CAPITALISMO CIVILIZAÇÃO E PODER-Fabio Koder

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CAPITALISMO: CIVILIZAO E PODER

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CAPITALISMO: CIVILIZAO E PODER

Fbio Konder Comparato*Introduo

Chegamos finalmente, neste vigsimo primeiro sculo da era crist, a uma etapa histrica em que todos os povos da Terra, em maior ou menor grau, participam da mesma civilizao: a capitalista. No entanto, muito poucos, no mundo todo, do-se conta desse fenmeno nico em toda a Histria.

Qual a razo dessa inconscincia coletiva? H duas razes principais, a meu ver.

A primeira delas que o curso dessa evoluo histrica s veio a se completar recentemente. At a segunda metade do sculo XX, o capitalismo ainda no havia alcanado todos os confins do orbe terrestre. Algumas regies permaneciam, at ento, isoladas do resto do mundo, envoltas no espesso manto de velhas tradies. Outras viviam sob o imprio de um regime frontalmente anticapitalista: o comunismo.A segunda razo, pela qual uma boa parte da humanidade ainda no tomou conscincia desse fato histrico sem precedentes, que, fora do crculo intelectual marxista, o capitalismo sempre foi apresentado, pura e simplesmente, como um sistema econmico; sendo que boa parte dos economistas o analisava, e continua a analis-lo, na esteira dos fisiocratas franceses que tanto influenciaram Adam Smith, como o nico sistema natural da vida econmica.

Creio chegado o momento de uma autntica compreenso do fenmeno, ou seja, o momento de se tomar o capitalismo em toda a sua riqueza de sentidos (cum prehendere); vale dizer, antes de mais nada, como uma autntica civilizao, usando esse conceito em sentido eticamente neutro. Para tanto, preferi chamar a ateno do leitor para a poca de surgimento dessa forma de vida geral dos povos.

Mas, alm disso, pareceu-me tambm importante, dentre os vrios traos definidores dessa civilizao, ressaltar aquele que representou, indubitavelmente, o de maior relevncia no processo de transformao global do mundo moderno: o poder capitalista.I

Civilizaes: a Herana Indo-Europia

Deve-se entender por civilizao a reunio de vrios povos, que falam lnguas da mesma famlia, partilham da mesma mentalidade coletiva, submetem-se s mesmas instituies de organizao social e dispem do mesmo saber tecnolgico.

Desse conjunto de elementos formadores de uma civilizao, convm destacar a mentalidade coletiva e as instituies de organizao social.

As civilizaes, afirmou Fernand Braudel, so, antes de tudo, mentalidades coletivas.

A noo de mentalidade foi elaborada pelos historiadores franceses ligados revista Annales dHistoire Economique et Sociale, fundada em 1929. A idia central dessa escola de pensamento historiogrfico a de que, contrariamente tese marxista, as idias e os valores predominantes em uma sociedade no so mero produto de suas condies econmicas, mas mantm uma certa autonomia em relao a estas e, muitas vezes, as engendram e transformam.

A rigor, no existe uma diferena fundamental entre o conceito de conscincia coletiva ou comum de Emile Durkheim e a noo de mentalidade, desenvolvida pelos citados historiadores franceses.

Em sua tese de doutorado, defendida na Faculdade de Letras de Bordeaux em 1893, e intitulada De la division du travail social, Durkheim sustentou que o conjunto das crenas e sentimentos comuns mdia dos membros de uma sociedade forma um sistema determinado, que tem vida prpria, e que pode ser chamado conscincia coletiva ou comum. Sem dvida, ela no tem como substrato um rgo nico, sendo por definio difusa em toda a extenso da sociedade. Mas apresenta caracteres especficos que a tornam uma realidade perfeitamente distinta, notadamente das conscincias individuais: tanto mais distinta, quanto mais fortemente o indivduo se ope s crenas, opinies e valores dominantes na sociedade, e sente-se, com isso, constantemente acossado em seu isolamento. Alm disso, a durao da conscincia coletiva sempre maior do que a das vidas individuais. Os indivduos passam, mas a conscincia coletiva permanece viva e atuante, de gerao em gerao.

O importante frisar que esse conjunto de idias, sentimentos, crenas e valores predominantes atua na mente de cada um de ns como uma espcie de reator automtico, no julgamento de fatos ou pessoas. Nesse sentido, uma realidade mental muitas vezes subconsciente e, quando reconhecida pelo sujeito, no raro por ele ocultada, ou ento expressa de modo enganoso, como sucede com freqncia em matria de preconceitos. em funo das mentalidades coletivas que se criam as culturas nacionais ou regionais a arte e as tcnicas, sobretudo , bem como as formas de atividade econmica e de organizao poltica.

Na verdade, as mentalidades individuais variam enormemente entre si, em funo do patrimnio gentico e da presso do meio social onde vivem os indivduos. A influncia da mentalidade coletiva nas mentes individuais tambm muito variada, escalonando-se em mltiplos graus, desde a rejeio absoluta at a adeso completa.

No campo da mentalidade coletiva, h sempre, em todas as sociedades, vrias espcies. Sem dvida e nisso os historiadores muito se destacaram existe uma mentalidade geral, comum ao conjunto dos membros de uma sociedade, em determinada poca. Mas no interior de uma grande sociedade, ou mesmo de toda uma civilizao, cada grupo mais ou menos extenso e importante dotado de uma mentalidade particular, claramente distinta da dos demais grupos. Assim, por exemplo, como sustentou Marx, h incontestavelmente no mundo moderno, plasmado pelo sistema capitalista hegemnico, mentalidades de classe; assim como havia, na sociedade medieval, mentalidades prprias de cada ordem ou estamento. H tambm, necessariamente, mentalidades etrias, de gnero, de casta, de etnia; mentalidades urbanas e campestres; mentalidades regionais e nacionais; e assim por diante.

J as instituies de organizao social formam-se em torno das relaes de poder, com base em sistemas normativos. Nas civilizaes do passado, tais sistemas eram fundamentalmente costumeiros e locais. Nas civilizaes modernas, eles so formados, de modo predominante, por normas escritas. Alm disso, o mbito de aplicao dessas normas ultrapassa hoje as fronteiras de cada Estado e tende a estender-se a toda a humanidade.A estirpe civilizatria indo-europia

At propriamente a metade do sculo XX, distinguia-se uma linhagem lingstica indo-europia, abarcando os idiomas de quase toda a Europa, bem como do planalto iraniano e da sia do Sul. Poucos estudiosos, porm, sustentavam a existncia de uma estirpe de civilizaes indo-europias. Em seu clssico A Study of History, por exemplo, Arnold Toynbee nada diz a esse respeito.Foi somente a partir de meados do sculo passado, que alguns eminentes estudiosos europeus, dentre os quais convm destacar Georges Dumzil, fixaram sua ateno sobre uma longa linhagem cultural, envolvendo no apenas idiomas, mas mitologias, rituais, formas de organizao da sociedade, expressas ou no em obras literrias; linhagem essa que remonta ao terceiro milnio antes de Cristo, poca em que uma horda de cavaleiros migrantes, oriundos provavelmente do sul da Rssia atual, invadiu a maior parte do continente europeu e avanou at os confins da ndia.

O conjunto desse enorme acervo cultural articula-se em torno de uma estruturao da sociedade em trs grupos distintos: sacerdotes, aristocratas-guerreiros e agricultores. Cada um desses grupos encarrega-se de uma funo determinada: os sacerdotes oram, conciliando as boas graas dos deuses; os guerreiros combatem, defendendo a sociedade contra o inimigo externo; os agricultores produzem bens, assegurando a subsistncia fsica de todos.

Trata-se de uma organizao social hierarquizada, na qual os dois primeiros grupos so os nicos a dispor de poder: os sacerdotes sobre as almas e os militares sobre os corpos, enquanto o terceiro grupo permanece sempre sujeito aos demais. Para ficarmos em um s exemplo histrico, em Roma, com a instaurao da repblica e a distino (mas no separao) entre o direito religioso (fas) e o direito leigo (ius), aos magistrados (no sentido antigo de altos funcionrios pblicos) foi reconhecida a potestas, isto , o poder de coao sobre outrem. O grau mximo da potestas era o imperium, reservado aos comandantes militares. J aos sacerdotes e, segundo a tradio religiosa mantida durante a repblica, tambm ao senado reconheceu-se a auctoritas, isto , o prestgio moral, que dignificava o seu titular como merecedor de respeito e venerao.

Assinale-se que tanto a potestas, quanto a auctoritas, eram no direito romano poderes-deveres e no simples faculdades ou direitos subjetivos. Ou seja, todos os agentes pblicos tinham, no regime republicano, o dever de atuar em prol do bem comum do povo (res publica), acarretando sua omisso no cumprimento desse dever graves sanes.Aos titulares da auctoritas incumbia, primacialmente, zelar pelo escrupuloso respeito aos valores e costumes tradicionais (mores maiorum) da Urbs. No perodo republicano, chegou-se a atribuir a magistrados especiais os censores o poder de julgar e sancionar os desvios de comportamento pessoal, em todas as categorias de cidados, tanto na vida privada, quanto na pblica. O culpado recebia uma nota de infmia, que o inabilitava ao exerccio das funes pblicas e dos direitos polticos, especialmente o de voto. No edito que esses magistrados publicaram em 92 a.C., para anunciar como haveriam de exercer a funo censria durante o tempo de seu mandato, o repdio s inovaes sociais foi expresso de modo peremptrio, com a conciso prpria do estilo romano: Renunciamos a ser homens que instituem um novo gnero de vida. [...] Essas novidades, que surgem ao lado dos usos e costumes ancestrais, so inaceitveis e imorais.

A transio medieval para o mundo moderno

A Alta Idade Mdia (sculos V a XI) foi, incontestavelmente, o perodo em que a tripartio social de origem indo-europia chegou ao auge.

Um documento do incio do sculo XI, Carmen ad Rodbertum regem, atribudo a Adlbero, bispo franco de Laon, explica com clareza as funes de cada um desses trs grupos em que se repartia a sociedade: os clrigos, os aristocratas-militares e os camponeses. Trata-se de uma srie de conselhos dirigidos a Roberto, o Piedoso, rei dos francos, e escritos retoricamente em forma de poema (carmen). Eis a passagem mais importante:

A ordem eclesistica compe apenas um s corpo, mas a sociedade inteira est dividida em trs ordens. A par do j citado corpo, a lei reconhece outras duas condies (sociais): o nobre e o servo no se regem pela mesma lei. Os nobres so os guerreiros, os protetores das igrejas. Defendem todo o povo, assim os grandes como os pequenos, alm de se protegerem a si prprios. A outra classe a dos servos. Esta raa de desgraados nada possui sem sofrimento. A todos, fornecem eles provises e vesturio, sem os quais os homens livres pouco valem. Assim, pois, a cidade de Deus, tida como una, na verdade trplice. Uns rezam, outros lutam e outros trabalham. As trs ordens vivem juntas e no sofreriam uma separao. Os servios de cada uma dessas ordens tornam possveis as atividades das duas outras. E cada qual, por sua vez, presta apoio s demais. Enquanto esta lei esteve em vigor, o mundo teve paz. Mas, agora, as leis se debilitam e toda paz desaparece. Mudam os costumes dos homens e muda tambm a diviso da sociedade.

Na poca em que foi escrito esse texto, uma clara tendncia modificadora da tripartio estamental j se iniciara. Era contra essa mudana de costumes que se dirigia a lamentao de Adlbero, saudoso dos velhos tempos. Da mesma forma, a revolta dos bares ingleses contra Joo Sem-Terra, em defesa das tradicionais prerrogativas do clero e da nobreza, de onde se originou a Magna Carta de 1215, combatia a desordem denunciada por Adlbero.

Ora, justamente na mesma poca em que o bispo franco exprimia as suas lamentaes, manifestavam-se na pennsula itlica os primeiros sinais distintivos da grande ciso histrica, que separou o mundo antigo do mundo moderno. L, com efeito, a partir do sculo XII, nasceu e prosperou rapidamente uma nova espcie de civilizao, radicalmente diversa de todas as que a precederam, tanto sob o aspecto da mentalidade coletiva, quanto da organizao das instituies sociais. Era o capitalismo.

A mudana radical de mentalidade correspondeu ao surgimento, como modelo global de vida, da busca do lucro mximo pelo exerccio profissional de uma atividade econmica. Foi aquilo que Max Weber denominou, em obra de grande repercusso, o esprito do capitalismo.

Em nenhuma civilizao do passado, jamais se considerou o acmulo de bens materiais como finalidade ltima da vida. Especificamente de acordo com a tradio indo-europia, a riqueza no se adquiria pelo trabalho, mas era um atributo vinculado normalmente ao estatuto da nobreza.

A nova tica capitalista ops-se radicalmente a essa concepo. Como recomendou o florentino Paolo di Messer Pace da Certaldo, vrios sculos antes de Benjamin Franklin (Advice to a Young Tradesman), citado e largamente comentado por Max Weber em sua mencionada obra, se tens dinheiro, no fiques inativo; no o guardes estril contigo, pois vale mais agir, mesmo se no se tira lucro da ao, do que permanecer passivo, sem lucro tampouco.

Escusa lembrar que a condio de senhor feudal fundava-se, necessariamente, na posse legtima da terra, e esta era, em consequncia, um bem inalienvel. Foi somente com a decadncia do feudalismo que os burgueses abonados puderam dar-se ares aristocrticos, comprando terras pertencentes a senhores feudais. De onde o velho provrbio napolitano: chi ha danari compra feudi ed barone.

Da mesma sorte, os lavradores da terra, membros do terceiro estamento, viviam, de gerao em gerao, vinculados gleba; de onde a sua designao consagrada de servos da gleba. A expresso exata, pois eles eram, de certa forma, submetidos antes terra do que ao senhor feudal. Este falecia e era sucedido pelo seu herdeiro, mas a terra continua sempre a mesma, imvel em todos os sentidos.A posse legtima da terra era, portanto, em si mesma, um ttulo de nobreza. At a Idade Moderna, prevaleceu incontestada a mxima res mobilis, res vilis: o vilo s era admitido a possuir coisas mveis. Alis, sempre se proibiu a certas pessoas, como os judeus, a posse de terras. De se notar, ademais, que o retorno ao conceito romano da propriedade (dominium) como um direito absoluto ainda no havia ocorrido, e todo o esforo dos legistas burgueses, poca, consistiu em restabelecer esse conceito, vital para o capitalismo.

Dada, por conseguinte, a vinculao essencial da posse da terra com a condio estamental de nobreza, era evidente que o sistema jurdico medieval jamais poderia admitir que a terra e os demais bens imveis fossem objeto de operaes mercantis.Interessante observar que, mesmo aps a Revoluo Francesa, que destruiu o sistema jurdico feudal, a separao absoluta entre o comrcio e a atividade imobiliria permaneceu em vigor na legislao napolenica. No Cdigo de Comrcio francs de 1807, que serviu de modelo a todas as legislaes comerciais do Ocidente at o sculo XX, o art. 632 disps: La loi rpute acte de commerce tout achat de denres et marchandises pour les revendre, soit en nature, soit aprs les avoir travailles. O comerciante , portanto, aquele que lida com mercadorias. Na lingua ptria, o verbo mercar (do latim mercor, -ari; de onde mercatura, isto , a profisso do comerciante, dito mercator) significa fazer comrcio, comprar para revender, mercadejar. O componente semntico indissocivel de mercadoria e de mercador justamente a realizao de lucros, como objetivo da operao de compra para a revenda.

Ora, o esprito material do capitalismo para usarmos novamente a expresso consagrada de Max Weber consiste, como Karl Marx bem advertiu, em tudo transformar em mercadoria: bens, ofcios pblicos, concesses administrativas; e at pessoas, como os trabalhadores assalariados ou os consumidores. Deparamo-nos, a, com uma radical desumanizao da vida. O capital, como valor supremo, transformado em pessoa ficta, dita entre ns pessoa jurdica e em outras legislaes pessoa moral. Os homens, ao contrrio, quando despidos da posse ou propriedade de bens materiais, so aviltados condio de mercadorias vivas, quando no excludos da sociedade capitalista como pesos mortos. Ou seja, a inverso completa do princpio tico kantiano: as pessoas passam a ter um preo e perdem, desse modo, sua dignidade intrnseca.

Desumanizar a vida significa excluir da biosfera o seu centro de valor universal: a pessoa humana. Cada um de ns um ser nico, insubstituvel e irreprodutvel. A descoberta do DNA veio demonstr-lo. Ora, o sistema de relacionamento capitalista essencialmente impessoal. Vivemos, cada vez mais, em um mundo de organizaes artificiais sem nome, nas quais desaparece inteiramente a figura humana. No , pois, por simples coincidncia histrica se uma das principais criaes do engenho mercantil capitalista a sociedade annima.

A rigor, as sociedades por aes foram um prenncio da sociedade de massas do mundo contemporneo, onde a impessoalidade geral gerou uma formidvel crise de responsabilidade, como bem assinalou Hans Jonas, em celebrado ensaio. Nas macro-empresas capitalistas, ningum sabe, a rigor, quem o controlador, pois as participaes de capital, diretas ou cruzadas, constituem um emaranhado ou uma cadeia sem fim. Nessas megacompanhias, alis, o corpo acionrio acaba por ficar inteiramente alheio aos negcios sociais, de forma que o controle empresarial efetivo passa a ser assumido pelos administradores: o management control, j apontado por Berle e Means em seu estudo seminal dos anos 30 do sculo XX.

Foi preciso, pois, contrariando inveterado dogma do Direito, criar uma responsabilidade penal da pessoa jurdica; como ocorreu entre ns com a promulgao da Lei n 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, relativa a condutas e atividades lesivas ao meio ambiente.O nascimento do capitalismo na Idade Mdia europia representou, por conseguinte, sem nenhum exagero, a mais profunda cesura verificada em todo o processo histrico. Nas civilizaes do mundo antigo, como tive ocasio de assinalar, sempre se votou o maior desprezo pelos ofcios mecnicos e a atividade mercantil. que nenhum dos que se dedicavam a tais ofcios ou ao comrcio pertencia, de direito e de fato, a um dos trs estamentos tradicionais da multimilenar cultura indo-europia. Os homens de negcio no nasciam guerreiros nem agricultores, e sua atividade profissional era considerada absolutamente incompatvel com o status religioso.

Independentemente disso, a vida urbana em geral e a atividade mercantil em especial sofreram um verdadeiro colapso em toda a Europa no sculo VIII, quando a regio da bacia do Mediterrneo foi conquistada pelos rabes. A partir de ento e durante pelo menos cinco sculos, os povos europeus se concentraram sobre si mesmos, abandonando todo contato com outras civilizaes. Subsistiram, em pontos isolados e sem comunicao regular entre si, cidades episcopais e castelos feudais, estes ltimos denominados burgos. O renascimento do comrcio a partir de fins do sculo XII, conseqente retomada da navegao martima no Mediterrneo e reconquista das reas territoriais ocupadas pelos invasores sarracenos, provocou aprecivel crescimento demogrfico e fez com que surgissem novos centros urbanos, chamados burgos de fora (forisburgus). Os que nele se instalaram, notadamente os comerciantes, passaram a ser chamados burgueses.

Tinha incio, dessa maneira, a lenta desmontagem da estrutura ternria da sociedade, na longa linhagem da cultura indo-europia. Em lugar das consagradas ordens ou estamentos, vinculados terra, surgiam nas novas cidades, doravante livres do poder feudal, grupos sociais no dotados de estatuto jurdico prprio, e que possuiam direitos e deveres formalmente iguais. O que os distinguia substancialmente entre si era, to-s, o nvel de suas posses pessoais. Nascia, com isso, a moderna sociedade de classes. Como salientam os historiadores, em Flandres j se registravam, no sculo XII, manifestaes de luta de classes no setor txtil.

Se considerarmos agora a mentalidade caracterstica da sociedade medieva, verificaremos uma mudana sensvel, da Alta (sculos V a XI) Baixa Idade Mdia (sculos XII a XV).

No primeiro perodo, predominou um sentimento de permanente insegurana diante dos mltiplos perigos da vida terrena, insegurana essa estendida, como no poderia deixar de ser, perspectiva de uma sobrevivncia alm-tmulo. Da o prevalecimento de uma viso sobrenatural da vida humana, em que tradio do culto cristo mesclavam-se, intimamente, crenas e prticas de magia.

Sem dvida, os costumes imemoriais continuaram a servir de ponto de amarrao, a fim de evitar o naufrgio individual e coletivo. Mas essas vetustas tradies passaram aos poucos, na Baixa Idade Mdia, a ser questionadas, tanto pela razo crtica no campo especulativo, quanto pela razo inventiva no terreno tecnolgico; salvo o tenebroso interregno da Peste Negra, cujo primeiro surto ocorreu em meados do sculo XIV (1347 a 1351), provocando um certo retorno ao irracionalismo e s prticas de magia do passado.

De qualquer forma, o respeito tradio consubstanciava verdadeiro dogma na Cristandade. Toms de Aquino, por exemplo, s pde renovar a especulao teolgica, utilizando-se do pensamento aristotlico recm-descoberto, porque soube ocultar habilmente essa perigosa novidade sob o manto do respeito tradio multissecular. Segundo a mentalidade dominante na poca, os antigos no teriam incorrido em erro algum; suas divergncias de opinio eram apenas aparentes e podiam ser resolvidas mediante uma anlise mais fina de seus argumentos; o que Santo Toms realizou, de modo genial, utilizando com invulgar maestria o mtodo dialtico de Pedro Abelardo.No campo das artes fsicas e mecnicas, entre os sculos XII e XV, graas em grande parte contribuio dos rabes na renovao das cincias matemticas, a Europa conheceu notvel florescncia inventiva, bastando citar, a esse respeito, a bssola (mencionada pela primeira vez em 1195), os navios a vela sem remadores, as lentes oculares, os portulanos ou primeiras cartas martimas, o emprego do carvo na indstria, os altos fornos metalrgicos, o uso do vidro na aparelhagem cientfica, o relgio mecnico, o moinho elio, a caravela e os caracteres mveis de imprensa.

Importa assinalar que essa exploso de invenes correspondeu a uma notvel mudana na mentalidade dos povos europeus: os homens passaram a olhar os feitos e ensinamentos do passado, no como modelos a serem imitados, mas sim como pontos de partida para transformaes futuras. Com apoio na tradio, a Europa voltou-se decididamente para o porvir. Gilberto de Tournai, no sculo XII, pde afirmar, peremptoriamente: Jamais encontraremos a verdade, se nos contentarmos com o que j foi descoberto. Aqueles que escreveram antes de ns no so senhores, mas guias. A verdade est aberta a todos, ela no foi ainda possuda integralmente. E Bernardo de Chartres acrescentava, na mesma poca, referindo-se autoridade dos antigos: Ns somos anes sentados nos ombros de gigantes. Vemos, desta forma, muito mais coisas e mais longe que eles, no por termos mais acuidade visual, ou porque nossa estatura maior, mas sim porque eles (os gigantes intelectuais do passado) nos carregam nos ombros e nos elevam acima de seu porte gigantesco.

Foi nesse ambiente de extraordinria mudana de mentalidade coletiva que vieram luz os primeiros sinais da grande passagem histrica do Mundo Antigo ao Mundo Moderno, com o nascimento do capitalismo.

II

Nasce o Capitalismo

A nova mentalidade burguesa

Os burgueses manifestaram desde logo uma mentalidade ou viso de mundo original, em tudo e por tudo diversa daquela que animava a sociedade antiga. Essa nova mentalidade, fundada em uma taboa de valores diametralmente oposta vigente no passado, foi registrada nos mltiplos manuais para uso dos comerciantes, largamente difundidos no meio urbano medievo. Eis algumas das mximas expostas em um manual do sculo XIV, de autoria de um annimo florentino:

No freqentes os pobres, pois nada tens a esperar deles. Intil dizer que tal mxima radicalmente contrria moral evanglica, que representava o princpio supremo de vida em toda a Cristandade. importante assinalar como esse desprezo pelos pobres permaneceu sempre vivo nas sociedades capitalistas ps-medievais, e constitui, at hoje, um dos traos salientes da mentalidade brasileira.

um grande erro fazer o comrcio de modo emprico; o comrcio deve ser feito racionalmente (il commercio se vuole fare per ragione). Alis, a primeira grande inveno do sistema capitalista foi a contabilidade por partidas dobradas, que estabeleceu o mtodo racional de apurao de perdas e ganhos na atividade mercantil, at hoje utilizado.

Tu no deves servir os outros, deixando de te servir em teus prprios negcios. o egosmo racional da atividade econmica capitalista, o qual viria a ser consagrado como princpio fundamental da riqueza das naes por Adam Smith.

As ddivas tornam cegos os olhos dos sbios e muda a boca dos justos. Se para obter o resultado esperado da transao mercantil for preciso subornar, por que no faz-lo? inegvel que as sociedades que surgiram no curso do processo capitalista colonizador, como a brasileira, nasceram para sempre marcadas pelo vcio da corrupo administrativa e judicial.

verdade que, dois sculos depois de redigidas essas mximas, muito do seu imoralismo realista acabou sendo redimido na perspectiva de um cristianismo renovado, por obra de Joo Calvino. O grande reformador ensinou que a razo humana, embora corrompida pelo pecado, no a prostituta de que falou Lutero, mas o dom divino pelo qual o Senhor habilita cada um de ns, individualmente, a conhecer os seus mandamentos e a interpretar a sua Palavra. Guiado pela razo, o fiel deve seguir rigorosamente uma ascese de trabalho, submetendo o processo de sua prpria santificao a uma anlise constante de perdas e ganhos, como se se tratasse de um empreendimento mercantil.

Temos, assim, que a combinao da vida asctica, voltada unicamente para o trabalho, sem luxo e ostentao, com a procura metdica do aumento do patrimnio, segundo o modelo da parbola evanglica dos servos que receberam talentos do seu senhor, contribuiu decisivamente para favorecer e justificar moralmente, com o selo da religio, o desenvolvimento do processo de acumulao capitalista.

Inegvel, porm, como os sculos posteriores vieram demonstrar, que essa aceitao dos valores evanglicos, na maior parte da burguesia, foi puramente nominal. A fixao exclusiva do indivduo no seu prprio interesse acabou por tornar o burgus cristo um modelo acabado de hipocrisia.Essa postura de constante dissimulao ocorreu, sobretudo, no campo poltico. Da filosofia do Iluminismo, a nova classe dos homens de negcio reteve e proclamou, como suas bandeiras de ao, a liberdade individual e a igualdade perante a lei. No terreno da prtica poltica, todavia, a mentalidade de acendrado egosmo de classe produziu um verdadeiro simulacro de tais valores. Liberdade individual, sim, mas somente para as pessoas srias e responsveis, isto , dotadas de bons recursos patrimoniais. Igualdade, sim, enquanto arma de destruio do sistema estamental do feudalismo. O princpio, desde ento publicamente assentado, que todos so iguais perante a lei (isonomia). Na prtica, porm, esse princpio mudava de sentido, reconhecendo-se, segundo a frmula clebre cunhada por George Orwell em Animal Farm, que h sempre alguns mais iguais do que outros. De onde, a legalidade da escravido, a representao poltica censitria e a excluso da cidadania para os analfabetos.A insero da burguesia na sociedade medieval europiaDe qualquer forma e antes de mais nada, era mister ao burgus, figura adventcia em um mundo dominado pela tradio, procurar instalar-se na sociedade estamental que o rejeitava. Essa instalao foi por ele efetuada de duas maneiras: ou pelo enfrentamento, ou pela conciliao de interesses.

O enfrentamento ocorreu na Lombardia e na Toscana, cinco sculos antes da Revoluo Francesa. Ainda a, como se v, os povos itlicos foram pioneiros. Em Florena, a rivalidade entre os nobres de velha cepa, os magnati, e os burgueses associados em corporaes, ditos popolani, resolveu-se em 1293 com a excluso dos membros das 147 famlias de magnati de todas as funes pblicas, e a sua sujeio a sanes penais mais exacerbadas.

A oposio entre a nobreza e a burguesia permaneceu viva em vrias partes da Europa Ocidental, notadamente na Frana; o que explica, em grande parte, o esprito revolucionrio dos burgueses na segunda metade do sculo XVIII. Em suas Memrias, Lus XIV relata que, ao assumir o trono, as finanas do reino encontravam-se exauridas. Vrias das despesas as mais necessrias e prioritrias (privilgies) de minha Casa e da minha prpria pessoa eram retardadas contra toda convenincia, ou realizadas com base to-s no crdito, com os seus inevitveis encargos; ao mesmo tempo, os homens de negcio (les gens daffaires) exibiam grande abundncia, cobrindo toda sorte de malversaes com toda sorte de artifcios, o que transparecia no seu luxo insolente e audacioso, como se eles temessem que eu os ignorasse (comme sils eussent apprhend de me les laisser ignorer).

J o exemplo mais conspcuo de conciliao entre a nova classe burguesa e a velha aristocracia ocorreu em Portugal. No sem razo que ns, brasileiros, herdamos da gente portuguesa, em particular na vida poltica, a tendncia predominante conciliao entre grupos rivais.

preciso aqui assinalar que, sobretudo na pennsula ibrica, o principal ponto de apoio da burguesia, para sua insero na sociedade estamental da Idade Mdia, foi o rei. Desde o sculo VIII, a regio meridional da Ibria foi ocupada pelos invasores sarracenos, que nela se instalaram como seu territrio de conquista. Tal fato, de decisiva importncia para a moldagem da futura sociedade hispnica e lusitana, provocou a precoce desmontagem da organizao feudal. O estamento aristocrtico-militar passou a ocupar uma posio hegemnica, avultando desde logo, dentro dele, a figura do monarca como uma espcie de general comandante.Na tradio indo-europia, o rei exercia antes funes sacerdotais do que militares. Como assinala Fustel de Coulanges, em toda a regio da bacia do Mediterrneo, segundo inveterada tradio religiosa, o lar domstico tinha sempre um sacerdote supremo, que era o pai de famlia; o lar da cria, o seu curio ou fratriarca; assim tambm, cada tribo possua o seu chefe religioso e a cidade-Estado o seu pontfice supremo, que era o monarca.Durante o perodo medievo, o rei distinguia-se dos demais aristocratas-guerreiros, no pelo imperium, mas pela auctoritas. Ou seja, ele no tinha poder sobre os componentes do seu prprio estamento, mas era reconhecido como primus inter pares, porque exercia, nos litgios entre senhores feudais, a funo de rbitro supremo.

No assim na regio ibrica, como lembrado. Desde o sculo VIII, toda a vida social passou a ser organizada militarmente, sob o comando do rei, sendo a Igreja mera auxiliar dos chefes combatentes para resistir ao avano dos infiis e, finalmente, recha-los.

A burguesia ibrica soube aproveitar-se desse enfraquecimento da mentalidade e das instituies feudais, para assumir pouco a pouco uma posio social relevante, oferecendo ao rei todo o apoio financeiro necessrio ao bom xito das operaes militares.

Assim que, desde o sculo XIV, com a ascenso ao trono portugus da dinastia de Avis, a alta burguesia comerciante e intelectual instalou-se na Corte.

Mas esse enobrecimento no foi de toda a classe burguesa. Com efeito, desde cedo estabeleceu-se no reino a distino entre homens de negcio e simples mercadores. Os primeiros, tambm chamados mercadores de sobrado, pelo fato de viverem em casas assobradadas longe de suas lojas, jamais pesavam, mediam, vendiam ou empacotavam mercadorias com as suas prprias mos, mas empregavam assistentes especificamente encarregados de exercer tais misteres. Como primeiro passo para a assimilao dessa alta burguesia nobreza, o rei concedeu-lhe, juntamente com os doutores formados em Coimbra, privilgios penais. Ou seja, exatamente o contrrio do ocorrido em Florena em fins do sculo XIII. Assim, tal como fizera com os membros da nobreza, o rei excluiu da sujeio pena vil os mestres e pilotos de navios de propriedade privada de mais de cem tonis, bem como os mercadores que tratarem com cabedal de cem mil ris e da para cima (Ordenaes Filipinas V, 138). J no tocante aplicao no processo penal da prova dos tormentos, isto , da tortura, o monarca dela excluiu, alm dos nobres, os fidalgos, cavaleiros, doutores em cnones ou em leis, ou medicina, feitos em universidade por exame, juzes e vereadores de alguma cidade (Ordenaes Filipinas V, cap. 133).

Como se v e este outro trao caracterstico da tradio poltica lusitana, transportada para o Brasil agregou-se burguesia comercial e acadmica, como novo detentor de privilgios, o estrato burocrtico.

Na verdade, o longo conbio entre poltica e comrcio em Portugal teve incio na segunda metade do sculo XIV, antes mesmo do advento da dinastia de Avis ao trono real, com a edio por D. Fernando portanto, quase trs sculos antes de Cromwell! das leis destinadas a estimular a indstria nacional da navegao e do seguro martimo. O apoio da burguesia do Porto e de Lisboa ao Mestre dAvis, em 1385, fez com que o soberano portugus passasse a gerir o reino como se fora a sua prpria casa de comrcio, empregando seus ministros como autnticos prepostos do estabelecimento rgio.

O processo de assimilao da burguesia abonada ao estamento aristocrtico culminou, no sculo XVIII, com a poltica pombalina de estmulos ao comrcio de ultramar. Nas companhias de comrcio ento criadas, os detentores de mais de dez aes do capital social tornavam-se fidalgos de pleno direito. Ao mesmo tempo, um Aviso de 9 de agosto de 1756 procurou envolver diretamente os nobres nos empreendimentos comerciais dalm-mar.

Seguia-se, com isso, o exemplo j bem assentado, segundo o qual o enobrecimento do comrcio vinha de cima. Com efeito, iniciada a grande explorao martima no sculo XV, estabeleceu-se desde logo o monoplio da Coroa para o comrcio de ultramar. Contrariando longussima tradio, o soberano portugus assumiu a condio de Comerciante-Mr. A alcunha de Rei da Pimenta, dada a D. Manuel, o Venturoso, por Francisco I, rei da Frana, difundiu-se em todas as Cortes europias. Por outro lado, nas colnias portuguesas, foi sempre habitual o exerccio do comrcio pelos governadores nomeados pela metrpole.

Na verdade, no foi apenas a burguesia que se assimilou nobreza; esta seguiu tambm o caminho inverso e tornou-se comerciante.

A febre especulativa desde cedo tomou conta dos nobres, que se empenharam em comprar habitualmente gneros de consumo para revend-los com lucro. O que fez com que, j nas Cortes de Leiria de 1372, os representantes dos povos (isto , dos concelhos ou municipalidades) os increpassem, todos eles, de mercadores e regates. E embora persistisse bem viva a animadverso da plebe por todos os que, intitulando-se fidalgos, faziam da mercancia profisso habitual, o pendor mercantil da nobreza, equiparvel ao da burguesia, permaneceu inabalado nos sculos posteriores, tendo sido vivamente reacendido com a explorao colonial. Nas colnias, alis, a pretensa fidalguia confundia-se em regra com a riqueza pessoal. Viver lei da nobreza, segundo expresso consagrada, significava, pura e simplesmente, ser homem de posses.

O resultado que, aos poucos, estabeleceu-se a assimilao natural, na mentalidade coletiva, da situao de riqueza com o estado de nobreza. Nesse particular, do mesmo modo, somos legtimos herdeiros da cultura portuguesa. Como salientou um destacado historiador, durante todo o perodo imperial no Brasil, 41 % dos ministros de Sua Majestade foram vinculados propriedade da terra e ao comrcio. E no segundo reinado, do total dos ttulos nobilirquicos outorgados, quase 77% foram de baro, sabendo-se que o baronato era reservado pelo imperador, quase que exclusivamente, aos grandes proprietrios rurais e aos comerciantes de maior cabedal.

At a, quanto s relaes estabelecidas entre a burguesia, como novo grupo social, e a nobreza, qual incumbia, tradicionalmente, a funo guerreira.

Se voltarmos agora os olhos ao relacionamento entre os burgueses e o primeiro estamento da sociedade medieva, isto , a ordem clerical, veremos que os comerciantes lograram, paulatinamente, safar-se da primitiva condenao moral e cair nas boas graas da Igreja.

A condenao eclesistica do comrcio foi, de incio, absoluta e inapelvel. No sculo XII, a Igreja fez inserir, no Decreto de Graciano que criou o direito cannico, a sentena: homo mercator nunquam aut vix potest Deo placere (o comerciante nunca ou dificilmente pode agradar a Deus). Esse juzo condenatrio punha o comerciante como parte integrante do extenso rol de profissionais, que a Igreja medieval rejeitava s trevas exteriores: prostitutas, malabaristas, cozinheiros, soldados, aougueiros, donos de cabars; sem falar dos advogados, notrios, juizes, mdicos e cirurgies, os quais mui dificilmente podiam agradar a Deus...

Aos poucos, porm, as autoridades eclesisticas e os telogos foram mudando de opinio.

J no conclio de Latro de 1179, ao regulamentar a chamada trgua de Deus, ou seja, um armistcio religioso durante as guerras privadas que se multiplicavam nessa poca, os padres conciliares incluram entre os beneficirios, no cnon 22, padres, monges, clrigos, convertidos, peregrinos, comerciantes, camponeses e bestas de carga. Como se v, os mercadores situavam-se, nessa lista, com precedncia apenas sobre os campnios e os animais...

Ora, ainda a, a revivescncia econmica da Europa, a partir do final do sculo XII, acarretou sensvel mudana de atitudes, em relao ao comrcio. Haveria grande indigncia em muitos paises, escreveu Thomas de Cobham em seu manual de confisso do incio do sculo XIII, se os comerciantes no trouxessem o que abunda em certos lugares para outros, onde faltam esses mesmos bens.

Quanto ao pensamento teolgico, a mudana de opinio a respeito do comrcio, embora sutil, bem ilustrada pelos desenvolvimentos de Santo Toms na Summa Theologiae, a respeito dos pecados econmicos. Assim que, na primeira seo da segunda parte, questo 84, ele sustenta que a avareza est na raiz de todos os pecados; e na segunda seo da segunda parte, questo 78, que indubitavelmente a usura, isto , o ato de receber juros pelo dinheiro emprestado, um pecado. Curiosamente, porm, ao discutir logo em seguida, nessa mesma questo 78, se lcito receber dinheiro emprestado pagando juros, o grande telogo retorce o seu pensamento, para descambar em pleno sofisma:

De modo algum lcito induzir algum a pecar. lcito, porm, tirar proveito do pecado de outrem para o bem. Pois, tambm Deus usa de todos os pecados para algum bem; de qualquer mal, Ele tira um bem, diz Agostinho. [...] Igualmente na questo que nos ocupa, deve afirmar-se que de nenhuma maneira lcito induzir outrem a emprestar com usura; no entanto, receber emprstimo com juros das mos de quem est disposto a faz-lo e exerce a usura, lcito, tendo em vista algum bem, que satisfazer necessidade prpria ou de outrem. Assim como lcito a quem caiu nas mos de salteadores exibir-lhes os bens que traz consigo e deixar cometer o pecado de roubo, para no ser morto, seguindo nisso o exemplo dos dez homens que disseram a Ismael: no nos mates, pois temos um tesouro oculto no campo, como se narra no livro de Jeremias.

O direito individual de se apropriar de quaisquer bens

O instituto da propriedade, como bem assinalou K. Marx, a pedra angular sobre a qual se assenta o edifcio jurdico capitalista. O empresrio busca, incessantemente, apropriar-se, sob a forma de um direito exclusivo, de toda e qualquer coisa material dotada de utilidade para o seu negcio. Ou ento, como sucedeu no campo do chamado direito industrial, ele forceja por transformar qualquer tcnica produtiva em bem objeto de propriedade, nesse caso dita intelectual; e isto, ainda que essa tcnica sirva para a preservao da sade ou da prpria vida humana, como em matria de medicamentos.

Acontece que, durante todo o feudalismo, no havia um s direito real sobre a terra, mas vrios direitos interligados; o que representava um obstculo transformao da terra em bem de explorao capitalista.

Esta a razo pela qual, desde a Baixa Idade Mdia, os legistas burgueses, como lembrado sobretudo aps o renascimento dos estudos jurdicos, com a descoberta do Corpus Juris Civilis de Justiniano reconstruiram, contra o parcelamento dos direitos reais sobre a terra, a noo romana de dominium; isto , o direito de usar, fruir e dispor de uma coisa de modo exclusivo e sem limitao de qualquer espcie. Esse esforo secular desembocou na moderna noo de propriedade, definida no Cdigo Civil francs de 1804, dito Cdigo Napoleo, como le droit de jouir et disposer des choses de la manire la plus absolue, pourvu quon nen fasse pas un usage prohib par les lois ou par le rglements.

O capitalismo, contrapondo-se ao ideal republicano, fez desaparecer, de certa forma, a velha noo de bem comum ou comunidade. O adjetivo prprio o antnimo de comum. O que conta e sempre contou, na civilizao capitalista, o interesse prprio do sujeito de direito e no o bem comum do povo (res publica).

Ora, o golpe genial da burguesia consistiu em fazer do direito de uso, fruio e disposio de coisas, um poder sobre pessoas. Assim, por exemplo, no campo das sociedades por aes, foi preciso esperar at o terceiro decnio do sculo XX, para que dois ilustres autores norte-americanos fizessem a distino, doravante universalmente aceita, entre propriedade acionria e controle empresarial.

Nem por isso, todavia, os idelogos do capitalismo abriram mo da noo de propriedade como conceito-chave. E a razo simples: na Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado de 1789, o Tiers Etat, vale dizer, a burguesia, fez inserir, no art. 17, a expresso famosa de que a propriedade um direito inviolvel e sagrado.

No havia razo melhor para a defesa aparentemente humanista do poderio do capital: tocar no poder de controle violar o direito fundamental de propriedade. At hoje, na doutrina e na jurisprudncia, tanto aqui, quanto alhures, no se consegue entender que a propriedade somente direito fundamental, quando diz respeito a bens indispensveis a uma vida digna por parte do seu titular. Fora dessa hiptese, e notadamente quando a propriedade envolve um poder sobre outras pessoas como o caso, por exemplo, da propriedade do pacote acionrio de controle de uma empresa ela um direito ordinrio. Em conseqncia, nessa hiptese, no deve ser aplicada, na desapropriao, a garantia fundamental estabelecida no art. 5, XXIV da Constituio Federal, segundo a qual, o Estado deve pagar ao desapropriado uma justa e prvia indenizao em dinheiro.

Repita-se, sem cessar: a propriedade, como direito fundamental, tem unicamente por objeto bens necessrios preservao de uma vida digna para o seu titular; o poder, diferentemente, uma relao de mando de algum sobre outrem, a ser exercido em benefcio alheio e no em proveito prprio.

Temos, pois, que o capitalismo, como civilizao nascente na Baixa Idade Mdia, manifestou, desde logo, uma extraordinria capacidade em consolidar-se e expandir-se ao mundo todo, graas introduo, de incio ao lado, e logo depois acima do poder tradicional de aristocratas-guerreiros e autoridades religiosas, de uma nova fora transformadora da vida em sociedade: o poderio econmico.

o que passamos a ver.

III

O Poder CapitalistaA expanso do sistema capitalista, da Europa Ocidental ao mundo todo, representou o mais importante fator histrico de acelerao do multissecular movimento de unificao da humanidade. Essa faanha, sem precedentes no longo processo de desenvolvimento da espcie humana na face da Terra, foi, sem dvida, o resultado do exerccio de uma nova modalidade de poder: o econmico. A dominao dos ricos sobre os pobres to velha quanto a prpria humanidade. O capitalismo soube, porm, organiz-la de modo a lhe conferir extraordinria eficcia transformadora do meio social. Nesse sentido, como bem salientou Marx, ele exerceu na Histria um papel eminentemente revolucionrio.

Vejamos, pois, quais as caractersticas especficas do poder capitalista.

Um poder autocentrado, que nasce fora do Direito e procura sempre afastar-se dele

Antes de mais nada, o poder capitalista no dispe, salvo em casos determinados, de um ttulo no sentido jurdico; isto , de um fundamento reconhecido pelo Direito. Trata-se, em geral, de um poder de fato.

O poder jurdico implica, necessariamente, a contraparte do dever de obedincia pelo sujeito passivo. No assim, o poder de fato. E isto se explica logicamente, porque o titular de um poder jurdico deve sempre exerc-lo, no no seu prprio interesse e benefcio, mas em prol de outrem. O poder jurdico tem uma finalidade ou funo altruista que lhe intrnseca; no assim o poder de fato.

Como vimos na primeira parte desta exposio, os dois estamentos privilegiados das sociedades de origem indo-europia o dos aristocratas-guerreiros e o dos religiosos eram dotados, de acordo com o costume imemorial, de poderes jurdicos prprios. O estamento aristocrtico tinha o poder de arregimentar a todos, para a defesa da coletividade contra o inimigo externo. E o dos religiosos era dotado da necessria auctoritas, para impor a todo o grupo social a obedincia aos dogmas de f e o respeito tradio dos antepassados, estes tambm assimilados de certa forma divindade.

Ora, o poder que a burguesia principiou a exercer na sociedade medieval no era reconhecido pelo Direito. Tanto mais que a riqueza dos primitivos burgueses fundava-se, como assinalado, no na terra, mas no dinheiro e outros bens mveis. Tratava-se, portanto, de uma riqueza ignbil, no sentido histrico, isto , possuida por algum que no pertencia nobreza.

Por isso mesmo, esse poder econmico, desde as origens, no visava realizao do bem comum, mas unicamente satisfao do interesse prprio do seu titular.

Como era natural, esse exclusivismo egoista levou alguns pensadores do sculo XIX, que haviam mal assimilado a teoria darwiniana, a sustentar o princpio, at hoje vigorosamente defendido no ambiente poltico e intelectual capitalista, sobretudo norte-americano, de que ns outros, humanos, devemos agir como os animais, procurando fortalecer-nos sem cessar e desprezando os pobres e os fracos. A famosa expresso survival of the fittest, geralmente atribuda a Darwin, foi, na verdade, inventada por Herbert Spencer. Ela representa, como salientou um primatlogo contemporneo, uma distoro grosseira da realidade biolgica no reino animal, que no se rege apenas pela violncia e a excluso dos rivais, mas tambm pela solidariedade e a empatia.

Visando, pois, realizao exclusiva do interesse prprio do sujeito ativo, o poder econmico capitalista, como lgico, no conhecia, de incio, deveres positivos correspondentes. O ordenamento jurdico no obrigava o empresrio capitalista a usar de seu poder econmico em benefcio de outrem. O seu nico dever era de respeitar a mxima geral de no lesar ningum (neminem laedere, segundo a tradio jurdica romana).

Mas, como sucedeu no evolver histrico de todas as sociedades, para que tal dever geral fosse respeitado, a autoridade poltica teve que baixar proibies especficas, combinadas com as correspondentes sanes, civis ou penais.

Seguindo os ideais socialistas, a Constituio Mexicana 1917 disps, em seu art. 27, que a propriedade das terras e guas, compreendidas dentro dos limites do territrio nacional, pertence originalmente Nao, a qual teve e tem o direito de transmitir o domnio delas aos particulares, constituindo assim a propriedade privada. E em 1919, a Constituio Alem, dita de Weimar, estatuiu em seu art. 153: A propriedade obriga (Eigentum verpflichtet). Seu uso deve, ademais, servir ao bem comum.

Criava-se, destarte, a chamada funo social da propriedade, que a nossa Constituio de 1988 consagrou em seu art. 5, inciso XXIII.Nessa mesma linha de reao contra a irresponsabilidade capitalista, construiram-se, nos diferentes ordenamentos jurdicos nacionais e tambm no internacional, os novos sistemas do direito do trabalho, do direito do consumidor e do direito do meio ambiente.

Ao mesmo tempo, renovou-se o direito societrio. Com a distino finalmente estabelecida em lei entre propriedade acionria e poder de controle empresarial, ao titular deste ltimo foram atribudos deveres especficos. Entre ns, a lei de sociedades por aes de 1976 disps, em seu art. 117, pargrafo nico, que o acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua funo social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender.

Ainda no campo das sociedades por aes, a lei alem de 1965 cunhou a expresso influncia dominante (beherschendes Einfluss), para caracterizar a situao de uma empresa que, sem ser, direta ou indiretamente, acionista de outra, exerce sobre esta um poder de controle, obrigando os seus administradores a seguir diretrizes favorveis controladora, ainda que prejudiciais controlada. o que sucede, por exemplo, nas relaes entre uma empresa transnacional e suas operadoras em vrias partes do mundo.

Pois bem, exatamente essa influncia dominante camuflada representa o tipo de poder que os protagonistas do capitalismo exercem, no campo poltico e administrativo: os lobbies sobre parlamentares ou membros do governo; a oferta de financiamento de campanhas eleitorais; a obteno, lcita ou ilcita, de concesses administrativas de servios pblicos; a privatizao de empresas estatais, e assim por diante.

Seja como for, a procura da realizao do prprio interesse econmico a busca de lucros mximos, em qualquer circunstncia torna a empresa capitalista funcionalmente imprpria prestao de servio pblico. Eis por que, no rigor do princpio republicano, ela no deveria poder exercer qualquer espcie de concesso administrativa.

Ora, esse poder que nasce fora do Direito, e que a ele se submete constrangidamente, procura sempre voltar s suas origens, levantando todas as peias jurdicas criadas historicamente para limitar sua atuao. Esse retorno ao ponto de partida s foi alcanado no ltimo quartel do sculo XX, quando o capitalismo se imps como civilizao mundial e julgou-se em condies de lanar, nos quatro cantos do planeta, o movimento global de desregulamentao.

Hoje, j se sabe, com absoluta certeza, que a grande recesso mundial iniciada em 2008 teve como principal causa a desregulamentao da atividade financeira e especulativa, iniciada nos Estados Unidos e rapidamente expandida ao mundo todo.Pois bem, uma das conseqncias que os lderes capitalistas tiraram desse desastre mundial foi a de que o sistema precisava ocultar do grande pblico o seu furioso egoismo. Da, seguindo a diretriz de autolegitimao da qual tratarei mais adiante, a iniciativa de alguns multimilionrios, sobretudo norte-americanos, de insistir para que as macro-empresas privadas criem fundos ou fundaes de beneficncia, completando-se assim a idia lanada pelos intelectuais orgnicos do capitalismo (no sentido gramsciano) de responsabilidade social das empresas.A superposio do poder privado ao poder pblico

Fundado essencialmente na propriedade privada, o poder capitalista busca, necessariamente, substituir a esfera pblica pela particular, onde prevalece a dominao tradicional dos ricos sobre os pobres.Essa a razo pela qual, os lderes capitalistas jamais podem se desinteressar da poltica, como forma de organizao mais abrangente da sociedade.Alis, para os doutrinadores que deram o primeiro embasamento terico ao capitalismo, a exemplo de Adam Smith, toda a esfera da poltica deve estar a servio da economia, e no o contrrio, como sustentaram os pensadores antigos. Na ideologia capitalista, a economia, pela sua prpria natureza, uma atividade exclusivamente privada, cujo desenvolvimento no deve, em momento algum, ser dirigido ou regulado pelas autoridades polticas, pois a propriedade privada sagrada. Importa frisar que esse adjetivo, no sentido etimolgico da palavra, designa algo que deve ser posto parte, algo propriamente intocvel. O grande pensador escocs, sem meias palavras, chegou a afirmar que o poder poltico, na medida em que foi institudo para garantia da propriedade, existe, na verdade, para defender o rico contra o pobre, vale dizer, aqueles que possuem algo contra os que nada tm.

Ora, a superposio do poder privado ao poder pblico constitui a grande disrupo social, que o capitalismo provocou no mundo moderno. Ao se apropriar das invenes tecnolgicas, primeiro para a explorao das fontes de energia e em seguida para a fabricao de bens, sempre no interesse do proprietrio e no no interesse pblico ou geral, o sistema econmico capitalista produziu um triplo efeito deletrio: a acelerao dos ritmos de vida, o esgotamento dos recursos naturais e a degradao do meio ambiente.J se observou com razo, alis, que nos sistemas complexos a regulao do todo no pode ser efetuada a partir da base, isto , de um nvel de organizao inferior. Sendo a ordem econmica um sistema semelhante aos dos organismos vivos, a finalidade do todo h de prevalecer sobre a dos seus subsistemas. Em qualquer hiptese, reduzir o conjunto da vida social lgica do mercado uma colossal aberrao, que destri o equilbrio fundamental da bioesfera.

A crise mundial do capitalismo financeiro, irrompida em 2008, deu-nos um exemplo trgico do que significa essa submisso da esfera pblica ao poder capitalista privado. Estimou-se, assim, em 11.400 trilhes de dlares o total de recursos financeiros transferidos pelos Bancos Centrais do mundo inteiro s instituies financeiras insolventes; cifra essa que, repartida por todos os habitantes do planeta, representou 1.676 dlares por ser humano.Um poder que exige a contnua concentrao de capital e uma expanso geogrfica sem limites

O poder econmico capitalista est intimamente ligado capacidade de permanente acumulao e centralizao do capital.

Marx procurou distinguir tecnicamente esses conceitos. O processo de acumulao do capital, salientou ele, diz respeito ao aumento de seu valor econmico ou contbil. A centralizao, diferentemente, a concentrao dos capitais j formados, a supresso de sua autonomia individual. Ns diramos hoje, com maior preciso, que a centralizao do capital um processo ligado ao poder de controle e no propriedade pura e simples dos bens empresariais. O acionista minoritrio pode ver aumentado o valor de sua participao no capital da sociedade annima, sem que isto signifique, minimamente, mudana no poder de controle empresarial, que tem por objeto a totalidade dos acionistas, os trabalhadores por ela empregados e todos os que vivem, de modo geral, em funo da empresa.

Na verdade, a contnua acumulao de capital, em cada empresa, uma condio indispensvel sua sobrevivncia em um mercado competitivo. Se o capital permanece o mesmo, o poder da empresa no mercado se enfraquece automaticamente.

O processo interno de acumulao do capital est necessariamente ligado ao aumento constante do lucro lquido, o qual depende, por sua vez, do volume de negcios da empresa; pois cada operao empresarial deve ser lucrativa, e parte do lucro lquido apurado em balano normalmente transferida conta de capital.

Mas alm desse processo de acumulao interna do capital, o seu aumento tambm pode realizar-se por meio de novas subscries, em Bolsa ou fora dela, ou ento mediante fuses e incorporaes de outras empresas, ou pelo estabelecimento de consrcios.

Pois bem, a par dessa necessidade de contnua acumulao do capital para sobreviver, as empresas capitalistas e o prprio sistema em seu conjunto so forados a uma permanente expanso de sua rea de atuao territorial.

Marx e Engels bem assinalaram que o fator-chave, a impulsionar a burguesia na empresa de dominao mundial, foi a necessidade de se abrirem espaos cada vez mais amplos para o escoamento da produo de bens e a absoro de servios, os quais se multiplicaram em proporo geomtrica, desde que a tecnologia tornou-se a mola mestra do processo produtivo.

Ao estudar a histria econmica europia, Fernand Braudel chamou a ateno para o fenmeno constante a partir da Baixa Idade Mdia de formao de certas reas territoriais de dimenso cada vez maior, em que uma mesma atividade econmica sobrepe-se a culturas e organizaes scio-polticas as mais diversas. Deu a esse fenmeno a denominao (canhestra, como ele prprio reconheceu) de economia-mundo.

Pois bem, foi esse, indubitavelmente, o principal mtodo de expanso mundial do capitalismo, a partir do seu primitivo ncleo na Europa Ocidental. O mesmo sistema de atividade econmica adaptou-se, rapidamente, s mais variadas culturas e a todas as religies, mundo afora. Nessa colossal empreitada, o capitalismo acabou por provocar, em toda parte, a uniformizao das produes culturais e das formas de vida privada, incluindo, como bem salientou um autor, o vesturio, a alimentao, os registros horrios, as estruturas lingsticas, as prticas de esporte e lazer, e at mesmo a atribuio de prenomes s pessoas.

Graas propaganda ideolgica difundida atravs dos meios de comunicao de massa, como veremos mais abaixo, o sistema capitalista logrou conquistar as mentes e os coraes dos povos submetidos dominao de seu arqui-inimigo: o regime comunista.

A expanso mundial do capitalismo, a partir da Europa Ocidental, teve incio no sculo XVI, quando foi lanada a grande empresa imperial-colonialista dos tempos modernos.

O nosso pas foi uma das regies pioneiras do capitalismo agroindustrial, sendo o acar brasileiro a mais importante e disputada commodity no mercado europeu, a partir do final do sculo XVI. Para esse empreendimento novo, utilizamos um instituto jurdico, cuja estrutura e funes merecem ser ressaltadas: as sesmarias.

Elas foram criadas em Portugal por uma lei de D. Fernando, datada de 1375. Seu objetivo era remediar a srie crise de abastecimento que afligia ento o reino pela falta de mo-de-obra, em conseqncia da mortandade provocada pela Peste Negra. O monarca determinou, para tanto, o cultivo obrigatrio de todas as herdades que som pera dar pam. Em conseqncia, se o proprietrio no pudesse ou no quisesse cultivar diretamente o solo, deveria d-lo em arrendamento a algum que assumisse essa tarefa, sob pena de confisco, devolvendo-se a terra ao soberano. Esta, alis, a origem da expresso terras devolutas.

O instituto j fora aplicado com proveito na colonizao das ilhas portuguesas do Atlntico, quando, com a descoberta do Brasil, decidiu-se transplant-lo ao territrio da nova colnia. Ao instituir, em 1534, o sistema de capitanias hereditrias, D. Joo III determinou que cada donatrio recebesse, como de sua exclusiva propriedade, uma faixa de dez lguas, contada a partir da linha litornea, e distribusse, a ttulo de sesmarias, o restante do territrio sob seu comando.

Ao assim decidir, o soberano portugus investiu, portanto, de poderes regalianos os titulares das capitanias criadas em territrio brasileiro. Eles no s tinham jurisdio sobre todo o territrio que lhes fora doado, como ainda lhes competia distribuir sesmarias a quem lhes aprouvesse.

Intil dizer que a fiscalizao do exerccio de tais poderes pblicos, pelos titulares das sesmarias, revelou-se desde logo impossvel, no s pelas dificuldades bvias de comunicao entre a metrpole e o Brasil, e no interior do nosso vasto territrio, mas ainda pelo reduzidssimo corpo de funcionrios incumbidos dessa fiscalizao.

O sistema sesmarial permaneceu em vigor entre ns at a Lei de Terras de 1850. Embora a partir desse diploma legal os latifundirios no tivessem mais poderes regalianos oficiais, eles continuaram a exerc-los de facto, como coronis da Guarda Nacional. No grande domnio rural, o proprietrio concentrava todos os poderes, sem estar obrigado a respeitar os direitos de ningum. Alm disso, o latifndio era uma espcie de territrio autrquico, a partir do qual o proprietrio estabelecia, com os demais senhores rurais, relaes de potncia a potncia.

A segunda vaga de globalizao foi bem diferente da primeira. Ela no mais se fundou no imperialismo colonial, mas articulou-se em torno da dominao financeira e tecnolgica das regies mais pobres do mundo.

Agentes diretos desse segundo processo de globalizao foram as empresas multinacionais e transnacionais. As primeiras instalam-se em diversos pases e submetem-se legislao local em todas as matrias, notadamente no que diz respeito s relaes de trabalho, concorrncia e proteo do meio ambiente. J as transnacionais operam no mundo todo, no mediante investimentos locais, mas por meio da criao de uma rede de fornecedores, montadores e distribuidores, a elas ligados por contrato, e substituveis a qualquer tempo.

No incio do presente sculo, calculou-se que o volume global de negcios das 150 maiores empresas multinacionais e transnacionais superava o PIB de 150 paises, e equivalia a quase 30% do produto mundial.

Um poder de vocao hegemnica

Como lembramos no incio desta exposio, em todas as civilizaes de origem indo-europia apenas dois grupos sociais eram dotados de poder: os aristocratas-guerreiros monopolizavam o poder das armas e o grupo sacerdotal concentrava em suas mos o poder sobrenatural. Tais posies sociais no se superpunham, mas harmonizavam-se entre si.

Vimos, tambm, como a burguesia nascente foi, aos poucos, conquistando espao na sociedade medieval, junto a esses dois estamentos tradicionais. Ela se aproximou da nobreza, como fornecedora de vveres e bens importados, e como financiadora das expedies militares, regularmente organizadas pelos senhores feudais; quando no se enobreceu diretamente, pela compra de ttulos ou terras de baronia. Ela acabou, tambm, por associar-se ao estamento eclesistico, lanando mo dos mesmos recursos econmicos. Como sabido, bispos, abades e o prprio papa, da mesma forma que os membros da nobreza laica, envolviam-se com freqncia em operaes blicas, como as sucessivas cruzadas lanadas para a reconquista dos Lugares Santos, no Oriente Mdio. O financiamento dessas expedies blico-religiosas demandava amplos recursos, de que s a burguesia apatacada podia dispor.

Ora, a partir do chamado outono da Idade Mdia, na segunda metade do sculo XV, tornou-se evidente que a conquista do Mar Oceano, alm dos confins do continente europeu, exigia a santa aliana da burguesia empresarial com a nobreza militar e os missionrios cristos.

O Manifesto Comunista afirmou que a empresa de dominao econmica mundial, iniciada pelo capitalismo, foi levada a cabo sem guerras, unicamente com o emprego das armas comerciais. O preo reduzido de suas mercadorias a grossa artilharia com a qual ela (a burguesia) demole todas as muralhas da China e obtm a capitulao dos brbaros mais teimosamente xenfobos. curioso como essa metfora da derrubada das muralhas chinesas acabou por se tornar a grande realidade mundial dos nossos dias.

Mas a tese marxista de que o capitalismo dispensa a fora militar para se expandir no mundo todo foi claramente desmentida pela Histria. A guerra, no sentido prprio e brutal da palavra, o empreendimento de destruio em massa de vidas e bens, planejado e executado com os mais aperfeioados recursos da tecnologia, foi um dos principais estmulos ao desenvolvimento mundial do capitalismo. o lado perverso e nada simblico do conceito de destruio criadora de Schumpeter.

A partir da segunda metade do sculo XIX, o xito blico tornou-se sempre mais dependente do progresso tcnico na produo industrial de armamentos, munies e veculos de combate. Desde 1861 e 1866, quando surgiram, respectivamente, a metralhadora e a dinamite, as invenes para fins blicos multiplicaram-se vertiginosamente, e foi o complexo industrial-militar que desencadeou, sob a bela e falsa aparncia de obra civilizadora (ou cultural, como preferem qualificar os alemes), a primeira onda de globalizao moderna, com o estabelecimento de novos imprios coloniais na frica e na sia. Entre 1875 e 1915, quase um quarto da superfcie do globo terrestre foi distribudo ou redistribudo, sob a forma de colnia, entre meia dzia de Estados. Antes disso, os Estados Unidos anexaram pelas armas, somente no continente americano, metade do territrio mexicano em 1848; fizeram intervenes militares em 1824 em Porto Rico, em 1845 e 1847 no Mxico (em preparao guerra de anexao do ano seguinte), em 1857 na Nicargua, e em 1860 na provncia do Panam e outra vez na Nicargua. Antes do final do sculo, o Estado norte-americano tornou-se senhor do Hava e das Filipinas, retomando, assim, o projeto original de Cristvo Colombo: alcanar o Oriente pelo Ocidente.

No decurso do sculo XX, os efeitos de destruio criadora da ao militar foram ainda mais notveis, com os xitos obtidos no controle da energia nuclear para fins pacficos, o aperfeioamento dos avies a jato e o lanamento dos primeiros veculos interplanetrios, mediante a adaptao da tcnica prpria dos msseis balsticos. Encerrada a Guerra Fria com o esfacelamento do imprio sovitico em 1989, alguns espritos ingnuos esperavam uma acentuada reduo dos gastos militares no mundo. Pura iluso: j em 2003, essas despesas atingiam o equivalente a 2,7% do produto bruto mundial, ou seja, uma cifra quase igual registrada em 1987. Em 2009, no obstante a grande crise financeira do ano anterior, as despesas militares mundiais alcanaram um recorde histrico, com um crescimento de 49% em relao ao incio do sculo.

O desfecho dessa rpida evoluo do mundo moderno tornou-se hoje patente: o poder econmico capitalista acabou por dominar o poder militar, colocando-o a seu servio, em todos os pases do globo terrestre. O sucesso blico depende, cada vez mais, de aperfeioamentos tecnolgicos, e a tecnologia mais avanada, no mundo inteiro, objeto de propriedade intelectual de macro-empresas capitalistas.

O imprio sovitico sucumbiu, por no levar em conta essa superioridade inevitvel do poder econmico sobre o militar na esfera internacional. A China tirou desde logo a lio desse formidvel episdio, embarcando, com armas e bagagens, na nau capitalista.

Quanto ao antigo poder religioso, o mesmo caminho de subservincia ao grande capital veio a ocorrer. As organizaes religiosas tornaram-se sempre mais dependentes, para sua sobrevivncia material, do concurso financeiro dos bancos, ou da rentabilidade dos fundos financeiros, dos quais adquiriram largas participaes.

J na empresa colonial europia, a submisso da Igreja Catlica aos ditames do poder econmico capitalista foi total. Exemplo conspcuo justamente o do nosso pas, onde o genocdio indgena e a escravatura de milhes de africanos e afrodescendentes fizeram-se salvo episdica exceo, quanto ao primeiro, pela resistncia dos jesutas no sculo XVII com as bnos eclesisticas. Quando a Companhia de Jesus foi expulsa do Brasil, em 1759, ela explorava 17 fazendas de acar, bem como 7 fazendas de gado com mais de 100.000 cabeas, com apoio em larga escravaria.

No sculo XX, a moderna cruzada, lanada pelo mundo livre contra o perigo comunista, realizou-se com o apoio integral das grandes religies.

Nesta altura da exposio, porm, o leitor no poder deixar de se perguntar: De que modo logrou o poder capitalista a faanha de se impor cabalmente, e no decurso de to curto perodo histrico, em quase todos os paises do globo terrestre?

o que se tentar explicar a seguir.

O poder ideolgico capitalista: uma arma de seduo permanente

Como observou Max Weber, em nenhuma sociedade o titular do que ele chamou dominao (Herrschaft), isto , do direito de comandar e ser obedecido, pode satisfazer-se com o fato, puro e simples, da obedincia dos subordinados. Ele procura sempre, de uma forma ou de outra, obter a confiana deles, ou seja, alcanar o que se consagrou denominar a legitimidade do poder.

Pois bem, essa relao de confiana (no sentido mais amplo da palavra) que explica a pacfica aceitao de qualquer espcie de poder; seja ele poltico, militar, econmico, familiar ou religioso. A fora bruta, que Bertrand Russel denominou poder nu (naked Power), est sempre fadada a uma muito breve durao.

Ora, enquanto no mundo antigo, todo voltado para o passado, a confiana inspirada por uma pessoa ou instituio, investida de poder, era fundada na tradio, no mundo moderno, essencialmente inovador, sempre de olhos postos no futuro, essa relao de credibilidade ou aprovao passou a ser, cada vez mais, construda pelo prprio titular do poder. Ou seja, toda organizao social dos nossos dias, em grau menor ou maior, deve revestir-se, para subsistir, de uma capacidade de auto-afirmao ideolgica.

As religies missionrias foram pioneiras nesse sentido, bastando citar, para ilustrao, a Sagrada Congregao de Propaganda Fide, criada pela Igreja Catlica no sculo XVII. O exemplo foi escolhido de propsito, pois o termo propaganda passou, no vocabulrio poltico, a ser amplamente utilizado para designar essa atividade programada de suscitar, entre todos de modo geral, e entre os sujeitos ou subordinados em particular, a confiana em relao ao poder proposto, ou j estabelecido.

Na Ideologia Alem, Marx sustentou que a classe que aspira dominao social obrigada a apresentar, a todos, o seu interesse prprio de classe como interesse comum ou geral. Assim foi com a burguesia e assim deveria ser com o proletariado.

O que o grande pensador no soube ou no era capaz de explicar que, para realizar esse intento, a classe dominante ou, no caso dos Estados totalitrios, como os comunistas, o estrato burocrtico dominante tem necessidade de criar uma slida organizao de propaganda.

Pois bem, os lderes capitalistas lograram alcanar esse objetivo, simplesmente concentrando em suas mos, a partir do incio do sculo XX, os mais importantes veculos de comunicao de massa: jornais e revistas, empresas cinematogrficas, estaes de rdio e televiso. Nessa colossal empreitada, o capitalismo seguiu seu curso, por assim dizer, natural: privatizou sistematicamente o espao pblico.

Por outro lado, ainda nesse setor, foi mantida a mesma lgica de concentrao de capital e de expanso geogrfica.

Nos Estados Unidos, a presso neoliberal logrou revogar em 1996 a lei de 1934, que estabelecia limites na concentrao de controle empresarial desses veculos. No mesmo sentido, em 2003 a Federal Communications Commission eliminou as proibies ento existentes para a participao cruzada no capital das empresas do setor. O resultado no se fez esperar: enquanto em 1983 havia no mercado norte-americano de comunicao de massa 50 empresas de mdio porte, hoje ele dominado por apenas cinco macroempresas.

No Brasil, assistimos ao mesmo fenmeno. Quatro grandes redes dominam quase todo o mercado nacional de televiso: a Globo controla 340 empresas; a SBT, 195; a Bandeirantes, 166; e a Record, 142. A Constituio Federal foi promulgada em outubro de 1988, mas at o momento em que escrevo estas linhas, ou seja, h mais de duas dcadas, o poder capitalista privado tem logrado impedir a regulamentao de algumas das normas constitucionais mais importantes do setor: as que fixam diretrizes para a sua organizao, como a proibio do monoplio e do oligoplio (art. 220, 5); as que estabelecem a preferncia, na produo e programao das emissoras de rdio e televiso, a finalidades educativas, artsticas, culturais e informativas, ou que impem a promoo da cultura nacional e regional (art. 221, I e II).

Como exemplo de mundializao do poder ideolgico capitalista, basta citar News Corporation, criada por Rupert Murdoch na Austrlia, e que a partir de 1981 passou a controlar empresas de comunicao de massa nos Estados Unidos, na Gr-Bretanha e na sia.

Na verdade, o mtodo capitalista de autopropaganda foi inspirado na publicidade comercial, e se reveste das mesmas caractersticas por esta apresentadas: convencer o pblico, no pela razo, mas pelos sentimentos; esmerar-se na aparncia das mensagens, sem grandes explicaes sobre o seu contedo; insistir em que a aceitao do que proposto no demanda grandes esforos nem custos ingentes, e somente produz benefcios; ao contrrio do que propem os concorrentes.

Com a aplicao mundial desse mtodo propagandstico, o capitalismo logrou um feito sem dvida indito na Histria: o poder por ele mantido, no mercado e fora dele, permaneceu em grande parte oculto. A todo tempo e de mil maneiras, os lderes empresariais proclamam sua adeso incondicional s liberdades individuais, como uma forma de contrapoder privado, diante do poder estatal.

Na prtica capitalista, todavia, a nica liberdade que se procura preservar a empresarial. Caso esta seja mantida, todas as demais podem e mesmo devem, conforme as circunstncias, ser suprimidas. Foi o que se cansou de ver na Amrica Latina, com a multiplicao de regimes autoritrios, estreitamente associados aos grandes grupos empresariais e aos latifundirios.

Quanto prpria liberdade de iniciativa empresarial, alis, o insuspeito Adam Smith no hesitou em mostrar que o equilbrio natural dos egosmos, por ele reconhecido como o grande impulso criador da riqueza material ns diramos hoje do crescimento econmico longe de produzir uma situao de geral igualdade, conduz diretamente, quando abandonado ao seu livre curso, ao monoplio. Ele reconheceu, com pesar, que a fiscalizao e a represso das manobras anticoncorrenciais devia ser feita pelos governantes, nos quais, paradoxalmente, nunca se podia confiar. A violncia e a injustia dos governantes, escreveu, um velho mal, para o qual, receio, a natureza dos negcios humanos dificilmente admite um remdio. Mas a mesquinha rapacidade, o esprito monopolista dos comerciantes e fabricantes, que no so nem devem ser governantes, embora no possa talvez ser corrigido, pode ser facilmente impedido de perturbar a tranqilidade alheia.

Doce iluso, como os sculos posteriores demonstraram cabalmente!

Em famosa conferncia pronunciada no Ateneu Real de Paris em 1819, salientou Benjamin Constant, sem mencionar minimamente o sistema capitalista, que poca ainda no alcanara a maturidade, a oposio radical entre o mundo antigo e o mundo moderno no tocante liberdade.

Mostrou que, no mundo greco-romano, os indivduos, embora soberanos em quase todos os assuntos pblicos, eram escravos em todas as relaes privadas. Como cidados, eles decidiam nas assemblias populares a guerra e a paz; como particulares, porm, eram observados, coarctados e reprimidos em quase todos os seus movimentos. Como membro do corpo coletivo, o indivduo interpelava, destitua, julgava, confiscava, exilava e condenava morte os governantes; mas como particular, podia ser interditado, banido, considerado indigno de ocupar cargos pblicos, ou condenado morte, pela vontade discricionria da assemblia do povo, da qual fazia parte.

Tal situao, frisou Benjamin Constant, contrasta vivamente com a realidade do mundo moderno. Na modernidade, o indivduo, independente em sua vida privada, j no , mesmo nos Estados que mais prezam a liberdade, soberano seno na aparncia. Sua soberania sempre restrita, freqentemente suspensa. Repetindo Rousseau sem o citar, assinalou que se o indivduo, em pocas determinadas, mas pouco freqentes, exerce essa soberania, sempre cercado de todos os limites e precaues, somente para abdic-la.

Dessa verificao histrica, concluiu Benjamin Constant que o homem moderno j no pode gozar da liberdade dos antigos, isto , da participao ativa e constante no exerccio do poder coletivo. A liberdade moderna nada mais do que a fruio tranqila da independncia privada. O objetivo dos antigos era a partilha do poder social entre todos os cidados de uma mesma ptria. Era o que eles denominavam liberdade. O objetivo dos modernos, diferentemente, de garantir a todos o gozo das liberdades privadas. A independncia individual a primeira das necessidades modernas. Em conseqncia, no se deve nunca sacrific-la, a fim de estabelecer a liberdade poltica.

Mas, concluiu ele, o grande perigo da liberdade moderna que, absorvidos, como estamos, na fruio de nossa independncia privada e na busca incessante de nossos interesses particulares, acabamos por renunciar ao nosso direito de participar do poder poltico. Os depositrios da autoridade, advertiu ele, no deixam nunca de nos exortar a tomar essa deciso. Eles esto sempre dispostos a nos poupar toda espcie de incmodo, exceto o de obedecer e de pagar! Eles nos diro: Qual , no fundo, a finalidade de seus esforos, o motivo de seus trabalhos, o objeto de todas as suas esperanas? No a felicidade? Pois bem, deixem conosco essa tarefa: ns lhes daremos a felicidade.

Desgraadamente, no este o efeito palpvel da expanso do poder capitalista a todo o orbe terrestre. Se a justia, em sua essncia, constitui uma relao de igualdade, como asseverou Aristteles, no se pode deixar de reconhecer que a sociedade mundial, construda pelo capitalismo ao longo dos ltimos sculos, revelou-se profundamente injusta.Balano da globalizao capitalistaDurante todo o perodo histrico que precedeu a Revoluo Industrial, estimou-se que a diferena existente entre a nao mais rica e a mais pobre no mundo foi inferior proporo de 2 para 1. Ao se compararem regies ou conjuntos de pases, a diferena teria sido ainda menor, e num sentido inverso ao atual. Assim, por exemplo, em meados do sculo XVIII, as atuais regies ricas do planeta tinham uma renda global per capita, calculada em dlares norte-americanos de 1960, igual, ou at ligeiramente inferior do conjunto dos pases subdesenvolvidos do presente: 182 para 188. Ao se iniciar o sculo XIX, essa relao j se invertia a favor dos primeiros: 198 a 188. A partir de ento, ela foi se alargando sem cessar e rapidamente: 324 para 174, em 1860; 540 para 175, em 1900; 1.054 para 203, em 1950, 1.453 para 250, em 1960. Nesse ano, a quinta parte mais rica da populao mundial dispunha de uma renda mdia 30 vezes superior dos 20% mais pobres. Em 1997, essa proporo havia mais do que dobrado 74 para 1 , e j nos primeiros anos do sculo XXI ela passou a ser de 80 para 1. Entre 1900 e 1998, 50 pases sofreram uma reduo no ndice do produto interno bruto per capita. verdade que, a partir do ltimo quartel do sculo XX, o panorama econmico mundial comeou a mudar. Enquanto o ritmo de crescimento econmico do conjunto dos pases desenvolvidos sofreu acentuada reduo, alguns dos maiores pases subdesenvolvidos, como a China e a ndia, conheceram um crescimento espetacular. Mas, ao mesmo tempo, a desigualdade econmica interna cresceu assustadoramente em quase todos os pases do mundo. Para medi-la, costuma-se utilizar o ndice Gini, pelo qual 0 significa igualdade absoluta e 1 a desigualdade total. Pois bem, entre 1985 e 2005, os Estados Unidos passaram de 0,34 a 0,38; a Alemanha, de 0,26 a 0,3; e a China pulou de 0,28 a 0,4. De modo global, ao fim da primeira dcada do sculo XXI, os 10% mais ricos da populao mundial controlavam 80% da riqueza mundial, enquanto os 50% mais pobres detinham apenas 2% dela.

Uma das conseqncias mais cruis do colapso mundial do capitalismo financeiro, em 2008, foi a elevao em 60% dos preos mdios dos alimentos correntes. Isto significou, de imediato, jogar na misria cerca de 110 milhes de pessoas, cuja renda disponvel gasta, em mais de 70%, com a compra de alimentos. Em 2009, o nmero de famintos no mundo alcanou a cifra-recorde de um bilho de pessoas.

No incio de 2009, o Programa das Naes Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) alertou para o fato de que, em meados do sculo, a populao mundial chegaria a cerca de 9 bilhes de pessoas, com o aumento em pelo menos 50% da demanda de alimentos. Segundo clculos das Naes Unidas, porm, a estimativa da oferta mundial de substncias alimentcias seria 25% inferior atual.

Qual a resposta dos Poderes Pblicos, nacionais ou internacionais, a essa catstrofe anunciada e datada? Nenhuma.

E qual a resposta das organizaes capitalistas mundiais? Adquirir o mximo de terras arveis na sia, na frica e na Amrica Latina, com a finalidade de vender alimentos a preos elevados, numa estimativa de lucro empresarial lquido de 20% a 30% por ano.

Em suma, para as mega-empresas capitalistas, a fome se anuncia como um dos grandes negcios do sculo.ConclusoAo iniciar esta dissertao, ressaltei que o capitalismo a primeira civilizao mundial da Histria.

Agora, pergunto: Quer isto significar que ele definitivamente a ltima delas, ou seja, que o longo curso histrico chegou afinal ao seu arremate?

A idia do fim da Histria com a cessao da luta de classes, ou com a liquidao do imprio sovitico, como foi aventado a partir de extremos opostos certamente um dos maiores dislates ideolgicos j avanados.

A Histria representa a forma de vida especfica da humanidade. Ela cessar, portanto, quando a espcie humana deixar de existir. A vida essencialmente um processo, vale dizer, um movimento para frente. Em latim, o verbo procedo, -ere, significa avanar. A partir do momento em que o ser vivo perde o impulso biolgico para o futuro, ainda que imediato, ele j um cadver latente.

Uma viso realista da Histria, luz dos princpios da evoluo biolgica, s pode, na verdade, conduzir-nos concluso de que a espcie humana, confrontada hoje ao grande desafio da desagregao em larga escala, provocada pelos desvarios capitalistas, saber optar de forma consciente e responsvel, e no mais por simples instinto pelo caminho da Vida, e rejeitar sua submisso s foras da Morte.

A construo de uma civilizao ps-capitalista apresenta-se, na verdade, como um imperativo no apenas tico, mas biolgico. O que nos deve animar, isto , dar-nos alma nova, que, concomitantemente ao avano mundial do sistema capitalista, foi sendo construido, andar por andar, o majestoso edifcio dos direitos humanos: primeiro, os direitos individuais de natureza civil e poltica; em seguida, os direitos econmicos, sociais e culturais; mais adiante, os direitos dos povos; finalmente, os direitos da prpria humanidade.

Chegamos, assim, ao momento histrico decisivo, em que devemos, todos, participar da superao do capitalismo, construindo uma nova civilizao mundial, de cunho essencialmente solidrio e no mais excludente, na qual todos os seres humanos vivam em comunho; dar nascimento, enfim, quela communis humani generis societas, anunciada por Ccero h mais de dois mil anos.

A pedra angular sobre a qual ela ir se assentar o princpio tico supremo, enunciado no primeiro artigo da Declarao Universal de Direitos Humanos de 1948:

Todos os homens nascem livres e iguais, em dignidade e direitos; so dotados de razo e conscincia, e devem agir, uns em relao aos outros, com esprito de fraternidade.

* Professor Emrito da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo, Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra.

Grammaire des Civilizations, Paris (Arthaud Flammarion), 1987, pp. 53 e ss.

A saber, Marc Bloch e Lucien Febvre, fundadores; na gerao seguinte, Georges Duby, Fernand Braudel e Jacques Le Goff.

Paris, Quadrige, 7 ed., pg. 46.

Veja-se, a propsito, o artigo de Georges Duby, Histoire des Mentalits, em LHistoire et ses Mthodes, Encyclopdie de La Pliade, Paris, 1961, pp. 937 e ss.

Veja-se o seu alentado estudo, Mythe et pope I, II, III, Paris (Gallimard).

Renuntiatum est nobis esse homines, qui novum genus disciplinae instituerunt... Haec nova, quae praeter consuetudinem ac morem maiorum fiunt, neque placent neque recta videntur.

Trata-se de um manuscrito no autgrafo, comportando vrios retoques, que se encontra registrado sob n 14192 na Biblioteca Nacional da Frana. Ele foi meticulosamente analisado por Claude Carozzi em tese defendida em 1972 na Universidade de Paris (Le Carmen ad Rodbertum regem dAdalbron de Laon, traduction et essai dexplication), citada por Georges Duby em Les trois ordres ou limaginaire du fodalisme, Paris (Gallimard, bibliothque des Histoires), 1978.

Sobre a Magna Carta, promulgada por Joo Sem Terra em 1215, sob presso dos bares ingleses, permito-me reenviar o leitor s consideraes que expendi em A Afirmao Histrica dos Direitos Humanos, VII edio, So Paulo (Saraiva), captulo 1.

9 Die protestantische Ethik und der Geist des Kapitalismus, 1904-1905.

Citado por Jacques Le Goff, em Marchands et Banquiers du Moyen Age, Paris (Presses Universitaires de France), 4 ed., 1969, p. 83.

Das Prinzip Verantwortung, Suhrkamp, 1984.

The Modern Corporation and Private Property. Cf., a esse respeito, Fbio Konder Comparato e Calixto Salomo Filho, O Poder de Controle na Sociedade Annima, 5 ed., Rio de Janeiro (Editora Forense), 2008, n 15, 16, 69, 73.

tica Direito, Moral e Religio no Mundo Moderno, 2 ed., So Paulo (Companhia das Letras), 2008, Parte I, cap. 1.

Cf. o estudo clssico de Henri Pirenne, Histoire Economique et Sociale Du Moyen Age, Paris (Presses Universitaires de France), 1963, cap. II.

Faubourg, em francs.

Cf. Rgine Pernoud, Les origines de la bourgeoisie, 4 ed., Paris (Presses Universitaires de France), 1969, pp. 25/26.

Cf. Jacques Le Goff, La Civilisation de lOccident Mdival, Paris (Arthaud), 1967, cap. IX.

Apud Jacques Le Goff, Marchands et Banquiers du Moyen Age, cit., pp. 84-85.

Cf. Darcy Ribeiro, O Povo Brasileiro A formao e o sentido do Brasil, So Paulo (Companhia das Letras), 1995, pp. 210 e ss.

It is not from the benevolence of the butcher, the brewer, or the baker that we expect our dinner, but from their regard to their own interest. We address ourselves, not to their humanity but to their self-love, and never talk to them of our own necessities but of their advantages (The Wealth of Nations, livro I, cap. II).

Max Weber, op. cit., p. 63.

Mateus 25, 1430.

Mmoires et Lettres de Luis XIV, Paris (Librairie Plon), 1942, p. 6.

La Cit Antique, livro III, cap. IX.

Como sabido, Alexandre Herculano sustentou a tese extrema de que o feudalismo nunca penetrou em terras portuguesas. Cf. Da existncia ou no existncia do feudalismo em Portugal, in Opsculos, tomo V; Controvrsias e estudos histricos, tomo II, 4 ed., Lisboa e Rio de Janeiro (Bertrand/Francisco Alves), pp. 189 e ss.

Cf. C. R. Boxer, The Portuguese Seaborne Empire 1415 1825, Carcanet, 1991, p. 333.

Segundo Pereira e Souza, citado por Candido Mendes de Almeida (Cdigo Philippino, 14 ed., Rio de Janeiro, 1870, nota 3 ao Ttulo CXXXVIII do Livro V), eram consideradas vis, no antigo Direito Portugus, as seguintes penas : a forca, as gals, a mutilao de membros, os aoites, a marca nas costas e o barao com cadeia no pescoo, chamado barao-prego.

Sobre isto, cf. Antnio Manuel Hespanha, As Vsperas do Leviathan Instituies e poder poltico, Portugal sc. XVII, Coimbra (Livraria Almedina), 1994, pp. 312 e ss. No Brasil, Raymundo Faoro desenvolveu o tema em seu Os Donos do Poder, Editora Globo, 3 edio revista, 2001.

Cf. J. Lcio de Azevedo, pocas de Portugal Econmico, Lisboa (Livraria Clssica Editora), 4 ed., passim e especificamente p. 111.

Cf. C. R. Boxer, The Golden Age of Brazil 1695 1750, University of California Press, 1962, cap. V; Stuart B. Schwartz, Sovereignty and Society in Colonial Brazil, University of California Press, 1973, pp. 194/195.

J. Lcio de Azevedo, op. cit., p. 82.

Jos Murilo de Carvalho, I A Construo da Ordem, II Teatro de Sombras, Rio de Janeiro (Editora UFRJ/Relume Dumar), 2 edio, pp. 99 e 237.

Jacques Le Goff, Marchands et Banquiers du Moyen Age, cit., p. 81.

Para uma mais ampla discusso do assunto, cf. o meu parecer O Abuso nas Patentes de Medicamentos, in Rumo Justia, So Paulo (Editora Saraiva), 2010, pp. 110 e ss.

Cf. A. Berle e G. Means, The Modern Corporation and Private Property. Sobre o assunto, veja-se Fbio Konder Comparato e Calixto Salomo Filho, O Poder de Controle na Sociedade Annima, cit.

Cf., a esse respeito, as consideraes de Fustel de Coulanges, em La Cit Antique, Livro I, cap. II.

Hans De Waal, A Era da Empatia, So Paulo (Companhia das Letras), 2009, cap. 2.

Sobre o controle externo na sociedade annima, cf. Fbio Konder Comparato e Calixto Salomo Filho, op. cit., cap. III.

A Riqueza das Naes, Livro V, cap. I: Civil government, so far as it is instituted for the security of property, is in reality instituted for the defence of the rich against the poor, or of those who have some property against those who have none at all.

Cf. Ren Passet, Lconomie et le vivant, Paris (Payot), 1979, pp. 220/221.

O Capital, livro primeiro, captulo dcimo terceiro.

Cf. sua obra Civilisation matrielle, Economie et Capitalisme XVme XVIIIme. Sicle Le Temps du Monde, Paris (Armand Colin), 1979, pp. 12 e ss.

C. A. Bayly, The Birth of the Modern World 1780 - 1914, Blackwell Publishing, 2004.

A expresso, como sabido, corresponde ao ttulo da obra j clssica de J. Huizinga, publicada na Holanda em 1919.

Cf. Eric Hobsbawn, The Age of Empire: 1875 1914, Vintage Books, Nova York, 1989.

Dados coletados pelo Stockholm International Peace Research Institute.

Wirtschaft und Geselschaft, 5 ed, Tbingen (J.C. Mohr-Paul Siebeck), 1972, p. 122.

Power, A New Social Analysis, Londres (George Allen & Unwin Ltd.), 5 reimpresso, 1948, p. 10.

Karl Marx, Friedrich Engels, Werke, tomo 3, editadas pelo Institut fr Marxismus-Leninismus beim ZK der SED, Berlim (Dietz Verlag), 1958, pp. 32/33.

So elas: Time Warner, VIACOM, Vivendi Universal, Walt Disney e News Corp.

Recomendao ingnua, que o capitali