Capital e Trabalho nos Serviços de Saúde

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 V olume 1 1.  Capital e tRabalho nos seRviços de saúde RobeRto passos nogueiRa Nota do autor: Este texto, escrito no nal da década de 1970, constitui um ensaio de eco- nomia política da saúde na perspectiva marxista. Foi apresentado em 1983 para a Escola Nacional de Saúde Pública como proposta de tese de doutorado, mas não chegou a ser de- senvolvido. Permaneceu inédito por decisão do autor que passou a considerá-lo como uma abordagem excessivamente “economicista” da organização de serviços de saúde. Contudo, dado que contém interpretações diversas sobre a relação entre sociedade, organizações e trabalho em saúde, o autor achou por bem divulgá-lo tal como oi redigido, na qualidade de um subsídio que pode ser aproveitado nas análises peculiares a um observatório de recursos humanos em saúde.

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1. 

Capital e tRabalho nos seRviços de saúde

RobeRto passos nogueiRa

Nota do autor: Este texto, escrito no nal da década de 1970, constitui um ensaio de eco-nomia política da saúde na perspectiva marxista. Foi apresentado em 1983 para a EscolaNacional de Saúde Pública como proposta de tese de doutorado, mas não chegou a ser de-senvolvido. Permaneceu inédito por decisão do autor que passou a considerá-lo como umaabordagem excessivamente “economicista” da organização de serviços de saúde. Contudo,

dado que contém interpretações diversas sobre a relação entre sociedade, organizações etrabalho em saúde, o autor achou por bem divulgá-lo tal como oi redigido, na qualidade deum subsídio que pode ser aproveitado nas análises peculiares a um observatório de recursoshumanos em saúde.

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Capital e tRabalho nos seRviços de

saúde

 

intRodução 

 A assistência de saúde recebe usualmente a designação de serviço oude prestação de serviços, quando se intenta demarcar sua posição

dentro dos grandes segmentos que compõem a divisão social do trabalho.É assim que aparece nos recenseamentos ociais, enquadrada no setorterciário da economia. A própria linguagem comum já consagrou estadenominação: ala-se de serviços de saúde, para indicar tanto os atos desaúde em si mesmos, quanto as instituições encarregadas de realizá-los.

Essa classicação, todavia, não decorre de um prévio entendimentoacerca do que seja o trabalho em saúde. Em geral, os chamados serviçossão identicados mediante uma mera regra de exclusão: todo trabalho quenão produz mercadorias passa automaticamente a esta rubrica. A assis-tência de saúde participa também desta situação “residual”, típica do setorterciário, sobre a qual um economista observa o seguinte:

“Por exclusão, o setor terciário reúne todas as atividades cuja pro-dução não é, em geral, mensurável em unidades ísicas. Neste setor, numsentido restrito, o produto somente existe durante o processo produtivo,não sendo possível manter-se um estoque dos bens obtidos. Essa caracte-rística abstrata é comum a todas as atividades do setor terciário, apesar deconstituir, possivelmente, uma das poucas semelhanças”1.

No que se reere ao seu aproundamento teórico, pouca atenção temsido dedicada, pelos economistas, ao conceito de serviços stricto sensu ,

1 Almeida, Wanderly J. M. e Silva, Maria Conceição - Dinâmica do Setor Serviços no Brasil:Emprego e Produto, (IPEA/INPES, Relatório de Pesquisa, 18), Rio de Janeiro, 1973, p.16.

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ou “serviços de consumo”2  , que engloba um sem número de atividadesheterogêneas, desde aquelas exercidas pelos empregados domésticos atéo conserto e manutenção de bens duráveis, passando pelas áreas sociaisda saúde e da educação. A maioria dos economistas, clássicos e moder-nos, preocupou-se com os serviços de consumo apenas na medida emque constituem o necessário contraponto de setores vitais da economiacapitalista: em primeiro lugar, em questões teóricas como a da velha polê-mica sobre trabalho produtivo e improdutivo; e, em segundo, mais recen-temente, na literatura sobre emprego e desenvolvimento econômico3.

 A despeito de todas as diculdades conceituais que a cercam, cre-

mos ser a noção de serviço um indispensável ponto de partida na análisedo trabalho em saúde e de suas relações com a economia capitalista. A assistência de saúde deve ser compreendida como parte de um grupo deatividades econômicas, os serviços de consumo, cujo modo de inserção nadinâmica das sociedades capitalistas apresenta características comuns. A natureza desses serviços e do capital neles empregado precisa ser previa-mente esclarecida. Surge assim, na análise, um nível intermediário, capaz

de azer evitar raciocínios mecanicistas, que resultam de se considerar otrabalho em saúde como algo singular.

Portanto, o que se impõe, de início, é o desenvolvimento do con-ceito de serviço. Para empreender tal tarea, tomaremos por base os diver-sos textos em que Marx trata do trabalho em serviços, distinguindo-o dotrabalho industrial: Grundrisse, Sexto Capítulo Inédito d’O Capital, Teo-rias da Mais-Valia. Estas obras ornecem os elementos essenciais para oentendimento dos serviços enquanto modalidade especíca de trabalho,submetida ou não a relações capitalistas. Inelizmente, entretanto, elasabordam muito precariamente os problemas relacionados com o capitalinvestido neste setor. A razão é bem simples: à época de Marx, as empresas

2 Paul Singer distingue os serviços de consumo (individual e coletivo) dos serviços de produ-ção (comércio, comunicações, transportes, etc.), c. Força de Trabalho e Emprego no Brasil:1920-1969, Cadernos CEBRAP, nº 3, São Paulo, 1971, pp. 47-8. Trata-se de uma distinçãousada para análise de dados censitários, sem implicar, da parte deste autor, numa intenção de

undamentá-la conceitualmente.3 Uma boa revisão da literatura econômica, brasileira e estrangeira, sobre serviços encontra-se

em Distribuição de Renda e Emprego em Serviços, de Anna Luiza Ozório de Almeida, (IPEA/INPES, Relatório de Pesquisa, 34), Rio de Janeiro, 1976.

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deste gênero tinham pouca importância econômica. Nas Teorias da Mais- Valia, após mencionar as escolas capitalistas como exemplo, Marx acentuaque “todas as maniestações da produção capitalista nesta esera são tãoinsignicantes comparadas com a totalidade da produção que podem serpostas de lado”4.

 Atualmente, essa observação já não se justica. Os serviços se trans-ormaram num setor relativamente importante de investimento de capitale, ademais, sua articulação com a indústria passou a ser uma das molaspropulsoras da acumulação na ase monopolista do capitalismo. Basta quese considere a incessante expansão das grandes ocinas de reparo de veí-

culos automotores e sua relevância como braço mercantil das indústriasautomobilísticas e de autopeças. Entretanto, nada há em tais enômenosque não possa ser compreendido através do manancial teórico da obramais madura de Marx, O Capital, principalmente das análises do capitalmercantil contidas no livro terceiro. É o que nos esorçaremos por azer emreerência às empresas capitalistas de saúde, sistematizando e interpre-tando seu pensamento sobre o trabalho em serviços, tentando, às vezes,

preencher algumas lacunas dessa temática, que ocupa um lugar intencio-nalmente secundário em seus textos.

Nosso estudo estará limitado às empresas capitalistas de serviçosde saúde porque entendemos que estas, além de suas particularidades,ligadas aos objetivos lucrativos, reproduzem todas as propriedades econô-micas essenciais de outros tipos de empresas (benecentes, estatais, etc.).Concentrar-nos-emos nelas por serem a orma economicamente maisdesenvolvida de prestação de serviços de saúde. Aqui, novamente, “a ana-tomia do homem é a chave da anatomia do macaco”.

Mais nos interessará extrair determinações gerais acerca do trabalhoem saúde, sob relações capitalistas, do que enocar as dimensões históri-co-concretas do sistema de atenção à saúde numa dada ormação social.Entretanto, tivemos que partir, evidentemente, da observação e do estudoda realidade brasileira, num processo para o qual muito contribuiu nossaassociação ao grupo de pesquisadores do Programa de Estudos Sócioeco-

nômicos em Saúde (PESES), particularmente na investigação denominada

4 Marx, K - Theories o Surplus Value, Progess Publishers , Moscow, 1969, Part I, p. 411.

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“O Trabalho em Saúde”, coordenada por Antônio Sérgio Arouca. Muitasdas ontes empíricas e dos conceitos que nos serviram de base para refe-xão estão contidos no relatório nal dessa pesquisa, divulgado pela FINEPsob o título “O complexo Médico Previdenciário”.

paRa uma teoRia dos seRviços 

O Conceito de Serviços: Determinação GeralEm Marx, o conceito de serviço apresenta-se sob uma determina-

ção genérica e outra especíca. Não são dois conceitos distintos, mas umúnico, colocado em dois dierentes níveis de abstração. Embora apenasa determinação especíca leve em conta as relações sociais e tenha apli-cações econômicas, a própria dialética inerente ao pensamento de Marxobriga a que se exponha inicialmente a determinação genérica.

Em seu aspecto mais abstrato, o conceito de serviço apresenta-secomo uma extensão do conceito de valor de uso. Entende-se por valor de

uso qualquer objeto (em geral, mercadoria) ou atividade (trabalho) des-tinados a satisazer alguma necessidade humana. E o que se chama deserviço constitui o consumo de um desses tipos de valor de uso, numamaneira adequada à correspondente necessidade; ou seja, constitui a ee-tiva realização da utilidade das mercadorias ou da utilidade do trabalho.

 Assim, o conceito de serviço, nessa dimensão abstrata, designa aação ou eeito dos valores de uso, no atendimento de uma nalidade pré-determinada: “serviço nada mais é que o eeito útil de um valor de uso,mercadoria ou trabalho”5.

Nessa passagem de O Capital, Marx trata os serviços em suas pro-priedades “naturais”, independentemente das relações sociais de produ-ção e de troca que envolvem as mercadorias e o trabalho humano. O tra-balho de um operário e um relógio de uso pessoal, neste sentido, em nadase dierenciam - cada qual presta seu serviço peculiar, serve a um m.

Na contribuição à Crítica da Economia Política, Marx já havia subli-

nhado esse aspecto genérico do conceito de serviço, reerindo-se especi-

5 Marx, K. - O Capital, C. Brasileira, Rio, 1968, Livro I, p. 216.

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camente à utilização das mercadorias, sob a orma de meios de consumoou de meios de produção:

“Enquanto valor de uso, a mercadoria exerce uma ação causal. O

trigo, por exemplo, age como alimento. Em certas proporções, uma

máquina suprime o trabalho. Esta ação da mercadoria, ação que az

dela um valor de uso, um objeto de consumo, pode ser considerada

o seu serviço, o serviço que ela presta como valor de uso”6.

 Ao azer tábula rasa das relações sociais, a determinação genérica

enoca apenas a aplicação das propriedades úteis das coisas ou, num sen-tido análogo, o emprego útil do trabalho.

Prestar serviço signica azer que algo seja útil a alguém. Pelo ser- viço, o valor de uso se consome enquanto tal. Todo consumo, desde queadequado às necessidades humanas, em seu caráter social, passa entãoa ser um serviço e todo serviço passa a implicar no consumo do valor deuso.

Só não é serviço, desse modo, aquilo que não satisaz uma dadanecessidade. Por exemplo, um rerigerador de ar presta serviço na medidaem que az baixar a temperatura de um ambiente; mas esse mesmo apare-lho produz certos eeitos (ruído, condensação de água, etc.) que não podemser considerados como serviço, porque não cumprem qualquer nalidadee, ao contrário, muitas vezes são “desserviços”. Trata-se de perturbaçõessecundárias que acompanham inevitavelmente aquele serviço.

Por seu nível de abstração, como também pela ênase no valor deuso, o conceito de “serviço em geral” assemelha-se ao de “trabalho produ-tivo em geral”, que Marx expõe no quinto capítulo do primeiro livro deO Capital7. Mas a análise segue caminhos um pouco dierentes, porqueali Marx põe em destaque a necessária integração dos componentes doprocesso de trabalho, na produção de valores de uso objetivos, ao passoque, no conceito de serviço, está em jogo o consumo dos valores de uso,

6 Marx, K. - Contribuição à Crítica da Economia Política, Martins Fontes, São Paulo, 1977, p.40.

7 A respeito das diversas determinações do conceito de trabalho produtivo, consulte-se A. Ber-thoud - Travail Productive et Productivité du Travail chez Marx, Maspero, Paris, 1974.

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de qualquer natureza, o que leva a vê-los isoladamente, sob a orma detrabalho ou de mercadoria.

Entretanto, a palavra serviço tende a ser empregada habitualmenteapenas em relação ao trabalho, excluindo dessa noção as mercadorias.Em algumas ocasiões, Marx reconhece essa limitação, dada pelo sensocomum, embora não deixe de traçar um paralelo com o consumo dasmercadorias:

“Esta palavra ‘serviço’ não é, em realidade, mais que um termo

de que nos valemos para expressar o valor de uso especial que o

trabalho ornece, como outra mercadoria qualquer; é, sem dúvidas,

um termo específco: o trabalho presta serviços, não como coisa,

mas como atividade, unção na qual não se dierencia de uma

máquina, um relógio, por exemplo”8.

“Em geral, a palavra serviço exprime simplesmente o valor de uso

 particular do trabalho, útil como atividade e não como objeto”9.

Neste caso, o conceito de serviço abrange, em maneira restrita, o valor de uso da orça de trabalho, a atividade que é peculiar a esta. Mascomo não se consideram, neste ponto, as dierenças de relações sociais,o trabalho de um operário tem tanto característica de serviço quanto otrabalho de um empregado doméstico, embora se saiba que, economica-mente, são distintos, pois um produz mais-valia enquanto o outro é inca-paz de azê-lo.

Em relação ao operário, seguindo a dialética marxiana, pode-se ar-mar que presta um duplo serviço - primeiro, ao ceder a seu patrão o valorde uso de sua orça de trabalho e, segundo, ao valorizar o capital, sendoeste último o principal “serviço” do ponto de vista do empresário capita-lista. Comparando o trabalho do alaiate que az roupas sob encomendacom o alaiate-operário, Marx acentua:

8 Marx, K. - Historia Crítica de la Teoria de la Plusvalia, Ediciones Brumario, Buenos Aires,1974, vol. I, p. 221. Para algumas citações, utilizamos esta versão espanhola da edição eita porKautsky das Teorias da Mais-Valia.

9 Marx, K. - Un Chapitre Inédit du Capital, Union Générale d’Éditions, Paris, 1971, p. 237.

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“...os serviços que o alaiate-operário presta ao empresário

capitalista, para quem trabalha, não consistem precisamente em

converter um tecido em calça, mas sim em azer que o tempo de

trabalho total, materializado numa calça, equivalha a 12 horas de

trabalho, por exemplo, e o salário do operário a 6 horas. Este serviço

se concretiza, portanto, em 6 horas de trabalho não-pago”10.

Produzir mais-valia torna-se um serviço especíco, na medida emque o valor de troca é o alvo do processo capitalista e, para o empresário,se constitui no verdadeiro valor de uso da orça de trabalho.

De qualquer modo, a determinação genérica está presa ao âmbitodo valor de uso. Servir signica azer-se útil, mesmo quando a utilidaderera-se à apropriação do valor de troca.

Se a análise se interrompesse no nível de determinação genérica,teríamos apenas uma compreensão parcial do conceito de serviço, envol-

 vendo categorias não propriamente econômicas, porque o valor de uso,tomado em orma absoluta, “não entra no domínio da economia política”

(Marx). Esse conceito deve, portanto, ser particularizado e só pode sê-loatravés da análise da totalidade das relações sociais, numa sociedade capi-talista. Denomina-se serviço, nessa sociedade, não o trabalho em geral,mas uma atividade especíca organizada sob distintas ormas de relaçõessociais, cujas características econômicas opõem-se às do processo de pro-dução de mercadorias. É assim que poderemos compreender a assistênciade saúde como parte da divisão social do trabalho, na qualidade de inte-grante do setor de serviços.

 Ver-se-á que o conceito especíco de serviço az reerência ainda ao valor de uso da orça de trabalho, mas como uma dada maneira de utili-zá-lo. Nessa ormulação mais concreta, a determinação genérica persisteembora como elemento superado e enriquecido por outras determinaçõesque emanam da essência da sociedade capitalista.

10 Historia Crítica..., Vol. I, pp. 220-1.

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 Alguns serviços representam meios de subsistência e outros, artigosde luxo. Entre os serviços de saúde, uma consulta de clínica médica nosistema previdenciário é um meio de subsistência, enquanto uma cirurgiaplástica para ns estéticos, realizada numa clínica privada, é um artigo deluxo. Mas em qualquer caso, a compra dos serviços dá-se como apropria-ção de meios de consumo que podem ser distinguidos em dois grupos decomponentes: 1. o valor de uso da orça de trabalho, que é o undamentode todo serviço; 2. as mercadorias eventualmente necessárias na qualidadede meios ou instrumentos de trabalho.

O usuário adquire e consome esses dois tipos de valores de uso inte-

grados num processo de trabalho. Tem-se aqui uma simples troca mercan-til: se paga à orça de trabalho conorme o tempo que dela se servir; e pelasmercadorias, conorme seu valor. O que é vendido não é o resultado ou oeeito do trabalho, mas esses elementos. É o que Marx observa a respeitodos serviços de prossionais liberais:

“Do ponto de vista econômico, é indierente, portanto, que o médicome cure, o proessor me aça aprender ou o advogado ganhe para mim

uma causa. O que lhes pago são os serviços como tais, sem que eles megarantam nem tenham por que garantir seu resultado”13.

O médico recebe pelo trabalho de diagnóstico, prescrição terapêu-tica e pelo uso de seus instrumentos de trabalho, e não pela cura de doente,que é um eeito almejado, embora não possa ser garantido de antemão. Seo paciente vier a alecer, os serviços serão remunerados da mesma ormaque se ocorresse a cura.

O usuário dos serviços procura a orça de trabalho cujas ações eeeitos supostamente correspondam a suas necessidades enquanto meroconsumidor. Em certos casos, são indispensáveis alguns meios de traba-lho, os quais passam a integrar o preço dos serviços.

 A apropriação dos valores de uso que compõem os serviços veri-ca-se no âmbito extra-econômico, como consumo privado. A denomi-nação de “consumo privado” serve apenas para estabelecer uma oposiçãoao consumo produtivo e não deve ser entendida no sentido de ser res-

trita a um indivíduo em particular. De ato, o consumo dos serviços ocorre

13 Historia Crítica..., Vol. I, p. 222.

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reqüentemente em orma coletiva, como numa escola ou num hospital,por exemplo. O importante, entretanto, é a similaridade com a compra econsumo de outros valores de uso. Se um trabalhador ou um capitalistacompra pão para seu consumo pessoal, realiza neste momento um atode circulação simples de mercadorias; mas quando um deles em seu lar,consome o pão, como valor de uso, já não se trata de um ato econômico.Retomando a determinação genérica, pode-se dizer que o pão presta seuserviço, isto é, realiza seu valor de uso, através desse consumo privado. Damesma maneira, os serviços são simples ações de consumo como decor-rência da ativação do valor de uso da orça de trabalho e de outros meios

eventualmente necessários. É de natureza mercantil a relação que se esta-belece entre o usuário e o prestador (ou o empresário) de serviços, pararealizar o valor de troca inerente aos elementos do processo de trabalho;mas o próprio serviço é um consumo não produtivo e, portanto, extra-econômico.

 Assim, não se deve conundir a permuta mercantil dos elementosdo processo de trabalho com o serviço, que é este processo, como ativação

da orça de trabalho e do valor de uso de outras mercadorias em unçãodo consumo privado. A permuta az parte da cadeia de circulação simples,cuja órmula é M-D-M. O dinheiro, em relação aos componentes do pro-cesso de trabalho, atua como meio de circulação. O usuário que empregaseu dinheiro em serviços age de orma radicalmente dierente do capita-lista que investe capital-dinheiro na compra de orça de trabalho, porqueo interesse deste está em transormar o valor inicial D em valor acrescidoD’ e não em consumir privadamente o valor de uso especial dessa merca-doria. Assim, nos serviços “este consumo de orça de trabalho não se situacomo D-M-D’, mas tão-somente como M-D-M (onde a mercadoria é otrabalho ou serviço): o dinheiro age como meio de circulação e não comocapital”14.

Os valores que se azem presentes nessa circulação sempre desem-bocam, portanto, no consumo privado através do próprio processo detrabalho. Não importa se o agente dos serviços está presente na casa do

usuário (e.g. como empregado doméstico) ou num local determinado (e.g.

14 Un Chapitre Inédit..., p. 228.

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como empregado de um hospital). Neste sentido, o consumo privado do valor de uso da orça de trabalho, por sua utilidade particular, constituiuma característica universal dos serviços, independente do tipo de relaçãosocial a que estejam submetidos.

A Questão do Valor na Produção de Mercadoriase nos Serviços

Embora o trabalho em serviços, em certas circunstâncias, possamaterializar-se em valores de uso objetivos, estes, contudo, não se con-

 vertem em verdadeiras mercadorias. Um exemplo talvez melhor esclareça

essa ormulação. Tomemos o caso dos operadores de Raios X numa clínicaempresarial. Seu trabalho tecnicamente orientado é capaz de imprimirà chapa uma imagem radiográca qualquer - digamos, de uma raturaóssea. Há materialização de trabalho num dado valor de uso que é a chapasensibilizada. Este é um valor de uso imediato, apenas um produto útil,que não é reprodutível numa série destinada à permuta sistemática. Por-tanto, não é produzido como mercadoria, mas apenas como objeto dotado

de utilidade, à semelhança de muitas outras coisas que são rutos do tra-balho humano (por exemplo, uma reeição preparada por um empregadodoméstico). Nesse processo de trabalho participam, contudo, algumasmercadorias e que, como tal, revestem-se de valor de uso e de valor detroca; são elas: a orça de trabalho do operador; a chapa virgem; o instru-mental radiográco; substâncias químicas usadas na revelação do lme,etc. Há de se supor que a compra desses elementos está regulada pela leido valor-trabalho, como se dá com qualquer mercadoria.

Para aproundar a análise dos serviços, é imprescindível a corretacompreensão de dois pares de conceitos desenvolvidos por Marx:

• forçadetrabalhoetrabalho;

• trabalhoconcretoetrabalhoabstrato.

Entende-se por orça de trabalho“o conjunto das aculdades ísicas ementais, existentes no corpo e na personalidade viva de um ser humano”.

Por outro lado, o valor de uso da orça de trabalho consiste no próprio tra-balho, em suas propriedades de atividade útil, dirigida a um m.

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Na divisão social do trabalho, cada atividade concreta opõe-se àsoutras, com as quais se relaciona através dos movimentos econômicos dosprodutos e serviços. São atividades interdependentes devido às relaçõesde troca que estabelecem entre si, necessárias à reprodução do conjuntodos trabalhadores. Para subsistir, cada trabalhador precisa dos valores deuso produzidos por todos os outros e os obtêm mediante a troca mercantil(aqui estamos considerando, para simplicar o problema, uma sociedadecomposta de produtores de mercadorias/prestadores de serviços autôno-mos). Pois bem, uma atividade útil qualquer em si não possui valor: “A orça humana de trabalho em ação ou o trabalho humano cria valor, mas

não é valor”15.De que modo, portanto, o trabalho pode criar valor?Em determinados setores de atividade econômica, o trabalho

humano materializa-se constantemente num produto, dá origem a um valor de uso objetivo, cuja orma lhe corresponde. Cada produto requeruma atividade especíca e adequada para poder vir ao mundo: produz-sepão pelo trabalho do padeiro, jóias pelo joalheiro, casas pelo pedreiro,

etc. Estas dierentes espécies de trabalho opõem-se umas às outras como valores de uso qualitativamente distintos e o mesmo pode ser dito de seusprodutores. Mas o valor é uma dimensão estritamente quantitativa: pres-supõe a comparação sistemática entre os produtos do trabalho, tomandocomo medida o tempo de trabalho socialmente necessário a produzí-los.Esta comparação só se verica através de repetidos atos de troca. Os pro-dutos passam a se conrontar enquanto materialização não mais de traba-lho concreto, mas de trabalho abstrato, socialmente homogeneizado.

 Assim, o valor das mercadorias, embora tenha por base o trabalhoconcreto, na orma de atividade útil ou materializada num produto, repre-senta algo que é a abstração de todos os trabalhos dos produtores, isto é, asuperação dos aspectos meramente qualitativos dos valores de uso, o quesó pode ser estabelecido através da troca. Pela permuta sistemática e, porconseguinte, pela existência de um mercado sucientemente desenvol-

 vido, é que o trabalho concreto se transmuta em trabalho social homoge-

neizado, substância do valor:

15 O Capital, Livro I, p. 59.

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“Só com a troca, adquirem os produtos do trabalho, como

valores, uma realidade socialmente homogênea, distinta de sua

heterogeneidade de objetos úteis, perceptível aos sentidos. Esta cisão

do produto do trabalho em coisa útil e em valor só atua na prática,

depois de ter a troca atingido tal expansão e importância que se

 produzam as coisas úteis para serem permutadas, considerando-se

o valor das coisas já por ocasião de serem produzidas”16.

Esta transormação do trabalho concreto em valor não resulta deuma operação mental ocorrida na subjetividade dos produtores; é, antes,

uma operação de mercado, totalmente objetiva, que impõe um termo decomparação às mercadorias que são objetos da troca. O trabalho social,abstração de todas as ormas concretas em que se realiza o trabalho nasociedade, é o termo de reerência para xar as proporções em que umproduto equivale a outro. A sociedade atua como um autômato, regulandoa troca dos produtos, necessários a sua reprodução, em conormidade como tempo de trabalho disponível de todos seus produtores:

“...a cada mercadoria isolada só se aplica o tempo de trabalho

necessário, e da totalidade de trabalho social só se emprega nos

dierentes ramos a quantidade proporcional necessária”17.

Cada produtor recebe, em outros valores de uso, o exato montantede “trabalho abstrato” que as condições das orças produtivas requeremque seja imprimido a sua própria mercadoria.

Ora, o que caracteriza o processo de trabalho em serviços é a impos-sibilidade de ele passar à orma do trabalho abstrato. A atividade útil quelhe é peculiar contrasta, como valor de uso, no plano qualitativo, com otrabalho de outros produtores da sociedade. Mas em si não é um valor.No esorço ísico e mental de examinar um paciente, estabelecer um diag-nóstico, prescrever medicamentos, o trabalho do médico é uma atividadeútil destinada imediatamente ao consumo privado. Deste trabalho podem

surgir eeitos úteis - o diagnóstico da doença, o alívio dos sintomas, a cura;

16 Idem, p. 83.17 Idem, Livro III, p. 729.

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ou podem surgir também certos objetos úteis, por exemplo, um apare-lho de gesso para imobilização de um membro raturado. Não será esteobjeto uma mercadoria como as outras portadoras de valor? A resposta énegativa, porque este valor de uso não se destina à venda, não entra nomercado como as demais mercadorias, mas passa, sem mediação, à eserado consumo privado. Se o médico molda um aparelho de gesso, estácomercializando, neste momento, a utilização de sua orça de trabalho edos meios e matérias primas necessários a produzí-lo. Seu trabalho seexterioriza num objeto é certo; contudo, representa apenas trabalho con-creto, pois o produto não se destina à troca. Na concretude do aparelho de

gesso está refetida a particularidade do trabalho do médico, porém não ageneralidade do trabalho social, que pressupõe a permuta sistemática doproduto do trabalho. É algo produzido para o consumo e não para a troca.

 Agora, se o médico se dedicasse a abricar membros articiais, converter-se-ia num produtor de valores, pois o ruto de seu trabalho estaria desti-nado de antemão e sistematicamente ao mercado.

Naturalmente, existem certas gradações entre o trabalho em ser-

 viços e o trabalho produtor de mercadorias, que não dependem de seuconteúdo especíco, mas das relações sociais a que estão submetidos.

 As reeições preparadas por um empregado doméstico são produtos deum serviço típico. Num restaurante, este mesmo trabalho já se apresentanuma orma de transição à produção de mercadorias. Finalmente, quandoempregado numa ábrica de alimentos semi-praparados, torna-se umtípico trabalho produtor de mercadorias (e de valor e mais-valia).

  Algumas vezes, o processo de trabalho em serviços esgota-se naprópria atividade útil e em seus resultados não-materiais. Mas, em cer-tas situações, pode dar lugar a valores de uso objetivos (a chapa impressa,um aparelho de gesso, exemplos já mencionados). No primeiro caso, o tra-balho “consome-se sem passar da orma do movimento à do objeto”. Nosegundo, há um produto que também é consumido, conquanto seja apenas

 valor de uso imediato, simplesmente materialização de trabalho concreto.Em conclusão, nos serviços existe processo de trabalho mas não pro-

cesso de produção de valor, nem de mais-valia. O resultado dos serviçosnão é algo dotado de maior valor do que os elementos participantes de suaprestação, ao contrário da produção capitalista de mercadorias. A dimensão

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econômica dos serviços cinge-se à realização do valor de algumas merca-dorias: orça de trabalho e seus meios técnicos de ação. Essas características

 justicam o enquadramento dos serviços de consumo no setor mercantil dasociedade, oposto e complementar ao setor que produz mercadorias.

Relações Sociais  À atividade útil dos serviços associa-se um eeito qualquer (real

ou presumido) ou um valor de uso objetivo. As características materiaisdo produto de certos serviços, neste sentido, são enganadoras, se não seconsideram as relações sociais que lhe deram origem. Um terno eito sob

medida, por alaiate que trabalha a domicílio, é resultado de um serviçoe não uma verdadeira mercadoria, porque contém apenas trabalho con-creto, materializado em si. Apesar de ter a mesma aparência exterior eas mesmas propriedades de um terno de ábrica, é um valor para o uso ecomo tal oi produzido: não representa um exemplar de uma mercadoriadestinada à troca e, portanto, não assume a orma de trabalho humanoabstrato, que é o regulador da existência econômica dos valores de uso

produzidos pela indústria.O que se apresenta então, como mercadoria na prestação de um

serviço? Apenas a orça de trabalho e os meios materiais e técnicos que uti-

liza. Para se submeter às leis do valor, a orça de trabalho do prestador deserviços precisa ela própria se tornar uma mercadoria, cujo valor é dadopelos seus necessários meios de consumo, devendo estes serem produzi-dos em condições capitalistas, como mercadorias. Se a produção de mer-cadorias é inexistente ou limitada, os serviços têm preço estabelecido pelatradição:

“No começo, este preço é, sobretudo convencional e tradicional;

  pouco a pouco se determina economicamente, segundo a oerta

e a demanda, e fnalmente pelos custos a que se produzem os

vendedores de serviços”18.

18 Fundamentos... , Vol. I, p. 337.

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28 Formulação

Neste particular, não há dierença em relação ao mecanismo deremuneração de qualquer trabalhador, assalariado ou autônomo - todosrecebem conorme os custos de produção e reprodução de sua orça detrabalho19. Para o autônomo, este custo é reposto pela soma dos preços dastareas que executa em dado tempo. Se sua orça de trabalho or utilizadapara dez tareas dierentes, durante um dia, cada uma será remuneradacom um décimo do equivalente diário de sua produção e manutenção. Emprincípio, não importa o ato de o autônomo receber por tarea e o assala-riado ao nal do mês.

Todos os serviços submetidos a relações mercantis têm a seguinte

característica: são meio de troca para quem presta e valor de uso paraoutrem. Assalariado ou autônomo, o trabalhador em serviço depende, emsua subsistência individual, da “venda” do valor de uso de sua orça detrabalho. Para si mesmo, seu trabalho é um não-valor-de-uso, um simplesmeio para a aquisição de outras mercadorias, seus artigos de consumo.Entretanto, em algumas ormas de serviços (que podemos denominar denão-mercantis), o trabalho é um valor de uso para o próprio prestador,

em vez de ser um meio de troca. O prestador de serviço, neste caso, é opróprio usuário ou alguém a este ligado por relações pessoais (esposa,lhos, amigos, etc.), não havendo remuneração do trabalho. Sua nalidadeé a reprodução do indivíduo ou de sua amília - conservação da higienedoméstica, preparo de reeições, conecção e reparo de roupas, etc. Emrelação às amílias operárias, os serviços não-mercantis desempenhamum importante papel na diminuição dos custos de reprodução da orça detrabalho, sobretudo nas sociedades capitalistas em desenvolvimento, emque o trabalho gratuito da esposa e dos lhos tem esse eeito, na medidaem que o chee do núcleo amiliar é, em geral, o único assalariado. Coma evolução dessas sociedades, outros membros da amília são levados ase engajarem no mercado de trabalho e alguns valores de uso, antes pro-duzidos por serviço não-mercantil, no âmbito doméstico, passam a sercomprados na orma de mercadoria (roupas, por exemplo). Para as amí-

19 Aplica-se aqui tudo que Marx observa acerca do salário no comércio, portanto, do salário em

serviços de produção: “...determina-se então o valor da orça de trabalho e por conseguinte osalário, como acontece com todos os demais assalariados, pelos custos de produção e repro-dução dessa orça de trabalho especíca e não pelo produto de seu trabalho”, O Capital, LivroIII, p. 337.

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lias operárias, há uma diminuição relativa do consumo de serviços não-mercantis que acompanha o desenvolvimento capitalista, apesar de suamagnitude, naturalmente, ser sempre maior que a existente em amíliasdas classes dominantes, devido às limitações que o capitalismo impõe aosmeios de subsistência do trabalhador.

Por outro lado, nas mencionadas circunstâncias, ocorre um enômenoinverso nas amílias da pequena-burquesia: aumento relativo do consumode serviços não-mercantis. Nas ases iniciais da acumulação capitalista emcontexto de grande desigualdade de renda e de excesso de oerta de orçade trabalho, e, em resumo, de mercado capitalista incipiente, a orça de

trabalho de baixa qualicação pode ser acilmente assalariada, inclusivea preços vís, para execução de serviços domésticos. Contudo, essa orçade trabalho se az onerosa, quando se expande à produção capitalista e omercado de trabalho, ampliado e unicado, encarrega-se de azer apro-ximar o custo de produção dos serviços domésticos dos salários do setorprodutivo. As unções do empregado doméstico tendem, então, a seremsubstituídas por serviços não-mercantis das pessoas do núcleo amiliar,

com base em certos produtos industrializados, que acilitam esse tipo detrabalho (alimentos semi-preparados, máquinas e aparelhos eletrodomés-ticos diversos). Na sociedade, como um todo, cresce simultaneamente onúmero de auto-serviços que se vericam nos restaurantes, supermerca-dos, lavanderias, etc. Assim, a despeito de seu caráter não-econômico, taisserviços estão integrados à dinâmica da economia capitalista, que submeteincessantemente todos os tipos de trabalho e de relações sociais a seumovimento próprio.

 A assistência de saúde também envolve, em maior ou menor ampli-tude, serviços de cunho não-mercantil. O caso extremo é o da medicinapopular. Para o preparo de beberagens, emplastros, talismãs, etc., os recur-sos curativos e o próprio trabalho muitas vezes permanecem alheios àsrelações de troca (as variantes urbanas da medicina popular encontram-se,entretanto, parcialmente mercantilizadas). Mas outras ormas de organi-zação social das práticas de saúde requerem o auxílio de serviços não-

mercantis em complemento aos que ornecem. Mesmo na atenção médicainstitucionalizada, há uma parcela de trabalho que cabe ao próprio usuárioexecutar, ou a seus amiliares, completando a intervenção dos prossio-

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30 Formulação

nais. Nunca o usuário se az presente como simples “matéria-prima” doprocesso de trabalho em saúde. É também sujeito, que presta inormações,segue prescrições médicas, e assim por diante. Ao trabalho de diagnósticoe tratamento, realizado pelo médico ou pela equipe de saúde, o pacienteproporciona certos valores de uso indispensáveis, a começar por seu corpo,sem o qual nenhum serviço pode ser prestado. Além de remunerar o tra-balho do médico, o paciente, em certo sentido, também lhe presta umserviço. Vê-se, neste ponto, quão apropriada é a série de expressões a queMarx repetidamente az reerência, no intuito de caracterizar os serviçosde consumo: “dou para que dês, aço para que aças, dou para que aças,

aço para que dês”. A orça de trabalho dos prestadores de serviços, em certos casos, é

comprada diretamente pelo usuário, para execução das tareas que viera indicar. Nesta situação, o usuário adquire o direito a comandar traba-lho alheio, para seu consumo pessoal, em geral através do assalariamento,sobretudo na área de serviços domésticos e de baixa qualicação. Outras

 vezes, a relação que liga o usuário ao prestador de serviço não é a de um

empregador, mas de simples cliente, sem direito a comandar trabalho: éo que ocorre perante os prossionais liberais. O cliente de um médicoliberal não compra sua orça de trabalho, no sentido de poder dispor desua capacidade e conhecimentos técnicos como uma mercadoria alienadapela troca. De ato, apenas paga pelo seu consumo, conorme seu valore o tempo que a utilizar. Não assume a propriedade dessa mercadoria,embora se benecie de seu valor de uso.

Desse modo, em certos tipos de serviços de maior exigência quantoaos aspectos de qualicação, a cessão do valor de uso da orça de traba-lho não implica na alienação eetiva desta. O mesmo ocorre em relaçãoaos demais valores de uso do processo de trabalho. Ao se submeter a umexame de radiodiagnóstico, um individuo usurui das qualidades da orçade trabalho do operador e dos aparelhos que este maneja; contudo, emnenhum momento, adquire a propriedade dessas coisas. Existe circulaçãode valores de uso e a órmula M-D-M continua válida para representar a

relação econômica subjacente. Mas não há aqui eetiva compra e venda demercadorias; considerando o relacionamento entre o usuário e o agentedo serviço (ou a empresa), o que há é o pagamento pelo consumo reali-

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zado. O dinheiro age tão-somente como meio de pagamento, realizandoo valor de troca dos elementos do processo de trabalho. Freqüentemente,

 verica-se primeiro o consumo e depois o pagamento: o preço do serviço écreditado ao usuário. Para haver este ato de circulação simples, o dinheironão precisa estar presente como meio de compra, é apenas objeto de umcontrato tácito, idealmente reerido, inclusive como medida de valor.

No preço dos serviços estão incluídas, em geral, três coisas: 1. cus-tos reerentes à manutenção do trabalhador e de sua amília; 2. custos decapacitação da orça de trabalho, que devem ser amortizados ao longo desua vida útil; 3. custos de mercadorias e de instalações necessárias à pres-

tação do serviço. Quando se trata de serviços capitalistas, a estes custos éacrescida uma ração que corresponde ao lucro do empresário, cuja origemserá objeto de análise em outro lugar. A soma destes custos e do eventuallucro ornece o preço de produção dos serviços. Se o serviço constituir ummeio de subsistência da classe trabalhadora, seu preço de produção, emcondições médias, incorpora-se ao valor de sua orça de trabalho, coletiva-mente considerada. Aqui não há criação de valor, mas simples transerên-

cia: o valor dos elementos integrantes do processo de prestação do serviçoé transerido ao valor da orça de trabalho, exatamente como ocorre comoutras mercadorias que são meios de consumo da classe trabalhadora.

 À medida que evoluem as ormações sociais capitalistas, os pres-tadores de serviço tendem a se tornar assalariados. A transormação domédico liberal em assalariado, por exemplo, é enômeno bem conhecido.

“Com o desenvolvimento da produção capitalista todos os serviços

se transormam em trabalho assalariado e todos que os executam

em trabalhadores assalariados, embora esta característica seja

adquirida em comum com os trabalhadores produtivos”20.

Há duas ormas principais de assalariamento do prestador de ser- viço. Na primeira, a orça de trabalho é comprada para usuruto de seuempregador (exemplo já citado: empregados domésticos). Na segunda,

compra-se a orça de trabalho com o to de transerir seu valor de uso a

20 Un Chapitre Inédit..., pp. 229-30.

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32 Formulação

outrem, ou seja, para prestar serviços a uma terceira pessoa, sendo que,neste caso, o comprador aparece, em geral, como empresário capitalista.

O patrão ou empresa que assalaria um trabalhador de serviços nãorealiza um contrato para execução de tareas determinadas de antemão,ao contrário dos usuários dos serviços de um autônomo. Seu interesseé adquirir o direito a comandar trabalho alheio, para seu uso pessoal, oupara o de terceiros, conorme as necessidades que se apresentarem. Quercomandar trabalho para atender gostos e costumes ou a demanda de seusclientes. Não se interessa especicamente por determinado valor de uso,ou seja, uma atividade ou tarea concreta, mas quer sobretudo dispor de

orça de trabalho como onte pontecial de valores de uso, que serão exigi-dos por ocasião do processo de trabalho sob sua direção. Esta é a caracte-rística comum às duas modalidades de assalariamento. No resto, elas sãobem distintas, pois na primeira o comprador é um usuário, um agente dacirculação simples de mercadorias. Na segunda, trata-se de um capitalista,cujo objetivo precípuo não é o consumo pessoal da orça de trabalho, massua incorporação como elemento capaz de valorizar o dinheiro que adian-

tou em sua compra.Em todas as circunstâncias em que os serviços de consumo adotam

relações capitalistas, a apropriação do valor de uso da orça de trabalhoreveste características peculiares, distintas daquelas que se vericam naindústria e mesmo nos serviços de produção. Nestes dois casos, o trabalhoé consumido diretamente pelo capital, para promover a produção e circu-lação de mercadorias. O valor de uso do trabalho é cedido ao capital - e àsua personicação, o empresário capitalista. Em contrapartida, nos servi-ços de consumo o trabalho é valor de uso dirigido ao usuário. Por outraspalavras, o trabalhador em serviços de consumo não cede o valor de usode sua orça de trabalho ao capitalista, mas ao usuário, embora nesta ope-ração comporte-se como um ator de enriquecimento do capitalista. Damesma maneira, o comerciante não consome as mercadorias que compra,porque as compra para vender a outros. No serviço de consumo, o papeldo capitalista é justamente este: comprar orça de trabalho para repas-

sar seu valor de uso a outrem e, através desta operação mercantil, auerirum lucro. Sob este aspecto, age como intermediário entre o prestador deserviços e o usuário, azendo circular esta mercadoria especial, a orça de

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trabalho. Esta unção que cabe ao empresário de serviços só se distingueda venda de mercadorias pelo comerciante devido a que envolve valoresde uso em ação, seu consumo imediato, inseridos num processo de tra-balho. Mas, do ponto de vista estritamente econômico, são semelhantes:o comércio e os serviços de consumo situam-se como promotores da cir-culação de mercadorias. O capital em serviços representa, portanto, uma

 variedade do capital mercantil.

Ciclo do Capital-Dinheiro em Serviços A circulação do capital adota genericamente a órmula D-M-D’, em

que D’ é valor maior que D. Está expresso nesta órmula qualquer dispên-dio de dinheiro como capital, na indústria, no comércio e, igualmente, nosserviços de consumo. O emprego do dinheiro tem aqui uma nalidadedistinta da que se verica na circulação simples M-D-M, em que M é valorde uso apropriado em orma inerte, como mercadoria, ou em orma ativa,num serviço, constituindo-se no objetivo nal do ato de troca. Em M-D-Mo dinheiro é um meio capaz de promover a alienação ou a cessão do valor

de uso, ao mesmo tempo em que realiza o valor de troca correspondente. Já no ciclo D-M-D’, o dinheiro, representando a universalidade do valorde troca, é o alvo do processo, mas como valor acrescido, porque, conso-ante a genial denição de Marx, o capital é valor que continuamente seexpande.

Na indústria, o processo de circulação do capital-dinheiro inicia-sepela troca entre D e M, sendo este último composto de orça de trabalho(FT) e meios de produção (MP). Ao se combinarem como elementos docapital produtivo (... P...), no próprio processo de produção, dão origem aM’, mercadoria dotada de maior valor que M. O ciclo do capital-dinheiroexplicita-se da seguinte maneira: D-M(FT+MP) ... P ... M’-D’. O produtoé M’, que contém maior valor que a soma dos elementos FT e MP, namedida em que a orça de trabalho, posta em ação, reproduz seu salárioacrescido de mais-valia. Assim, é característico da indústria a capacidadede promover a transormação de M em M’. Em contraposição, os serviços

não passam por um momento em que M possa se converter em M’, vistoque são incapazes de criar valor novo, dierente daquele que, preexisteem seus elementos iniciais, orça de trabalho e meios técnicos de ação.

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34 Formulação

Mesmo se submetidos a relações capitalistas, os empregados em serviçosde consumo proporcionam uma atividade que não adota a orma abstratado trabalho materializado: é consumida como trabalho vivo, por sua açãoou eeito, ou também pela propriedade de originar objetos úteis, destina-dos imediatamente ao uso privado, sendo, portanto, não-mercantis. Nãoexiste valorização do agregado de mercadorias M, porque não há verda-deira produção, no sentido de criação de mais-valia.

 Apesar de não haver, nos serviços, capital produtivo, posto em açãopara gerar mais-valia, o valor de M precisa ser reposto e excedido atravésde D’, visto que, de outra maneira, o capital-dinheiro, investido neste setor

econômico, não proporcionaria lucro, o que seria um contra-senso dentroda lógica capitalista. O consumo da orça de trabalho e de outras merca-dorias participantes da prestação do serviço não cria valor adicional, maso capital-dinheiro adiantado na compra de M sempre se valoriza, passaà orma D’. Ora, a valorização de qualquer capital, em condições usuais,pressupõe apropriação de mais-valia. Se esta não é gerada através do pro-cesso de trabalho na empresa de serviços, deve ter uma origem externa. De

onde ela provém é assunto do qual trataremos adiante. Em princípio, essa valorização obedece à taxa de lucro média, prevalente em dado momento,em incidência sobre a totalidade do capital adiantado.

Para representar o ciclo do capital-dinheiro em serviços, adota-mos a seguinte ormula: D-M (FT + MT) ... D’. Os três pontos sugerem aapropriação dos valores de uso do agregado M. É o equivalente de P, naindústria, mas como não se trata de capital produtivo, nem de processo deprodução, mas de simples consumo privado, e, portanto de um momentorealmente não-econômico, preerimos expressá-lo mediante reticências.Por este mesmo motivo, utilizamos o signo MT, signicando meios de tra-balho, em substituição a MP, meios de produção. Ao nos reerirmos a essescomponentes de M, no que se segue, empregaremos a expressão sintéticaorça e meios de trabalho.

Com o to de melhor explicitar as idéias já expostas, analisaremosbrevemente as ases que marcam o ciclo do capital-dinheiro, na indústria,

por um lado, e nos serviços, por outro. Vejamos inicialmente as três asespelas quais passa o capital industrial. A órmula global é M-D (FT + MP)... P ... M’-D’.

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1. O capitalista compra, no mercado, a orça de trabalho e os meiosde produção de que precisa, convertendo D em M(FT + MP),elementos que serão integrados em seguida ao processo de pro-dução. Esta é uma troca entre equivalentes que, tomada isolada-mente, não se distingue de um ato da circulação simples.

2. No âmbito da ábrica, a orça de trabalho se converte em capital variável e se combina tecnicamente com os meios de produção,capital constante. Ocorre então o consumo produtivo de FT eMP - o trabalhador reproduz nas mercadorias abricadas o valorde sua orça de trabalho, agregando, ademais, uma porção de

 valor correspondente à mais-valia, tempo de trabalho excedente. Ao encerrar-se o processo de produção, que se dá às custas destaconversão de M em P, aparece M’, que pode ser decomposto emM e m, sendo este último o signo da Mais-Valia.

3. Com a circulação de M’ e a realização de seu valor de troca, res-surge o dinheiro na extremidade da cadeia, mas como capital-dinheiro valorizado, D’. Este compõe-se do D inicial mais ∆D,

que é a expressão monetária da mais-valia.

Examinemos agora os correspondentes estágios da prestação deserviços sob relações capitalistas.

1. O capitalista de serviços, da mesma maneira, adquire, no mer-cado, a orça e os meios de trabalho necessários a sua empresa.

  As particularidades desta compra, quanto à questão do valor,serão abordadas posteriormente, em relação às empresas desaúde e os mecanismos pelos quais auerem lucro.

2. O valor de uso de M transere-se ao consumidor, ativado por umprocesso de trabalho. Pode ser que a natureza dos serviços exija apresença da personalidade viva do consumidor, que se submeteao processo de trabalho como se ora seu“objeto”; é o que ocorrenum hospital ou numa barbearia. Outras vezes, o serviço é exe-cutado sobre alguma coisa de uso pessoal, como nas ocinas de

conserto de automóveis ou de eletrodomésticos. Em qualquercaso, M se consome privadamente: estes ‘objetos’ de trabalhonão são eles próprios capital, o objetivo da empresa não é valori-

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36 Formulação

zá-los como capital-mercadoria. Portanto, não há transição a M’,a orça de trabalho não acrescenta aos meios de produção maior

 valor que o representado por seu salário. O valor intrínseco a Mmantém-se constante ao longo de todo o processo. As mercado-rias deste agregado simplesmente são repassadas a alguém, quese benecia de seu valor de uso. Sendo assim, tanto FT quantoMT constituem capital constante, por terem valor invariável; este

 valor pode ser destruído pelo consumo ou transerido a outramercadoria.

3. O consumidor paga por M(FT + MT) um preço acima daquele

pelo qual o capitalista os comprou. M é vendido por D’, numaaparente ruptura da lei do valor. Esta é a questão-chave dos ser-

 viços em empresas capitalistas, mas não a analisaremos por ora.Basta registrar que a dierença entre M e D’ decorre da co-par-ticipação no capital global da sociedade e de mecanismos queregulam a redistribuição da mais-valia total entre os múltiplosramos da produção/circulação de mercadorias, segundo a mag-

nitude do capital investido. Em M está expresso apenas o preçode custo de FT e MT, tomados em conjunto. O verdadeiro preçoda venda é M’: o valor de M é acrescido às custas da mais-va-lia gerada extrinsecamente, seja porque o capitalista o adquiriuabaixo de seu valor real, seja porque incorpora uma porção de

 valor advinda de outros setores da produção social. Na medidaem que M se converte em capital, proporciona, ao ser revendidoao consumidor do serviço, um lucro para o qual contribui o pool da mais-valia de toda a sociedade. Tudo ocorre como se hou-

 vesse uma eetiva troca entre M’ e D’. Desta maneira, D’ deverealizar o valor de troca de M enquanto capital, por outras pala-

 vras, deve realizar seu preço de produção, igual a um M’ oculto,que é a soma do preço de custo de FT e MT acrescido do lucrocorrespondente. Assim, optativamente, a órmula do ciclo docapital-dinheiro em serviços pode ser reescrita como se segue:

D-M(FT + MT) ... (M’) -D’.

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Em todas essas operações, o capital em serviços de consumo obe-dece às mesmas regras econômicas que regulam o capital comercial. Com-pra mercadorias para vendê-las com lucro. O capital valoriza-se nos atosde compra e de venda às expensas da mais-valia gerada externamenteà empresa. Peculiar aos serviços é o repasse de valores de uso em ação,enquanto o comércio entrega mercadorias inertes, a serem consumidasposteriormente. O comércio veicula valores de uso passivos, que perma-necem como tais até o momento de sua ativação no âmbito do consumoprivado ou produtivo. Não az dessas mercadorias meios ou objetos detrabalho. O trabalho do comerciário não é valor de uso para o consumo

privado, mas para a circulação de mercadorias, como massa inativa. Só éútil em unção de outras coisas, que o consumidor retira da circulação eleva à esera onde seu valor de uso será nalmente realizado. Por outrolado, nos serviços de consumo ou serviços propriamente ditos, o trabalhoé o valor de uso undamental, por si mesmo. Aqui também circulam mer-cadorias, mas estas não são alienadas como objetos inertes. Tornam-seúteis através da mediação do trabalho. A utilidade das coisas dene-se em

unção do trabalho, ao contrário do que se dá no comércio. Num hospital,de nada adianta entregar os instrumentos e apetrechos cirúrgicos a umpaciente que deve ser operado, como se osse um ato de simples comer-cialização dessas mercadorias. Ora, o paciente está justamente interessadoem encontrar quem saiba manejá-los em orma útil ao tratamento de suadoença - e esta é a especicidade dos serviços que procura: trabalho vivodotado das propriedades adequadas para ativar esses meios de interven-ção cirúrgica. Como todo trabalho orientado a um tal m, espera-se doserviço a capacidade de “apoderar-se dessas coisas, de arrancá-las de suainércia, de transormá-las de valores de uso possíveis em valores de usoreais e eetivos”21.

O serviço signica a própria realização dos valores de uso atravésde alguém que, para tanto, negocia com sua orça de trabalho, empres-tando suas propriedades a um consumidor privado. Nas empresas capita-listas, o prestador do serviço é, em geral, um assalariado. Convém enati-

zar novamente que o capitalista que o emprega não é consumidor direto

21 O Capital, Livro I, p. 207.

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38 Formulação

de seu trabalho. O capitalista vende a utilização dessa orça de trabalho, juntamente com outras mercadorias que são seus meios técnicos de açãoe objetos de intervenção. Estes valores de uso são repassados através deum processo de trabalho que os consome integralmente ou os põe emcondição de serem consumidos. Por exemplo, o consumo total ocorre emrelação aos reagentes químicos num exame laboratorial; e a “condição deser consumido”, numa cirurgia para colocação de marca-passo cardíaco.

Pelo aspecto dos valores de uso, submetidos a uma dinâmica detrabalho, as empresas de serviço assemelham-se às indústrias, e isto podeacarretar muitos equívocos em sua análise propriamente econômica. É

que aqui o processo de trabalho limita-se a realizar valores, por outraspalavras, restringe a sua circulação ou distribuição, pelo que, de ato, osserviços se caracterizam como parte do setor mercantil da sociedade. Ocapital em serviços é apenas uma variedade do capital mercantil, marcadopor uma atividade especíca de comercialização do valor de uso da orçade trabalho.

 Vale observar que algumas atividades capitalistas, podem assumir

características de indústria e de serviço, a depender das relações sociaisque estabelecem. É o caso das empresas de transporte. Quando trans-portam mercadorias, partindo das indústrias, essas empresas desenvol-

 vem uma parte do processo de produção que se prolonga na circulação.Trata-se, portanto, de uma atividade industrial. O deslocamento espacialé o eeito útil desse transporte de mercadorias, que nelas se traduz comotrabalho humano abstrato. É produzido para ser trocado na orma con-creta das mercadorias, sendo, portanto, trabalho capaz de valorizá-las:

“...o valor de troca desse eeito útil é determinado, como o de

qualquer mercadoria, pelo valor dos elementos de produção (orça

de trabalho e meios de produção) consumidos para obtê-lo, mais a

mais-valia gerada pelos trabalhadores empregados na indústria de

transporte”22.

22 Idem, Livro II, p. 56.

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Mas o transporte de pessoas tem o papel econômico de um serviço.Para as pessoas que a usuruem, a atividade de transporte é um artigo deconsumo. O valor dos elementos de produção é pago, junto com o lucroque lhe corresponde como serviço capitalista. Aqui, novamente, há apenasrealização de valores preexistentes, um momento da circulação simplesde mercadorias, do ponto de vista do consumidor. A dierença reside naimpossibilidade de o trabalho materializar-se como valor novo. A análisede Marx sobre as companhias de transporte, no segundo livro de O Capi-tal, é um pouco imprecisa a esse respeito, mas ele parece ter notado adierença entre o transporte como indústria e como serviço ao sublinhar

o seguinte: “se é consumido individualmente, seu valor desaparece como consumo: se produtivamente, sendo um estágio de produção da mer-cadoria que se transporta, seu valor se transere à mercadoria como valoradicional”23.

Também há trabalho excedente nos serviços de transporte de pes-soas, mas apenas enquanto trabalho vivo, carente de objetos em que possase encarnar como valor excedente. Numa empresa de ônibus, uma parte

da jornada de trabalho de seus empregados reproduz, em termos mer-cantis, o salário e outra, o lucro do empresário, com base na apropria-ção da mais-valia social. A reprodução dos componentes do capital e dolucro, correspondendo ao preço de produção do serviço, az-se atravésda troca e não da produção de valor. Mas a troca só se eetua se houverprocesso de trabalho. Um ônibus sem motorista perde toda sua utilidadepara seus usuários e não aporta qualquer lucro a seu proprietário, obvia-mente. Assim, em serviços de tipo capitalista pode existir sobretrabalho,do qual não resulta criação de mais-valia. Estes aspectos serão tratadoscom mais detalhes quando nos reerirmos à origem do lucro das empresasde saúde.

Em geral, as empresas de serviço têm por característica conduzi-rem à esera do consumo privado a combinação técnica entre uma ativi-dade útil e certos meios e objetos de trabalho, que também circulam comomercadorias. O que o consumidor requer dos serviços são as habilidades

e os conhecimentos necessários ao uso adequado desses meios e obje-

23 Idem, Ibid

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40 Formulação

tos. Por isto, dissemos que tais mercadorias não podem chegar inertes asuas mãos. Se alguém leva seu carro para conserto numa ocina mecânicaé porque não dispõe dos conhecimentos e habilidades indispensáveis aazê-lo, exigindo para esta tarea, a mediação do trabalho de outrem, capazde repor peças, ajustar o motor, etc. Esta é a especicidade da ocina aceao comércio de auto-peças. Em certas circunstâncias, o consumidor estácapacitado a prestar a si mesmo o serviço, como trabalho não-mercantil,com o auxílio de determinados valores de uso comprados no comércio: aza barba em casa e não na barbearia, escolhe e toma remédios independen-temente da receita médica, etc.

Do ponto de vista do conjunto da economia capitalista, a trocaD-M(FT + MT), que inicia o ciclo do capital-dinheiro nos serviços é omomento mais importante. Não devido à compra da orça de trabalho,que é elemento auto-reprodutivo e geralmente abundante no mercado,mas precipuamente em unção da compra dos meios de trabalho, queprovêm dos setores industriais em orma de mercadorias. Neste ponto, ocapital mercantil dos serviços deronta-se com o capital industrial como

seu parceiro especializado na circulação de mercadorias. O capitalista dosserviços adianta dinheiro ao da indústria e o decisivo é que essa transaçãose az numa escala que permite ao industrial recuperar o capital avançado,para dar início a novo ciclo produtivo. D-M representa, para o grandecapital envolvido na indústria, o nal de sua circulação, com a concomi-tante realização da mais-valia que lhe cabe no processo. Mas para o capitaldos serviços, a circulação só se completa com M-D’, na relação com suaclientela. A venda M-D’ dirige-se ao consumidor, atendendo o interesseque este maniesta por certos valores de uso, ao passo que a compra D-Mé uma transação entre capitais, cujo móvel está constituído pelo valor detroca, na medida em que cada capital procura a sua própria valorização.De qualquer orma o capital em serviços - assim como o comercial - sesubordina à dinâmica do capital industrial e contribui à acumulação quese realiza neste setor.

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a oRganização Capitalista dos seRviços de saúde 

Componentes do CapitalO ciclo do capital-dinheiro em serviços de saúde é descrita igual-mente pela órmula geral D-M(FT + MT) ... D’. No primeiro momento, odinheiro é despendido para comprar, de um lado, a orça de trabalho (domédico, enermeiro, atendente, etc.), de outro, os meios de trabalho (ins-talações, equipamentos de diagnóstico, medicamentos, etc.). A empresatransorma FT e MT em componentes de seu capital, cujo valor de uso érepassado a seus clientes por intermédio de um processo de trabalho, no

âmbito de uma enermaria, de um consultório, de uma sala de operaçõescirúrgicas, etc. Este processo de trabalho constitui o “serviço” propriamentedito e se traduz economicamente como consumo privado, conseqüente auma troca simples que realiza o valor de FT e MT como D’. O empresáriode saúde unciona como promotor da circulação simples dessas espéciesde mercadoria. Seu objetivo não é a valorização imediata de M, não é acriação de novas mercadorias cujo valor ultrapasse o da soma de FT e MT,

mas a realização mercantil desses valores em unção do consumo de seu valor de uso. Entretanto, havendo sido incorporados como elementos deseu capital, o que lhe é pago por essas mercadorias excede ao valor peloqual as comprou. O preço de produção (ou de venda) de M(FT + MT)é sempre maior que seu preço de custo, resultando a dierença não dageração de valor pelo próprio trabalho em saúde, mas de uma deduçãoda mais-valia social. Essas empresas têm, portanto, expressão econômica

restrita à circulação de valores, na orma de orça e meios de trabalho.Em circunstâncias especiais, o processo de trabalho em serviços desaúde desemboca na produção de certos objetos, os quais não constituem

 verdadeiras mercadorias, na medida em que são produzidos diretamentepara o uso. Neste sentido, um aparelho de gesso, elaborado para imobi-lização de um membro raturado, é um valor de uso imediato, contendoapenas trabalho concreto. Na melhor das hipóteses, são valores poten-ciais, mas não valores eetivos. Sabe-se que a substância do valor - o tra-

balho abstrato - institui-se sobre um sistema regular de troca, no qual seconrontam as mercadorias como produtos de dierentes tipos de trabalho.

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O valor é uma dimensão meramente quantitativa. Expressa a média socialdo tempo de trabalho necessário a produzir alguma coisa útil, média regu-ladora das proporções em que uma mercadoria pode ser permutada poroutra. Mas nem tudo que é resultado do trabalho deve ser tomado comomercadoria, embora seja útil para este ou aquele m e contribua, em maiorou menor medida, para a reprodução da sociedade. É o que ocorre comos “produtos” dos serviços de saúde. A prestação do serviço relacionadocom a saúde individual e tudo que dele deriva como seu resultado mate-rial situam-se no âmbito do consumo privado. O serviço e seus produtosinteressam à análise econômica apenas na medida em que, sendo uma

orma determinada de consumo, pressupõem, sob relações capitalistas, arealização do valor de troca dos elementos orça e meios de trabalho, poroutras palavras, sua circulação. São esses elementos que entram no jogodo mercado e não seus “produtos” eventuais, que materializam em si tão-somente trabalho concreto.

Nas empresas capitalistas de serviços de saúde, a orça e os meiosde trabalho combinam-se de dierentes maneiras, em suas várias seções,

das quais as mais importantes são as seguintes: 1. cuidado direto (nasenermarias, ambulatório, CTI, etc.); 2. serviços auxiliares (laboratórios,Raios X, etc.); 3. hotelaria (instalações, cozinha, lavanderia, etc.); 4. servi-ços administrativos.

Em cada uma dessas seções existe determinada composição técnicado capital. Consome-se, em cada unidade de serviço, uma dada quantidadede FT e MT, sendo a primeira medida pelo tempo de trabalho e o segundopor número unitário, se or circulante, e pela proporção do desgaste, se orxo. Nas seções em que os serviços não são consumidos diretamente pelousuário, como na administração, o valor de FT e MT é transposto numaparte alíquota do preço dos serviços diretos.

Por analogia com a indústria, pode-se denominar de capital variávelà orça de trabalho empregada em serviços de saúde. Entretanto, rigoro-samente, esta classicação é inadequada neste caso, visto que a orça detrabalho é incapaz de adicionar valor maior que aquele pelo qual o empre-

sário a comprou. Assim, cede apenas o valor que contém, à semelhançados meios de trabalho que manipula. Em certo sentido, é também capitalconstante, capital-mercadoria posto a circular, cujo valor mantém-se inva-

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riável ao longo do processo de trabalho. Mas devido sua concisão e, naalta de outro melhor, usaremos, ocasionalmente, o termo capital variável,para designar a orça de trabalho, sem pretender atribuir-lhe implicaçõesconceituais.

 Analisaremos, em seguida, isoladamente, esses dois elementos, FTe MT, enquanto componentes do capital em serviços de saúde.

Suporemos ser a orça de trabalho constituída exclusivamente deassalariados. São trabalhadores que recorrem ao capitalista para que estecumpra o papel de mediador na transerência, aos usuários, do valor deuso de sua capacidade de trabalho. Pelo ato D-M, FT torna-se disponí-

 vel como parte do capital. A empresa vende o valor de uso de FT, portempo determinado, para execução de certas tareas, em avor do usuárioque demanda seus serviços. Na compra dos serviços, o usuário gasta seudinheiro na qualidade de agente do ciclo M-D-M, adquirindo um artigode consumo como outro qualquer. Usurui do valor de uso da orça de tra-balho do médico, enermeiro, etc. sem se converter em seu proprietário ouem capitalista. Algo semelhante se dá com o consumo do capital xo (ins-

talações, aparelhos, etc.): seu valor de uso é transerido ao usuário durantedeterminado período de tempo, embora seja propriedade da empresa.

O valor diário da orça de trabalho deve ser reposto pela soma dospreços de produção dos serviços de que participa. Deixando de lado o pro-blema do lucro do empresário, podemos dizer que os usuários remunerama orça de trabalho de acordo com a ração de tempo que cada unidadede serviço representa da jornada média de trabalho. Isto signica que, seo valor diário do agregado de orça de trabalho é de mil cruzeiros e se ousuário consumiu seus serviços durante um quarto da jornada média detrabalho, pagará 250 cruzeiros, como remuneração reerente a FT.

No aspecto da orça de trabalho, o preço de produção dos serviçosdepende:

1. do valor diário da orça de trabalho em seu conjunto, consistindodos meios de consumo necessários a reproduzí-la e do reem-bolso pelos custos de capacitação;

2. da média social de duração da jornada de trabalho de cada cate-goria de trabalhador assalariado;

3. do tempo de utilização da FT na prestação do serviço.

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O valor diário da orça de trabalho constitui reerencial absolutono estabelecimento do preço de produção do serviço, visto que a somado preço de produção de todos os serviços prestados durante um diadeve reproduzí-lo integralmente. Ceteris paribus , o preço de produção deum serviço de dada duração varia na razão inversa do número de horasda jornada média de trabalho. Uma hora de serviços de médico valerámais quanto menor or a jornada de trabalho desta categoria. Da mesmamaneira, na indústria, se diminui a jornada média, o tempo de trabalhonecessário a reproduzir o salário aumenta em relação ao tempo total detrabalho. Digamos que o valor diário da orça de trabalho do médico seja

de um mil cruzeiros. Se 8 horas or o tempo de duração média da jor-nada de trabalho dos médicos assalariados, uma hora de trabalho médicodeverá ser vendida a 125 cruzeiros para que sejam repostos os custos diá-rios de sua produção e reprodução. Caso a jornada média caia para 7 horas,torna-se necessário vender cada hora de serviço a cerca de 143 cruzeiros.Como zemos abstração do lucro, este valor representa apenas o preço decusto da FT. No preço de produção está incluída ademais uma parte que

recompensa o dinheiro empregado na compra de FT como capital variável,que é igual ao produto deste capital pela taxa média de lucro.

Em geral, um agregado de serviços de saúde - uma apendicectomia,por exemplo - requer trabalho de dierentes níveis de qualicação. Os cus-tos das FT são igualmente distintos, o que inevitavelmente se refete sobreos preços de produção. Uma hora de trabalho do médico vale mais queuma hora da atendente, na medida em que a produção (ou capacitação) ea manutenção da FT do médico exigem custos maiores. A dierença entreessas duas orças de trabalho, quanto ao aspecto do valor, é semelhanteà que se estabelece entre duas máquinas industriais de idêntica vida útil,mas de custos distintos. Se, nestas condições, a máquina A custa cem milcruzeiros, e a B oitocentos mil, uma hora de uncionamento da máquina B,em princípio, transere a seu produto uma quantidade de valor oito vezesmaior: esta transerência acompanha o consumo do valor de uso dessecapital xo. Traçar tal paralelo com o capital xo industrial justica-se pela

orma sui generis em que ocorre a utilização da FT em serviços. É queinexistindo geração de novo valor, seu consumo equivale a uma simplescessão de valor preexistente. Não se aplica aqui a distinção entre traba-

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lho simples e trabalho potenciado. A orça de trabalho de alta qualicaçãotem um valor de uso dierenciado, porque envolve maiores conhecimen-tos e habilidades. Mas, não ocorrendo a passagem do trabalho concreto atrabalho abstrato, deixam de existir as dierenças quantitativas que sepa-ram o trabalho simples do trabalho potenciado, em termos de geração de

 valor novo. As implicações do nível de qualicação da FT restringem-se ao valor da própria FT, ou seja, ao trabalho abstrato nela materializado, comonuma mercadoria qualquer. Assim, a FT do médico “cede” maior valor emuma hora de serviço justamente porque é uma mercadoria mais cara quea FT da atendente. Avançando ainda mais no plano das analogias, pode-

mos dizer que seu “desgaste”, conseqüente ao consumo de seu valor deuso, az-se acompanhar de uma perda maior de valor, o que deverá teruma correspondência na expressão monetária dessa hora de serviço. Poroutro lado, o preço do serviço é proporcional ao tempo de utilização da FT,não porque duas horas de trabalho geram mais valor que uma hora, masporque, durante esse tempo, o consumo do valor diário da FT é proporcio-nalmente maior.

Todas essas propriedades da FT em serviços resultam de ela ser umamercadoria “em ação” para o consumo privado. O trabalho está presenteem ormas concretas e particulares: são as tareas do médico, do ener-meiro, do atendente, etc. Não há reprodução do valor da FT num pro-duto, acompanhado de um excedente, mas apenas realização e consumodo valor inerente à própria FT - daí a semelhança com as outras espéciesde mercadoria.

Outra importante conseqüência diz respeito às relações de explora-ção. O trabalhador em saúde - e em qualquer serviço de consumo - não éexplorado pelo ato de produzir diretamente mais-valia, mas porque pos-sibilita, com seu trabalho, a participação do capitalista na mais-valia social.O médico assalariado, se trabalhasse por conta própria, com um pequenocapital de prossional liberal, receberia por seus serviços, o correspon-dente ao valor de sua orça de trabalho, acrescido de um lucro que elemesmo embolsaria. Mas, ao trabalhador, numa empresa como assalariado,

durante um mesmo período de tempo recebe apenas o equivalente desua FT. É através de seu trabalho que o capital satisaz a demanda de seusclientes e através dele é que pode, por conseguinte, auerir lucro. Sobre as

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relações sociais a que estão submetidos os trabalhadores em serviços deconsumo, Nicos Poulantzas observa que:

“De ato, esses agentes intervêm aqui na repartição da mais-valia

no seio do capital, dando lugar a transerências da mais-valia

saída do capital produtivo, em avor do capital que se apropria de

sua orça de trabalho: sua exploração se assemelha assim àquela

que sorem os assalariados da esera de circulação de capital”24.

O lucro das empresas de serviços de saúde é assegurado pelo prin-

cípio de que todo dispêndio de dinheiro como capital deve ser remune-rado em proporção com a taxa média de lucro vigente. Mas o lucro nãopoderia advir, se a FT não trabalhasse, não prestasse seus serviços, se secomportasse como mercadoria inerte. Para haver transerência de mais-

 valia, a FT deve proporcionar seu valor de uso especíco, porque as outrasmercadorias (medicamentos, aparelhos, etc.) deixam de ser úteis e nãointeressam aos clientes da empresa, quando não estão submetidos à dire-

ção técnica do prossional de saúde. O trabalho é meio de realização demais-valia que remunera a totalidade do capital, tanto em relação à parte

 variável quanto à constante. Assim, há apropriação de sobretrabalho, a despeito de inexistir pro-

dução de mais-valia. Durante uma ração da jornada, o que é pago pelautilização da FT repõe seus custos de produção e reprodução, enquanto,na ração restante, proporciona trabalho gratuito. O sobretrabalho corres-ponde à parte da jornada durante a qual o empregado, através de suaatividade, e, portanto, de seu suor, transere a mais-valia que remunera ocapital adiantado em sua compra. Por outro lado, todo seu trabalho temutilidade para a realização da mais-valia concernente ao capital constante,embora esta utilidade seja inerente ao valor de uso da FT em serviços enão necessite de uma ração especíca da jornada de trabalho para seexpressar. Retomemos um exemplo antes mencionado: se um mil cruzei-ros representam o preço de custo diário da FT dos médicos assalariados,

para uma jornada de oito horas de trabalho, e se o empresário vende os

24 Poulantzas, N. - As Classes Sociais no Capitalismo de Hoje, Zahar, Rio, 1975, p. 233.

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serviços desta FT em média por um mil e trezentos cruzeiros diariamente,obtendo um lucro de 30%, conclui-se que durante 2,4 horas da jornadatotal a FT ornece trabalho não-pago. Dado esse preço de produção (mile trezentos cruzeiros), o tempo de trabalho necessário a repor o salárioequivale a 5,6 horas. Esta mesma proporção se mantém para cada unidadede serviço, a qual pode ser desdobrada em rações de trabalho necessárioe excedente.

 Além disso, pode ocorrer de a remuneração do conjunto da orçade trabalho situar-se abaixo de seu valor real, de tal orma que parte dolucro obtido pela empresa tem origem numa dedução sobre o valor da

FT, ou seja, na dierença entre seu preço de custo individual e seu preçode custo social. As circunstâncias em que este enômeno se verica e suaexata extensão serão examinadas noutro lugar.

No que se reere ao processo de trabalho, a prestação de serviços desaúde em moldes capitalistas destaca-se por seu caráter coletivo, opostoao da medicina liberal clássica. As orças produtivas do trabalho são cole-tivizadas e delas se consegue um maior rendimento através da distribuição

das tareas entre várias categorias prossionais. Entretanto, a socializaçãodo trabalho e sua correspondente divisão técnica oi desenvolvida e aper-eiçoada por outras ormas de organização dos serviços de saúde, atravésda experiência dos hospitais benecentes, estatais, etc., que do ponto de

 vista histórico antecedem a introdução de relações capitalistas nesta área.Não são, portanto, uma prerrogativa desse tipo de prestação de serviço,embora desempenhe aí uma unção especíca como instrumento de valo-rização do capital.

Nesse organismo coletivo de trabalho, o médico inscreve-se comoagente principal, no sentido de que a qualicação de sua orça de trabalhoconstitui o mais importante atrativo para o usuário da empresa. Pressupo-mos até este momento que ele é um assalariado como os demais trabalha-dores. Algumas vezes, contudo, mesmo incorporado ao processo coletivode trabalho no seio da empresa, o médico pode atuar como trabalhadorautônomo, recebendo diretamente de seus pacientes por serviço prestado,

enquanto só os prossionais subalternos são verdadeiros assalariados.Trata-se de um prossional que leva seus pacientes ao hospital, para trata-mento clínico ou cirúrgico, uncionando como empresário de sua FT. É um

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liberal em transição, pois apesar de conservar sua autonomia, em termosde relação de trabalho, depende, entretanto, na prestação de seu serviço,de trabalho e capital alheio. O que ganha é equivalente do valor de sua FT

 junto com um lucro sobre sua utilização; embolsa a totalidade do preço deprodução de sua FT.

Nessa mesma situação, pode ocorrer que o médico, pelo ato decarrear grande número de usuários à empresa, assuma o papel ormalde “sócio”, embora não tenha investido dinheiro no negócio; ser “sócio”signica apenas que adquire o direito a participar do lucro da empresa,porque são seu renome e trabalho especializado que azem afuir clien-

tes. Comporta-se como um capitalista, intermediário entre a empresa eos consumidores dos serviços de saúde. Na remuneração dos serviços queesse médico presta entra uma porção de lucro que corresponde ao traba-lho de toda a equipe. Assim, além de ser empresário de si mesmo, submeteos demais empregados a um trabalho cujo lucro reparte com o real pro-prietário da empresa.

Essas variedades de vínculos entre o médico e a empresa não devem

ser conundidas com o tradicional “recebimento por unidade de serviço”dependente de contratos com entidades de Seguro Social. A dierençaestá em que o preço da unidade de serviço, neste caso, pode corresponderestritamente ao valor de sua FT, sem proporcionar qualquer lucro. A somados preços das unidades de serviço representa, nestas circunstâncias, o

 valor da FT do médico ou algo mais que isso, mas exclusivamente pelo atode ele trabalhar mais intensa e extensamente que a média de seus colegasque têm remuneração xa. É um assalariado, cuja situação se encontradisarçada pela orma de remuneração, tal qual ocorre com o operário querecebe por peça abricada, que Marx demonstra ter estatuto exatamenteigual ao de qualquer assalariado. Para o capitalista de serviços de saúde, opagamento por unidade de serviço tem a utilidade de provocar um acele-ramento ou prolongamento do trabalho, através da prolieração indiscri-minada de atos médicos, muitos dos quais são supérfuos. O médico podeter uma remuneração mais alta que a média, mas em unção do ritmo mais

acelerado de trabalho ou devido ao prolongamento da jornada. O eeitonal, almejado pelo empresário, maniestar-se-á numa mais rápida rota-

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ção de seu capital e, portanto, no lucro suplementar que assim consegueauerir.

  A condição do médico é sempre dierenciada em relação à dosempregados subalternos, que constituem o verdadeiro proletariado dosserviços de saúde. Mesmo quando recebe uma remuneração xa, na ormade salário, ele eventualmente mantém negócio próprio, em outras horas.Por outro lado, pode estar sujeito a um assalariamento integral, mas temsempre a possibilidade de vir a constituir, com a venda de sua orça de tra-balho, um pequeno capital capaz de levá-lo a instalação de clínica particu-lar. Há uma ampla gama de possíveis ormas de vinculação entre o médico

e seu mercado de trabalho que inexiste para os atendentes e demais tra-balhadores subalternos25. Estes constituem a grande massa explorada, semilusões de se tornar proprietária de suas condições de trabalho.

Dissemos que o capital-mercadoria, nos serviços de saúde, com-põem-se de orça e meios de trabalho. Convém notar, entretanto, que aativação do valor de uso dos meios de trabalho depende essencialmenteda capacidade, destreza e conhecimento dos trabalhadores que os mane-

 jam. No comércio, basta alienar a mercadoria em avor do comprador paraque esteja encerrada a operação mercantil; seu destino não diz respeito aocapital comercial nem a seus trabalhadores. É que a mercadoria vendidanão se converte em meio de trabalho utilizada pela empresa comercial,ao contrário do que ocorre nos serviços. Deve-se entender por “serviço” aação útil desenvolvida em conjunto pela FT e pelos MT, sob o comandotécnico daquela, pois compete ao trabalho arrancar os valores de uso desua inércia natural.

Os meios de trabalho dos serviços de saúde classicam-se em duasgrandes categorias:

• xos-prédios, instalações, leitos, instrumentosdediagnóstico

como aparelhos de raios x, etc.• circulantes-medicamentos,soros,vacinas,reagentesquímicos,

alimentos, etc.

25 C. Donnangelo, M.C.F. - Medicina e Sociedade (O Médico e seu Mercado de Trabalho), Pio-neira, S. Paulo, 1975.

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50 Formulação

  Alguns desses elementos são vitais ao processo de trabalho,enquanto outros são apenas acessórios. Os meios de trabalho xos de-nem-se pela maneira em que seu valor é reposto - uma ração de seu custotransere-se ao preço de produção da unidade de serviço, correspondendoa desgaste e obsolescência com o decorrer do tempo. A soma dos preçosde produção dos serviços deve reproduzir seu valor acrescido de um lucroconcernente a seu emprego como capital. O valor de uso do MT xo édurável, não desaparece em virtude do consumo de cada unidade de ser-

 viço. Em síntese, permanece sempre preso à esera da circulação de mer-cadorias, à disposição para novos atos de consumo. Os meios de trabalho

circulantes, por outro lado, cedem integralmente seu valor de troca, que seincorpora ao preço de produção da unidade de serviço de que participa.

 Ademais, seu valor de uso é consumido inteiramente por ocasião da pres-tação do serviço.

Do ponto de vista do conjunto do capital da sociedade, esses ele-mentos do capital em serviços de saúde, xos ou circulantes, nada maisrepresentam que meios de consumo. Não sendo utilizados como mer-

cadorias criadoras de novas mercadorias, mas destinando-se exclusi- vamente ao consumo direto por parte dos usuários, não se deve consi-derá-los “meios de produção” e por isto mesmo evitamos denominá-losassim. Embora ajam como meios de trabalho, sua unção econômica é ade mercadorias voltadas para o consumo privado e esta particularidadetem importância sobretudo quando se analisa a reprodução simples ouampliada da economia capitalista. Com eeito se se divide essa economiaem um setor que produz bens de produção e outro que produz bens deconsumo, a indústria de medicamentos e de equipamentos de saúde deveser enquadrada neste último. Enquanto valores de uso, os MT uncionamtal qual os meios de produção, integrando-se a um processo de trabalhocomo sua base técnica e material. Mas no que se reere ao problema do

 valor e das relações de troca entre os setores econômicos, seu papel é demeios de consumo.

Relações com a Indústria de Insumos A revenda dos MT aos usuários, mediada ou não por uma agên-

cia securitária, az-se com certo lucro, naturalmente, visto que se trata de

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um investimento de capital. Teoricamente, eles já contêm em si uma dadaporção de mais-valia, porque oram produzidos em condições capitalistas,pelo setor industrial. Esta mais-valia é repartida entre o capitalista indus-trial e o de serviços através de certos mecanismos reguladores de que tra-taremos adiante. Se supomos que o preço de produção dos MT é igual aoseu valor real, isto é, que estas mercadorias são produzidas em condiçõesidênticas às da média social, duas conseqüências teóricas devem ser con-sideradas: 1. os MT são comprados abaixo de seu valor real pela empresade serviços, mas acima de seu preço de custo para o capital industrial, detal orma que esta compra realiza parte da mais- valia neles contida, de

acordo com a taxa média de lucro; 2. o empresário de serviços de saúdeapodera-se da porção complementar da mais-valia, realizada na relaçãocom sua clientela.

Entretanto, esse esquema implica em que o total da mais-valia rea-lizada em conjunto pelos setores industriais e de serviços de saúde sejaigual àquele que oi incorporado ao MT no seu processo de produção.Isto pressupõe, por sua vez, que a composição orgânica do capital indus-

trial produtor dos MT seja equivalente a média social. Estas condições, naprática, dicilmente se vericam, principalmente porque os ramos de pro-dução de insumos de saúde (de MT) caracterizam-se por uma alta compo-sição orgânica de seu capital. Esta taxa de composição orgânica (a relaçãoentre o capital variável e o constante) situa-se acima da média, devidoao acentuado investimento em capital constante, aumentando a produ-tividade do trabalho. Ademais, reqüentemente, estão envolvidas empre-sas multinacionais, que mantêm domínio monopolista ou oligopolista domercado. Disto resulta: 1. o preço de produção de suas mercadorias está,em geral, situado acima do valor real, por eeito da transerência de mais-

 valia a partir dos ramos de composição orgânica abaixo da média; 2. suataxa de lucro é singularmente alta, superando bastante aquela que preva-lece nas indústrias do setor concorrencial.

Desta maneira, embora possamos dizer que, como regra geral, opreço de mercado dos MT, no âmbito da empresa de serviços de saúde,

é regulado pelo seu preço de produção, não há uma necessária igualdadeentre o total da mais-valia contida nos MT e o montante de lucro repartidoentre as empresas industriais e de serviços de saúde. Por outras palavras,

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em relação aos MT verica-se uma apropriação de mais-valia por essasempresas, a qual, em conjunto, excede aquela que lhes oi incorporadano momento da produção. O simples ato de a indústria que os produzter elevada taxa de composição orgânica já implica num desvio do preçode produção ace a seu valor. Acresce, contudo, que essa transerência demais-valia, determinada habitualmente pelos mecanismos de mercadoque nivelam as taxas de lucro entre os diversos ramos de produção, adquireuma dimensão mais acentuada em decorrência do caráter monopolista daindústria que abrica esses insumos.

  A indústria de MT encara os serviços de saúde como a base de

sustentação de uma crescente demanda por seus produtos. De algumamaneira, são eles que azem destas mercadorias objetos de uma necessi-dade particular. Aqui, não importa se o serviço tenha cunho capitalista ounão. Pertençam às empresas de serviços de saúde, à iniciativa privada ou aoEstado, essa demanda não se altera e a acumulação capitalista nos ramosindustriais pouco é aetada. A articulação entre o volume do consumo (oudos serviços prestados) com o setor industrial assegura uma apropriada

taxa de lucro, em qualquer circunstância.Para a economia capitalista como um todo, importa, sobretudo a

existência do segmento D-M do ciclo do capital-dinheiro em serviços desaúde, porque a acumulação que ocorre na área industrial é incomensura-

 velmente mais signicativa que a vericada na área desses serviços, envol- vendo, em geral, empresas de pequeno porte. Assim, desde que não sealtere a demanda pelos MT, o ato de estas empresas de serviços terem ounão caráter capitalista pouco infuencia sobre os interesses industriais. Oímpeto da acumulação industrial pode ser pereitamente atendido por umciclo não-capitalista, ao nível dos serviços, que adote a seguinte órmula:D-M(FT + MT) ... D. Aqui, o dinheiro adiantado não se valoriza, não éempregado como capital, porque, digamos, toda empresa de serviços desaúde se torna estatal ou particular benecente. O preço de custo de MTseria idêntico a seu preço de produção, não se ormaria lucro. Mas, se atroca D-M persistir numa escala adequada ao volume dos MT produzidos,

o capital industrial nada perde: suas mercadorias continuam a ser ven-didas e o dinheiro não deixa de refuir da esera da circulação para a da

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produção. Ademais, teoricamente, o montante de mais-valia distribuídaentre os capitais da área industrial poderia até aumentar, visto que nãomais existem certas empresas que dele participavam, sem contribuirempara sua produção.

Contudo, se a eliminação das empresas capitalistas de serviçosde saúde implicasse numa eetiva queda da demanda pelos MT, o capi-tal industrial soreria, porque parte dessas mercadorias não poderia ser

  vendida, haveria superprodução relativa e, conseqüentemente, crise edesvalorização (ou “queima”) de capital. Neste sentido, a existência des-sas empresas de serviço e sua participação na redistribuição da mais-valia

da sociedade estão justicadas pela capacidade de manterem a demandapelos MT acima do nível que seria atingido se houvesse apenas serviços decunho não-capitalista. Esta é a “unção” especíca que cabe às empresascapitalistas de serviços de saúde no âmbito mais geral da economia capita-lista - ampliar a demanda pelos insumos e diversicá-la, quando atendemquer os beneciários de Seguro Social quer aqueles que consomem seusserviços como artigos de luxo.

Os serviços de saúde, qualquer que seja sua natureza econômica,estão subordinados às relações capitalistas de produção e de troca impos-tas pelas indústrias de insumos. Originam um mercado especíco para oconsumo dos MT (meios de diagnose e terapia) e mantêm uma demandaadequada à acumulação industrial. Por sua parte, os serviços capitalistasde saúde apenas contribuem para aumentar e aproundar essa ligação.Em geral, os serviços de saúde propiciam o abreviamento do tempo decirculação das mercadorias usadas na qualidade de insumos ou MT, deduas maneiras distintas: 1. ao adiantarem o dinheiro que irá novamenteuncionar no ciclo produtivo, isto é, ao agirem como promotores imediatosda circulação de valores; 2. ao orientarem os usuários no sentido de con-sumir certos insumos (e.g. através das “receitas médicas”). Quando adian-tam dinheiro, na compra dos MT, seu papel assemelha-se ao do comércio;quando orientam o consumo, aproximam-se mais da unção econômicaexercida pela publicidade. Em qualquer caso, as empresas de serviços de

saúde, capitalistas ou não, são agentes do capital industrial e ormalmenteestão submetidas a seu domínio econômico.

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54 Formulação

Os serviços de saúde, resumidamente, contribuem à acumulaçãocapitalista da seguinte maneira:

1. promovem a circulação de valores, possibilitando à realização damais-valia para o setor industrial e a mais rápida conversão daorma M’ à orma D’, importando, em conseqüência, numa dimi-nuição do tempo de circulação e de rotação desse capital (unçãosemelhante a do comércio de bens de saúde);

2. propiciam uma relativamente discreta acumulação em seupróprio setor através das empresas capitalistas de serviços desaúde;

3. ampliam o mercado de bens de saúde, atuando em orma auxiliare complementar à circulação simples desses bens que se vericapelo comércio;

4. criam necessidades de novos bens de saúde (tecnologias) e,portanto, azem surgir novas alternativas de investimentosprodutivos.

Formação dos Preços de ProduçãoO empresário de saúde encontra no mercado a orça e os meios

de trabalho, consistindo sua unção em revendê-los aos usuários, repas-sar seu valor de uso a outrem, já que ele próprio tem em vista apenaso valor de troca, ou seja, a conversão de D em D’. Essa valorização dodinheiro aplicado na compra de FT e MT representa um caso particularde uma regra geral da economia capitalista. Dadas as condições normais(ou melhor, ideais) de concorrência intercapitalista, a magnitude do lucroassim obtido é determinada pela taxa média de lucro, incidindo sobre atotalidade do capital adiantado. Aqui, o mecanismo de cálculo do lucroé o mesmo dos ramos industriais, a despeito de dierenças em termos decomposição orgânica ou da capacidade de produzir mais-valia. Repar-te-se a mais-valia global produzida anualmente em orma proporcionalà magnitude do investimento, em qualquer ramo, industrial ou mercantil.

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O lucro que uma empresa obtém não corresponde orçosamente à mais- valia gerada por seus empregados:

“...o lucro acrescentado ao preço de custo não se regula pela

quantidade de lucro que determinado capital produz em

determinado ramo em dado tempo, e sim pela quantidade de lucro

que corresponde em média, em dado período, a cada capital como

 parte alíquota do capital global da sociedade empregado em toda a

 produção”26.

 A taxa média de lucro, expressa por M /C+V , compõe-se da mais-valiatotal gerada pelos setores produtivos sobre a soma do capital-constantee variável-aplicado pelo conjunto da sociedade. Os setores não-produti-

 vos, ligados ao comércio, nanças e serviços, contribuem para aumentaro denominador, mas nada acrescentam ao numerador; embora não or-neçam qualquer porção de mais-valia rateada entre os múltiplos capitais,seus investimentos em orça e meios de trabalho são contabilizados na

ormação da taxa, visto que constituem gastos indispensáveis à repro-dução do capital social. Sobre este aspecto, Marx az notar que o capitalcomercial, conquanto incapaz de produzir valor ou mais-valia,

“...propicia sua realização e por isso a troca real das mercadorias,

sua transerência de uma mão para outra, o intercâmbio material

da sociedade. Mas, a ase da circulação do capital, como a

  produção, constitui também ase do processo de reprodução, e,

 por isso, o capital que unciona de maneira autônoma no processo

de circulação tem de proporcionar, como o que opera nos diversos

ramos de produção, o lucro médio anual (...). Uma vez que o próprio

capital mercantil não produz mais-valia, é claro que a mais-valia

que lhe cabe, na orma de lucro médio, constitui parte da mais-

valia produzida pela totalidade do capital produtivo”27.

26 O Capital, Livro III, p. 180.27 (IDEM) p. 325

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56 Formulação

Essas palavras de Marx aplicam-se, literalmente, ao capital empre-gado em serviços de saúde, variedade do capital mercantil, e que, damesma maneira, dene-se por sua importância no “intercâmbio materialda sociedade”. Tal intercâmbio reere-se não só aos MT, mas igualmenteà orça de trabalho, cujo valor de uso essas empresas comercializam: aorça de trabalho, tecnicamente capacitada para prestar seus serviços, éum artigo de consumo, que tem seu preço e sua utilidade. O lucro aue-rido pelo empresário de saúde mantém-se proporcional à magnitude docapital que emprega na compra de FT e MT, de acordo com a taxa geral.

  Assim, dada uma taxa de 20%, um capital de 50 milhões de cruzeiros

propicia, anualmente, uma massa de lucro de 10 milhões. Pode-se supor,entretanto, que há um limite mínimo, abaixo do qual o investimento sóobtém lucro inerior a média. Contudo, se todos os capitais empregadosem serviços de saúde tivessem rentabilidade constantemente abaixo damédia dos demais ramos industriais ou mercantis, não haveria motivospara permanecerem adstritos a essa esera e certamente emigrariam paraaqueles ramos.

Nesse caso, o que está em questão é o lucro médio, que se supõepoder ser obtido por qualquer ramo capitalista. O lucro médio é um resul-tado e não um ponto de partida: tende a ser atingido, quando se consi-deram as oscilações do lucro individual num determinado ramo, duranteperíodo mais ou menos longo. Sua premissa é a existência de livre concor-rência entre os capitais e entre os trabalhadores - pressupõe a possibili-dade de migração de capitais de um ramo a outro, atraídos por altas taxasde lucro, e migração dos trabalhadores, que ogem dos ramos com altataxa de exploração. Assim, o nivelamento das taxas individuais de lucrodá-se concomitantemente com o nivelamento das taxas de exploração (oude mais-valia).

O lucro médio acrescido ao preço de custo resulta no que se chamapreço de produção. A órmula que ilustra o preço de produção dos serviçosde saúde é a seguinte:

k + s + (k’ + s) p

Nesta ormula, k representa o valor dos meios de trabalho consumi-dos no período, digamos, em um ano; k’ é a totalidade dos MT adiantados,

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s o valor da orça de trabalho (ou dos salários pagos) e p a taxa média delucro anual. O lucro provém da incidência da taxa geral sobre o valor totalpago por FT e MT, sendo acrescentado ao preço de custo desses elementosque oram consumidos para prestar os serviços.

Suponhamos que determinada empresa de saúde mantém uminvestimento global da ordem de 50 milhões de cruzeiros, dos quais 15milhões são despendidos em salários e 35 milhões em meios de traba-lho; a composição deste capital, concluída a sua reprodução anual, seriaa seguinte:

20k + 15s + (35k’ + 15s) p

Dos 35 milhões adiantados em meios de trabalho apenas 20 milhõessão consumidos. Mas a taxa geral de lucro incide sobre a totalidade doinvestimento. Deste modo, se, neste caso, ela osse de 40%, haveria umlucro de 20 milhões de cruzeiros a ser acrescido ao preço de custo de 35milhões, que é a soma de k e s. O preço de produção pode também sertomado isoladamente para cada unidade de serviço, tal qual se az em

relação às mercadorias. Aqui, por alta de termo mais adequado, con-tinuaremos a usar o “preço de produção” em reerência aos serviços desaúde, embora não exista, nesse particular, uma verdadeira “produção”,na acepção própria do capitalismo (por outro lado, a expressão “preço de

 venda”, que se impõe inicialmente como alternativa, deve ser evitada, poisconunde-se com o preço de mercado - é que o preço de produção, rigoro-samente, pertence ao sistema do valor e não ao sistema de preço).

Sob o capitalismo monopolista, entretanto, o conceito de taxa geralde lucro deve ter um emprego limitado, porque não mais se pode alar deum lucro médio para todos os setores econômicos, na medida em que osmonopólios e os oligopólios, estabelecidos em certos ramos, possibilitama ostentação de taxas individuais de lucro constantemente situadas acimada média que se verica nos setores de livre concorrência. A equalizaçãodas taxas de lucro é impedida por artiícios de controle de mercado, pelasbarreiras tecnológicas e mesmo por mecanismos legais que dicultam o

deslocamento dos capitais de um ramo a outro. Ao lado do setor con-correncial, para o qual ainda tem sentido alar-se de taxa média de lucro,

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58 Formulação

aparecem setores monopolísticos, que apresentam um amplo espectro detaxas de lucro.

Embora o mercado de serviços de saúde seja bastante “impereito”,do ponto de vista de um modelo concorrencial, não se pode enquadrar asempresas desse ramo no setor oligo ou monopolista. De ato, elas cons-tituem inúmeros pequenos capitais, dispersos, não-centralizados, cujadimensão é relativamente reduzida mesmo em comparação com os capi-tais da área concorrencial. Se, em geral alcançam o lucro médio, é certa-mente porque se beneciam de algumas “impereições” de seu mercado.

 Admitiremos aqui que as empresas capitalistas de serviços de saúde,

a partir de uma dada magnitude de seu capital, auerem o lucro médio querege os investimentos do setor concorrencial, tanto em seu segmento pro-dutivo quanto no mercantil. A redução do “produto” anual dessas empre-sas em preço de custo e lucro médio continua a ser válida, neste sentido.O preço de custo mais o lucro médio podem também ser analisados paracada unidade de serviço comercializada pelas empresas.

  As unidades de serviço são elementos contábeis distinguidos no

contínuo que constitui a assistência de saúde aos enermos. São unidadesde valor de uso e de valor de troca que, nas empresas de serviços de saúde,representam o análogo das mercadorias no mundo da produção material.Eis alguns exemplos de unidades de serviço:

1. diária hospitalar;2. seriograa gastroduodenal;3. eletroencealograa;4. apendicectomia;5. consulta de medicina geral.

Todas essas unidades de serviço envolvem, em dierentes propor-ções, trabalho vivo de um ou mais prossionais, além de certos meios detrabalho, usados com nalidade terapêutica e/ou diagnóstica. Sua expres-são monetária deve necessariamente cobrir seu preço de produção; poroutras palavras, ademais de acrescentar um lucro, deve ornecer um equi-

 valente: 1. da orça de trabalho necessária à produção do serviço, con-orme o tempo em que oi empregada e sua qualicação; 2. dos meios detrabalho utilizados, sejam os circulantes, cujos custos devem ser repostos

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por inteiro, sejam os xos, dos quais cobre apenas a parte correspondenteao desgaste.

Evidentemente, o custo individual desses elementos é bastante variável. O valor de uso dos serviços não têm, em geral, o caráter rigo-rosamente padronizado próprio das mercadorias e por isso mesmo hágrandes variações no custo individual. Uma apendicectomia, por exemplo,conorme as peculiaridades do caso, pode tomar maior ou menor tempodo cirurgião e seus auxiliares e, da mesma orma, pode requerer maior oumenor consumo de MT. Mas há uma média para cada empresa, que dáorigem ao preço de produção individual. O preço de produção de cada

unidade de serviço, para todo o ramo de serviços de saúde, é dado pelamédia do preço individual de conjunto das empresas.

Essa média de preço de produção das US (se as empresas atuaremnum regime de relativa concorrência) rege o preço de mercado, isto é, opreço de venda ao usuário. O preço de mercado, teoricamente, variaráem torno do preço de produção médio das US, com desvios, para mais epara menos, que se compensam ao longo do tempo. É necessário supor

também, para que isto ocorra, que o pagamento das US se az diretamentepelo usuário, envolvendo livre escolha, a m de que os usuários possamoptar pelas empresas que oerecem serviços mais baratos, quando a quali-dade é a mesma. Nestas circunstâncias, pode ocorrer um lucro suplemen-tar em unção da dierença entre o preço de produção individual e o preçode produção geral, quando aquele se situa abaixo deste, que é o reguladordo preço de mercado. Entretanto, estas condições de livre concorrência sãoexcepcionais na área de serviços de saúde, como veremos em seguida.

O Mercado de Serviços de SaúdeO mercado de serviços de saúde tem, geralmente, uma dimensão

concorrencial bastante restrita, por vários motivos. Antes de mais nada, háde se considerar a co-existência das empresas propriamente capitalistascom outras de nalidades não-lucrativas, vinculadas ao Estado ou a enti-dades benecentes. Ademais, à oerta desses serviços interpõem-se obstá-

culos de natureza geográca: inexiste um mercado de amplitude nacionalsemelhante ao das mercadorias, na medida em que os serviços não sãomóveis; na melhor das hipóteses, o mercado apresenta-se “unicado” ape-

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60 Formulação

nas dentro dos limites de uma dada região, em que a diculdade de acessodos usuários às dierentes empresas é a mesma. Outro ator limitante daliberdade de mercado é o desconhecimento do usuário sobre o grau deecácia e a qualidade da assistência que lhe é prestada, tomando em con-sideração o preço que por ela paga, direta ou indiretamente.

Mas o aspecto concorrencial torna-se ainda mais reduzido pelaintervenção de agências do Seguro Social ou de seguradoras privadas,que assumem os riscos de enermidade de seus beneciários e cobrem asdespesas correspondentes. Muitas vezes, as agências securitárias, além demanterem seus próprios serviços, privilegiam determinados produtores na

prestação de serviços aos segurados, introduzindo, assim, um grau maiorou menor de controle sobre o mercado.

No Brasil e noutros países, três são as principais ormas de remu-neração dos serviços prestados às empresas capitalistas de saúde: 1. paga-mento direto por unidade de serviço; 2. pagamento indireto por unidadede serviço; 3. contrato global per capita.

O pagamento direto por unidade de serviço ocorre quando o usuá-

rio desembolsa imediatamente o dinheiro necessário à compra dos servi-ços, gastando-o como salário ou renda de capitalista. Trata-se de serviçosoerecidos em regime relativamente concorrencial, à margem do controlenanceiro das agências de seguro. O preço de venda das unidades de ser-

 viço deve ter certos limites compatíveis com o de seus concorrentes; emprincípio, esse preço de mercado está regulado pelo preço de produçãogeral, isto é, pela média dos preços de produção individuais das empresasconcorrentes, admitida uma equiparação entre oerta e demanda. Lucrosuplementar pode ser obtido pela dierença entre o preço de produçãodo ramo e o preço de produção individual, em unção da maior produ-tividade da empresa, tanto do ponto de vista dos meios tecnológicos,quanto de condições organizacionais, ou seja, da racionalidade adminis-trativa e da adequada combinação de prossionais de dierentes níveis dequalicação.

 Já o pagamento indireto por unidade de serviço decorre de nan-

ciamento prévio de um undo securitário, privado ou estatal, que repassaseus recursos às empresas, em conormidade com o número de unida-des de serviços prestados a seus segurados ou beneciários. O preço

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de mercado dessas US pode ser xado pela própria agência securitária,sobretudo quando se estabelecem mecanismos de credenciamento; oupode ser “livre”, caso em que os padrões concorrenciais da remuneraçãodireta ainda prevalecem: o usuário escolhe livremente os prossionais eas empresas de que se quer servir, competindo ao Seguro tão-somente opagamento das despesas, a posteriori  , sem haver discriminação entre ospotenciais produtores. A agência securitária, quando adota mecanismosde credenciamento, procura impor algumas restrições à gama de possíveisunidades de serviço, limitando-a qualitativa e quantitativamente. É lícitosupor que, na remuneração a preço xo de US, está prevista uma margem

de lucro igual a média social que prevalece entre capitais concorrenciais.Entretanto, como analisaremos adiante, o preço xo e o geralmente pre-cário controle das agências securitárias (principalmente se são estatais)criam certo espaço de manobra na obtenção de lucros suplementares.

Outra modalidade de pagamento é o contrato global per capita , emque a agência securitária transere à empresa de serviço, ou autoriza osempregadores a transerir, uma quota constante, proporcional ao número

de segurados cobertos contra os riscos de saúde. A empresa de saúdeassume diretamente tais riscos, devendo ela própria custear as despesaseventuais de assistência da parcela de contribuintes que vier a adoecer.Neste sentido, adquire a característica adicional de agência de seguro.Como seu objetivo é lucrativo, está sempre atenta para que suas despesascom serviços não exceda o valor dos recursos repassados. Também nestecaso, devemos supor que a relação receita/despesa reproduz normalmenteo lucro médio.

 Admitimos que em todas essas três modalidades de pagamento, olucro normal é comparável ao do setor concorrencial da economia, a des-peito das mencionadas “impereições” do mercado de serviços de saúde.Um problema à parte consiste em identicar os mecanismos de conse-cução de lucros suplementares - aqueles situados acima da média. Des-ses mecanismos o mais universal talvez seja a redução do preço de custo,tanto do capital constante quanto do variável: procura-se poupar recursos

materiais e humanos de tal orma que o preço de produção individual (jácontendo o lucro médio) que bem abaixo do preço de mercado, quer esteseja xo ou variável. A dierença entre o preço de produção individual e o

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preço de mercado passa a ser causa de superlucro. Para as empresas queuncionam à base de pagamento indireto por US, a preço xo, a norma depoupança de capital pode ser assim expressa: ao prestar o máximo possívelde unidades de serviço, empregar o mínimo possível de capital constantecirculante (medicamentos, reagentes, etc.) e de orça de trabalho quali-cada. Ilustremos esta situação com o exemplo de um centro de tratamentointensivo numa tal empresa. A agência securitária só credencia o hospital,para cuidado intensivo a seus segurados, se o CTI dispuser de certos meiostécnicos, como sejam, ventiladores pulmonares, eletrocardiógraos, des-briladores, aparelhos de monitorização, etc. Mas, para cada dia de cuidado

intensivo (digamos que seja esta a unidade de serviço utilizada), maiorlucro será auerido se se usar parcimoniosamente o oxigênio, a eletrici-dade, etc., e se, em vez de empregar 24 horas de trabalho de médicos, naassistência aos internados, combinar 8 horas de trabalho médico com 24horas de enermagem, contanto que o custo médico/hora seja mais caroem pelo menos um terço que o de enermagem/hora. O valor das US érealizado com um mínimo de dispêndio de elementos circulantes do capi-

tal e com uma diminuição do número de pessoal de maior qualicação. As US de maior preço de mercado são justamente aquelas que requeremmaior investimento de capital xo em sua prestação (cirurgia, CTI, raios X,etc.). Mas este capital xo, em seu uncionamento, é compatível com umaredução maior ou menor dos custos de produção por conta dos MT cir-culantes e do leque de qualicação da FT. Desde que o preço de mercadodas US seja predeterminado pelas agências de seguro de saúde, o objetivodo empresário não é o de azer circular, simplesmente, o máximo de mer-cadorias através dessas US, ao contrário do que se arma comumente. Na

 verdade, para ser coerente com a lógica de uncionamento de seu capi-tal, ele deve tencionar produzir o máximo de US a um custo mínimo decapital, o que pressupõe certa restrição às mercadorias circuláveis pelosserviços. Este máximo de US encontra um limite nas barreiras interpostaspelo seguro de saúde, embora o controle de qualidade e quantidade porele exercido seja em geral deciente, principalmente quando se trata de

agência estatal. Neste particular, as agências de seguro privadas têm maioreciência, pois seu lucro depende da manutenção das despesas com assis-tência de saúde dentro de limites razoáveis.

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Nas empresas que recebem por contrato global, o superlucro temduas origens: 1. economia constante e variável, da mesma maneira quenas outras modalidades de pagamento; 2. diminuição do número e daqualidade das US, mesmo daquelas tecnicamente necessárias. Estasempresas além da parcimônia no uso dos MP e da FT, tendem a limitaras US ao estritamente necessário e, às vezes, a aquém deste nível; o cui-dado de saúde que promove terá qualidade inerior a média se não houverum controle adequado. A máxima rentabilidade do capital coincide como mínimo possível de US dispensadas a seus pacientes. Comportando-se,simultaneamente, como empresas de serviços e de seguro, incrementam

o superávit da relação receita/despesa na medida em que seu undo dereserva não se esvai em serviços prestados. Este objetivo também pode seralcançado mediante um processo prévio de seleção da clientela coberta.Freqüentemente tais empresas realizam uma seleção da orça de trabalhoa ser contratada pelas indústrias com as quais mantém convênios nestemomento, com vistas a eliminar os indivíduos de “mau risco” e reter ape-nas os de “bom risco”, isto é, descartam os que têm condições predispo-

nentes a enermidades28

.

tRabalho e valoR nos seRviços de saúde 

Características do Trabalho AssociadoNos serviços de saúde - e não só nos de cunho capitalista, mas em

geral - o médico destaca-se como o produtor principal. A ele concerne aexecução das tareas que requerem maior destreza e conhecimentos téc-nicos. Participa do cuidado imediato ao paciente, realizando um trabalhoque, requentemente, é tanto manual quanto intelectual.

É, portanto, o médico quem detém a hegemonia do controle técnicoe, às vezes, administrativo, do processo de trabalho. Em certas circunstân-cias, mesmo não sendo seu proprietário, um médico pode assumir o papelde gerente de empresas capitalistas. Atua então como racionalizador do

28 Para uma análise desse tipo de empresa de serviços de saúde, no Brasil, consulte-se Oliveira, Jaime A.A. e Teixeira, Sônia M.F., “Medicina de Grupo: A Medicina e a Fábrica”, in Guimarães,R. (org.) Saúde e Medicina no Brasil, Graal, Rio, 1978.

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64 Formulação

processo de trabalho, tendo entre outras, a unção de ditar regras técni-co-administrativas, que visam a reduzir o custo operacional e maximizaros lucros. A gerência técnico-administrativa, encabeçada por um médico,xa os limites de dispêndio de MT aos produtores da empresa, inclusivea outros médicos. Dependendo da modalidade de pagamento, as normasdele emanadas podem estimular ou restringir a realização de unidadesde serviço, mas com a característica comum de objetivar a poupança dosgastos de capital, constante ou variável, porque esta é onte de lucro suple-mentar, em qualquer circunstância.

 Ao lado da gerência técnico-administrativa, existe o controle técnico-

operacional, o qual está invariavelmente conado a todo o corpo médicoda empresa. Reere-se às ordens terapêuticas e diagnósticas que devemser cumpridas pelos demais trabalhadores, em cada situação particular.O médico, no processo de trabalho, encontra-se posicionado no vérticede uma pirâmide de autoridade técnica, em que a base é constituída peloexército das atendentes de enermagem, havendo de permeio um númeromenor de prossionais de nível superior e médio, que supervisionam a

aplicação das ordens médicas, executando, eventualmente, eles próprios,cuidados de enermagem. As tareas mais complexas, em tal divisão téc-nica do trabalho, são reservadas ao prossional de maior capacitação, detal maneira a evitar a perda de seu tempo em atos que possam ser assu-midos pelos trabalhadores menos capacitados e, consequentemente, maisbaratos. A decisão e a intervenção tecnicamente mais complexas cam acargo do médico, mas seus sentidos e seus membros são ampliados pelocorpo de prossionais subalternos. Por este expediente, poupa-se traba-lho qualicado: um dado volume de unidades de serviço terá um preçode custo menor do que se não houvesse essa hierarquização das tareas.

 Aumenta-se a produtividade do capital às custas do trabalho associado. Aqui as orças produtivas da divisão e associação do trabalho agem nosentido de baixar o preço de produção individual, o que pode representarum instrumento de elevação do lucro.

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É o princípio de Babbage, em ação ao nível da assistência de saúde.Este princípio, conorme Harry Braverman, em seu livro Trabalho e CapitalMonopolista,

“...é undamental para a evolução da divisão do trabalho na

sociedade capitalista. Ele exprime não um aspecto técnico da

divisão do trabalho, mas seu aspecto social. Tanto quanto o trabalho

 pode ser dissociado, pode ser separado em elementos, alguns dos

quais são mais simples que outros e cada qual mais simples que

o todo. Traduzido em termos de mercado, isto signifca que a

 orça de trabalho capaz de executar o processo pode ser comprada

mais barato como elementos dissociados do que como capacidade

integrada num só trabalhador”29.

Determinada quantidade de valor de uso, expressa em unidades deserviço, passa a ter um custo de produção menor, porque os dispêndios decapital variável diminuem, pela simples combinação dos tempos de traba-

lho de empregados de dierentes níveis de qualicação. Este incrementoda produtividade dá-se, portanto, através da redução direta dos custos dereprodução da orça de trabalho necessária a produzir dado volume de US.Nas empresas capitalistas de serviço de saúde, o número de prossionaissubalternos por médico é maior que nas empresas não lucrativas, emboraestas também procurem, pela racionalização administrativa, elevar estarelação.

No que tange às unções do médico, já destacamos a distinção entreo papel técnico-administrativo e o técnico-operacional. O médico podeser um assalariado encarregado da gerência, sem ser proprietário. Mas,nas pequenas empresas, via de regra, o proprietário exerce as unções degerente, sendo ele mesmo um médico que clinica, opera, etc.: é um capita-lista que trabalha. Nas empresas de contrato global, por outro lado, essasduas unções, de gerente e de trabalhador, não apenas estão separadascomo são antagônicas. O comando técnico do processo de trabalho por

parte dos médicos que prestam assistência direta é cerceado pelas imposi-

29 Braverman, H. - Trabalho e Capital Monopolista, A degradação do Trabalho no Século XX,Zahar, Rio, 1977, p. 79.

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ções do gerente, que objetiva reduzir o número e a variedade das unidadesde serviço, a despeito das necessidades estritamente médicas dos usuá-rios. Daí pode nascer um confito entre a autoridade técnica do médico- trabalhador e a autoridade administrativa do médico-gerente, acentu-ado, às vezes, pela condição de sub-remuneração daquele. Em geral, taisempresas, chamadas entre nós de “medicina de grupo”, têm uma altarotatividade dos médicos empregados, que evadem por motivos de salárioe confitos reerentes ao controle do processo de trabalho.

Dentro desse organismo que constitui o trabalhador coletivo em ser- viços de saúde, a carga maior do sobretrabalho recai sobre os ombros dos

atendentes e serventes, mão-de-obra essencialmente eminina, de baixaqualicação e baixos níveis de remuneração, o verdadeiro proletariadodessa área econômica. São os atendentes que cumprem horários extras,plantões sucessivos, etc., no esorço de, ao prolongar a jornada de trabalho,compensar parcialmente seus diminutos salários. Não apenas trabalhamum maior número de horas, como também o azem mais intensamenteque os outros produtores. Nas empresas em que os médicos recebem por

unidade de serviço, este enômeno se az mais patente, devido à intensi-cação do ritmo de trabalho. Nestas condições de pagamento, o médicotrabalha mais intensa e extensamente que o normal, no aã de realizar omáximo possível de unidades de serviço. O pessoal subalterno é obrigadoa acompanhar este ritmo de trabalho, porque depende do comando téc-nico dos médicos. Mas sua remuneração é xa, de tal modo que, apesarde trabalharem mais intensamente, isto em nada altera o montante de seusalário. Dada uma determinada duração da jornada de trabalho, o médicorecebe mais, aumenta sua renda proporcionalmente ao número de USprestadas; mas ao correspondente aumento da intensidade do trabalhodos prossionais subalternos não cabe qualquer remuneração adicional.

 Assim, o pagamento por US aos médicos e à empresa serve como estímuloà extração de sobretrabalho desses assalariados.

Como em todos os demais setores da sociedade capitalista, nasempresas de serviços de saúde registra-se uma tendência à elevação da

composição orgânica do capital. Há um vetor que leva a incorporar cada vez mais elementos constantes do capital em relação aos elementos variá- veis. A evolução histórica dos serviços de saúde tem sido marcada, de um

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lado, pela socialização progressiva do processo de trabalho, que desen- volve as potências do trabalho associado; e, de outro, pela incorporaçãocrescente de meios de produção mais ecazes para o diagnóstico e a tera-pia. A introdução de nova tecnologia instrumental tanto pode azer sur-gir novos tipos de unidades de serviço (e.g. um novo teste diagnóstico,como a tomograa axial computorizada), quanto pode ser substitutivo demétodos antigos (e.g. a contagem automática de elementos sanguíneos,no lugar do hemograma preparado manualmente). Em geral, o manejo danova tecnologia requer adestramento e especialização de pessoal auxiliar,o que amplia e diversica a divisão de trabalho no âmbito da empresa.

 Ao aumento do volume de MT empregado corresponde um acréscimo nacomposição orgânica do capital, porque as despesas com capital constantese elevam mais rapidamente que aquelas com orça de trabalho. A raçãok do capital tem seu valor acrescido em proporção maior que o aumentoda raçãos.

 A aplicação do princípio de Babbage, com sua conseqüente hierar-quização das tareas por grau de complexidade técnica, pode estar dirigida

a um método tradicional, que antes era executado por um único tipo detrabalhador e passa a ser eito através de múltiplos prossionais, com dis-tintos níveis de qualicação, num processo em que as tareas mais simplessão atribuídas aos menos qualicados e as mais complexas aos mais qua-licados; como também pode ser uma implicação da nova tecnologia, que,para a prestação de dada unidade de serviço, necessita menores conheci-mentos e habilidades, o que provoca a substituição do trabalhador maisqualicado por outro de menor competência técnica, desde que este sejasupervisionado por aquele. De uma ou de outra maneira, o resultado nalar-se-á sentir positivamente sobre a lucratividade do capital.

O que chamamos de poupança de capital variável inclui não ape-nas a aplicação do princípio de Babbage, mas igualmente o aumento doritmo e da extensão da jornada de trabalho. Supomos ser esta economiade capital um enômeno universal, independente da modalidade de paga-mento adotada. O aumento da produtividade dos serviços unda-se, em

grande parte, em tais expedientes de tecnologia organizacional. Junto coma poupança de capital constante (de tipo circulante) constitui mecanismosde redução do preço de produção individual das US, com refexos sobre a

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massa de lucros realizada pelo capital. Se houvesse concorrência pereita,toda economia de capital constante e variável traria vantagens apenaspassageiras para o empresário individual, visto que a diusão desses meiosde acrescer a produtividade do trabalho levaria, a longo prazo, a um nive-lamento do lucro. Mas se o “preço de mercado” é xo, devido ao controlepela agência de seguro, o lucro suplementar pode ser garantido por tempoindeterminado.

Quanto ao problema da modernização tecnológica é necessário res-saltar a tendência dominante no sentido da criação de novas unidadesde serviços, ao invés da substituição dos métodos tradicionais. A diver-

sidade de unidades de serviço amplia-se para um eeito que, sobretudoem relação ao diagnóstico, passa a ser supostamente mais conável emais detalhado. Os novos meios de diagnóstico não costumam subs-tituir os antigos, mas somam-se a eles, alargando assim o espectro dasunidades de serviços consideradas necessárias ao esclarecimento clínicode cada caso de enermidade. Ao estetoscópio e ao raio X, nas doençascardiovasculares, ajuntam-se o eletrocardiograma, o vetorcardiograma, o

ecocardiograma, etc. Cada exame destes representa um item potencial derealização de valor. A nova técnica exige investimento de capital constantee, às vezes, de capital variável, e para que este investimento seja o maisrentável possível deve prestar o serviço ao menor custo operacional, o quese consegue poupando os meios de produção circulante e empregandoorça de trabalho de pouca qualicação. Naturalmente, esta poupança decapital não infui signicativamente sobre o montante de lucro quando aempresa opera em grande escala, com suciente demanda de usuários,leitos numerosos, muitos trabalhadores, de diversicados níveis de capa-citação, etc. Nestas condições, em que atuam as chamadas economias deescala, a produtividade do trabalho associado, combinada à especializaçãodas tareas, torna-se um ator sensível de incremento da massa de mais-

 valia realizada.

Determinação do Salário

 À semelhança dos demais setores econômicos, a remuneração dostrabalhadores assalariados, nos serviços de saúde, determina-se basica-mente pelos custos de produção e reprodução da orça de trabalho. Custos

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de produção signicam aqui aqueles necessários à capacitação técnica dotrabalhador, e custos de reprodução, o valor da soma dos meios de subsis-tência que lhe cabem em dado momento histórico.

  Visto que a orça de trabalho é comprada para ser vendida peloempresário de serviços de saúde, seu preço de custo distingue-se de seupreço de produção: aquele é o salário pago ao trabalhador e este é o preçode custo acrescido do lucro correspondente. Na órmula do preço de pro-dução do conjunto dos serviços, s representa o preço de custo da orça detrabalho, enquantos +(s)p indica o seu preço de produção.

No preço de mercado das unidades de serviço de saúde, algumas

 vezes o preço da orça de trabalho qualicada pode ser estabelecido iso-ladamente. Numa cirurgia, a remuneração do cirurgião, de seus auxiliarese do anestesista pode ser cobrada à parte; o usuário paga diretamente poressas unidades, reerentes à utilização da orça de trabalho dos médicos,ou uma agência de seguros de saúde o az por ele. Outras vezes, o preço demercado das US não discrimina o preço de qualquer tipo de FT que delasparticipa, embora, naturalmente, contenha uma ração que a remunera.

 As duas categorias undamentais de assalariados que devemos con-siderar são as seguintes: 1. médicos; 2. “atendentes”.

Englobamos na denominação de “atendente” todo o pessoal debaixa qualicação dos serviços de saúde que prestam assistência de ener-magem e de “hotelaria” aos usuários. Essas duas categorias são polaresem termos de capacitação técnica, mas representam a grande maioria daFT envolvida no cuidado direto aos pacientes, sobretudo os internados. Omédico continua a ser a gura central no encaminhamento do diagnósticoe do tratamento, além de principal móvel da demanda por serviços desaúde. Por outro lado, as atendentes realizam o grosso das tareas manu-ais e instrumentais que os médicos prescrevem - desde os cuidados como leito até a aplicação de medidas terapêuticas, passando pela observaçãocontínua do paciente, de suas unções siológicas, etc.

O salário dessas duas categorias deixa-se infuenciar pelos mesmosdois atores que aetam qualquer grupo de assalariados: 1. magnitude da

oerta de orça de trabalho com idêntica qualicação; 2. grau de organiza-ção e capacidade de reinvidicação da categoria prossional.

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Quanto ao primeiro ator, os médicos costumam estar numa situa-ção mais avorável. Há sindicatos e associações, mais ou menos ativos, quese mobilizam, no sentido de sensibilizar a opinião publica, ou de pressio-nar as empresas, quando o nível salarial cai abaixo do mínimo que o grupoconsidera condizente com sua posição na sociedade. Já as atendentes nãomantêm qualquer orma de organização político-sindical, repetindo umaparticularidade de todos os trabalhadores de baixa qualicação do setor deserviços. Além disto, no mercado de trabalho, enrentam uma concorrên-cia bem maior que a vericada entre os médicos. Seu potencial mercadode trabalho é mais vasto, envolvendo outros setores, industriais e mercan-

tis. Em certo sentido, elas representam um excedente e, ao mesmo tempo,uma reserva, dos setores produtivos já que os trabalhadores de baixa qua-licação em serviços constituem um dos contingentes de oerta potencialque regulam o preço do trabalho nos setores produtivos. Sendo assim,seu salário se situa requentemente, para um mesmo nível de qualicação,abaixo da média que prevalece no sistema econômico como um todo. Asatendentes derontam-se com uma concorrência tanto intrasetorial (entre

trabalhadores de serviço de saúde), quanto intersetorial (entre trabalhado-res de outros tipos de serviço e da indústria). Com base nessas característi-cas de seu mercado de trabalho, suporemos que seu salário situa-se abaixodo valor real de sua orça de trabalho, pelo menos tendencialmente.

Quanto aos médicos, tendo em conta a menor concorrência nomercado de trabalho, que é intrasetorial, e um razoável grau de organiza-ção político-corporativa, convêm tomar por hipótese que seu salário nãocai abaixo do valor de sua orça de trabalho, a não ser em duas circuns-tâncias: 1. quando trabalha como médico-residente, caso em que o mer-cado de trabalho deduz do valor de sua FT os custos que, supostamente,lhe proporciona; 2. nas empresas de pagamento global per capita , chama-das de “medicina de grupo”, que reduzem ao mínimo o capital variável,empregando o “excedente” de médicos não absorvível por outros tipos deempresas (trata-se, sobretudo de médicos recém-ormados, com poucaexperiência prossional).

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Quando o próprio médico recebe por unidade de serviço que prestaaos usuários, duas coisas distintas podem ocorrer:

1. o preço da US apenas repõe o valor da orça de trabalho domédico, segundo o tempo que oi necessário utilizá-la; nestecaso, a remuneração não acarreta lucro para o médico, apenasrealiza o valor da sua FT. O conjunto de todas as US que prestadurante o mês lhe rende tão-somente um salário.

2. o preço da US repõe o valor da orça de trabalho do médico,acrescido de um lucro, embolsado diretamente pelo médico.

 Aqui o médico unciona como capitalista de si próprio e sobre-

remunera seu trabalho. É uma questão em aberto saber em quecircunstâncias este lucro emana, em maior ou menor parte, dosobretrabalho de outros membros da equipe de saúde, principal-mente os subalternos.

 A primeira condição é característica de empresas que mantém con- vênios com agências de seguro de saúde, recebendo por unidades de ser-

 viço, das quais umas remuneram a própria empresa e outras, os médi-cos. Estes são assalariados verdadeiros, cuja situação é mascarada pelaremuneração em separado. Seu trabalho é onte de lucro para a empresa,porque uma parte alíquota do preço de todas as outras US correspondeao lucro sobre a utilização de sua orça de trabalho. Se seus rendimentosde médico são maiores, isto apenas signica que trabalha mais tempo emais intensamente que a média de seus colegas. A segunda condição, aocontrário, ocorre com típicos médicos “liberais” que levam seus pacientesparticulares para tratamento clínico ou cirúrgico num hospital. Trata-se,portanto, de duas relações de produção distintas: um é assalariado e outroé um pequeno capitalista que empresaria sua própria orça de trabalho.

Portanto, a remuneração do médico por unidade de serviço podeocultar uma relação de assalariamento. Em outras circunstâncias, umaremuneração xa oculta a participação do indivíduo no lucro da empresa:o médico-gerente, por exemplo, embora não proprietário, pode ter parte

de seus ganhos garantida através de tal mecanismo, porque sua posição deautoridade no comando administrativo do processo de trabalho lhe valede instrumento de barganha em relação à massa de mais-valia realizada

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pela empresa. Neste caso, seu salário representa algo mais que um simplesequivalente do valor de sua orça de trabalho.

 Vejamos agora mais detidamente a questão do preço de custo daorça de trabalho. Se deixarmos de lado os custos de capacitação, expe-riência pregressa, etc., o que resta são aqueles estritamente necessários àreprodução da FT num dado período de tempo (não importa se esse preçode custo está abaixo do padrão social que dita o valor da FT, individual-mente ou em seu conjunto). Digamos que há um preço de custo diário daorça de trabalho coletiva igual a V. Suponhamos também que este preçoda orça de trabalho não possa ser rebaixada além desse limite, que já é

o mínimo compatível com sua reprodução. Se a jornada de trabalho é deN horas, cada hora de serviço prestado, em relação ao ator trabalho, cus-tará à empresa V/N. Se a jornada de trabalho se reduzir por um número Y de horas, a empresa deverá pagar à orça de trabalho o mesmo preço de

 V/N, mas apenas receberá N - Y horas de trabalho diário. Então, o preçode custo da hora/trabalho terá aumentado, em unção da diminuição da

 jornada de trabalho. Este enômeno, entretanto, não deve ser tomado em

conexão com uma empresa em particular, mas com todas as empresas doramo, considerando-se a média social da duração da jornada de traba-lho (que abarca todos os setores econômicos). À medida que diminui a

 jornada média de trabalho, aumenta o preço de custo do conjunto da FTrepresentado numa determinada quantidade de serviços.

Geralmente, um agregado de serviços de saúde envolve trabalhode empregados de dierentes níveis de qualicação e, portanto, de custos

 variados. O preço de custo desses agregados é diretamente proporcionalà qualicação dos empregados que dele participam e ao tempo em que seos utilizam.

Problemas da Transerência de Mais-ValiaFoi reerido que a órmula k + s + (k’ + s) p distingue o preço de pro-

dução dos serviços de saúde. Ela exprime o valor a ser realizado pelo con- junto das unidades de serviço, valor que não é produzido, neste momento,

mas que preexiste sob a orma de meios de trabalho (k) e de orça detrabalho (s). Para a ormação de p, a taxa geral de lucro, os serviços desaúde não contribuem com mais-valia, embora o capital que emprega seja

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remunerado como se a produzisse, porque a mais-valia sempre se repartesegundo a magnitude do investimento de capital.

Há uma undamental dierença entre k e s, entretanto, que não podepassar despercebida quando consideramos as relações entre o capital emserviços de saúde e o capital de toda a sociedade, em que o primeiro sedestaca por seu papel de circulação de valores. É que k congura umamercadoria à qual o processo de produção imprimiu uma dada porção demais-valia, cuja realização torna-se indispensável do ponto de vista docapital global. Na realização do valor dessa mercadoria, o serviço apresen-ta-se como um necessário parceiro do capital industrial que a produziu. O

lucro que vai para as mãos do capitalista de serviços de saúde é viabilizadoem parte pela existência desses MT enquanto substrato material da trocados serviços por dinheiro. Por outro lado, esse lucro, para o conjunto docapital, aparece como um custo de circulação que não pode ser evitado. Oindustrial produz, mas o serviço de saúde propicia a venda e o consumo.Muitas dessas mercadorias suprem uma demanda especíca dos serviços,que não poderia partir diretamente dos usuários. Um medicamento pode

ser comprado na armácia, pelo próprio consumidor, mas, em contrapar-tida, um eletrocardiógrao tem seu uso necessariamente mediado pelosserviços médicos. Deste modo, amplia-se, pela dinâmica técnica dos ser-

 viços, o universo mercadorias possíveis de serem objetos de consumo. Porsua inserção nos mecanismos que possibilitam a circulação e a produçãode mercadorias, as empresas capitalistas de saúde têm direito a participarda mais-valia social.

Os gastos com salário dos trabalhadores desses serviços são tambémnecessários, porque de outra orma, o próprio valor dos MT não poderiaser realizado. No entanto, é interesse de todos os capitais da sociedademanter os custos dessa orça de trabalho ao menor nível possível, porquesão gastos improdutivos apesar de necessários. Isto é válido para todo osetor de serviço, no qual o preço da orça de trabalho está aquém da médiaque prevalece na indústria.

  A compra e venda da orça de trabalho regula-se pelo valor dos

meios de consumo mínimos necessários a sua manutenção, em dada con-dição histórico-social. Surgem, neste particular, as seguintes alternativas:ou o capitalista de saúde compra a orça de trabalho por seu valor ou a

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compra abaixo de seu valor. O preço da orça de trabalho cai abaixo deseu valor quando se vericam duas condições principais, já mencionadas,oerta excessiva e inexistência de pressões sindicais. Estas são caracterís-ticas, sobretudo dos trabalhadores de escassa qualicação - atendentes eserventes, que constituem a grande maioria dos trabalhadores em saúdee seu legítimo proletariado. Se considerarmos que os médicos e outrosprossionais de maior qualicação são remunerados pelo valor real de suaorça de trabalho (o que nem sempre ocorre), o conjunto da orça de tra-balho ainda assim estaria sendo comprada abaixo de seu valor, porqueincluiria os empregados de pouca qualicação (na qualidade de um rela-

tivo “excedente” dos setores industriais) cujo “trabalho simples” é remu-nerado em níveis ineriores a média social. Parte do lucro representadapelo produto (s)p originar-se-ia assim, de uma dedução sobre o valor daorça de trabalho coletivo. Estando o preço de custo do conjunto da orçade trabalho situado aquém de seu valor, o preço de produção do ator tra-balho nos serviços conterá uma quantidade não paga de valor, convertidaem lucro para o empresário. Dicilmente, entretanto, esta quantidade de

 valor poderia reproduzir, de per si , o lucro médio correspondente ao capi-tal variável adiantado.

Por uma norma geral do capitalismo, esta ração do capital deverender o lucro médio. Como a orça de trabalho em saúde não gera de per

si valor excedente, o valor que ela cede, quando apropriada como valorde uso, no consumo, é apenas o valor previamente materializado em si.Este valor é ornecido pela média social dos custos de produção da FTno sistema capitalista. É o tempo de trabalho socialmente necessário aproduzí-la e reproduzí-la como orça de trabalho. Contudo, os custos indi-

 viduais da FT podem se situar abaixo dos custos gerais. Ou seja, a FT podeser comprada abaixo de seu valor, sendo sub-remunerada. Os serviços desaúde capitalistas, apoiando-se nas particularidades do mercado de traba-lho do pessoal de escassa qualicação, passam a comprar o conjunto desua FT por um preço aquém de seu valor. Assim, parte do lucro que aue-rem resultará de uma dedução sobre o valor da FT: uma ração do tempo

de trabalho materializado na FT, como bem social, deixa de ser paga pelocapitalista, mas reaparece no preço de produção dos serviços.

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Esse mecanismo de dedução sobre o valor da orça de trabalho nãoé exclusividade dos serviços de saúde ou dos serviços em geral. Marx oidenticou em relação ao produtor agrícola, em determinadas circunstân-cias histórico-sociais:

“Fato mais geral e mais importante, porém é a redução do salário

do trabalhador agrícola propriamente dito abaixo do nível médio

normal, subtraindo-se do trabalhador ração do salário, a qual

 passa a constituir-se parte integrante do arrendamento e assim,

sob a máscara de renda undiária, vai para o proprietário da terra

e não para o trabalhador”30.

 A dierença entre o trabalhador agrícola e o de serviços de saúde éque o primeiro reproduz no produto o valor de seus meios de subsistência,enquanto o segundo não az, porque não cria mercadorias.

Dissemos que o preço de produção da FT está representado por s+ s(p), em que s é o capital variável adiantado e p a taxa média de lucro.

Pelo raciocínio aqui exposto, conclui-se que s(p), o lucro do empresário,relativo ao capital variável, tem duas ontes:

1. dedução sobre o valor real da FT empregada nos serviços desaúde;

2. transerência de mais-valia de outros setores.

Esses dois mecanismos atuam em conjunto e a parte com que cadaum contribui para a ormação do lucro sobre a FT depende do momentopelo qual passa o ciclo capitalista como um todo. Na ase em que o pro-cesso de reprodução ampliada, de produção e acumulação, fui sem maio-res embaraços, em que se verica expansão dos investimentos, dos empre-gos e do consumo, então a crescente concorrência intersetorial de traba-lho, em eventual conexão com uma maior coesão político-corporativados assalariados, desativa parcialmente o primeiro mecanismo. Torna-seentão diícil realizar uma dedução sobre o valor real da FT, na medida

em que esta pode optar pelos setores produtivos, com oerta crescente de

30 O Capital, Livro III, p. 719.

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emprego. Por outro lado, há uma geração suciente de mais-valia, pelosistema econômico em seu conjunto, que compensa a impossibilidade dededuções sobre o valor da FT. Mais acilmente a mais-valia pode ser dre-nada dos setores produtivos para os serviços de saúde, pela redistribuiçãodo excedente global regulado pelos valores de mercado.

Nas ases de estagnação e de crise, ou ainda, nos momentos de declí-nio do processo de reprodução, a dedução sobre o valor da FT torna-se osustentáculo principal dessa ração do lucro empresarial, viabilizada pelaexistência de desemprego e diminuição da oerta total de emprego nossetores produtivos. Como nos países em desenvolvimento, o excesso de

oerta de orça de trabalho é uma situação mais ou menos crônica, pode-seconjecturar que a dedução sobre o valor da FT é uma medida continua-mente posta em prática, sem maiores perturbações.

Considerando-se o lucro do empresário em sua totalidade, simbo-lizado por (k’+ s)p, e reerente ao capital aplicado tanto em meios de pro-dução quanto em orça de trabalho, constata-se, por tudo que oi dito, queé valor excedente originado:

1. da mais-valia incorporada aos MT no momento de suaprodução;

2. de ração não paga do valor da FT;3. da transerência da mais-valia social.

Na verdade, para simplicar, bastaria tomar as duas últimas origens, visto que a mais-valia incorporada aos MT, do ponto de vista teórico, passaa integrar o conjunto da mais-valia social, que é repartida segundo a mag-nitude dos investimentos de capitais, na área concorrencial.

Observações Adicionais sobre Trabalho Produtivo eImprodutivo

  Até aqui, nossa análise esteve, em parte, presa ao objetivo dedemonstrar que o trabalho em saúde, nas situações especícas em quese submete a relações capitalistas, é incapaz de gerar valor e mais-valia.

Por conseguinte, o ciclo do capital nas empresas de serviços de saúde nãopassa pela orma M’, que assinala o capital-mercadoria valorizado, ou seja,portador de mais-valia. Este tipo de trabalho (como qualquer outro do

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chamado setor de serviços) em nada contribui na ampliação do “bolo” demais-valia regularmente repartido entre os dierentes ramos de investi-mento capitalista.

  A partir dessas premissas, poder-se-ia, sem maiores aprounda-mentos, deduzir que o trabalho em saúde é, em qualquer circunstância,denitivamente “improdutivo”.

Seria, entretanto, uma conclusão alsa, porque esse trabalho éimprodutivo, num aspecto, e produtivo, noutro, a depender da relaçãosocial que se considere. A mais importante questão a respeito do conceitode trabalho produtivo e improdutivo, conorme se depreende de uma lei-

tura atenta de O Capital, Teorias da Mais-Valia e Sexto Capítulo Inédito, éa seguinte: produtivo (ou improdutivo) para quem?

  Vejamos como esse problema pode ser explicitado no que con-cerne ao trabalho dos empregados das empresas capitalistas de serviçosde saúde.

Em primeiro lugar, há de se ter em conta que esse trabalho nãocontribui na ormação do numerador da taxa geral de lucro (M /

C+V ), ou seja,

não participa na constituição da massa de mais-valia social, na medidaem que não produz valor excedente (nem qualquer valor novo). Assim,do posto de vista do conjunto dos capitais da sociedade, trata-se de umtrabalho improdutivo31.

Porém, os investimentos realizados pelas empresas de serviços desaúde azem parte dos custos indispensáveis à reprodução do capital glo-bal da sociedade, à semelhança dos custos de circulação. É a partir dessacaracterística de “custos necessários”que se aculta aos investimentos capi-talistas em serviços de saúde o direito de participar da redistribuição damassa de mais-valia social. Cada porção de capital aplicado nessa área deserviço obtém, através desse mecanismo, um lucro de natureza subjetiva-

31 A nosso ver, uma das análises mais percucientes a respeito do caráter improdutivo do tra-balho médico, no sentido da incapacidade de gerar diretamente mais-valia, encontra-se emGonçalves, R.B.M. - Medicina e História: Raízes Sociais do Trabalho Médico, Dissertação deMestrado, Área de Medicina Pre ventiva, USP, São Paulo, 1979. Concordamos com quase to-dos os pontos de vistas emitidos por esse autor, particularmente na apreciação que az das

idéias anteriormente deendidas por Antônio Sergio Arouca (ver Arouca, A.S.S. - O DilemaPreventivista, Contribuição para a compreensão e crítica da Medicina Preventiva; Dept. deMedicina Preventiva e Social da Universidade Estadual de Campinas (Tese de Doutoramen-to), Campinas, 1975.

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78 Formulação

mente indistinguível daquele de qualquer ramo produtor de mercadoria, ouseja, de um ramo que seja capaz de produzir diretamente mais-valia. Nestesentido, o indivíduo que aplica seu dinheiro numa empresa de serviços desaúde, com a intenção de converter D em D’, o az como um investimentoprodutivo. O trabalho de seus empregados é trocado por capital variávele se constitui em elemento de valorização do dinheiro adiantado, repre-sentando onte de lucro. Para tal capitalista esse trabalho aparece comoprodutivo, e de ato o é, se considerado de uma perspectiva individual ecom base nos objetivos da concorrência capitalista. Embora não produzaimediatamente mais-valia, é a venda de seu valor de uso - junto com os MT

-, que permite auerir um dado lucro, compatível com as taxas prevalentesno segmento concorrencial (não-monopolizado) da economia.

Na perspectiva do capital social, o investimento realizado emempresas de saúde constitui um dispêndio improdutivo de capital e otrabalho que emprega é também improdutivo. Mas, na perspectiva indi-

  vidual, motivada e mantida pela concorrência capitalista, trata-se deinvestimento e trabalho produtivos, capazes de proporcionar lucro (cujo

mecanismo de obtenção, diga-se de passagem, é totalmente indierenteao capitalista). Essa propriedade de render lucro distingue os empregadosde uma empresa dessa natureza ace, por exemplo, aos empregados deserviços domésticos, que são improdutivos tanto do ponto de vista “indi-

 vidual” quanto do social.Essas dierentes acetas do conceito de trabalho produtivo são tra-

tadas com absoluta clareza por Marx, quando analisa a origem do lucrocomercial e sua oposição ao lucro industrial:

“Para o capital industrial, os custos de circulação se revelam e

são custos necessários, mas não produtivos. Para o comerciante

revelam-se onte de lucro, que - suposta a taxa geral de lucro -

está na proporção da magnitude deles. O desembolso a azer nesses

custos de circulação é, portanto investimento produtivo para o

capital mercantil. Pela mesma razão, o trabalho comercial que

compra é para ele diretamente produtivo”32.

32 O Capital, Livro III, pp. 346-7.

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É nesta mesma acepção, que Marx, no primeiro livro de O Capital,acentua a indierença do capitalista quanto à natureza do valor de uso queé alvo de seus investimentos, armando que, para este, tanto az empregarseu dinheiro numa ábrica de salsichas como numa escola. Em qualquersituação, está pressuposto que obterá pelo menos o “lucro médio”, poucoimportando que se trata, num caso, de produção de mercadoria e, noutro,de produção de serviços educacionais.

Como conclusão, anotamos a seguir os três contextos distintos quehá de se considerar, na análise do caráter produtivo/improdutivo do tra-balho eetuado por empregados de empresas capitalistas de serviços de

saúde:1. o usuário dos serviços - que está apenas interessado no valor

de uso deste trabalho - compra-o como trabalho improdutivo,perpetuando um ato de circulação simples, uma troca de D porM, em que M representa o serviço e o seu acompanhamento porindispensáveis mercadorias que agem como meios de trabalho;

2. o empresário - que almeja transormar D em D’ - compra e az

uso desse trabalho como elemento produtivo, pois lhe asseguraum lucro de natureza subjetivamente semelhante àquele queobteria em qualquer outro investimento capitalista;

3. ace ao capital global da sociedade - cuja reprodução dependede investimentos dessa espécie - apresenta-se como traba-lho improdutivo, pois nada acrescenta ao montante de mais-

  valia normalmente distribuído entre os múltiplos capitais dasociedade.

Os Serviços de Saúde como Meios de Consumo da ClasseTrabalhadora

Pela análise precedente, vericamos que participam dos serviçosde saúde dois tipos de mercadoria, representados simbolicamente porFT e MT. Estas mercadorias são também meios de consumo destinadosà ruição tanto dos capitalistas, que os compram com sua renda, quanto

dos trabalhadores, que os adquirem com seu salário, podendo a compra,numa situação ou noutra, ser mediada por um undo securitário, privadoou estatal.

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80 Formulação

Pode-se perguntar de que maneira esses valores são reproduzidosquando a classe trabalhadora se apresenta como sujeito da troca e doconsumo.

Não nos deteremos na dinâmica político-econômica que leva aincorporar tais serviços aos meios de subsistência dos trabalhadores, emepisódios relacionados à luta de classes, que assumem traços particularesem cada ormação social. Para ns desta análise, é suciente supor que, apartir de um dado momento, os serviços de saúde passam a ser compra-dos e consumidos sistematicamente pela classe trabalhadora, como se dácom a compra de arroz, eijão, etc. Em termos da teoria do valor-trabalho,

a conseqüência da compra e do consumo sistemáticos é que o custo dosserviços de saúde deve, desde então, ser reproduzido pelo tempo de tra-balho necessário do conjunto dos trabalhadores. Isto porque tornam-secustos necessários da manutenção da orça de trabalho, como os demaisartigos - roupa, comida, etc.

  Assim, uma ração do tempo de trabalho necessário, como valorincorporado às mercadorias, repõe continuamente os gastos com servi-

ços de saúde. Esta ração paga o preço de produção desses serviços, preçoque se compõem do valor de MT, de FT e da mais-valia apropriada pelasempresas de serviços de saúde. A órmula k + s + l expressa esse preçode produção. Introduz-se o símbolo l para representar o lucro, que, nestecaso, não guarda relação de proporcionalidade com k e s, visto que a ór-mula inclui também o preço de custo dos serviços não-capitalistas.

É o próprio trabalhador, através de seu tempo de trabalho necessá-rio, quem reproduz o undo de valor que paga os serviços a ele destinados- e o reproduz como trabalho materializado nas mercadorias. Por outrolado, o preço de produção dos serviços aparece numa ração correspon-dente do valor de sua orça de trabalho e exprime-se como parte de seusalário (direto ou indireto). A compra e o consumo sistemáticos - às vezesregulados pelo Estado - azem com que o preço de produção dos serviçosressurja como componente do valor da orça de trabalho. Trata-se de valortranserido (e não criado) pelos serviços de saúde.

Suponhamos que, em média, se despenda 5% da olha de salárioem assistência de saúde. Isto signica que, num tempo de trabalho neces-sário de 5 horas, o trabalhador deverá dedicar 15 minutos à reprodução do

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preço de produção da assistência de saúde dedicada à classe. Este undo depagamento deve ser reposto diariamente, pois integra os meios de subsis-tência da classe, embora cada trabalhador só se utilize dos serviços quandoatingido por risco de enermidade. Com o advento dos Seguros Sociais, areposição não somente se torna regular como compulsória.

Imaginemos um momento histórico, na evolução da sociedadecapitalista, em que os cuidados de saúde não integram ainda os meios deconsumo da classe trabalhadora. Nestas circunstâncias, o tempo de traba-lho necessário reproduz o valor de todos os outros meios de subsistência,dados como mínimos e indispensáveis aos trabalhadores. Os serviços de

saúde estariam incorporados somente aos meios de consumo dos capita-listas (estamos raciocinando com base na existência de apenas duas clas-ses undamentais; por outro lado, pomos de lado os serviços não-remune-rados como os das santas casas, saúde pública e outros). Evidentemente,os trabalhadores só a título de exceção poderiam se beneciar desses ser-

 viços, implicando numa redução da ruição de outros meios de consumo.Em conseqüência, o preço de produção dos serviços seria realizado quase

exclusivamente através da renda capitalista que paga, digamos, os hono-rários de médicos liberais e medicamentos.

O que aconteceria se, numa ase seguinte, os serviços de saúde pas-sassem a integrar o valor da orça de trabalho?

Há três hipóteses a considerar, neste ponto:1. o tempo de trabalho necessário (e, portanto, o salário real) per-

manece o mesmo da ase anterior e o valor dos serviços simples-mente substitui o de outros meios de subsistência, devido aosmecanismos de contribuição compulsória do Seguro Social;

2. o tempo de trabalho necessário aumenta na mesma magnitudedo valor dos serviços introduzidos e az diminuir, em proporçãoidêntica, o tempo de trabalho excedente, ou seja, diminui a mais-

 valia;3. o valor dos serviços é reproduzido por parte do antigo tempo de

trabalho necessário e por parte da mais-valia.

Convém tomar esta última hipótese como mais verossímil, já que setrata do resultado de uma luta de classes, em que o Estado intervém para

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repartir o ônus entre os trabalhadores e os próprios capitalistas. Note-se,entretanto que a contribuição ormalmente “paritária” de empregadose empregadores ao Seguro Social não importa na existência de relaçãosemelhante no que toca à dimensão do valor. Na prática, o quanto essacontribuição global resulta de acréscimo ao tempo de trabalho necessárioe de redução do excedente dependerá do poder político de cada classe,do grau de desenvolvimento das orças produtivas e de outros atoresimponderáveis.

De qualquer modo, estes novos custos de reprodução da orça detrabalho devem estar representados no novo tempo de trabalho neces-

sário, mesmo que implique em subtração de parte da mais-valia. Por isto,é do interesse do sistema capitalista manter esses gastos nos limites domínimo possível. Por conseguinte, a assistência de saúde aos trabalhado-res dá-se, em geral, num nível tão precário quanto de tudo o mais de quepode usuruir com seu parco salário. Tanto é assim, que se torna um hábitodos segurados mais privilegiados utilizar-se do mínimo proporcionadopelo Seguro Social, conjugando-o com a compra direta de outros serviços

de melhor qualidade.O valor dos serviços de saúde, nestas proporções mínimas, passa a

compor os custos de reprodução da orça de trabalho, a partir de um dadomomento do desenvolvimento do modo de produção capitalista, inde-pendentemente do eeito real ou do beneício que aportem no sentido derecuperar e manter a capacidade de trabalho.

Por um desvio economicista, alguns autores chegaram a armar queo principal objetivo dos serviços de saúde, sob o capitalismo, é o de repro-duzir a orça de trabalho, conservando e restaurando seu valor de uso.Trata-se de uma alsa explicação que transorma os presumidos eeitosdesses serviços (e dizemos presumidos, porque sua ecácia é muitas vezesquestionável) em“unção”. Pelo mesmo raciocínio, dir-se-ia que as empre-sas produtoras de eijão e arroz têm por objetivo primordial a manutençãodos trabalhadores e de sua capacidade de trabalhar. Ora, sabe-se que osdiversos setores da economia interagem uns com os outros, na reprodução

ampliada do capitalismo, conorme se destinem à produção de meios desubsistência, de artigos de luxo ou de meios de produção; mas esta repro-dução - que, sobretudo é uma reprodução de relações sociais - vem como

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conseqüência do relacionamento que o mercado cria entre esses setores,cada um perseguindo seus próprios interesses, isto é, a valorização de seucapital. E embora os serviços de saúde não sejam sempre produzidos porempresas capitalistas, na qualidade de setor de meio de consumo estãosubmetidos a uma dinâmica regulada também pelo mercado.

 Ao contrário do que se tornou costumeiro armar, o capital não seutiliza dos serviços de saúde para adrede reproduzir a orça de trabalho. A atenção do capital está voltada undamentalmente para duas coisas: queo valor da orça de trabalho se mantenha no mínimo possível; que hajatrabalho, eetivamente, pois sem produção não há lucro. Mas estas coisas

dependem de atores pouco controláveis, a saber, da conjuntura da luta declasse, da dimensão do exército de reserva e da ação regulamentadora doEstado sobre as relações sociais de produção. Se inexistem leis trabalhistase previdenciárias e se, por outro lado, há oerta abundante de orça de tra-balho, a quantidade de trabalho requerida pelo capitalista pouco depen-derá da saúde da classe operária. Nestas condições, é possível obter fuxocontínuo de trabalho seja por parte de uma geração de sadios ou por parte

de uma sucessão de gerações precocemente tornadas enermas e inváli-das. O operário, mesmo estando enermo, trabalhará (para não perder aposição) e, se morrer, logo será substituído por outro: é o que ocorreu noauge do Capitalismo Selvagem do século XVIII e início do XIX.

Quando, por acetas diversas da luta de classes, são instauradasleis trabalhistas (redução da jornada, maior estabilidade no emprego, etc.)e previdenciárias adequadas, então, a manutenção do fuxo de trabalhopassa a depender, pelo menos em parte, da saúde do trabalhador. O traba-lhador adquire o direito a deixar de trabalhar por motivo de doença, semser despedido; mais ainda, pode não trabalhar, mesmo estando são (porsimulação de doença, maniestando sua contradição com o capital). É sónestas condições - quando o ausentismo por doença real ou presumidatorna-se legítimo - que o capital começa a se preocupar em encontrar umaorma de assistência médica mais eetiva para seus empregados. Serviçosde saúde podem ser instalados no âmbito da própria ábrica ou contra-

tadas empresas de assistência que azem o trabalhador retornar o maisrápido possível ao trabalho, não obtenham atestados graciosos, etc. Sãoestas circunstâncias que caracterizam particularmente os ramos econômi-

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cos de monopólio, que procuram, a todo custo, cercear o ausentismo legi-timável de seus trabalhadores dotados de maior qualicação. Mas não porinteresse especíco pela saúde dos trabalhadores - de ato, o tratamentoque recebem costuma ser supercial e sintomático, destinado a possibili-tar o mais rápido retorno à linha de produção.

“O capital não tem por isso a menor consideração com a saúde e

a vida do trabalhador, a não ser quando a sociedade o compele a

respeitá-la”33.

 Aqui se entende por sociedade o conjunto dos movimentos e deorganizações dos trabalhadores no jogo de pressões e concessões quedesenvolvem junto aos patrões e ao Estado (Sociedade Política).

Dicilmente, o capitalista reconhece a priori na saúde da classe tra-balhadora um ator de produtividade, enquanto há abundância de oertadessa mercadoria especial e nenhum impulso externo impede que a orçade trabalho seja debilitada e exaurida no processo de produção. Se os

próprios trabalhadores não tomam a iniciativa de azer de sua saúde umponto de reinvidicação e de luta, nada garante que o capital o aça em seulugar, sob a suposição de que em saúde não há produção. Na verdade,para haver produção, basta existir capital e trabalho. E a história comprovaque nos períodos de uso mais intenso e predatório da orça de trabalhocoincidiram com os de piores condições de saúde da classe operária, jus-tamente pela oerta excessiva de trabalho e ausência de regulamentaçãopolítico-jurídica das características da jornada, que não impunham qual-quer limite à ganância empresarial.

De outra parte, a própria saúde do trabalhador pouco depende daassistência médico-sanitária. Desde os albores do capitalismo, a classeoperária luta por sua saúde, tomando-a como um bem em si mesmo,uma aculdade que não só lhe permite continuar trabalhando e, portanto,

33 O Capital, Livro I, p. 306. C. também a seguinte passagem (idem p. 301): “O capital não se

preocupa com a duração da vida da orça de trabalho. Interessa-lhe exclusivamente o máxi-mo de orça de trabalho que pode ser posta em atividade. Atinge este objetivo encurtando aduração da orça de trabalho, como um agricultor voraz que consegue uma grande produçãoexaurindo a terra de sua ertilidade”.

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subsistindo, mas também usuruindo de outras dimensões legitimamentehumanas da vida. Essa luta, porém, travou-se em torno de certas con-dições que infuenciam a saúde muito mais diretamente que a assistên-cia médica. Trata-se da diminuição da jornada de trabalho, da higiene doambiente abril, de salários condignos, do seguro de acidente de trabalho,invalidez, morte, etc.

Foi esta a seqüência cronológica em que se deram as conquistascontra a concupiscência capitalista.

Do ponto de vista da deesa de sua saúde, o proletariado sempresoube distinguir as prioridades e manter uma atitude rigorosamente pre-

 ventivista, ou seja, de prevenção dos riscos maiores e mais dramáticos. Épor isto mesmo que a assistência médica se inscreve como a mais recentena história dessas conquistas, porque menos prioritária, diante de outrasespécies de risco criados pela superexploração do trabalho e pela limitaçãoexagerada da capacidade de consumo de seus meios de subsistência.