar os adversários do PRR na política nacional. No contexto nacional, por exemplo, a Brigada Mihtar desencorajava qualquer tentativa de intervenção militar da Presidência da Repúbhca no Rio Grande do Sul.
O PRR estimulou a colonização e a diversificação econômica do Rio Grande do Sul apôs diagnosticar a decadência da pecuária e da charqueada (Fonseca, 1984, p.6-10). Seu projeto econômico para a região foi o de atingir a auto-suficiência na produção-consumo (Antonacci, 1981, p . l l 2 ) . Assinale-se a diferença em relação ao projeto econômico do complexo cafeeiro: fundamentalmente exportador--importador, possuindo por horizonte a manutenção-ampliação de sua participação na divisão internacional do trabalho e professando um livre-cambismo liberal.
Para garantir a reprodução do PRR no poder, o líder do PRR, Júlio de Castilhos, dotou o Estado de uma Constituição muito peculiar, e, tal como já foi assinalado, essa constituição serviu não somente de pomo de discórdia entre o PRR e as oposições gaúchas, como entre o PRR e os_ outros partidos republicanos do Brasil. Vejamos algumas de suas características básicas: um Executivo muito forte e ausência de Legislativo. Ausência de Legislativo, pois a Assembléia eleita, que se reunia durante dois meses ao ano, tinha como finahdade aprovar o orçamento e verificar as contas do Executivo (Osório, 1982, p.3). O Executivo legislava através de decretos-lei. Quando o Presidente do Estado promulgava um decreto, as câmaras municipais tinham um prazo de 90 dias para discuti-lo, fazer sugestões de alteração, discordar e t c ; se tal não ocorresse no período, o decreto tornava-se lei. Na prática, a emissão pública do decreto fazia-se acompanhar de telegramas-circulares, onde era exigido o silêncio obediente das câmaras municipais (Antonacci, 1981, p.25),
A estrita disciplina partidária jogou um papel decisivo na organização e na manutenção do poder do PRR no Rio Grande do Sul. São traços como esse, de uma estrita e rígida discipHna partidária, que permitem que se afirme que o PRR foi o primeiro partido moderno do Brasil. Joseph Love, por exemplo, diz que era gritante a diferença entre o PRR e os demais partidos repubUcanos do País, por ele qualificados de amorfos (Love, 1975, p.78). Além de tudo, era um partido que possuía um ideário (o positivismo) que foi insistentemente destilado em todos os pronunciamentos do Executivo - discursos,justificativas, mensagens, etc. - , nos discursos dos membros da Assembléia e no belicoso jornal do Partido: A Federação. Era um partido com princípios e que procurava administrar o Estado em função desses princípios, assim como justificar suas opções através deles. Isso era realmente uma novidade no Brasil!
Arrolaremos alguns exemplos. Seguindo Comte, os positivistas gaúchos pro-pugnavam por impostos diretos e não indiretos; o Rio Grande do Sul foi o único estado da Federação onde vigorou o imposto territorial, que chegou a ser o primeiro item da arrecadação estadual e que sempre guardou inrportantes postos na hierarquia tributária estadual. Um outro exemplo: o Governo Estadual não deveria favorecer, com a sua ação, grupos ou classes, competia a ele cuidar do "bem comum", fazer o que atendesse "ás necessidades de toda a sociedade": o PRR dedicou-se à construção de estradas de rodagem, encampou ferrovias e o único porto marítimo do Estado e, diante das dificuldades para reunir fundos para abrir o úrüco frigorífico nacional no Estado (cuja abertura era importante para impedir o mono-
pólio estrangeiro), ele participou do empreendimento?' Por fim, pertencia ao ideário desses positivistas a crença de que a sociedade era irremediavelmente formada por capitalistas e operários, que era assim que deveria ser, e que uma das maneiras de o Estado e, por extensão, de o capital se responsabilizarem pelos pobres era dando-lhes instrução. Assim, à originahdade das receitas oriundas do imposto territorial somava-se esta de gastos importantes com educação, isso era outro fato inédito no Brasil. Somente durante os períodos de guerra, as despesas militares foram mais importantes que as da educação (Love, 1975, p . l09) . Certamente que um plano de instrução púbUca que se somasse âs escolas católicas e protestantes para os imigrantes obrava no sentido de ampÜar os contingentes eleitorais. Deve ser registrado que o Rio Grande do Sul apresentou os mais elevados níveis de alfabetização do Brasil na I Repúbhca. Love assinalou-nos que, em 1907, o Rio Grande do Sul escolarizava 228 sobre 1.000 crianças em idade escolar, enquanto os nlimeros eram de 162 para São Paulo e de 141 para Minas (Love, 1975, p . l l 6 ) .
A Constituição de 14 de julho, elaborada por Castilhos e contestada dentro e fora do Rio Grande do Sul, é uma versão local de aspectos do positivismo de Augusto Comte. Enquanto tal, a administração da Repúbhca foi vista como uma questão de competência e não de representatividade;aos "sábios" cabia a tarefa de administrar "cientificamente" a sociedade, pairando acima das classes e dos interesses de grupos. Era a ditadura republicana. A partir dessa proposta, era sempre o bem comum que era visado pelas ações do Executivo, o interesse geral do corpo social e não os interesses de uma classe ou de uma fração de classe. O capitaUsmo era concebido como eterno, e ao Governo cabia a promoção da conciUação entre os interesses do capital e do trabalho. Tudo dentro da ordem e do progresso. Ceh Pinto indicou que o PRR construiu um discurso não oHgárquico, diverso, portanto, dos demais discursos regionais brasileiros?"
É evidente que essa neutralidade foi utilizada para arrefecer as demandas dos pecuaristas da oposição, ao mesmo tempo que permitia a promoção de irúciativas do Executivo estadual no sentido de promover e beneficiar outros grupos, tais como o dos agricultores imigrantes e dos industriais. Pensamos, no entanto, que õs Executivos dos estados cafeicultores e, por extensão, o Executivo federal da I RepúbH-
Mais uma vez, asdiferenças em relação a São Paulo são gritantes: lá, tudo para o café, e só para ele. Os cafeicultores no poder, em São Paulo e na Presidência da República, expressaram bem o "comitê executivo" dos plantadores, utilizando o aparelho do Estado em seu único benefício,
Ceü Pinto resumiu assim o papel do positivismo na construção do discurso poh'tico do PRR:
"Portanto, se por um lado foi no positivismo que o PRR foi buscar um modelo para as insti
tuições políticas autoritárias que implantou no estado, por outro, foi através dele que cons
truiu um discurso não-oligárquico e que apresentou estas instituições [as republicanas] como
as únicas capazes de responder às necessidades [do conjunto] da população do estado" (Pin
to, 1986,p. l06) .
Por fim, antes da Revolução de 30, o Rio Grande do Sul envolveu-se ainda em três episódios militares, segundo Ferreira Filho.
1) Em junho de 1924, estourou em São Paulo uma rebelião militar de unidades do Exército e da Força Pública de São Paulo; os rebeldes tomaram a capital e cidades do Interior. A pedi-
ca expressavam uma identidade entre o Estado e o bloco do café, ou seja, eram os interesses desse bloco que ocupavam o Executivo. Era o Estado de um bloco de interesses, os do café. O Executivo rio-grandense concebia-se como um estado acima das classes sociais e dos interesses particularistas. Note-se que esse Executivo precisava "conceber-se", ou seja, ele não era dado "naturalmente". Nesse sentido, ele se construía com um cunho de modernidade, pois a proposição de neutraUdade abria espaço para a promoção de grupos e classes emergentes.
Nós já fizemos alusão, repetidas vezes neste ensaio, á revolução de 1923, esta foi a última guerra movida pela oposição ao PRR. A solução encontrada, no Pacto de Pedras Altas, soldou num só bloco a oligarquia gaúcha, estabelecendo as condições finais para que ela se propusesse á disputa da Presidência da República. Vamos examiná-la.
Dado que os resultados das eleições de 1922, como sempre fraudulentas, confirmaram a vitória de Borges de Medeiros, que iniciaria, assün, o seu quinto mandato como Governador do Estado (cada mandato era de cinco anos), as oposições unidas na Ahança Libertadora levantaram-se novamente em armas sob a liderança de Assis Brasil, candidato derrotado (Love, 1975, p.217-8). Através da guerra civil, a oposição desejava provocar a intervenção político-mihtar do Governo Federal no Rio Grande do Sul (Antonacci, 1981, p.98) e assim conseguir a revisão da Constituição do Estado e a deposição de Borges de Medeiros. O término da Revolução de 23 possibilitou a união da classe dominante regional (o PRR e a oposição passaram a representar uma única força política), cuja coesão foi acentuada por Getúho Vargas, quando se tornou Governador do Rio Grande do Sul, em 1928. Essa união possibi-Htou a base política regional para que Getúho aceitasse a candidatura à Presidência da Repúbhca em 1929, perdesse a eleição e liderasse a Revolução de 30 que acabou com a Repúbhca oligárquica.
Os pontos mais importantes reivindicados pela oposição gaúcha em 1923 eram: a) estabelecer a ilegitimidade do novo mandato de Borges de Medeiros; b) promover a revisão da Constituição Estadual de forma a permitir a rotatividade nos cargos púbhcos, impedindo a reeleição do Governador; c) tornar elegível o cargo de vice-governador; e d) dar mais poderes à Assembléia Legislativa do Estado.
O verdadeiro vencedor dessa revolução parece ter sido o Presidente da Repúbhca, que não fora apoiado por Borges quando de sua eleição. Ele desejava encetar uma intervenção militar no Rio Grande do Sul, mas seus desentendimentos com o Exército não lhe davam condições de arriscar-se nessa aventura. A intervenção diplomática do Governo Federal encaminhou a aceitação da legitimidade do novo mandato de Borges e da revisão da Constituição nos termos da Aliança Libertadora.'"
Conclusão
Ao longo deste texto, evocamos as origens da sociedade do Rio Grande do Sul e apresentamos as estruturas fundiária, social e política como resultados da fronteira e da guerra. Assinalamos a importância da inovação de uma classe rural proprietária para conferir à sociedade do Rio Grande do Sul uma dimensão de modernidade que era precoce no Brasil. Enfim, fizemos derivar da fronteira em guerra e da diversificação social os outros traços originais da história do Rio Grande do Sul. Originais porque eles apareceram no sul muito antes de se manifestarem na sociedade brasileira: a divisão da classe dominante regional, a construção de um partido político moderno e o exercício da ditadura.
do da Presidência da República, o Governo do Rio Grande do Sul enviou cerca de 1.000 homens da Brigada Militar do Estado para ajudar a sufocar a rebelião. Os rebeldes refugiaram-se em Foz do Iguaçu, fronteira com Argentinae Paraguai, onde se uniram à Coluna Prestes, movimento que subia do sul (indicado abaixo).
2) No mesmo ano, unidades do Exército nacional, sediadas na fronteira do Rio Grande do Sul com a Argentina, rebelaram-se sob a liderança de Luis Carlos Prestes. Os rebeldes convulsio-naram a zona missioneira do Rio Grande do Sul durante algum tempo. Subiram em direção ao Norte, perseguidos pela Brigada Militar. A coluna dos revolucionários atravessou o Brasil tentando "levantar as massas rurais" contra a Presidência. Foram ao sul da Bahia e terminaram exilando-se na Bolívia. Essa marcha de 24.000 quilômetros foi considerada o símbolo da insatisfação com o poder rural das oligarquias da I República. Prestes levou o título de "cavaleiro da Esperança".
3) Em novembro de 1926, tenentes do Exército rebelaram-se em Santa Maria. Caudilhos invadiram o Rio Grande do Sul vindos do Uruguai, mas as forças legalistas do Governo do Estado forçaram sua retirada (Ferreira F<>, 1960, pp.167-169).
Esses três últimos levantes referidos expressam rebeliões simultâneas contra os poderes regionais e contra a Presidência da República. São manifestações dos tenentes do Exército, que expressam sua insatisfação com o domínio das oligarquias rurais-regionais e do sistema coro-nelístico brasileiro da I Repúbhca.
Do ponto de vista da intenção de Júlio de Castilhos, homem que concebeu e construiu as bases do sistema do PRR, os objetivos foram alcançados. O PRR ocupou ininterruptamente o poder de 1893 até 1930,da segumte maneira: 1893-98, Júlio de Castilhos; 1898-908, Borges de Medeiros; 1908-13, Carlos Barbosa; 1913--28, Borges de Medeiros; 1928-30, Getúlio Vargas. Quando Castilhos passou o poder do Executivo Estadual para Borges de Medeiros, conservou a direção do PRR. Borges fez a mesma coisa quando seus prepostos, Carlos Barbosa e Getúlio Vargas, ocuparam o Executivo Estadual.
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Acreditamos haver discutido e qualificado o repto fortriulado por José Honório Rodrigues e que foi apresentado no inicio deste ensaio. A guerra, o militarismo e a ditadura possuem uma relação fundamental com a formação histórica do Rio Grati-de do Sul, mas não na forma simplista, excludente e passional construída por José Honório. Por fim, apelamos para:as palavras do "poeta" àguisa de resposta:afetiva ap.historiadpi:,,,,.;/ ^ . ; Í , V < ; - , „ /
"Somos uma fronteira. No século XVin,quandp spldados de Pfjrtugal e Espanha disputavam a ppsse definitiva deste 'imenso deserto', tivemos de fazer a nossa opção: ficar com os portugueses ou com os castelhanos. Pagamos um pesado tributo de sofrimento e sangue para continuar deste lado da fronteira meridional do Brasil. Como pode você acusar-nos de espanhohsmo? Fomos desde Ós tempos coloniais até o final do século um território cronicamente conflagrado. Em setenta e sete anos tivemos doze conflitos armados, contadas as revoluções. Vivíamps permanentemente em pé de guerra. Nossas mulheres raramente despiram, o lu-t o ( . , . ) "
Érico Veríssimo
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Abstract
First of ali we showed that - right from the beginning - Rio Grande do Sul made up a specific social formation in Brazil, since this region was always confronted to frontier wars because of the characteristics and the settingup period of the frontier States. We then examined a series of structural features which were particular for Rio Grande do Sul society in relation to the rest of Biazil and which derived from its frontier wars. These features are: its landowning structure; its rural social classes as well as the relation of its regional ruling class with the government of the Empire. That is why the Rio Grande do Sul tenitory was the scene of a new social experience in XIXth century Brazil. As we can see along this essay, it was the first agrarian society that carne to differentiate itself socially and the new rural landowing class did not rely basically on slavework. Rio Grande do Sul society faced itself with totally new problemas with regard to the Brazilian context of the transition from slaverytocapitalism.Moreover,duringtheoligarchicRepublic,thegoverning political party in the region established on one hand closed links with the Brazilian Army and on the other hand, it became the first modem political party in Brazil and achieved at regional levei a long experience of djctatoiship. That is why we wonder if the Brazilian conservative modemization did not start first in Rio Grande do Sul.
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COMENTÁRIO SOBRE OS "PARADIGMAS" DA ECONOMIA GAÜCHA*
Luiz Roberto Pecoits Targa *
C o m e n t a r e m o s , b r e v e m e n t e , alguns dos paradigmas de e c o n o m i a regional que fo ram ut i l izados para t e n t a r compreende r o R io Grande d o Sul após os anos 6 0 . Essa cu r t a ref lexão nos levou a identif icar o per íodo-chave de nosso t r a b a l h o , assim c o m o as ques tões que n o s in teressam explorar .
A p r o d u ç ã o de c o n h e c i m e n t o sobre a reahdade sócio-econômica d o E s t a d o t e m se depa rado c o m m u i t a s dif iculdades. U m a das barreiras é cons t i t u ída pelos paradigmas u t ihzados e cuja subs t i tu ição t e m sido difícil. Apresen ta remos , de mane i ra suc in ta , dois desses paradigmas e mais u m te rce i ro , q u e c h a m a m o s u m "quase-para-d i g m a " . Eles e x p r i m e m , á sua mane i ra , u m a reahdade e m t r ans fo rmação : ref le tem diferentes m o m e n t o s da reahdade sócio-econômica d o R io Grande d o Sul .
Nos anos 6 0 , o R i o Grande d o Sul foi p e n s a d o , po r alguns dos seus melhores economis tas , c o m o se fosse u m a economia fechada (e i so lada) , c o m o se ele pudesse t e r u m pro je to p r ó p r i o . L e m b r a m o s aqu i , s o b r e t u d o , o excelente t r aba lho de Accur-so , Candal e Veras, d e n o m i n a d o O Insuficiente Desenvolvimento d o Rio Grande d o Sul. Nessa análise, po r e x e m p l o , o Brasil e " o resto d o m u n d o " fo ram t r a t ados com o mercados ex te rnos — q u e m sabe, m u n d o s ex te rnos — a o E s t a d o . Para dar a ênfase necessária , esse e spaço e c o n ô m i c o foi visto c o m o u m a economia nac iona l . É evid e n t e q u e essa p ropos ição n ã o e ra exphc i t ada (mas vejam algumas das p ropos tas de po l í t i ca econômica lá con t idas , e m conf ron to c o m o q u e acontec ia n o Pa ís ) . Cada u m dos economis tas q u e par t ic iparam dessa e laboração jamais formular ia u m a idéia dessa na tu reza . E , n o e n t a n t o , ela estava lá. P o d e m o s imaginar , c o m jus t iça , q u e sua fo rmulação derivava de concepções keynesiano-cepal inas . Essa resposta fácil é insuf ic iente .
Esse parad igma persis t iu n o t e m p o . Acred i t amos q u e essa d u r a ç ã o , que at ingiu a m d a os anos 7 0 , n ã o foi u m simples defei to de compreensão da r eahdade , se b e m que n o s t enha pa rec ido assim q u a n d o dos esforços de sua subs t i tu ição . Mesmo que n ã o p u d e r m o s afastar essa h ipó tese def ini t ivamente - j á que Walter Isard en-
Na falta de melhor expressão, chamamos de "paradigma" a idéia-base, explícita ou não, de certos trabalhos sobre a economia regional do Rio Grande do Sul.
Economista da FEE.
c o n t r o u essa m e s m a posição en t re os economis tas regionais dos Es tados Unidos —, achamos necessário avançar u m a ou t r a h ipótese paralela para a formulação desse p r ime i ro paradigma.
Pensamos , a t u a l m e n t e , que esse paradigma expr imiu a força de u m a realidade q u e d e i x o u de exist i r . Ã idéia persist iu n o t e m p o , m u i t o após o desaparec imento da r eahdade social que sugeriu sua formulação . É provável que o R io Grande d o Sul t e n h a se c o n s t i t u í d o , a lguma vez, o u t r o r a , ^ m . u m país d e n t r o do Pa í s , po r assim dizer , po is , a lém de suas acen tuadas especifícidades econôrmcas e sociais, naque le t e m p o ele possuía u m poder p ú b h c o regional c o m u m elevado grau de a u t o n o m i a face ao p o d e r da U n i ã o . Mas esse foi o t e m p o da real idade q u e se expr imiu , tardiam e n t e , n o pr imei ro parad igma. De qualquer fo rma, o paradigma serviu-nos de pista .
j , N a segunda m e t a d e dos anos 7 0 , esse p r imei ro paradigma foi subs t i t u ído pela idéia de q u e a e c o n o m i a gaúcha era subordinada o u subsidiária da economia brasileira. Pensamos , aqu i , nos t raba lhos sobre a indúst r ia e a agricul tura do R io Grande do Sul , ed i tados n a série dos 2 5 Anos de Economia Gaúcha d a F E E . Esse segundo parad igma j á era b e m me lho r para pensar a economia rio-grandense tal qual ela existia após os anos 6 0 . Mas ele p o d e ser cr i t icado de dois p o n t o s de vista ( q u e , ahás , se i m b r i c a m ) .
P r ime i r amen te , ele a inda obscurece a compreensão dessa real idade, p o r q u e cons idera as at ividades produt ivas da região c o m o u m a e c o n o m i a , coisa q u e ela já deixara de ser. Seu l ado posi t ivo era o de compreender a região den t ro d o moviment o d a e c o n o m i a nac iona l ; j á era u m passo i m p o r t a n t e , mas , face à reahdade existent e , era , todavia , msuf ic iente .
E m segundo lugar, esse paradigma p o d e ser cr i t icado pe lo ângulo de a economia regional ser par te da e c o n o m i a brasileira (pa r t e subord inada , pa r t e subsidiária) . D o nosso p o n t o de vista, essa concepção é equivocada , pois , depois dos anos 6 0 , as par tes d a economia brasileira - as par tes legí t imas , por assim dizer - n ã o p o d e m ser ou t ra s senão os d e p a r t a m e n t o s p rodu t ivos , as classes sociais fundamenta is e ou t ros " c o r t e s " , cuja in te ração d inâmica permi t ia a compreensão do m o v i m e n t o t o t a l da
^ a c u m u l a ç ã o n o Brasi l . /Queremos dizer q u e , a par t i r da in tegração d o m e r c a d o naciona l , as economias regionais p e r d e m o seu status de p a r t e s / O r a , essa idéia pe rmi t e a e laboração d o "quase -pa rad igma" de que falamos n o in íc io d o t e x t o . Ele p o d e ser e sboçado da segumte mane i r a :
— depois da mtegração d o mercado i n t e m o , o espaço geoeconômico d o R i o Grande do Sul c o n t é m segmentos das par tes da economia e da sociedade brasileiras. Ele c o n t é m frações da burguesia agrária e frações da burguesia industr ia l d o Brasil, frações da classe operária e do campes ina to brasileiros, ele c o n t é m frações dos depa r t amen tos p rodu t ivos da economia nacional . O que move as " c o i s a s " são as relações en t r e essas par tes , as au tên t icas . A economia do R i o Grande do Sul (assim c o m o as demais economias regionais) n ã o consegue expHcar mais o m o v i m e n t o . Desse m o d o , as atividades econômicas d o E s t a d o n ã o expl icam mais nada : e n q u a n t o c o n j u n t o e m si, elas n ã o são n e m u m a economia n e m par te de coisa alguma. E isso po rque a economia do R io Grande do Sul pe rdeu suas fontes dinâmicas in ternas
e n q u a n t o economia regional . Hoje , o dinant ísmo de suas atividades econômicas possui laços que n ã o se encer ram mais no seu espaço geográfico. Repe t imos , as par tes q u e m o v e m a economia (e ela agora é nac ional e n ã o t e m mais qua lquer sen t ido regional) e, e n t ã o , as frações delas que se encont r a m localizadas n o R io Grande do Sul se definiram de ou t r a manei ra . A economia regional de ixou de ser u m " t o d o " , u m a un idade . Isso pe r t enceu a u m o u t r o t e m p o , A economia regional de ixou d e se tota l izar e m si mesm a e foi apr is ionada pe lo mov imen to de to ta l ização da economia nacional . Nes te ú l t imo m o v i m e n t o , ela se des tota l izou, o que somente quer dizer que o m o v i m e n t o de to ta l ização da economia brasileira t ransforma comp le t amen te a economia regional, destota l izando-a . É c o m o se, na economia gaúcha, t u d o mudasse de n o m e , de iden t idade . E ela, e n q u a n t o ta l , n ã o emerge mais desse m o v i m e n t o . Ela de ixou de exist i r , ela exp lod iu .
É po r isso q u e pensamos que esse "quase-parad igma" poder ia ser enunc i ado c o m o o da des t ru ição da p a r t e . V e m o s , n o e n t a n t o , que a dif iculdade de sua const r u ç ã o e de sua operac ionahzação t e m seu fundamen to na reahdade que e m b a s o u o p rhne i ro paradigma, Esse cor respondeu a u m a ou t ra economia brasileira e a u m a o u t r a economia gaúcha , cuja fo rma foi t ão jus t amen te expressa por Chico de Ohvei-ra : " ( . . .) a e c o n o m i a brasileira era formada por várias economias regionais ( . . . ) " .
O segundo parad igma e o "quase-parad igma" co r re spondem às tenta t ivas de compreende r a economia gaúcha apc^ a integração do m e r c a d o nacional , e n q u a n t o o p rhne i ro co r respondeu à real idade social e econômica d o R i o Grande d o Sul antes da mteg ração . Is to é : a economia d o R i o Grande d o Sul const i tu ía-se , e m p a r t e , da e c o n o m i a brasileira (leia-se: u m a cer ta economia brasileira, o u seja, c o m u m a certa conf iguração) an tes da unif icação do mercado m t e r n o ; depois da in tegração, ela se dissolveu e n q u a n t o pa r t e .
Cons ideramos t a m b é m q u e , antes da unif icação, a economia gaúcha era u m a par te c o m propr iedades diferentes das demais par tes da economia brasileira; as outras hav iam sido economias agroexpor tadoras para o m e r c a d o mund ia l , e n q u a n t o a d o R i o G r a n d e d o Sul era ag roexpor tadora para o m e r c a d o in te rno brasileiro. Bar-ros de Cast ro chegou a dizer que ela foi a mais diversificada d o País e a única que se vo l tou c o m sucesso para o m e r c a d o i n t e r n o ,
O fato de que a economia gaúcha tivesse sido pensada c o m o isolada, c o m o u m a e c o n o m i a o u c o m o par te da economia brasileira ( e l ementos dos dois pr imeiros paradigmas) der ivou da forma que t o m o u essa economia du ran te a Primeira República. Sua sobrevida, e n q u a n t o economia regional , foi possível pelo in ter regno criado pela crise mundia l dos anos 30 e pe lo p e r í o d o da II Guer ra Mundia l .
Esses dois p e r í o d o s , o de cons t i tu ição (1889-30) e o de sobrevida ( 1 9 3 0 - 6 0 ) , es tabeleceram as bases para a formulação d o pr imei ro paradigma. Se b e m que , devid o a c i rcunstâncias his tóricas m u i t o part iculares ( locais , nacionais e in ternacionais ) , a soc iedade r io-grandense p ra t í cou e formulou o que p o d e r í a m o s c h a m a r de u m " p r o j e t o " de cap i t ahsmo n ã o concen t r ado ( em comparação ao que se desenvolvia n o res to d o País) e que se revelou u m fracasso face às caracter ís t icas da acumulação de capi tal que t e rmina ram po r prevalecer n a economia brasileira. Fo i a diferença en-
Bibliografía A L M E I D A , P e d r o F e r n a n d o Cunha de ( 1 9 8 9 ) . Acumulação de capital a nível na
cional e dinâmica das indústrias regionais: a expos ição pre l iminar de u m a h ipótese de in t e rp re t ação genérica, / s .n . t . / ( x e r o x ) .
T A R G A , Lu iz R o b e r t o Pecoi ts ( 1 9 8 8 ) . O processo de in tegração d o m e r c a d o int e m o bras i le i ro: e h m i n a ç ã o das par t icular idades econômicas e sociais d o R i o Grande d o Sul. Ensaios FEE, P o r t o Alegre , 9 ( 2 ) : 147-58 .
* Em texto anterior, já esboçamos alguns desses traços (Targa, 1988, p.147-58). No entanto, para um excelente e muito melhor esboço dessas transformações, consultar o texto de Pedro Fernando Cunha de Almeida (1989).
t r e O t i po de capi ta l i smo que se desenvolvia n o Sul e o que se desenvolvia n o pó lo paulista que esteve n a base da crise e m que mergu lhou o R i o Grande d o Sul q u a n d o da in tegração . Abriu-se , para e le , u m longo p e r í o d o de reorganização de u m a ou t r a a r t icu lação .
Essa reorganização apresen tou u m a dupla face : m u d a r a m as relações i n t e m a s à e c o n o m i a e à sociedade d o R i o Grande d o Sul e m u d o u a re lação das atividades econômicas locahzadas n o espaço d o E s t a d o c o m a e c o n o m i a nacional .* Nesse processo de d isso lução , o R i o Grande d o Sul p e r d e u algumas de suas especifícidades n a fo rma que t o m a v a m a t é a í . A acumulação de capi ta l n o sul aproximou-se mais d o m o d e l o concent rac ion is ta brasi leiro.
Parece-nos q u e foi a real idade vivida pelos r io-grandenses, an tes da imificação d o m e r c a d o nac iona l , que sugeriu a fo rmulação d o pr imei ro parad igma, assim c o m o as ilusões dos gaúchos d ian te de u m pro je to social par t icular o u m e s m o u m pro je to à pa r t e da e c o n o m i a brasi leira.
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O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 1
Da querência ao mouse:
uma avaliação das mudanças estruturais na
economia gaúcha dos anos 80 aos anos 2000
Octavio A. C. Conceição
―A teoria de Schumpeter, apresentada no seu Business Cycles, faz muitas referências ao fato de que a história do crescimento econômico tende a se dividir em eras e que, dentro de cada uma
em particular, há um conjunto relativamente pequeno de tecnologias e setores que dirigem o crescimento econômico. [...] Recentemente, Carlota Perez e Christopher Freeman propuseram que tecnologias e setores-chave de diferentes eras, geralmente, requerem diferentes conjuntos de instituições de apoio. O argumento deles é que as nações que tendem a ser líderes em diferentes eras são as que tinham, ou trataram de construir, o conjunto apropriado de instituições.‖
Nelson (2006, tradução nossa)1.
Expectativas, governança, credibilidade, padrões de qualidade,
vantagens competitivas, capacitação e aprendizagem, institucionalidade,
estratégias de seleção e adaptação, paradigmas tecnológicos,
financeirização globalizada e outras tantas palavras são conceitos, hoje,
relativamente disseminados no debate econômico. Tais noções, no
Economista, Técnico da FEE, Professor do PPGE-UFRGS. O autor agradece a Marinês Grando, Luiz Faria e Sonia Teruchkin — que, com ele, dividiram a coordenação deste livro — o convívio, as leituras e as sugestões à primeira versão deste texto. Estende sua gratidão às preciosas contribuições do Professor Achyles
Barcelos da Costa e do Professor Cláudio Accurso, que ajudaram a explicitar pontos imprecisos na versão inicial deste texto. Como de praxe, isenta a todos de equívocos porventura remanescentes na atual versão. 1 No original: ―[T]here is a lot to Schumpeter’s theory, presented in his Business Cycles,
that the history of economic growth tends to divide up into eras, and that within any particular era there is a relatively small set of technologies and industries that are driving economic growth. […] Recently Carlotta Perez and Christopher Freeman have proposed
that the key technologies and industries of different eras generally require different sets of supporting institutions. Their argument is that the nations that tend to be leaders in the different eras are those that had, or managed to build, the appropriate set of institutions.” Nelson (2006).
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entanto, raramente apareciam no vocabulário econômico corrente, ou
eram tratadas como questões de menor importância no início dos anos 80.
Naquela época, discutiam-se a crise, os planos de desenvolvimento ou sua
ausência, a dívida externa, a concentração da renda, a superação da
industrialização restringida, a inflação galopante, o déficit público, a
correção monetária e questões relacionadas ao curto prazo. Tais conceitos
municiavam o debate econômico da ainda inominada ―década perdida‖. O
que se quer enfatizar aqui é que as expressões mencionadas no início do
parágrafo ou eram incompreendidas, ou careciam de fundamentos
analíticos para sua compreensão. Naquela época, havia carência de um
instrumental teórico capaz de dar conta da magnitude das transformações
em curso. De lá para cá, mudou a linguagem, mudou a forma de
compreensão dos diferentes conceitos, e estabeleceu-se uma nova agenda
de pesquisa. A questão que se poderia colocar é se mudaram apenas os
termos, ou se esses novos conceitos se originaram de uma ―nova‖ teoria
econômica?
Este texto procura demonstrar que a mudança na percepção
conceitual é decorrente de novos enfoques econômicos, que, hoje, dão
conta, com maior profundidade e densidade teórica, das enormes
transformações gestadas no início dos anos 80. Estabeleceu-se, na
agenda de pesquisa econômica e social, uma nova dimensão analítica,
capaz de nos capacitar a entender a importância das referidas
transformações ou mutações estruturais. Este artigo busca discutir um
dos enfoques que tratam dessa perspectiva analítica, que pode,
genericamente, ser designado como evolucionário e institucionalista.
Poucos períodos da história recente do Rio Grande do Sul foram
palco de tão profundas e complexas transformações como as que
transcorreram ao longo das últimas três décadas. Atravessou-se, desde o
final dos anos 70, um período de uma profunda crise econômica,
associado a um processo inflacionário sem precedente na história do País,
que exigiu uma drástica correção de rumo. Ali, já se podia observar que
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tanto a economia nacional quanto a economia gaúcha exigiam reformas
estruturais profundas para sobreviverem. Tal correção, apesar de lenta e,
às vezes, aparentemente, sem norte, veio ocorrendo desde então,
tornando-se perceptível apenas no início dos anos 90.
Os anos 80 explicitaram a impossibilidade de a economia funcionar,
ou continuar funcionando, da forma como estava estruturada. Para poder
sustentar alguma trajetória de crescimento de mais longo prazo, faziam-
se necessárias reformas (estruturais) que rompessem, simultaneamente,
com a ―lógica‖ da memória inflacionária, com um padrão de ação
governamental que não produzia mais resultados, senão déficits
recorrentes, com um regime de competitividade (que, mais tarde, o
cepalino Fernando Fajnzylber denominou ―competitividade espúria‖)
assentado na desvalorização cambial, com um padrão produtivo herdado
do modelo tecnologicamente passivo do processo de substituição de
importações (PSI) e com uma organização do trabalho incapaz de
propiciar ganhos de produtividade e qualificação da mão de obra. Some-se
a isso o fato de que esse quadro de mudanças ocorreu em meio ao triunfo
do mal denominado ―neoliberalismo‖, que defendia maior flexibilização do
mercado de trabalho, políticas restritivas à demanda agregada e um
padrão de ação estatal avesso a qualquer identificação com o
keynesianismo2. Esse elenco de medidas, que John Williamson chamou de
―Consenso de Washington‖, articulou a grande orquestração
macroeconômica dos anos 80 e 90, que regeu a política econômica das
nações ocidentais. O alinhamento a essas reformas foi responsável, em
grande parte, pelas diferentes performances nacionais ao longo dos anos
90.3
2 O qualificativo aí referido justifica-se pelo fato de que as ditas políticas ―neoliberais‖ seguem os mesmos princípios da doutrina liberal, não se caracterizando como algo novo. Na verdade, a referida concepção tratou de resgatar e reeditar os fundamentos do
liberalismo econômico clássico, os quais, centrados no laissez faire e no Estado mínimo, visavam opor-se às políticas keynesianas implementadas no pós-guerra. 3 A adesão às diretrizes preconizadas pelo Consenso de Washington não foi unânime, o que replicou em diferentes performances econômicas, ao longo do tempo, entre países,
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A série de mudanças levadas a efeito no Brasil, nesse período, não
fugiu desse espectro. Tal processo desencadeou-se de maneira contínua,
irreversível e não sem sobressaltos. Manifestou-se, também, através da
geração de um enorme ônus para a população, para as empresas e para o
próprio Estado, cujo processo de ―ajuste‖, revelado através de sucessivas
mudanças estruturais, transformou irreversivelmente a face das
economias nacional e gaúcha.
A trajetória econômica do RS, desde o início dos anos 80 até os dias
de hoje, não pode ser entendida sem a devida compreensão e sem o
consequente aprofundamento teórico dessas mudanças em curso. É a
respeito delas que se busca tratar ao longo deste texto. Mas, para situá-
las teoricamente, faz-se necessária uma discussão sucinta das abordagens
teóricas que as incluem no centro de sua agenda pesquisa. E a abordagem
evolucionária contempla essa perspectiva analítica.
1 A EVOLUÇÃO ECONÔMICA E O PAPEL DA MUDANÇA
TECNOLÓGICA
A economia evolucionária trata de sistemas complexos que
interagem em um mundo de diversidade, onde as inovações exercem
papel central. Nesse sentido, o processo de crescimento e de
desenvolvimento econômico está inserido em um processo de mudança
estrutural, que permite que as mudanças tecnológicas e institucionais se
alimentem reciprocamente (embora com timings diferentes), operando,
assim, as mudanças sociais. Daí o conceito de paradigma tecnoeconômico.
O conceito de mudança e o processo de mudança estrutural são,
aqui neste texto, entendidos como, simultaneamente, de natureza tanto
tecnológica quanto institucional. Sua compreensão está igualmente
particularmente entre os da América Latina e os da Ásia. Estes últimos, por não aderirem totalmente àquelas normas de conduta — ao contrário de países como o Brasil —, apresentaram altas taxas de crescimento econômico, aumentando sua participação na estrutura produtiva mundial.
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associada à descrição, dentro das diferentes realidades regionais, dos
elementos que constituem o processo de crescimento econômico, que lhes
são específicos. Para tal descrição, porém, é necessário que se realize, no
plano analítico e teórico, a inclusão das instituições que operam dentro do
referido ambiente evolutivo.
Do ponto de vista adotado neste trabalho, compreender crescimento
e instituições ―fora‖ da noção evolutiva, além de empobrecer a análise,
esvazia-a de conteúdo histórico, como, aliás, o fazem as abordagens
convencionais ou standard (Nelson, 2002). Instituições, crescimento
econômico e evolução são noções indissociáveis. Por essa razão, julga-se
pertinente retomar a definição do que vem a ser, em termos atuais, o
conceito de evolução.
Muito se tem discutido sobre as noções evolucionárias. Autores
institucionalistas ligados à tradição de Veblen e do Antigo
Institucionalismo, como Geoffrey Hodgson, vêm dando um tratamento
mais sistemático ao conceito de ―evolução‖, procurando vinculá-lo ao meio
ambiente institucional. Evolução deve envolver os três princípios
darwinianos: variação, herança e seleção. Considerando-se os três
isoladamente, tem-se que, primeiro, deve haver alguma explicação sobre
como ocorre a variedade e como ela é realimentada em uma população.
Não há mecanismos análogos à biologia (como recombinação genética e
mutações) na evolução das instituições sociais, mas a existência e a
realimentação da variedade permanecem sendo uma questão vital na
pesquisa evolucionária (Metcalfe, 1998; Nelson, 1991; Saviotti, 1996,
apud Hodgson; Knudsen, 2006, p. 1).
Deve haver também, em segundo lugar, uma explicação sobre como
uma informação útil, relativa a soluções de problemas adaptativos
particulares, é conservada e passada adiante. Esse procedimento decorre
diretamente de hipóteses relativas à natureza do complexo sistema da
população, através do qual deve haver algum mecanismo pelo qual as
soluções adaptativas são copiadas e difundidas. Na biologia, tais
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mecanismos frequentemente envolvem os gens e o DNA. Na evolução
social, podem-se incluir a replicação de hábitos, costumes, regras e
rotinas, que podem conduzir a soluções para problemas de adaptação.
Deve haver algum mecanismo que assegure que tais soluções
(incorporadas nos hábitos ou nas rotinas) resistam e repliquem. De outra
forma, a continuidade de retenção de conhecimento útil não seria
possível. Saliente-se que esse seria o princípio através do qual os
paradigmas tecnoeconômicos se constituiriam, se difundiriam e se
superariam.
Em terceiro lugar, deve haver uma explicação sobre o fato de que as
entidades diferem em suas longevidade e fecundidade. Por meio da
seleção, um conjunto de entidades, uma população, gradualmente,
adaptar-se-á em resposta ao critério definido pelo fator meio ambiente.
Observe-se que os resultados do processo de seleção não são
necessariamente nem morais, nem justos. Além disso, não há qualquer
exigência de que os mesmos sejam ótimos ou melhores em relação a seus
precursores. Por conta disso, a noção de eficiência é relativa a
determinado ambiente, onde, antes de ótima, ela é tolerável.
Saliente-se que esses três princípios darwinianos contemplam uma
interessante analogia com os períodos vividos pela economia gaúcha
nestas três últimas décadas. Sem qualquer veleidade ou pretensão
determinista que alguém possa querer atribuir a este trabalho, pode-se
sugerir que a noção de variação parece adequar-se ao ambiente de
mudança estrutural explicitado na década perdida; da mesma forma, a
noção de seleção parece estar mais presente nos anos 90, quando dos
desafios da reestruturação produtiva; e a noção de herança integra o
legado cultural da economia gaúcha, que teve que se reformular para
subsistir.
Outra noção importante é a da auto-organização. A existência de
resultados auto-organizados, complexos, demonstra que nem sempre se
tem que procurar um designer para explicar sua emergência. Isto é
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relevante porque todas as ciências sociais contêm a visão de que os
fenômenos sociais são resultado de desígnios conscientes. Muitas
instituições humanas eficazes e complexas, tal como a linguagem e a lei
comum, não são resultados de um plano global. Essas referências
evolucionárias são importantes para justificar a relevância do conceito de
mudança (ou variação, em termos darwinianos).
A compreensão da natureza da mudança econômica tem sido um
dos mais férteis campos teóricos da Economia nas últimas três décadas.
Várias correntes articularam-se e desenvolveram-se, buscando responder
o que a determina. Contrasta com essa busca a ausência de tratamento
teórico ao referido processo pelo mainstream ortodoxo, que,
deliberadamente, o negligenciou. Um dos pilares fundamentais no avanço
da compreensão do processo de mudança econômica foi o trabalho
seminal de Richard Nelson e Sidney Winter, publicado em 1982, intitulado
An Evolutionary Theory of Economic Change. Nesse estudo,
desenvolveu-se a base do que seria uma interpretação alternativa ao
processo de crescimento econômico, que exigiria a construção de um novo
marco de análise. Tal tarefa foi levada a efeito pela contribuição então
denominada neoschumpeteriana, que, com vários trabalhos em sequência,
perseguindo uma agenda de pesquisa comum, avançou substancialmente
na compreensão dos fenômenos de crescimento e desenvolvimento
tecnológico, mudança estrutural, paradigmas tecnológicos ou
tecnoeconômicos, trajetórias tecnológicas e sistemas nacionais de
inovação. Além de Nelson e Winter, somaram-se a essa escola Giovanni
Dosi, Christopher Freeman, Lundvall, Carlota Perez, Luc Soete, Brian
Arthur e muitos outros. Para eles, o que dava sustentação ao processo de
crescimento e de desenvolvimento econômico era a forma como se
organizavam e se disseminavam as novas tecnologias, o ambiente
favorável à inovatividade, o padrão de competitividade e o ambiente
institucional mais ou menos propício às mesmas. O grau de êxito ou
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fracasso dos países em direção a esse desiderato era resultante da forma
como, nacional ou regionalmente, operou esse padrão.
O ambiente econômico, ao ser instigado pela necessidade de
mudanças, adapta-se ao novo paradigma, construindo uma rede
institucional capaz de sustentar o espectro de transformações dele
decorrentes. Essas se disseminam no âmbito tanto da firma quanto do
processo de trabalho, na gestão dos novos métodos produtivos,
estabelecendo capacitações (Dosi, 1988a) e aprendizagem. Essas
absorvem os novos padrões de competitividade, decorrentes da mudança
estrutural originária do paradigma dominante e os disseminam. Por essa
razão, na ótica neoschumpeteriana, tecnologia é definida como um
processo de busca de novos produtos e processos, que se difundem por
todo o sistema. Aliás, é por essa razão que Nelson (2008) vem propondo
o conceito de ―tecnologia social‖, que articula as rotinas das firmas com as
instituições e com a tecnologia (Conceição, 2009).
Essa interação produz, ao longo do tempo, mudança nos padrões de
comportamento, nos hábitos, nas normas e nas regras do jogo,
estabelecendo um novo marco institucional. Hodgson (2007) designa essa
noção como de reconstitutive downward causation, que estabelece o nexo
entre os indivíduos, seus hábitos e suas crenças e as instituições, que
determinam e são influenciadas pelos mesmos.
O referido processo, ao contrário da visão dominante no
mainstream, tem pouco a ver com o desenho de uma trajetória de
crescimento convergente a um ponto de ―equilíbrio ótimo‖, compatível
com a noção de steady state, embora possa advir alguma estabilidade
provisória dessas transformações. Mudanças, instabilidade e incerteza
predominam ante o quadro hipotético de convergência à estabilidade e ao
equilíbrio de longo prazo. Douglass North, importante referência da Nova
Economia Institucional (NEI), tem afirmado, em seus trabalhos mais
recentes, que as diferentes performances econômicas dos países (e
consequentemente das regiões) são resultados das mudanças
Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 9
institucionais ali operadas. Tal proposição credencia a enfatizar-se a
importância teórica de identificar como as referidas mudanças
institucionais se processaram nos diferentes espaços regionais, entre os
quais se inclui, naturalmente, o caso da economia gaúcha.
1.1 O conceito de paradigma tecnoeconômico
A importância da mudança tecnológica dentro da abordagem
neoschumpeteriana produziu conceitos que procuravam entender todo o
entorno da atividade econômica. Daí o conceito de paradigma
tecnoeconômico ou de noções próximas, como o paradigma tecnológico de
Dosi (1983) ou a trajetória natural de Nelson e Winter (1982). O referido
conceito incorpora não só as mudanças tecnológicas e organizacionais
ligadas a determinado padrão técnico, como a forma de solucionar
problemas dentro de certo domínio do conhecimento. Indo mais além, o
conceito de paradigma tecnoeconômico, proposto por Christopher
Freeman e Carlota Perez (Freeman; Perez, 1988), atinge o elenco de
transformações que afetam a vida das pessoas, constituindo formas
alternativas de atividades econômicas, tecnológicas, sociais e
institucionais, ligadas a determinado padrão produtivo. Após um longo
período de prosperidade, os efeitos de tal ―onda‖ se desvanecem, dando
origem a novo surto de descobertas e inovações4. Saliente-se que, entre
um surto e outro, a economia é abalada por uma profunda crise, de
natureza estrutural, que se ―resolve‖ por meio de novas descobertas,
invenções e ramos de atividade. A alma desse processo era, e continua
sendo, a inovação tecnológica, que orienta a atividade humana.
4 Os limites à expansão devem-se à queda da taxa de lucro, em decorrência da saturação dos mercados e do aumento da oferta dos produtos associados às tecnologias implementadas.
Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 10
A história do capitalismo, segundo proposição de Perez (2002), foi
regida por cinco paradigmas tecnoeconômicos, ou cinco grandes ―eras‖. A
Revolução Industrial, a era da máquina a vapor e da estrada de ferro, a
era da engenharia pesada e do aço, a era da produção em massa e a era
da tecnologia da informação. Segundo a referida autora, em 1771, no
alvorecer da Primeira Revolução Industrial, quando irrompeu a
mecanização na indústria têxtil, iniciou-se o primeiro paradigma;
posteriormente, em 1829, surgiu a era do motor a vapor e da estrada de
ferro; em 1875, impôs-se a engenharia pesada e a indústria do aço; em
1908, o modelo-T de Henry Ford inaugurou a era da produção em massa;
e, em 1971, o microprocessador da Intel inaugurou a era da tecnologia da
informação. Atualmente, está-se na transição desse paradigma para a
―era da nanotecnologia‖, ou da biotecnologia, para a qual a crise de 2008
parece ter sido o divisor de águas entre duas eras (Freeman; Louçã,
2001; Perez, 2002, 2004).
Saliente-se, a propósito, que a atual crise econômica é fruto da
transição paradigmática, que sempre eclode em momentos de mudanças
estruturais, face às baixas possibilidades de valorização do capital nas
óticas tecnológica, produtiva e financeira. Tal obstáculo engendra um
processo de busca de novas oportunidades e de inovações, face ao
esgotamento do paradigma então dominante. A isso, Schumpeter (1942)
denominou ―destruição criadora‖. Mantidas as diferenças, poder-se-ia
estabelecer uma analogia da noção de paradigma tecnoeconômico com as
ondas longas, ou os ciclos longos, das economias capitalistas, que se
estendiam por 50 a 60 anos, intermediadas por grandes crises ou
depressões. A diferença é que, para os neoschumpeterianos, quem
estabelece a duração das referidas flutuações é a mudança tecnológica. O
invólucro que caracteriza determinada era — ou ciclo longo, ou paradigma
— é acentuado por características sociais e econômicas que lhe conferem
especificidades, inerentes às diferentes fases históricas da humanidade ou
do capitalismo (Quadro 1).
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Voltando para os objetivos do presente texto, é importante
mencionar-se que, ao longo dos últimos 30 anos, se atravessou uma fase
da economia mundial dominada pelo ―paradigma tecnológico da
informação‖. Esse definiu, para os países periféricos, as possibilidades de
abrir (ou fechar) as ―janelas de oportunidade‖, conforme a forma de
enfrentamento dos desafios da tecnologia e da competitividade. A escolha
de uma ou outra forma é que determinará as condições de avanços
tecnológico, social, econômico e institucional.
O fenômeno da globalização, que tomou forma a partir do início dos
anos 80, está, na ótica neoschumpeteriana, vinculado à ideologia do livre
mercado. Isto porque a necessidade de reconhecer todo o Planeta como
um espaço econômico é uma característica específica da atual revolução
tecnológica e do paradigma tecnoeconômico vigente. Tal ―modelo‖
contrasta com o paradigma anterior. No paradigma de ―produção em
massa‖ (ou paradigma fordista, em linguagem ―regulacionista‖), a
intervenção estatal assumia funções proeminentes dentro das economias
nacionais, definindo formas específicas nos diferentes estados nacionais.
Na globalização, cuja inserção se dá no paradigma da produção
flexível, ou da ―tecnologia da informação‖, poderia ser social e
politicamente esboçada uma outra forma de sustentar o desenvolvimento
global e o pleno emprego. Em outros termos, a globalização não precisa
necessariamente ser ―neoliberal‖. Ou seja, uma ―versão pró-
desenvolvimentista da globalização‖ ainda não foi e não tem sido
devidamente defendida. Poder-se-ia argumentar que, sem ela, como vem
acontecendo, tem sido muito difícil relançar o desenvolvimento no
Hemisfério Sul, como também superar a presente instabilidade, os
desequilíbrios e as tendências recessivas oriundas das economias do
Norte. Esse aspecto repercute diretamente sobre as trajetórias das
economias brasileira e gaúcha. E isso tem a ver com a natureza da crise
norte-americana de 2008, que afetou toda a economia mundial e pôs em
xeque a própria noção de globalização.
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O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 12
Sob a ótica de Perez (2007), o período atual, após o colapso da
grande bolha da tecnologia, estaria no ponto médio da grande onda
corrente, que ocorre quando as tensões estruturais realçam as
instabilidades e as tendências recessivas, as quais, por sua vez, exigem
outra recomposição institucional. Assim, o momento presente é, pelas
razões expostas, o mais apropriado possível para se levarem adiante
corajosas propostas para um profundo redesenho da regulação global e
das instituições.
No que tange às previsões de duração da crise e de sua superação,
adverte-se que não há data final, uma vez que a disseminação de cada
revolução tecnológica persiste após a sua maturação (deployment), em
um processo de lento declínio e de migração para periferias ulteriores,
enquanto outras revoluções já estão tomando forma. Há, portanto, uma
longa sobreposição entre as ondas.
Como as cinco grandes ―eras‖ de desenvolvimento, sustentadas por
sucessivas ―revoluções tecnológicas‖, transformaram a economia
capitalista em escala mundial, cada um desses ―vendavais de destruição
criadora‖ articulou uma constelação de novos insumos, produtos e
indústrias, uma ou mais infraestruturas, envolvendo também novas
formas de transporte de bens, pessoas e informações, bem como fontes
alternativas de energia e novas formas de acesso às mesmas. Cada uma
delas explorou novas frentes, trazendo riqueza e possibilidades de
inovações nos campos tecnológico, produtivo e, mais tarde, financeiro,
caracterizando uma fase de gold rush. Entretanto é importante salientar-
se que essas fases não seguem a cronologia schumpeteriana usual dos
ciclos longos ou ―ondas longas‖. Isto porque não representam um
(re)começo de uma expansão, mas a erupção de uma revolução
tecnológica, quando a anterior atingiu a maturidade e quando a economia
demonstra dar sinais de um lento declínio e de estagnação. Assim, a
noção de paradigma tecnoeconômico:
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[...] captura a semente da mudança futura antes que a
mesma possa ser registrada nos agregados econômicos. O
autor propôs o termo Grande Onda de Desenvolvimento para referir-se ao processo de difusão e assimilação social de
cada revolução tecnológica como um todo, do big-bang à
maturidade (Perez, 2002, p. xxx, tradução nossa).5
Portanto, é sob essa forma que ocorre a mudança tecnológica, que
arrasta consigo — não de forma automática, mas ―induzida‖ pelo processo
de busca — as mudanças institucionais que proliferam em conjunto e de
forma articulada. São essas as circunstâncias que levam ao progresso
econômico.
1.2 Instituições e mudança institucional
Dentro desse contexto, pode-se definir instituição como conjunto de
normas, regras, hábitos e sua evolução (Hodgson, 2000; North, 1990;
Nelson, 1995). Daí, infere-se que a instituição passa a viabilizar, em
função das raízes históricas e estruturais que lhes são específicas,
distintas trajetórias de crescimento econômico. Por essa razão, os
conceitos de instituição, crescimento econômico e paradigma
tecnoeconômico são interligados.
Essas ponderações recolocam a ênfase em questões que,
formalmente, nunca deveriam ter sido omitidas, tais como a de que
crescimento econômico constitui-se em: (a) um processo de rupturas e
reconstruções; (b) as características da transição de um velho para um
novo processo de crescimento são elementos decisivos para a análise; (c)
as mudanças estruturais de natureza tanto tecnológica quanto
institucional são fundamentais; e (d) apesar de o mesmo sempre se
apresentar quantitativamente como um incremento na relação
5 No original: ―[…] captures the seed of future change before it can be registered in economic aggregates. The author has proposed the term Great Surge of Development to refer to the whole process of diffusion and social assimilation of each technological revolution, from big-bang to maturity‖ (Perez, 2002, p. xxx).
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capital/produto — ou aumento da acumulação de capital per capita
superior ao crescimento populacional, ou ainda crescimento da
produtividade do trabalho em relação ao aumento da população —, ele se
reveste de características bastante distintas de região para região, às
vezes sequer comparáveis. E é exatamente desses aspectos que se ocupa
a tradição institucionalista: a história importa, as formas de crescimento
capitalista são diferenciadas e múltiplas, o processo de crescimento é
contínuo e tem raízes históricas profundas (North, 2005, Hodgson, 2002).
Genericamente, podem-se agrupar as correntes institucionalistas em
três: o Antigo Institucionalismo Norte-Americano, de Veblen, Commons e
Mitchell; a Nova Economia Institucional, de Coase, Williamson e North; e o
Neoinstitucionalismo, de Hodgson, Samuels e Rutherford (Samuels, 1995;
Hodgson, 1993).
A semelhança entre essas três correntes dá-se pelas razões
expostas acima, quais sejam: entendem crescimento econômico como
―processo‖; incorporam seu ambiente histórico e suas especificidades
locais; rejeitam o pressuposto de que trajetórias de determinadas
economias possam ser historicamente copiadas; e enfatizam que o
desenho institucional para o crescimento é necessariamente marcado pela
―incerteza‖ e pela especificidade histórica. Em suma, o processo de
crescimento econômico funda-se no ambiente microeconômico da ação
individual dos agentes, das firmas e das organizações, os quais definem
as diferentes trajetórias.
As três abordagens citadas não são excludentes, embora o que uma
priorize a outra coloque em segundo plano. Elas concordam com a
importância da mudança institucional e tecnológica como fator
desencadeador do processo de crescimento. O que se procura extrair
dessa discussão é que os institucionalistas estão em linha de convergência
com o campo de pesquisa evolucionário, que avança, conforme referido
por Nelson (2002), na construção de uma ponte entre a incorporação do
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conceito de instituição e a compreensão do processo de crescimento
econômico.
1.3 A relação entre instituições, crescimento e (nem sempre)
eficiência
Para os seguidores do Antigo Institucionalismo de Veblen — como
Hodgson, por exemplo —, há forte discordância sobre a ideia de que os
rígidos pressupostos da racionalidade (substantiva) da teoria econômica
sejam capazes de proporcionar explicações factíveis e realísticas, no
sentido de que o comportamento humano seja considerado efetivamente
―eficaz‖, em contextos onde já exista uma considerável experiência
comum. Já para os teóricos afiliados à NEI, as instituições definem,
modelam e mantêm o referido ―comportamento racional‖ nos diferentes
contextos: os indivíduos não deduzem ou pensam por si mesmos sobre o
que é uma ação adequada, senão que atuam apenas fazendo o que é
convencional no respectivo contexto (Nelson; Sampat, 2001).
A diferença entre uma teoria que estabelece que as instituições
implicam uma planificação consciente e coordenada e uma teoria que as
concebe como resultado de um processo evolutivo não coordenado não se
traduz, necessariamente, em uma diferença sobre se as instituições
vigentes são ―eficientes‖ ou não. Dentro da tradição institucionalista
neoclássica, os trabalhos de Demsetz sobre direitos de propriedade
incluíam a pressuposição de que ―[...] a lei era eficiente e que as
mudanças legais refletiam mudanças em regras socialmente ótimas‖ (op.
cit., 2001, p. 24). Da mesma forma, parte dos estudos sobre organização
dos negócios supõe que as formas organizacionais são escolhidas
racionalmente, sendo, portanto, ótimas.
Atualmente, observa-se, nas escolas institucionalistas,
principalmente dentro da NEI, um afastamento dessas posições. Douglass
North, que, nos primeiros estudos, supunha que as instituições evoluíam
Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
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de forma a alcançar níveis mais elevados de eficiência (Nelson; Sampat,
2001, p. 25), tem defendido que sociedades que possuem instituições
relativamente eficientes são relativamente mais afortunadas. Nesse
sentido, a ideia de que não é necessário que as instituições sejam
eficientes desencadeia uma nova vertente teórica, segundo a qual são as
instituições vigentes que, em última instância, explicam as diferenças de
desempenho econômico entre os países, e que as mesmas assumem
distintos arranjos institucionais locais. Estudos mais recentes de North e
Nelson revelam essa convergência. Depreende-se daí que ―construir‖ um
ambiente institucional adequado e mutante não implica, necessariamente,
torná-lo mais eficiente: só a construção e a evolução do mesmo poderão,
no futuro, fornecer essas respostas, com base na experiência histórica
adquirida.
1.4 Três visões da relação entre instituições, crescimento e (isto
sim) mudança
Matthews (1986), embora reconheça certa convergência nas
modernas abordagens institucionalistas, argumenta que há várias
diferenças entre elas. A começar pelo próprio conceito de instituição, que,
segundo ele, gravita em torno de três eixos. O primeiro identifica
instituições econômicas alternativas como resultado de sistema de
―direitos de propriedade‖ (property rights) alternativos. Essa noção é
particularmente importante para as abordagens seguidoras de Coase
(1937). A segunda definição associa instituição a convenções ou normas
de comportamento econômico, servindo como suporte à execução e ao
cumprimento das leis. Nessa abordagem, não há uma vinculação tão
direta à economia dos custos de transação. Na França, desenvolveu-se
uma derivação dessa concepção, constituindo a denominada ―Economia
das Convenções‖, cujo expoente é Olivier Favereau (1995). E uma terceira
derivação centra-se nos tipos de contrato, que pode refletir-se em
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diferentes formas de autoridade. Essas são as razões que levam a
definição de ―instituição‖ a assumir conotações múltiplas.
Sob essa perspectiva conceitual, o fenômeno do crescimento
econômico deve ser entendido como manifestação de mudanças
institucionais. Portanto, o vínculo entre crescimento e instituições deve ser
realizado pelo conceito de mudança, que pressupõe inovações (Matthews,
1986, p. 908). Assim, o processo de mudança econômica, institucional e
tecnológica é completamente diferenciado de um processo de melhoras
sucessivas e adaptativas, que levam a uma única situação de
convergência ao ótimo paretiano. Na realidade, há uma série de fatores
que obstaculizam tal perspectiva, como o papel do Estado, as interações
não voluntárias, a inércia e a complexidade. Matthews conclui seu artigo
enfatizando que as mudanças institucionais são mais lentas e mais difíceis
de ocorrer do que as mudanças tecnológicas, embora raras vezes ambas
não ocorram simultaneamente.
John Zysman (1994) enfatiza que as trajetórias de crescimento são
criadas historicamente, a partir do desenvolvimento de trajetórias
nacionais institucionalmente inventadas ou enraizadas (Historically Rooted
Trajectories of Growth). Ou seja, as instituições importam, porque
determinam diferentes trajetórias de crescimento econômico nos diversos
ambientes nacionais. Há várias formas de se organizar as economias de
mercado, os mercados são diferentes, e há vários tipos de capitalismo.
Essa abordagem procura associar mais diretamente o
institucionalismo à teoria econômica, estabelecendo nexos entre escolhas
individuais, tipos de contrato e estrutura dos problemas enfrentados pelas
suas respectivas empresas e organizações. Tal concepção é uma espécie
de ―institucionalismo histórico‖, sem deixar de referir que levanta
problemas e propõe soluções, considerando aspectos relacionados ao
microeconomic-based institutionalism. Nesse sentido, diferentes
conformações históricas e institucionais desenham, nos diversos contextos
regionais, os sistemas nacionais de inovação, que distinguem as
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O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 18
trajetórias tecnológicas. Por isso, institucionalismo e evolucionismo são
fenômenos impossíveis de serem compreendidos de maneira
desvinculada.
Nesse contexto, é importante mencionar-se que são as estratégias,
quer em nível empresarial, quer governamental, que, ao exercerem
influência decisiva sobre as inovações, formam um ambiente adequado
para os novos produtos e processos. Estabelece- -se daí um importante
ponto da passagem micro para a macro, pois não é o Governo quem
define estratégias para as firmas implementarem, mas o contrário, pois,
analiticamente, o salto manifesta-se do particular para o geral. Em outros
termos, a capacidade do Governo de produzir resultados em mercados
específicos não cria inevitavelmente vantagens de crescimento no mais
longo prazo, e, alternativamente, seu fracasso em gerar ou criar
vantagens não produz inevitavelmente desvantagens.
Tais conclusões requalificam o debate sobre formas alternativas de
crescimento, colocando o mercado e suas especificidades nacionais como
fator condicionante primordial para tal objetivo. Entretanto tal entidade
(ou, melhor dizendo, instituição) deve ser entendida não como um
princípio regulador e racionalizador de decisões ótimas, mas como produto
de interações, estratégias, decisões frente à incerteza, que repercutem,
favoravelmente ou não, através da atuação de toda uma rede
institucional, que lhe assegura sustentabilidade. Por essa razão, a noção
de mercado é indissociável da noção de instituição, pois a primeira, mais
do que produto da segunda, é sua própria manifestação.
Segundo Zysman, as trajetórias de crescimento — cujas instituições
são fontes geradoras — dão-se tanto pela existência de padrões de
inovação quanto pelo desenvolvimento tecnológico. Através de rotinas e
políticas específicas, estabelecem-se os termos do desenvolvimento
econômico. A opção que determina quem é perdedor ou ganhador se
torna parte do problema de alocação de custos nas mudanças industriais,
envolvendo, independentemente do modelo de desenvolvimento industrial
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adotado, três aspectos sempre presentes: capacidade técnica da ação do
Estado na economia; estabelecimento de uma política de alocação de
custos da mudança industrial; e processo político para permitir tais
cumprimentos.
Essa é a ideia motora da abordagem de crescimento institucional,
pois não basta a geração de investimento para criar as bases para um
processo de crescimento. Faz-se necessária a construção de um ambiente
institucional adequado, capaz de transformá-lo em crescimento, o que,
obviamente, implica uma série de outros fatores:
A tecnologia, assim como os processos de mercado, não é desincorporada. Ela se desenvolve em comunidades; tem raízes locais. Os processos de aprendizagem que dirigem seu desenvolvimento são moldados pela comunidade e pela estrutura institucional, e, consequentemente, as trajetórias tecnológicas só podem ser definidas se tomarem como referência sociedades particulares (Zysman, 1994, p. 261, tradução nossa).6
Portanto, as instituições não são neutras e podem proporcionar
explicações sobre trajetórias específicas. Assim, uma dada estrutura
política e institucional induz à formação de uma lógica de mercado que
orienta e dirige a trajetória de crescimento.
Para Douglass North (1990), o fundamental no campo do
desenvolvimento econômico é buscar a formulação de uma ainda
inexistente ―teoria da dinâmica econômica‖. E essa reside,
fundamentalmente, na compreensão e na sistematização do processo de
mudança. Em sendo assim, as trajetórias das mudanças institucionais são
elementos essenciais na definição das diferentes formas de crescimento
econômico, o que revela notável semelhança com o pensamento
evolucionário.
6 No original: “Technology, like market processes, is not disembodied. It develops in
communities; it has local roots. The processes of learning that drive its development are shaped by the community and institutional structure, and consequently the technological trajectories can only be defined in reference to particular societies.‖ (Zysman, 1994, p. 261).
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Para North, a mudança econômica de longo prazo é uma
―consequência cumulativa‖ de inúmeras decisões de curto prazo tomadas
por políticos e empresários, que, direta ou indiretamente (via efeitos
externos), determinam a performance econômica. Entretanto a
consistência entre os resultados e as intenções dos empresários refletirá o
grau através do qual os seus modelos são efetivamente ―verdadeiros‖.
Isto porque os modelos refletem ideias, ideologias e crenças, que são, na
melhor das hipóteses, apenas parcialmente refinadas e melhoradas por
feedback de informações sobre as consequências atuais das políticas
tornadas legitimamente legais. Em outros termos, as consequências de
políticas específicas não são apenas incertas, mas imprevisíveis.
Em seu livro de 2005, North reforça a argumentação da necessidade
de se compreender o processo de mudança econômica como principal
fonte de explicação dos fenômenos vinculados ao processo de
crescimento. Ao tentar desvendar a lógica de tão complexo processo, que
necessariamente deve contemplar analiticamente aspectos institucionais
relevantes e de difícil sistematização, North, mais uma vez, confronta tal
necessidade com a fragilidade do instrumental neoclássico, apesar de seus
notáveis avanços na área quantitativa. Para ele, o processo de mudança
econômica (e institucional) deve, necessariamente, contemplar os
seguintes aspectos: a incerteza em um mundo não ergódico; os sistemas
de crenças, cultura e ciência cognitiva; a consciência e a intencionalidade
humanas. Esses aspectos, em conjunto, definem o que ele designa de
arcabouço de interações humanas que permitem a construção da
estrutura institucional. North salienta ainda que a mudança institucional
segue cinco proposições centradas: na importância da interação entre
instituições, organizações e, portanto, na competitividade que se
estabelece; no conhecimento derivado dessa interação; na estrutura de
incentivos; nas formas de percepção dos agentes sobre as regras de como
o ―jogo é jogado‖; e nas economias de escopo, nas complementaridades e
nas externalidades da rede de uma dada matriz institucional. Assim: ―[...]
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essa caracterização da mudança institucional é o bloco estrutural mais
importante em nossa construção da compreensão do processo de
mudança econômica‖ (op. cit., p. 64, tradução nossa)7. Essa afirmativa
revela importante insight a respeito da complexa relação entre instituição
e crescimento econômico, que tem, na mudança institucional, seu traço
mais revelador.
2 TRÊS DÉCADAS DE EVOLUÇÃO DAS ECONOMIAS GAÚCHA E
BRASILEIRA
A instrumentalização teórica de noções como as de mudança
tecnológica e institucional integra uma rica agenda de pesquisa, que,
entende-se, vem repercutindo, de maneira ainda tímida, sobre o ambiente
econômico nacional e regional. Poucos estudos ocupam-se dessa questão.
A forma como vêm operando, no espaço regional, as referidas
transformações econômicas (entendidas como mudanças tecnológicas e
institucionais) é fundamental para que se entenda o atual desenho da
economia gaúcha, sua relação com a dinâmica nacional, sua forma de
inserção no exterior e os desafios futuros daí decorrentes. Este artigo
supõe que a literatura institucionalista e evolucionária vem dando
importantes passos nesse sentido. A partir dessa visão, seria pouco
frutífero, senão impossível, tentar compreender-se o amplo elenco de
mudanças que ocorreram nas economias gaúcha e brasileira, no período
em questão, sem a incorporação do instrumental teórico evolucionário e
institucionalista, que acabou de ser discutido.
A economia gaúcha, outrora denominada ―celeiro do Brasil‖, tem
hoje outro caráter. Inclui um setor industrial fortemente integrado
nacionalmente, como o metal-mecânico; vários segmentos produtivos
7 No original: “[...] [t]his characterization of institutional change is a major building block in our construction of an understanding of the process of economic change.‖ (op. cit., p. 64).
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ligados à exportação; segmentos industriais ligados à tecnologia da
informação; outros ligados à automação; um agronegócio modernizado e
integrado internacionalmente, etc. Mas subsistem também segmentos
tradicionais à margem da modernidade, como a pecuária extensiva,
alguns segmentos industriais pouco integrados aos avanços tecnológicos e
setores resistentes a qualquer mudança de hábitos e rotinas. Enfim, há
segmentos sintonizados com a ―inovatividade‖ e com os novos padrões de
competitividade, e outros segmentos totalmente à margem desse
ambiente.
A hipótese deste artigo é que, apesar de certa letargia que persiste
em setores não vinculados ao paradigma tecnológico dominante — como
alguns segmentos da agropecuária e a indústria ―antiga‖, herdada do
padrão substitutivo, cuja estratégia de sobrevivência, via ganhos de
produtividade, de competitividade e de busca de inovação, não evoluiu —,
a economia gaúcha tem encontrado, principalmente a partir da ―abertura
externa‖ e da ―estabilidade‖ advinda do Plano Real, importantes fontes de
modernização e avanço tecnológico. Entendendo-se a tecnologia como um
processo de ―busca de novos produtos e processos‖, assume-se que os
setores produtores gaúchos mais capacitados e com maiores condições de
avançar são justamente os mais ―sintonizados‖ com o paradigma
tecnológico nacional, ou, melhor dizendo, com a forma difusa e nebulosa
que o mesmo, de maneira periférica, assumiu no território nacional.
Entende-se que, cada vez mais, a sinergia oriunda da integração
tecnológica responderá pelas novas janelas de oportunidade, capazes de
relançar produtivamente o RS. E as oportunidades de emprego, de
melhoria de renda, de conhecimento e de aprendizado advirão dessa
estratégia, tal como ocorreu em vários países de industrialização tardia.
Ou seja, o atraso industrial não condena as nações submetidas a
esse padrão à fatalidade histórica da irreversibilidade de tal situação. As
dificuldades inerentes a essa superação não necessariamente levam a
uma situação de impossibilidade de superação, a qual, por sua vez,
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conduziria a sociedade a uma situação de passividade social e política. Da
mesma forma, mas em sentido contrário, não se acredita que a retórica
das receitas únicas para a superação do atraso e do subdesenvolvimento,
oriundas dos fundamentos de eficiência e racionalidade dos mercados,
possam levar os países ao catching up. Neste texto, a trajetória de
superação das debilidades e das fragilidades estruturais será enfrentada
com percalços, descontinuidades e contradições, que somente se
revelarão mediante o avanço de seu próprio movimento em direção a seu
respectivo processo de desenvolvimento econômico. Essa, aliás, é a
primeira lição extraída dos autores discutidos anteriormente: não há
roteiro prévio para o desenvolvimento econômico, e sua busca dá-se
através da forma como operaram as mudanças tecnológicas e
institucionais.
2.1 Cenário produtivo
O cenário de crise na década perdida dos anos 80 sugeria que a
economia gaúcha tinha sua grande vocação centrada em duas vertentes.
Uma seria a promissora alternativa voltada à exportação de calçados, que
se constituiu em um forte setor da economia regional. Além da abertura
de novos mercados, principalmente o norte-americano, a modernização do
setor calçadista regional permitiu visualizarem-se novos nichos de
mercado para exportação. Porém muito dos estímulos setoriais ao referido
ramo era oriundo da desvalorização cambial, originária da elevada taxa
inflacionária, que utilizava o câmbio como forte estímulo à exportação,
determinando um padrão de competitividade considerado ―espúrio‖. Outro
setor que incorreu em forte estímulo foi o de máquinas e implementos
agrícolas, tendo crescido fortemente, apoiado na exportação e na
modernização do Setor Primário regional, apesar da forte crise. O setor
metal-mecânico como um todo foi o carro chefe da indústria gaúcha no
período de crise e permitiu que os desafios rumo a um novo padrão de
Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 24
competitividade começassem a ser percebidos nas formas organizacionais
ali gestadas. Exemplos foram as novas técnicas de trabalho ali esboçadas
(Just in Time, Kanban, Círculo de Controle de Qualidade), que tiveram,
nesse setor, o palco de importantes ensaios de aprendizado, capacitação e
learning by doing, embora o ambiente, abalado pela crise,
desaconselhasse, inadvertida e equivocadamente, novos ensaios
inovadores.
A par das transformações que começaram a tomar forma nos
setores mencionados, a indústria gaúcha movia-se lentamente nos demais
segmentos. Isto porque a crise da década de 80 e as expectativas de
hiperinflação estabeleceram estratégias de sobrevivência ―defensivas‖8.
Tal postura impedia avanços na ótica produtiva, colocando o setor,
passivamente, no aguardo da definição de um ambiente mais estável para
o crescimento, que se demonstrava cada vez mais difícil, distante e menos
visível.
O que importa reter-se aqui não é examinar pormenorizadamente as
mudanças no âmbito de estrutura produtiva regional — isso será realizado
no Volume 2 desta obra —, mas enfatizar, isto sim, a amplitude dessas
mudanças, que se esboçaram no plano microeconômico da firma e se
disseminaram no âmbito mesoeconômico, conferindo certa especificidade
na forma como o paradigma tecnoeconômico se desenvolveu no interior
da estrutura produtiva local. Explicando melhor: o esgotamento do
paradigma de produção em massa, que respondeu por enormes avanços
industriais nas economias brasileira e gaúcha, nos anos 50 a 70, deu
sinais de esgotamento nos anos 80. Perda de competitividade,
desestímulo a inovações tecnológicas, passividade tecnológica e ajustes à
8 Saliente-se que esse tipo de ―estratégia defensiva‖ foi típico na economia brasileira, mas de forma mais visível nos anos 90, quando as empresas, para sobreviverem ante a
abrupta abertura externa, adotaram estratégias de enxugamento de seus quadros funcionais, downsizing, etc., que, muito mais do que revelar um quadro de modernização dos ganhos de produtividade do trabalho frente às novas tecnologias, geraram forte precarização do mercado de trabalho (Castro, 1996; 1997).
Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 25
estrutura de custo dada, sem busca de novas tecnologias e, portanto, sem
ganhos de produtividade, inibiram as frentes de expansão produtiva,
culminando em estratégias defensivas e ganhos eventuais em
lucratividade, via câmbio ou via inflação.
Esse padrão criou um ambiente produtivo pouco ousado e pouco
eficiente, explicitando o esgotamento do padrão industrial originado pelo
PSI. As mudanças faziam-se necessárias, mas a base produtiva regional,
em sua grande maioria, não percebia para onde as direcionar. Essa
indefinição culminou na denominação ―década perdida‖, ou na ausência de
novas janelas de oportunidade.
O que se sucedeu a partir daí foi o aparecimento de uma série de
transformações cumulativas, que poderiam originar uma ―nova‖ economia
brasileira e uma ―nova‖ economia gaúcha. Pôs-se em marcha o processo
de destruição criadora, encorajado pelo surgimento de mutações internas.
Sob essa ótica, a abertura externa, no início dos anos 90, surgiu não
como fruto de uma decisão ―autônoma‖ nacional, face à precária inserção
nacional no padrão de competitividade internacional, mas, isto sim, como
uma necessidade estrutural às novas condições de crescimento da
economia brasileira, ainda longe de serem visualizadas no espaço
produtivo nacional. Não se sabia o que adviria daí, mas era certo que a
economia brasileira deveria ter um desenho estruturalmente diferente do
que persistira até o início dos anos 90. O mesmo diz-se para a economia
gaúcha.
Dois outros fatores de natureza interna — foram eles a
desindexação com o Plano Real e a convivência com a paridade cambial
fixa — terminaram por quebrar (de forma supostamente definitiva) os
hábitos, as regras e os padrões de conduta herdados do PSI, que se
enraizaram na forma de ―produzir‖ dentro da economia brasileira (e
gaúcha). Trata-se do padrão de comportamento associado à inflação,
onde o produtor habituou-se a incorporar, no seu preço final, as
expectativas inflacionárias, delegando aos ganhos de produtividade e de
Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 26
eficiência produtiva um padrão marginal e exógeno à linha de produção
nacional. Esse comportamento precário e refratário frente aos desafios da
competitividade explica, em parte, a fragilidade tecnológica do padrão
produtivo nacional herdado do referido processo. A mudança de regras
para a sobrevivência aos novos padrões (mais modernos) de
competitividade não se fez sem grandes transtornos, falências,
quebradeiras. Autores como Conceição Tavares, parodiando Schumpeter,
mas em sentido negativo, preferiram designar esse período como o de
―destruição não criadora‖ (Tavares, 1999). O estudo do ECIB buscou, com
grande fôlego, identificar, de maneira precisa, os desafios dessa época
(Coutinho; Ferraz, 1994).
2.2 Cenários político e social
Não só do ponto de vista produtivo ocorreram as transformações
dos anos 80. Dos pontos de vista social e, principalmente, político, muitas
mudanças também ocorreram, originando novos cenários nacional e
regional. O fenômeno urbano foi alvo de ampla proliferação, dando lugar a
grandes metrópoles, que se agigantaram, à medida que a crise se
aprofundava. As desigualdades acentuaram-se, e a deterioração dos
postos de trabalho também, dando origem à denominada precarização do
trabalho, que, no ambiente dos anos 80, encontrou condições ideais para
sua disseminação. A deterioração do quadro social nacional foi visível. No
Rio Grande do Sul, tal situação também se agravou, mas em escala menor
que a nacional, face à menor desigualdade em relação aos parâmetros
nacionais. Esses pontos serão explorados detalhadamente nos demais
artigos que compõem esta obra.
Do ponto de vista político, a redemocratização ocorreu em meio ao
agravamento da crise econômica, revelando que a construção de um novo
país foi, simultaneamente, acompanhada por uma semidevastação do
cenário econômico, atrofiado pela ameaça constante da hiperinflação.
Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 27
A abertura democrática, as eleições diretas e a Constituição de
1988 conferiram à nação novo status, cuja degradação econômica não
conseguiu enfraquecer. Pelo contrário, estabeleceram-se daí elementos
institucionais que permitiram ingressar nos anos 90, com uma maior
visibilidade política sobre quais mudanças deveriam ser implementadas.
Em outros termos, o regime democrático possibilitou que se elegesse uma
plataforma de transformações sociais e políticas que a década seguinte
tratou de efetivar. Entretanto todo esse processo passava pela vitória da
luta contra a inflação, que acabou consumando-se e consolidando-se
apenas em meados dos anos 90, com o Plano Real. Esses elementos
sugerem genericamente uma periodização das últimas três décadas,
conforme se segue.
QUADRO 2
2.3 Anos 80: inflação e corrosão da herança substitutiva
A década perdida dos anos 80 revelou perda de dinamismo da
economia brasileira, que, depois do período de grande crescimento,
caracterizado pelo ―milagre econômico‖ de 1967-73, desacelerou, no pós
74, sua taxa de crescimento até chegar a variações negativas do PIB já
em 1981. Até então, não se tinha conhecimento, dentro da estrutura
produtiva brasileira, de crescimento negativo, pelo menos desde a
construção da industrialização via PSI. Vários artigos e textos, que se
tornaram clássicos, analisaram essa questão, e não caberia recapitulá-los
aqui. O fundamental é destacar-se que importantes elementos de
natureza estrutural bloquearam, impediram e obstaculizaram a
possibilidade de a economia nacional — e, consequentemente, as
economias regionais — continuar ―crescendo‖ e ―funcionando‖ nos moldes
vigentes. Esgotara-se a capacidade de acumulação de capital via
substituição de importações. O aparecimento da capacidade ociosa não
planejada nos segmentos industriais líderes (bens de capital e bens de
Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 28
consumo duráveis), já em meados dos anos 70, prenunciava que a crise
dificilmente poderia ser resolvida através de uma distribuição de renda
aos segmentos sociais das classes menos favorecidos pelo ―milagre‖. Nem
mesmo o crédito doméstico abundante e barato, que se encarregou de
suprir o consumo das famílias no final do milagre, conseguiria reverter a
crise imanente já instalada no regime de acumulação da economia
brasileira. Ela se agravaria, como ocorreu com o primeiro e o segundo
choques do petróleo (de 1973 e 1979 respectivamente), mesmo se ambos
não tivessem eclodido. A única possibilidade de contornar a crise
estrutural, ainda latente, na economia brasileira dos anos 70, residiria na
adoção de profundas e necessárias transformações na matriz produtiva
nacional, que o II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), de 1974,
tratou de explicitar parcialmente. Tal estratégia, que ficou conhecida
nacionalmente como ―marcha forçada‖ (Castro, 1985), deu sobrevida à
estrutura industrial cambaleante herdada do milagre. Tal plano
estabeleceu as bases de uma economia fortemente ancorada em uma
avançada matriz energética, na implantação de setores de insumos
modernos e bens de capital e na descentralização dos polos industriais
pelo País.
Ensaiava-se, assim, uma ―nova‖ estrutura na evolução econômica
brasileira, com mudanças na esfera econômica, tecnológica e institucional.
Elas explicitavam, de um lado, o esgotamento da matriz produtiva que
viabilizou a construção das bases da estrutura industrial voltada ao
consumo de bens finais duráveis para as famílias de altas rendas, e, de
outro, evidenciava-se que tais mudanças emergiam como estratégias de
adaptação e sobrevivência aos novos tempos, oriundos da crise do
petróleo e da necessidade de a economia avançar em áreas deficientes em
bens de capital, insumos intermediários e energia. Porém tal processo
articulava-se com um desenho institucional não compatível com o que
emergiria na década de 80: a presença do Estado, até então, fazia-se
central e ativa, tanto como empresário quanto como indutor da atividade
Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 29
econômica. Inexistia, e nem se criava internamente, uma contrapartida
em termos de uma participação mais efetiva dos capitais privados, tanto
na inovação tecnológica quanto na busca de novos padrões de
competitividade, compatíveis com a (nova) dinâmica na estrutura
produtiva nacional. Avançava-se no capital físico sem uma contrapartida
no capital humano. Nem se tentava endogenizar o processo de avanço
tecnológico com a incorporação de novos processos e rotinas.
Genericamente, a ―competitividade espúria‖, aliada ao baixo dinamismo
das inovações e à precariedade do sistema de P&D — ou à inexistência de
um ―sistema nacional de inovação‖ à la Nelson —, imprimiu ao País
escassas condições capazes de reverter o quadro recessivo da produção
doméstica que se avizinhava. Somem-se a isso as pesadas restrições
externas, advindas dos dois ―choques‖ do petróleo e do colapso do
sistema financeiro internacional em 1981 (que, literalmente, fizeram
explodir as taxas de juros internacionais), fazendo recair o ônus do
―ajustamento‖ (em linguagem convencional) ou a própria ―crise do
paradigma‖ (em linguagem neoschumpeteriana) sobre os países
endividados. Incluía-se aí um choque frontal com a economia brasileira
(Belluzzo; Almeida, 2002).
A despeito da modernização induzida pelo Estado através do II PND,
extraiu-se daí uma segunda lição, que os anos de crise tratariam
dolorosamente de explicitar. Não obstante isso, o brutal esforço de
indução ao investimento público nos programas setoriais, que, meritória e
reconhecidamente, adiaram a crise do ―milagre‖ para o início dos anos 80,
sua capacidade efetiva de reversão da crise estrutural era bastante
limitada. Isto porque as exigências oriundas da inserção no paradigma
tecnológico da informação, em fase de ―montagem‖ nas principais nações
avançadas, exigiam não apenas um substancial montante físico de
investimentos produtivos, que o País não dispunha, mas também um perfil
qualitativo dos mesmos, que era precariamente compreendido pelos
formuladores de políticas de desenvolvimento. Não bastava apenas
Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 30
investir, mas criar internamente condições tecnológicas e institucionais
para a disseminação e a incorporação das novas tecnologias. E,
relembrando Zysman, tais condições se materializariam não apenas no
plano ―macro‖, como ocorrera no II PND, mas essencialmente no plano
―micro‖. Faltou-lhes a construção de uma plataforma organizacional, no
âmbito das firmas, para a modernização tecnológica. Sem isso, quaisquer
esforços produtivos se esvairiam, pois a ―novidade‖ trazida pelo salto
tecnológico teria escassas oportunidades de êxito. Faltou a construção de
um ambiente institucional capaz de criar, internamente, sinergias e
janelas de oportunidade para o novo modelo.
Aqueles setores que, na economia gaúcha, se aperceberam dessa
mutação conseguiram sobreviver e se modernizaram no avançar dos anos
80. Foi o caso dos segmentos metal-mecânico, de equipamentos
eletrônicos, dos setores ligados à informática e à automação. Quem
reeditava práticas do ―velho‖ paradigma estava condenado à extinção, ou,
na melhor das hipóteses, a reorientar ou a reconverter drasticamente suas
estratégias de sobrevivência. Esse fenômeno passou genericamente a ser
chamado, mais explicitamente na década subsequente, de ―reestruturação
produtiva‖.
Em outros termos, a reorientação produtiva capaz de ―reverter‖ a
crise estrutural, originária do esgotamento do ―milagre econômico‖ dos
anos 70, só seria possível mediante profunda reestruturação macro e
microeconômica da forma de produzir. E esta deveria estar sintonizada
com os desafios, já em marcha em outros países, como o Japão. Saliente-
se que, na época, esse fenômeno era extremamente difícil de ser
percebido, já que seus ecos dificilmente poderiam ser convenientemente
decifrados no combalido ambiente econômico nacional. Leia-se: as
instituições nacionais não percebiam que era necessária uma drástica
modificação em seus hábitos, suas rotinas e seus padrões de
comportamento.
Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 31
2.3.1 A inevitabilidade do desastre: a inflação inercial
A incompreensão das mudanças em curso reeditou, no plano das
―convenções‖ ou das normas de comportamento doméstico (leia- -se
instituições), práticas produtivas totalmente incompatíveis com a
―modernidade‖ de então. Como estratégia de sobrevivência à dramática
crise dos 80, o mecanismo de reindexação dos ativos como forma de
proteção ao setor financeiro — que, diga-se de passagem, fora criado em
1966 pela Reforma Campos-Bulhões, que instituiu o expediente da
correção monetária — disseminou-se por toda a economia. Tal mecanismo
não se constituiu apenas em proteção dos ativos financeiros contra a
inflação, mas contagiou todos os contratos da economia, desde os
financeiros de crédito, os de compra e venda, até os de trabalho e
tributação e, mais importante, passou a fazer parte da decisão de produzir
dos agentes. A decisão empresarial de qualquer empreendimento embutia
a expectativa de inflação no período, que passou a superar qualquer risco
oriundo da própria atividade capitalista. Ingressava-se no pior dos
mundos: a produção sem risco, caucionada pela inflação e avalizada pela
dívida pública interna, que também passou a financiar-se com o referido
processo (Quadro 2).
A perversidade dessa política é por demais conhecida como
elemento altamente concentrador da renda. Além disso, a instituição da
convenção do ―crescimento com inflação‖ (Castro, 1997) minava qualquer
possibilidade de modernização da economia brasileira, já que anulava
quaisquer perspectivas de enfrentamento de novas estratégias frente à
crise. O ―curto prazismo‖ e as preocupações com a inflação e com o
consequente financiamento da mesma, via aplicações financeiras,
alimentaram não só um processo de resistência à desinflação, como
fomentaram uma voraz financeirização, que obstaculizava a queda da
inflação. O cálculo econômico das empresas, das famílias e do Governo
sancionava a vigência e a suposta necessidade do referido mecanismo. As
Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 32
estratégias empresariais de modernização eram, assim, bloqueadas, e as
aplicações de curtíssimo prazo passaram a reger a economia brasileira.
As tentativas de reverter esse processo, que só alimentava a
concentração da renda, resultaram em grande fracasso. Os planos
heterodoxos de combate à inflação não conseguiam quebrar a inércia
desses mecanismos. O Plano Cruzado, o Plano Bresser, o Plano Verão —
e, posteriormente, os Planos Collor I e II nos anos 90 — não conseguiram
romper com a memória inflacionária, que nada mais era senão a
institucionalização da inflação dentro da economia brasileira. Fazia-se
necessária uma ―nova economia‖, que começou a ser construída apenas
em meados da década seguinte.
Genericamente, pode-se concluir que a década de 80 foi perdida pelo
fato de não se ter conseguido construir qualquer possibilidade de
recuperação econômica. Isso se deu por três razões: pela precária
capacidade de inserção no paradigma tecnológico em construção; pela
cegueira generalizada em relação a perspectivas de longo prazo que o
processo de aceleração inflacionária trouxe; e pela inexistência de um
padrão de ação estatal capaz de vislumbrar alternativas de política
econômica para reverter esse caótico quadro.
Mais ainda, nos anos 80, explicitou-se que não bastava à política
econômica governamental ―querer‖ acabar com a inflação, era necessário
que a população acreditasse em tais intenções. Em outros termos, era
necessário combinar intenção e consistência macroeconômica com
credibilidade no âmbito microeconômico dos agentes e tomadores de
decisão. Essa foi a terceira lição herdada dos tempos da crise: não basta
a política econômica ter intenção de extirpar elementos nocivos à
economia enraizados institucionalmente no País. Era e continua sendo
necessário estabelecer um horizonte de credibilidade capaz de torná-los
aceitáveis e passíveis de incorporação no âmbito microeconômico das
decisões descentralizadas dos agentes econômicos. Leia-se, é
fundamental uma mudança de hábitos (à la Veblen), para obter-se tal
Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 33
objetivo. Em outros termos, o fracasso dos planos heterodoxos de
combate à inflação, nos anos 80, deveu-se menos à consistência interna
dos mesmos (que, como se viu anos mais tarde, também era
problemática) do que à falta de um ambiente institucional e
microeconômico para sua aceitação.
2.4 Os anos 90 e a necessidade de reestruturação
O ingresso nos anos 90 ocorreu em meio a grandes perspectivas de
mudanças. O País acabara de ter eleições diretas para a Presidência da
República, a inflação encontrava-se em elevação acelerada, e o fracasso
dos choques heterodoxos, herdados da era Sarney, exigia drásticas
―correções de rumo‖ (para se usar expressão da época). Sucederam-se
daí os Planos Collor I e II, em 1990 e 1991, respectivamente, que não só
foram incapazes de reverter a inércia inflacionária, como desorganizaram
ainda mais a economia do País.
Entretanto uma medida relevante foi tomada: a abertura comercial.
A abrupta exposição às condições de competitividade externa revelou a
precariedade da estrutura produtiva nacional para sobreviver a condições
adversas. A fragilidade do padrão de competitividade vigente no País
explicitou-se não só como resultado direto do mecanismo de proteção
cambial, oriundo do regime de alta inflação, mas também como resultado
de anos de convívio com uma economia fechada (pouco exposta à
concorrência externa), fruto do PSI, que, nessa época, explicitava seu
esgotamento. O ajuste foi dramático, e várias empresas faliram. Mas,
estruturalmente, tal exposição foi necessária, visto que, anos mais tarde,
as empresas sobreviventes saíram fortalecidas. Estava em marcha o
mecanismo de destruição criadora a que Schumpeter se referia. E a
economia gaúcha valeu-se desse mecanismo.
Apesar do duro e penoso desafio de reinserção externa — sem uma
contrapartida doméstica em termos de infraestruturas organizacional,
Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
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produtiva e tecnológica para enfrentar os padrões de concorrência do
―novo‖ paradigma tecnológico em plena ascensão —, tornou-se clara a
necessidade de reestruturação produtiva brasileira. E isso foi feito,
caracterizando a primeira grande mudança estrutural dos anos 90. Vários
estudos trataram dessa questão e não será feita uma releitura dos
mesmos (Coutinho; Ferraz, 1994; Franco, 1995). Interessa reter-se aqui
que a economia brasileira buscava novos fundamentos para sua evolução,
cujo primeiro passo havia sido dado.
O episódio do impeachment de Collor e a posse de Itamar Franco,
em 1992, evidenciaram a imperiosidade em reverter-se, e rapidamente, o
caótico cenário de instabilidade inflacionária, que carregava consigo a
ameaça de hiperinflação e a perda total da governabilidade do País.
Começou-se a gestar aí um novo desenho de estabilização econômica: um
outro plano, mas sem congelamento de preços, sem choques, sem
surpresas, sem bloqueio de liquidez, com regras claras de desindexação e
alguma garantia de que a população não seria surpreendida com
congelamento de preços, como acontecera em planos anteriores. Além
disso, implícita nesse novo plano estava a preocupação central com o
ajuste fiscal e com o papel do Governo como gerenciador da política
econômica. Tais elementos constituíram a base do Plano Real,
implementado em julho de 1994.
Originou-se daí a segunda mutação estrutural nos alicerces da
economia brasileira dos anos 90, que, simultaneamente, operou duas
outras mudanças institucionais de grande profundidade. De um lado,
mudou o regime monetário, introduzindo uma nova moeda, com paridade
cambial equivalente ao dólar, e, de outro, mudou a forma de ação do
Estado, que passou a perseguir ajuste fiscal, metas de superávit fiscal,
controle monetário e compromisso orçamentário. Desfazia-se o Estado
empresário da substituição de importações, e incorporavam-se novos
elementos compatíveis com um maior rigor fiscal.
Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 35
Como se viu, mudança não significa ―melhora‖, mas evolução,
mutação, o que implica afirmar-se que o novo desenho institucional do
Estado passou a compatibilizar-se com o ideário da globalização. Como
salientado por Perez, a nova função do Estado, introduzida com o Plano
Real, passou a sintonizar-se com o denominado ―Consenso de
Washington‖, seguindo os princípios, ditos neoliberais, de Estado mínimo,
privatizações, superávit fiscal e renúncia a atividades produtivas (ou
empresariais). Com o ambiente de estabilização e sem inflação, tais
funções passaram a ser exigidas, já que o financiamento do déficit via
inflação, como ocorrera na década de 80, não mais seria possível. O papel
do Estado redefiniu-se, e as metas de superávit fiscal passaram a
desempenhar papel proeminente, embora o endividamento financeiro do
mesmo continuasse elevado.
No Rio Grande do Sul, a visualização mais clara desse novo papel do
Estado foi percebida durante o Governo Britto, que coincidiu com o
primeiro mandato de FHC.
O desenho institucional do País e do Estado, nesse período, passou a
orientar-se por uma adesão explícita ao modelo vigente nos países
desenvolvidos, orientados pelo que se convencionou chamar de Consenso
de Washington. Ideias liberalizantes, controle da ação estatal,
flexibilização dos mercados e privatizações passaram a ser a tônica da
gestão pública, revelando uma total fragmentação do ―velho‖ estado
desenvolvimentista, sem se apropriar de um novo papel, a não ser uma
oposição aos princípios até então dominantes.
Tal falta de rumo foi acompanhada por um brutal crescimento da
dívida pública, herança do regime inflacionário, sem a constituição de
maior rigor fiscal, que tornou a administração pública extremamente
difícil. Tal processo se deu na órbita tanto federal quanto estadual. No
âmbito federal, a perseguição de uma maior carga fiscal, via contração
fiscal (que, nos manuais de macroeconomia, é traduzido como aumento
de tributos e contração dos gastos públicos), teve dois efeitos. De um
Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
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lado, os esforços da União para debelar o processo inflacionário (via maior
rigor fiscal e monetário) expunham à população a firme intenção de criar
um ambiente de estabilização, fomentando expectativas nesse sentido, e,
de outro, induzia uma mudança de mentalidade, através da tentativa de
zerar a memória inflacionária. Entretanto, mesmo com aumento da carga
tributária, a ação estatal não conseguia ―fazer caixa‖, gerando uma
situação de deterioração financeira, que, apesar das tentativas de
governos posteriores, persiste até os dias de hoje.
Todo esse quadro revela que o custo da estabilização, que se
consolidava ao longo da década, do ponto de vista da gestão estatal,
principalmente nos estados regionais, foi extremamente difícil, implicando
perda de controle sobre os gastos, o que, por sua vez, gerou aumento da
dívida pública dos estados, oriunda da escassez de fontes de
financiamento em um regime sem inflação. Por conta desse processo,
reduziu-se sobremaneira a ação estatal, delegando à administração
governamental pouca (ou nenhuma) autonomia em relação à decisão de
expandir ou estimular a capacidade produtiva, frente à incapacidade de
investimento.
Esse processo, porém, cunhou uma nova realidade de administração
pública: criou a consciência e a premência de controle dos gastos, a
necessidade de metas de receitas e despesas (para que esta última
coubesse na primeira), a busca de maior equilíbrio fiscal, e, naturalmente,
o encolhimento da capacidade de ação estatal, no sentido de gerar
investimentos produtivos. O Estado, no âmbito tanto nacional quanto
regional, deixou de ser ―empresário‖ para se constituir em gerente,
parceiro e gestor. Essa mudança institucional foi fundamental para o
desenho da nova forma de ação estatal, que se tornou mais clara na
década seguinte.
2.4.1 A incapacidade de crescer: um ambiente em mutação
Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 37
A persistência do quadro referido acima, pautado pelas dificuldades
oriundas das diretrizes da estabilização, trouxe consigo a ―convenção‖ de
que sem ―arrumar a casa‖, ou, em linguagem corrente na época, construir
―bons fundamentos macroeconômicos‖, dificilmente poderia ser trilhada
qualquer trajetória de crescimento mais consistente. Por essa razão, a
economia brasileira e a gaúcha não conseguiam obter saltos expressivos
em termos de taxa de crescimento do produto.
A reversão das expectativas inflacionárias, que se foi consolidando
com o Plano Real, realizou-se mediante um desenho de política econômica
centrado no tripé metas de inflação, superávit fiscal e juros altos. Tal
opção, além de não deixar muito espaço para que novas trajetórias de
crescimento econômico pudessem ser trilhadas, reforçou o alinhamento da
política econômica nacional — e, por derivação, o ambiente regional da
economia gaúcha — às regras vigentes no ambiente econômico
internacional, orientado pelos princípios do Consenso de Washington.
Contraditoriamente, o cenário econômico externo experimentou, ao longo
dos anos 90, um surpreendente — mas não sustentável — clima de
prosperidade e de crescimento econômico (aparentemente)
autossustentado, amparado pela forte financeirização e pela expansão dos
mercados asiáticos.
A economia brasileira, ao contrário, amargou uma situação de
baixas taxas de crescimento doméstico, pesada carga tributária, rígido
controle da demanda agregada e forte fluxo financeiro externo,
sintonizado com os altos juros praticados internamente. Como resultado,
elevaram-se a dívida pública interna e os desequilíbrios fiscais,
inviabilizando estratégias governamentais mais ousadas, principalmente
no sentido de vincular as decisões de investimento às atividades
geradoras de inovação em P&D. Dessa forma, deixou-se de estimular um
padrão de organização industrial mais sintonizado com os avanços do
novo paradigma tecnológico da informação, inviabilizando um ambiente
mais propício a sinergias e janelas de oportunidade nesse sentido.
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O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 38
De fato, o País cresceu pouco, mas as mudanças institucionais foram
significativas. Vivia-se o novo, sem o conhecimento prévio do que, de
fato, este se constituiria. E negava-se o velho, com a certeza de que
jamais voltaria a predominar. Tal foi o quadro da mutação dos anos 90
que deixou um legado fundamental para o primeiro decênio do século XXI.
As reformas econômicas operaram de forma agressiva, não obstante os
avanços sociais não terem ocorrido de forma expressiva. Porém o terreno
para que tais avanços se consumassem estava virtualmente construído.
Caberia aos futuros governantes abrir janelas de oportunidade nesse
sentido. O palco histórico dos anos 2000 revelaria ou sepultaria tais
possibilidades.
2.5 Os anos 2000 e a década do “reordenamento obediente”
A economia brasileira ingressou no século XXI instigada por dois
momentos que, literalmente, puseram em xeque os alicerces
macroeconômicos, construídos a partir dos primeiros desdobramentos do
Plano Real. O primeiro momento ocorreu em janeiro de 1999, quando do
início do segundo mandato de FHC, que explicitou a crise cambial de
1999. Na época, temia-se que a mesma abalaria os alicerces da
estabilização nacional. A reação de então, respondida pela adoção da
política de maior flexibilização cambial, superando o mecanismo de
paridade fixa (com bandas cambiais), foi capaz de contornar os efeitos
nefastos do obstáculo externo e inspirou o desenho de uma nova política
macroeconômica, que, em linhas gerais, persiste até os dias de hoje. Ao
invés da âncora cambial como mecanismo de estabilização dos preços
domésticos, que fora inaugurada com o Plano Real, passou-se a adotar o
regime de metas inflacionárias, que combinava uma maior flexibilidade da
taxa de câmbio, a fixação de um alvo de inflação com patamares fixos de
variação para mais ou para menos e uma rígida e obstinada política de
geração de superávits fiscais.
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O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 39
Os resultados dessa política logo se fizeram sentir, apesar das
profundas críticas de economistas heterodoxos de formação
desenvolvimentista. Para eles, estariam privilegiando-se metas de
estabilização, ao invés de se estimularem políticas de crescimento. Apesar
do aumento da carga fiscal, a política cambial produziu efeitos positivos
sobre a balança comercial, e o temor da volta da inflação desvaneceu-se.
Reconhecendo a procedência da crítica heterodoxa, o País pagou o preço
da estabilização, sacrificando expressivos passos rumo à constituição de
um ambiente para o crescimento. Entretanto esse processo trouxe uma
importante lição para os tempos futuros. A construção de uma plataforma
consistente para o processo de crescimento econômico não poderia ser
feita sem a vigência de um maduro (leia-se estável e duradouro)
ambiente de estabilização econômica. E a opção de política econômica
adotada consolidou esse processo. Essa foi a quarta lição herdada do
duro período de ajustamento estrutural: a estabilização dos preços é um
processo lento, penoso, e que não necessariamente (leia-se
automaticamente) conduz ao crescimento econômico, mas, por definição,
é uma condição necessária para tal desiderato. A adoção do novo desenho
da política econômica foi consolidando um novo ambiente
macroeconômico e fiscal, que vem persistindo e que explicitou um novo
compromisso com a gestão pública: metas de geração de sistemáticos
déficits orçamentários passaram a ser banidas em ambientes de
estabilização9.
O segundo momento que balançou os alicerces da estabilização
construída através do Plano Real ocorreu em dezembro de 2002. A eleição
9 Em defesa de Keynes, se é que hoje o referido autor precise dela, saliente-se que tais práticas também explicitaram o equívoco do nexo causal entre políticas de inspiração keynesiana com práticas fiscais gastadoras ou irresponsáveis, herança de uma má formação teórica de economistas obstinadamente antikeynesianos. Reitere-se, mais uma vez, que um Estado keynesiano moderno não é incompatível com a perseguição de
superávits fiscais. A circunstância e a inserção da política econômica nortearão as decisões governamentais, que não podem prescindir do seu legado. Em outros termos: ser keynesiano não implica ser favorável à geração sistemática de déficits públicos e irresponsabilidade fiscal.
Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 40
presidencial de Lula criou expectativas de que um suposto (e
conceitualmente ―falso‖) desenvolvimentismo superaria a equivocada
dicotomia ―estabilização versus crescimento‖, fazendo crer, aos mais
inadvertidos, que o novo Presidente mudaria drasticamente (e até
ingenuamente) os rumos da economia brasileira e, por consequência, os
próprios fundamentos da estabilização.
No imediato pós-eleição, os índices de preços dispararam, sugerindo
que a inflação rapidamente se (re)instauraria. Obviamente, se tal
infortúnio ocorresse e se a suposta mudança de rumo se consumasse, o
caminho para a ingovernabilidade estaria aberto, e o retorno ao ambiente
de descrédito na política econômica (tão comum e reiterado na década de
80) voltaria à cena.
Passada a turbulência inicial, oriunda da frustração de expectativas
inflacionárias crescentes — e por conta de uma drástica mudança de rumo
que não ocorreu —, o País passou a colher frutos de uma inserção externa
mais competitiva, de uma recuperação expressiva do mercado interno e
de um novo desenho para o crescimento econômico, que contemplava
maior dinamismo das exportações e um crescimento doméstico puxado
pelo consumo das famílias. Tal quadro foi abalado seriamente quando da
eclosão da crise financeira, oriunda da subprime norte-americana, de
setembro de 2008, que parece ter sido, atualmente, superada, pelo
menos em escala nacional.
O que ficou desse processo? Apesar das mudanças percebidas no
âmbito das firmas, que operam no ambiente econômico nacional, e das
mudanças institucionais, que caminharam no sentido de conferir uma
maior maturidade econômica ao País, essas transformações, não
perceptíveis pelo simples exame dos principais agregados
macroeconômicos, sugerem a consistência das mudanças em curso. O
exame dos principais agregados revela uma perceptível melhora no
desempenho econômico nacional, tanto em termos internos quanto no
front externo (ver principais séries: PIB, dívida pública, exportações,
Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
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superávit comercial, metas fiscais, produção agrícola e industrial, mercado
de trabalho, desemprego, etc.). É a esse resultado que se chama de
―reordenamento obediente‖, uma vez que a conformação produtiva
nacional e regional passou a sintonizar-se mais com as mudanças
ocorridas no ambiente externo (ditadas pelo paradigma tecnológico da
informação), cuja busca por ganhos de competitividade e produtividade
nesse âmbito, aliada a um projeto macroeconômico desenhado a partir do
Plano Real, gerou um comportamento doméstico de aceitação dessas
regras e estratégias de adaptação ao referido padrão tecnológico. A
disciplina macroeconômica passou a ser perseguida e obedecida pela
política econômica vigente.
Chama-se, portanto, de ―reordenamento‖ não apenas a adesão às
regras de política macroeconômicas estabelecidas, sem miragens, nem
milagres, mas também às sucessivas tentativas de inserção na ordem
tecnológica vigente, e de ―obediente‖, na medida em que a busca de
aprofundamentos dentro da mesma vai criando, ao longo do tempo,
janelas de oportunidade, que se entreabrem recursivamente dentro desse
(novo) ambiente. Em outros termos, o País vem buscando, e de forma
mais visível nesse início de século, o estabelecimento de condições que
permitam alcançar substanciais melhoras nos níveis de ―expectativas,
governança, credibilidade, padrões de competitividade, etc.‖. Em suma,
busca-se avançar nos conceitos propostos no início deste texto. E o RS
deve estabelecer estratégias capazes de tirar proveito dessas condições.
A lição que se extrai desse processo é que a aposta na
―continuidade‖ do processo de ajustamento estrutural produzido pelo
Plano Real revelou não só a maturidade da economia brasileira em
conviver com um novo regime de preços, mas de adequar-se a uma nova
realidade mundial, onde a busca por competitividade, por novos
mercados, por novos processos de trabalho e por novas tecnologias é não
somente irreversível, como também deve constituir-se em meta micro e
macroeconômica. E tal busca, ao contrário do que possam supor,
Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
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equivocadamente, alguns estudiosos avessos à compreensão do processo
de avanço tecnológico, não pode impedir avanços sociais. Dito de outra
forma, a melhoria de indicadores sociais — que, por herança histórica,
têm sido dos mais baixos do mundo — deve ser buscada e alcançada
tendo por suposto o cenário econômico construído a partir desse novo
desenho estrutural, recém-montado no País, cuja abertura externa e o
Plano Real foram dois importantes desencadeadores e artífices. Os dois
novos fundamentos institucionais daí decorrentes — a saber, a moeda e o
novo padrão de concorrência entre as empresas — são elementos que
vieram para ficar no novo desenho institucional, que vem orientando o
País. O mesmo se diz do papel do Estado nessa ―nova economia‖.
Entretanto, apesar de alguns avanços, percebe-se que a capacitação
tecnológica interna para as novas janelas de oportunidade, abertas pelo
novo paradigma tecnológico em formação, ainda são tímidas. Assim, é
importante que se estabeleçam, internamente, novos vínculos com a
capacitação tecnológica e com a montagem de um efetivo sistema
nacional de inovação. Tal sistema deverá, por definição, articular firmas,
Estado e universidades, para gerar o estabelecimento de uma plataforma
para o crescimento econômico e para o desenvolvimento tecnológico. Só
assim a enorme dívida social, que continua assolando o País, poderá ser
equacionada.
Entende-se que a superação da fase de ―reordenamento obediente‖
da última década deverá ser orientada por uma política mais agressiva de
P&D, sintonizada com os avanços tecnológicos do paradigma em gestação.
Maiores gastos em pesquisa, educação e capacitação profissional serão
elementos decisivos para a construção de um novo modelo de crescimento
autossustentado, distributivo e com maior qualificação tecnológica e
social. O primeiro passo no sentido da construção de instituições capazes
de assegurar essa nova etapa parece que vem sendo dado, na medida em
que a economia brasileira vem respondendo positivamente, mas ainda de
maneira tímida, aos desafios desse novo ambiente.
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Em termos de Rio Grande do Sul, o cenário é o mesmo. Apesar de
uma dimensão regional que contém suas especificidades, o desafio é
idêntico ao enfrentado em termos nacionais. O peso do agronegócio na
estrutura produtiva local sugere vantagens ainda maiores de uma inserção
competitiva, tecnológica e inovadora, se confrontadas com a capacidade
nacional de inserção no novo paradigma tecnológico das nanotecnologias
e biotecnologia, em fase de gestação. Caberá aos agentes locais tirar
proveito dessas oportunidades, caso contrário o que se terá será
localmente um ambiente involuído. E isso contraria a tradição histórica da
economia gaúcha.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O exame das transformações ocorridas ao longo das três últimas
décadas, na economia gaúcha, explicitou que todas as suas formas
institucionais de estrutura sofreram mutações. A moeda mudou seu papel,
o padrão de concorrência foi drasticamente reconcebido (até por conta da
estabilização econômica), o papel do Estado sofreu um profundo
redesenho, as relações salariais foram tornando-se mais flexíveis, a
precarização do mercado de trabalho aumentou, e, por fim, o padrão de
inserção externa também se transformou, havendo, hoje, uma
participação mais efetiva, ainda que relativamente baixa.
A economia, do ponto de vista produtivo, teve que se reorganizar,
de forma a se adaptar aos desafios dos tempos modernos. E, nesse
sentido, a noção de paradigma tecnoeconômico parece ser uma
interessante trilha teórica a ser perseguida, de forma a compreender-se o
sentido em que as mudanças estão operando. Por essa razão, os termos
incluídos no título deste artigo não são meros artifícios de retórica, mas
símbolos ou ícones de duas eras sobrepostas, cuja dominância da última
é, por demais, eloquente.
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O que fica de concreto de toda essa discussão é que a velha herança
do passado não mais consegue gerar progresso econômico sem que haja,
de fato, a incorporação das mudanças estruturais (aqui entendidas como
mudanças simultaneamente tecnológicas e institucionais) dentro do
ambiente interno das firmas e do processo de trabalho. E tais mudanças
operam de forma visivelmente vinculada ao paradigma tecnológico
dominante, que tem, na tecnologia da informação, seu traço mais
perceptível. Caberá tirarem-se vantagens da inserção nesse ambiente,
pois, caso contrário, só restará a lembrança de um tempo que já se foi. Só
restará a lembrança da querência!
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Quadro 1 Cinco revoluções tecnológicas em 230 anos: principais indústrias, infraestruturas e diferentes
paradigmas tecnoeconômicos
REVOLUÇÃO TECNOLÓGICA
NOVAS TECNOLOGIAS E
NOVAS OU REDEFINIDAS INDÚSTRIAS
NOVA OU REDEFINIDA
INFRAESTRUTURA
PARADIGMA TECNOECONÔMICO:
“SENSO COMUM” DOS PRINCÍPIOS DE INOVAÇÃO
Primeira: 1771 Revolução Industrial. Na Inglaterra.
- indústria mecanizada do algodão;
- ferro forjado; - maquinaria.
- canais e hidrovias;
- estradas com barreiras (pedágios);
- força da água (melhoramento dos moinhos).
- produção fabril; - mecanização; - produtividade/economia e
poupança de tempo; - fluidez de movimento
(para máquinas a vapor e transporte por canais e hidrovias);
- redes locais.
Segunda: 1829 Era do vapor e das ferrovias. Da Inglaterra para o continente europeu e os EUA.
- máquina a vapor (feita de ferro, abastecida por carvão);
- ferro e mineração de carvão (agora com papel central no crescimento);
- construção de ferrovias;
- produção movida por estoque;
- motor a vapor em muitas indústrias (incluindo a têxtil).
- estrada de ferro (máquina a vapor);
- serviço postal universal;
- telégrafo (ao longo das ferrovias nacionais);
- grandes portos, grandes estações ferroviárias, e navegação em escala mundial;
- cidades abastecidas com gás.
- economias de aglomeração/cidades industriais/mercados nacionais/poderosos centros com redes nacionais;
- escala como progresso; - partes standard/máquinas
produtoras de máquinas; - energia onde necessária
(vapor); - movimentos
interdependentes (de máquinas e de meios de transporte).
Terceira: 1875 Era do aço, da eletricidade e da engenharia pesada. Nos EUA e na Alemanha, ultrapassando a Inglaterra.
- aço barato (especialmente o Bessemer);
- pleno desenvolvimento do motor a vapor para a indústria naval (aço);
- química pesada e engenharia civil;
- equipamento elétrico industrial;
- cabos elétricos; - alimentos
enlatados e engarrafados;
- papel e embalagens.
- navegação mundial em rápidos navios de aço (uso do Canal de Suez);
- estradas de ferro por todo o mundo (com aço barato em trilhos tamanho standard);
- grandes pontes e túneis;
- telégrafo por todo o mundo (nacionalmente);
- redes elétricas (para iluminação e uso industrial).
- estruturas gigantescas (aço);
- economias de escala da planta/integração vertical;
- energia distribuída pela indústria (eletricidade);
- ciência como força produtiva;
- cadeias mundiais e impérios (incluindo carteis);
- padronização universal; - contabilização de custo
para controle e eficiência; - poder de mercado
mundial em grande escala (pequeno é bem-sucedido, se local).
(continua)
Quadro 1 Cinco revoluções tecnológicas em 230 anos: principais indústrias, infraestruturas e diferentes
paradigmas tecnoeconômicos
REVOLUÇÃO TECNOLÓGICA
NOVAS TECNOLOGIAS E
NOVAS OU REDEFINIDAS INDÚSTRIAS
NOVA OU REDEFINIDA
INFRAESTRUTURA
PARADIGMA TECNOECONÔMICO:
“SENSO COMUM” DOS PRINCÍPIOS DE INOVAÇÃO
Quarta: 1908 Era do petróleo, do automóvel e da produção em massa. Nos EUA, espalhando-se para a Europa.
- automóveis produzidos em massa;
- petróleo barato e combustíveis de petróleo;
- petroquímica (sintética);
- motores de combustão interna em automóveis, meios de transporte, tratores, aviões, tanques de guerra e eletricidade;
- eletricidade nas residências;
- rádio e televisão; - refrigeradores e
alimentos congelados.
- redes de rodovias, estradas, portos e aeroportos;
- redes de oleodutos;
- eletricidade universal (indústria e residências);
- telecomunicação (telefone, telex e telegrama) analógica por todo o mundo por fio e sem fio;
- redes nacionais de difusão.
- produção em massa/mercados de massa;
- economias de escala (volume do produto e do mercado)/integração horizontal;
- padronização dos produtos;
- energia intensiva (baseada no petróleo);
- materiais sintéticos; - especialização
funcional/pirâmides hierárquicas;
- centralização/centros metropolitanos suburbanizados;
- poderes nacionais, acordos mundiais e confrontação.
Quinta: 1971 Era da informação e das telecomunicações (ICT). Nos EUA, espalhando-se para a Europa e a Ásia.
Revolução da informação: - microeletrônica
barata; - computadores,
software; - telecomunicações; - instrumentos de
controle; - computador-
adicionado à biotecnologia e novos materiais.
- telecomunicação mundial digital (cabo, fibra ótica, rádio e satélite);
- internet/correio eletrônico e outros serviços;
- múltiplas fontes, uso flexível, redes elétricas;
- meios de transporte físico de alta velocidade (por terra, mar e água);
- rede global com “poucos atores”.
- informação intensiva (baseada na ICT);
- integração descentralizada/estruturas de rede;
- conhecimento como capital/valor adicionado intangível;
- heterogeneidade, diversidade, adaptabilidade;
- segmentação dos mercados/proliferação de nichos;
- economias de escopo e especialização combinada com a escala;
- globalização/interação entre o global e o local e cooperação externa/clusters;
- contato e ação instantânea/comunicações globais instantâneas.
FONTE: PEREZ, Carlota. Technological Revolutions and Financial Capital: The Dynamics of Bubbles and Golden Ages. Cheltenham: Elgar, 2002. p. 14 e 18. NOTA: ICT é igual a information and telecommunication technologies.
Quadro 2
Dados sintetizados das economias brasileira e gaúcha — 1980-08
VARIÁVEIS 1980-89 1990-99 2000-08
Taxas de crescimento do PIB no Brasil (% médio ao ano) (1)
1,7 2,4 3,6
Taxas de crescimento do PIB no RS (% médio ao ano) (2)
1,0 2,7 2,6
Taxas anuais médias de inflação (IGP-DI)
340,6 209,5 9,8
Dívida total do setor público líquida/PIB (médias anuais)
80,72 59,83 49,82
Superávit comercial (exportações menos importações) (US$ bilhões) (3)
9,956 2,530 28,768
Coeficiente de abertura (%) (4) 9,83 7,43 12,57
Participações médias do PIB RS no PIB do Brasil (%)
8,04 7,59 6,95
Estratégias empresariais Memória inflacionária (indexação)
Defensiva (frente à inflação e à
abertura externa)
Adaptada (à ordem
macroeconômica)
Paradigma dominante Produção em massa
Tecnologia da informação (TI)
TI mais ensaios em biotecnologia
FONTE: Fundação de Economia e Estatística/Centro de Informações Estatísticas/Núcleo de Contas Regionais. (1) Média no período 2,5% a.a. (2) Média no período 2,1% a.a. (3) Médias anuais. (4) Exportações médias/PIB a.a.