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Sumário1 Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6

2 Hibridismo Estético e Arte Eletrônica: formas de

registro e novas corporalidades nas artes visuais. . 10

3 Técno-Imagens: hibridismo estético. . . . . . . . . . 33

4 Automatização, Reprodução e Imagens. . . . . . . . 47

5 Quase-Cinema: cinema, bitola e conceito. . . . . . . 58

6 Videoinstalação: um começo. . . . . . . . . . . . . . 70

7 Sobre Desenhos e Ilusões. . . . . . . . . . . . . . . 81

8 A(R)Tivismo Indigenista no Brasil. . . . . . . . . . . 91

9 Uma Carroça Sonora e uma Bicicleta Sonora, a De-

riva como Dispositivo para Poéticas na Cidade. . . . 107

10 Arte Emergente: sistema arte e complexidade. . . . 130

11 Realidade Virtual: ambientes imersivos. . . . . . . . 157

12 Autores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 166

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1 Apresentação

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Tecno-Imagens e Arte Contemporânea Brasileira: diálogostransdisciplinares.

Regilene A. Sarzi-Ribeiro

Judivan José Lopes

Neste e-book vamos conhecer os trabalhos de pesquisas

e breves estudos, apresentados no formato de pequenos textos co-

mumente denominados papers e ou ensaios e artigos, realizados

pelos discentes participantes da disciplina “As Técno-imagens na

História da Arte Contemporânea Brasileira: Diálogos Transdisci-

plinares”, oferecida pela Profa. Dra. Regilene Ap. Sarzi-Ribeiro,

no 1o. Semestre de 2017, junto ao Programa de Pós-graduação

em Artes do Instituto de Artes da UNESP, campus São Paulo.

Os textos aqui reunidos dialogam cada um à sua ma-

neira com os objetivos da disciplina, que foram: conceituar as

matrizes e os paradigmas da produção imagética e suas conexões

com hibridismo estético e cultural no contexto brasileiro; exa-

minar a produção artística contemporânea brasileira no campo

das técno-imagens, suas origens e desdobramentos, a partir de

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estudos que articulem aspectos históricos, sociológicos e filo-

sóficos; analisar artistas, obras e exposições que se apropriam

de dispositivos, aparelhos e operações poéticas de produção e

exibição de imagens técnicas e finalmente, mas não menos impor-

tante, aplicar a Transdisciplinaridade – Teoria da Complexidade

e Abordagem Sistêmica – como método de pesquisa e leitura da

arte na contemporaneidade.

Neste sentido, nos sentimos satisfeitos em organizar o

material, em colaboração e vê-los publicados, corroborando os

resultados dos nossos encontros nas segundas-feiras à tarde no

Instituto de Arte da UNESP, quando mesmo diante da necessi-

dade de um cafezinho, ali pelas três horas da tarde, nossas trocas

e compartilhamentos se estendiam até a cantina do IA.

Considerando que foram encontros, longos, porém pra-

zerosos, teóricos reflexivos, sobre os aspectos da materialidade e

a técnica que dar forma e significados as manifestações artísticas

de imagens contemporânea. Um trabalho de grande engajamento

que aqui fica registrado representativamente.

Agradecemos aos parceiros dessa jornada de descober-

tas de novas conexões entre a arte e as técno-imagens e colegas

autores nesta publicação – Judivan José Lopes, Luis Alberto de

Souza, Miguel Alonso A. Carvalho, Yardena do Baixo Sherry,

Natalie M. M. Ramirez, Elisângela de Freitas Mathias, Luis Ro-

berto A. Quesada, Mirian Steinberg, Vanessa P. do Nascimento.

Registro nossos agradecimentos especiais à Rosangella

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Leote, que aceitou prefaciar nosso e-book, com a mesma ênfase

trazemos a tona o incentivo que tem dado a essa produção, ideia

que nasceu quando então, ela figurava a posição de coordenadora

do Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes-

Unesp.

Assim, com grande alegria, apresentamos nossa pro-

dução em processo, cujas pesquisas em redes certamente se

encontram abertas a novas conexões entre campos, áreas e novos

conhecimentos, como nos propõe a transdisciplinaridade.

Boa leitura!!!

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2 Hibridismo Estético e

Arte Eletrônica: formas

de registro e novas cor-

poralidades nas artes vi-

suais.

Regilene A. Sarzi-Ribeiro

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Hibridismo Estético e Arte Eletrônica: formas de registro enovas corporalidades nas artes visuais.

Regilene A. Sarzi-Ribeiro

Foi a partir desta pesquisa que tudo começou. Foi a par-

tir desta pesquisa que elaborei a disciplina “As Técno-imagens na

História da Arte Contemporânea Brasileira: Diálogos Transdisci-

plinares”, oferecida no Programa de Pós-Graduação em Artes do

IA, UNESP, em São Paulo, primeiro semestre do ano de 2017.

Neste contexto, este ensaio compõe parte do projeto

de pesquisa intitulado “Hibridismo Estético e Arte Eletrônica:

Formas de Registro e Corporalidades nas Artes Visuais”, que

submetemos para credenciamento como professor colaborador,

junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de

Artes da UNESP, São Paulo. No estudo buscamos articular, na

Linha de Pesquisa “Abordagens Teóricas, Históricas e Cultu-

rais da Arte”, o conhecimento entre as áreas de Artes Visuais,

Filosofia Estética Contemporânea, Sociologia e Medicina e a

História das Técno-Imagens, para abarcar a complexidade das

relações entre a História da Arte, a Ciência e a Tecnologia. A

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proposta é uma Pesquisa sobre Artes Visuais, com foco na Arte

Contemporânea (nacional e internacional), tendo como método

a Transdisciplinaridade.

A fundamentação teórica é pautada no referencial filo-

sófico e sociológico, histórico e contextual dentro da abordagem

Transdisciplinar, visando aproximar conceitualmente e confron-

tar o pensamento e os desenvolvimentos teóricos de Barbara

Stafford (1992); Olga Pombo (2010; 2012); Diana Domingues

(1997; 2009); André Parente (1999); Vilém Flusser (2008; 2011);

Philip Dubois (2004); Pierre Levy (1996); Oliver Grau (2007);

Lucia Santaella (2003; 2004) e Arlindo Machado (1997; 2001;

2007), Fritjof Capra (2011), Nicolescu Basarab (1999) e Edgar

Morin (1999 e 2015).

As autoras Stafford, Pombo e Santaella discutem as

relações entre arte e ciência, imagens biomédicas e artísticas.

Domingues e Santaella tratam do corpo nas novas tecnologias.

Parente, Dubois, Machado e Santaella versam sobre a linguagem

videográfica. Deleuze e Foucault aprofundam as relações de

poder e experiências do corpo. Os autores Flusser, Lévy, Grau

e Santaella contribuem para a discussão sobre a experiência

humana com as máquinas, arte virtual, arte interativa e as técno-

imagens.

No livro Body Criticism (1992), Stafford analisa a per-

sistência de um notável conjunto de metáforas corporais decor-

rentes de práticas estéticas e médicas. Para a autora, as formas de

representação do corpo são metáforas dos processos cognitivos

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vivenciados em sociedade, e o trabalho do pesquisador consiste

em reconstruir estas metáforas para tornar compreensível a ne-

cessidade humana de representar o corpo tanto na arte quanto na

ciência.

Sobre o hibridismo estético entre as linguagens do ví-

deo e as novas tecnologias, Lucia Santaella (Culturas e artes

pós-humano: da Cultura das mídias à cibercultura e Corpo

e comunicação: sintoma da cultura) apresenta artistas pionei-

ros nesta produção como Dennis Opemheimer (1970) e Mona

Hatoum (1994). Diana Domingues (A Arte no Século XXI: a

Humanização das Tecnologias) reúne artistas estrangeiros que

usam imagens de diagnóstico médico em suas videoinstalações.

Para discussão dos conceitos filosóficos estéticos im-

plicados na experiência humana com as máquinas e as novas

tecnologias, selecionamos para um confronto o pensamento de

Pierre Levy, Vilém Flusser e Oliver Grau. De um lado o filó-

sofo existencialista Vilém Flusser (Filosofia da Caixa Preta e

O universo das imagens técnicas) e o de outro, o filósofo das

mídias, o francês Pierre Levy (O que é Virtual?). Ambos travam

um diálogo crítico e reflexivo com aspectos culturais e históricos

que cercam a experiência do homem com a realidade e as coisas

do mundo e as diferentes configurações sociais no âmbito da

tecnologia, como as imagens tecnocientíficas (Flusser) e o virtual

e a cibercultura (Lévy).

A partir de Flusser, pretendemos traçar as bases dos

efeitos socioambientais, sobretudo na cultura, gerados pela pro-

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liferação das técno-imagens, que segundo o filósofo resultam

do programa civilizatório. Flusser (2008) defende que nas artes

os homens conseguem se libertar do poder das técno-imagens e

empreender a experiência da estética pura. Pierre Levy (1996) se

debruça sobre a problemática das mudanças dinâmicas e radicais

da sociedade, decorrentes das novas tecnologias e trata de temas

atuais como a cibernética, a conectividade, a interatividade e o

ciberespaço. O alemão Oliver Grau, em Arte Virtual: da ilusão

à imersão (2007) defende a virtualidade como sendo resultado

da relação essencial dos homens com as imagens e descreve

como essa relação se evidencia tanto nos meios antigos quanto

nos novos pela convergência e desejo de ilusão. Grau (2007)

reconstrói a história da arte como historia das mídias e incorpora

a percepção física e psicológica ao paradigma da virtualidade,

manifestada como experiência sensorial do observador.

Para abordagem transdisciplinaridade, tomaremos como

base os autores Edgar Morin (1999, 2001), Cornelius Castoriadis

(1999) e Basarab Nicolescu (1999), referências na abordagem

do pensamento complexo. Morin é uma das figuras centrais

do pensamento transdisciplinar como em A Cabeça Bem-feita:

repensar a reforma, reformar o pensamento (2001). No livro

Complexidade e transdisciplinaridade - A reforma da universi-

dade e do ensino (1999), Morin destaca os desafios da reforma

da Universidade, a necessidade do pensamento do contexto e do

complexo, de atitudes questionadoras e reflexivas que articulem

e atravessem as disciplinas.

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Cabe ressaltar que um estudo transdisciplinar como

este que iremos realizar, pressupõe um olhar para a comple-

xidade das áreas envolvidas a fim de atravessar os campos de

conhecimento e tecer novos nexos entre eles, por meio de um

pensamento complexo (MORIN, 2015) como propõem Edgar

Morin (1999), Nicolescu Basarab (1999) e Fritjof Capra (2011),

entre outros. Neste contexto, destacamos a teoria sistêmica ou a

ecologia dos sistemas como base para refletir sobre a estrutura

em rede, que organiza as relações entre os artistas, os aparelhos

de registro do corpo e suas imagens técnicas. O físico-teórico

austríaco Fritjof Capra assegura que “[...] a ideia central dessa

concepção sistêmica e unificada da vida é a de que o seu padrão

básico de organização é a rede [...]”, e completa “[...] em todos os

níveis de vida, desde as redes metabólicas das células até as teias

alimentares dos ecossistemas e as redes de comunicações da so-

ciedade, a cultura e as artes, os componentes vivos se interligam

sob a forma de rede” (CAPRA, 2011, p.267).

No que diz respeito ao sujeito e os processos de ima-

ginação e reflexão interessam os desenvolvimentos teóricos de

Castoriadis em Feito a ser feito, (1999). O autor discute o social

histórico, a criação e a relação entre as formas novas e antigas

do conhecimento, articulados à metodologia transdisciplinar e à

filosofia da emancipação, a partir de uma nova postura criativa e

disposição para o novo. Nicolescu, em O Manifesto da Transdis-

ciplinaridade (1999), apresenta um panorama da física quântica,

da decadência do cientificismo, da ciência contemporânea até a

complexidade e a transdisciplinaridade.

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A metodologia da pesquisa se apoiará nos instrumen-

tos de análises estéticas, comparativas e leitura iconográfica com

vistas ao estudo da mediação, produção e recepção do objeto

artístico. Os procedimentos metodológicos serão levantamento

bibliográfico, coleta de dados iconográficos e videográficos, in-

terpretação dos documentos a partir de textos e ensaios de teor

histórico-crítico. As análises serão pautadas por referenciais

histórico-críticos, filosóficos e sociológicos apresentados anterior-

mente na fundamentação teórica, cujos autores discutem as ques-

tões existenciais; experimentais (tempo, espaço e materialidade)

e as transformações estéticas, sociais, políticas e culturais que

envolvem os processos de hibridização entre as técno-imagens:

fotografia, cinema, vídeo, cibernética, redes, arte eletrônica e arte

virtual.

A Arte Contemporânea tem alimentado cada vez mais

as videoinstalações, videoartes e espaços interativos com apro-

priações de imagens fotográficas e videográficas produzidas por

diagnósticos médicos. Estas imagens, ou formas de registro

do corpo, exploram a exposição interna e externa de órgãos e

membros e foram qualificadas por Santaella (2004) como corpo

esquadrinhado, corpo ao avesso.

A especificidade de sons e imagens e a experiência

visual, cognitiva e sensível, que promovem são agentes de expe-

riências estéticas do corpo na contemporaneidade. Essa experi-

ência participa estruturalmente da constituição do sujeito e altera

paulatinamente sua percepção, fruição e interação.

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Os diferentes níveis de interação na estética digital e as

novas tecnologias da imagem levam o sujeito à experiência da

virtualização e esta reitera a experiência do corpo fragmentário,

em fluxo, em constante devir. Tempo, espaço e materialidade

são alterados e experiências estéticas novas são mediadas pelos

meios eletrônicos. As técno-imagens ampliam as representações

do corpo em fragmentos cuja autonomia acabou gerando um

estilo no tratamento do corpo na modernidade (SARZI-RIBEIRO,

2007).

As relações entre a representação e as formas de regis-

tro (desenho, gravura, fotografia, vídeo) do corpo se acentuam

com as transformações conceituais e tecnológicas desencadeadas

na passagem do século XVIII para o XIX. As representações

do corpo ganharam notoriedade no século XX com o advento

da imagem fotográfica, sobretudo as que surgiram a partir de

imagens da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Imagens que

mostram os mais de dez milhões de corpos destruídos, mutilados

e traumatizados, cujos registros perpetuaram a prática de frag-

mentação e a visualidade moderna, levando-nos a experiência

do corpo por meio da virtualização, como nas videoinstalações

(SARZI-RIBEIRO, 2014).

Num salto no tempo voltamos aos desenhos anatômi-

cos do renascentista italiano Leonardo da Vinci (1452-1519).

Suas imagens são registros do corpo ao avesso que o artista-

cientista italiano soube explorar como poucos em seus estudos de

anatomia. Muito antes da internet, dos raios-X ou das tomogra-

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fias computadorizadas, do cinema ou da fotografia, Leonardo da

Vinci utilizou o desenho para conhecer e desbravar o funciona-

mento interno do corpo humano, associando o seu conhecimento

sobre a Matemática para elaborar suas teorias sobre a máquina

humana (SILVA, 2013).

Os desenhos de Leonardo baseados em estudos internos

e anatômicos do corpo (figura 01), feitos por meio da dissecação

de cadáveres, transformaram a ciência e suas ilustrações científi-

cas foram utilizadas pela medicina, embora tenham permanecido

durante muito tempo desconhecidas no campo das artes visuais.

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Figura 1 – Mulher (1506). Leonardo da Vinci.Da série Estudos de Anatomia. Sépia.

Fonte: Galeria Academia, Veneza, Itália.

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Figura 2 – Sem Título (1997/2000). Claudio Mubarac.Fotografia e água-forte, 29 x 28 cm. Da suíte Sobre as Câmaras.

Fonte: Catálogo da Exposição “Objetos Frágeis: a gráfica de ClaudioMubarac”, 2006.

Depois da primeira metade do século XIX, a fotografia

passou a revelar coisas que o olhar humano, mais lento e menos

preciso, não conseguia captar e que a partir do registro fotográfico

podem ser vistas pela percepção detalhada das imagens.

As relações entre a percepção visual e o corpo represen-

tado por fragmentos podem ser encontradas em diferentes épocas

e artistas: do pintor francês Théodore Géricault (1791-1824) ao

anglo-irlandês Francis Bacon (1909-1992), da artista plástica bra-

sileira Adriana Varejão ao gravador brasileiro Claudio Mubarac.

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Na Suíte Sobre as Câmeras (figura 02), Mubarac se apropriou

dos raios-X de seu corpo e por meio da fotogravura integrou as

radiografias às imagens gráficas.

A partir dos anos 1960, os artistas conceituais descobri-

ram o corpo e as instalações artísticas, mas também a fotografia,

o filme e o vídeo. A experiência acumulada com as formas de re-

gistro de imagens no campo da comunicação fez com que ações,

performances e intervenções urbanas passassem a ser registradas

de maneira frequente em fotografias, filmes e vídeos. Surgem as

videoinstalações e a arte eletrônica.

Entre as décadas de 1970 e 1980, o suporte passou a ser

questionado como lugar de memória e autoridade para dar espaço

à arte como prática do tempo: arquivar, diferenciar, serializar,

intermediar, transferir, reproduzir, se tornam operações organiza-

das por um regime visual fotocinematográfico. A arte no século

XX se tornou fotográfica. Registrar, arquivar e reproduzir ou

serializar se tornaram ações poéticas que operam os novos meios

e suportes. O arquivo fotocinematográfico atua nos intervalos

entre a obra e a sua extensão temporal (COSTA, 2009).

As inovações tecnológicas contribuem paulatinamente

para as transformações corpóreas em situações e manifestações

hibridizadas. No campo da Arte e da Comunicação surgem di-

ferentes abordagens conceituais, teóricas e metodológicas sobre

o corpo na atualidade e nos conduzem a reflexões sobre as ten-

sões e as dinâmicas que envolvem as condições de adaptação e

estratégias discursivas da Arte e da Ciência.

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A transversalidade da relação “corpo, arte e tecnolo-

gia” nos remete às reconfigurações de dispositivos (visuais e

audiovisuais) e operações ou procedimentos como apropriação,

hibridização, registro, mediação, construção de sentido e inte-

ração presentes nas diferentes visibilidades do corpo (SARZI-

RIBEIRO, 2012).

No universo da Arte, da Ciência e da Comunicação os

procedimentos de mediação do corpo demandam novas configu-

rações de uma identidade real, virtual e ou digital cada vez mais

proeminente na cultura e no campo da representação, efêmera,

inacabada, parcial e provisória. Neste contexto, o corpo dialoga

com a tecnologia para além de um entremeio, um entre-lugar

(SEMINÁRIO CORPO e TECNOLOGIA, 2003).

De igual forma, o processo de virtualização decorre

da interação do homem com as novas tecnologias e conforme

Levy (1996, p. 33): “[...] o corpo sai de si mesmo, adquire

novas velocidades, conquista novos espaços. Verte-se no exterior

e reverte a exterioridade técnica ou a alteridade biológica em

subjetividade concreta. Ao se virtualizar, o corpo se multiplica”.

Sobre as imagens biomédicas, ressalta Ortega:

O corpo virtual é um ícone da culturado espetáculo, na qual a imagem atingeuma materialidade singular que com-pete pelo estatuto de realidade com amaterialidade do corpo físico. A essemodelo se opõe nossa experiência en-carnada do corpo físico unificado, comosujeito de ação no mundo, que implica

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o conjunto dos sentidos e que escapana mera apreensão visual e objetivanteda mídia e das tecnologias de image-amento. Portanto, a corporificação ima-terial das tecnologias biomédicas é umapseudocorporificação, na qual o quese perde é a substância, o corpo (OR-TEGA, 2005, p. 237).

As novas técnicas de registro e geração de imagens

médicas e exames não invasivos como a videolaparoscopia, co-

loscopia, ultrassom e endoscopia exibem imagens nunca antes

vistas e alteram significativamente as formas de percepção do

corpo. Em 1969, o artista norte-americano Robert Rauschen-

berg (1925-2008) se apropriou de imagens médicas e raios X

de seu próprio corpo para criar a litografia Booster (figura 03).

Monteiro (2007) descreve como o artista norte-americano Robert

Rauschenberg (1925-2008), em 1969, se apropriou de imagens

biomédicas na sua obra.

[...] uma enorme litografia - Booster -com imagens de raios X de seu próprioesqueleto. O artista recorta a imagemde raios-X em cinco pedaços para com-por o centro da litografia [...] aproveitando-se não tão-somente de imagens radio-gráficas, mas, sobretudo, de imagensdigitalizadas, presentes no contexto mé-dico já a partir dos anos 60 com a uniãoentre o computador e a tecnologia dosraios X. (MONTEIRO, 2007, p. 02)

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Figura 3 – Booster (1969). Robert Rauschenberg. Da série Boosterem 07 estudos. Litografia e silkscreen. 183.4 x 90.9cm.Fonte: MOMA, NY.

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Figura 4 – Stills de raios-x do Estômago (1970). Dennis Oppeheim.Fotografia e texto sobre papelão. 27.7x22cm. Fonte: SiteDennis Oppeheim.

Em 1970, o artista norte-americano Dennis Oppemheim

(1938-2011) exibiu grandes fotos de raios-X de seu estômago na

série Stills de raios-x do Estômago (figura 04) com os recursos da

época. Oppenheim foi um artista conceitual que explorou diferen-

tes linguagens e a fusão entre elas a partir de um hibridismo como

entre esculturas e fotografias, performances e esculturas. Foi um

dos criadores da Land Art e da videoperfomance. No começo

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da década de 1970 ele já explorava filmes e vídeos para registrar

suas performances nas quais o seu próprio corpo era apropriado

como lugar (locus) para ações que desafiavam e transformavam

o corpo. Muitas de suas performances visavam à comunicação

por meio de situações ritualísticas que envolviam interatividade

e risco pessoal e os registros em fotografia e vídeo.

Figura 5 – Vitruvian Man (Re). Eric Fong. Da Série Corpus Interna(1998). Imagens de exame médicos e multimídias (detalhe).75x75x8.Fonte: The Main Gallery, NY.

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Vinte anos depois, na década de 1990 as videoinstala-

ções continuam se apropriando das imagens biomédicas, como

nas instalações da brasileira Mônica Mansur, na obra Corps

Étranger (1994) da palestina Mona Hatoum e ou nas obras das sé-

ries Corpus Interna (1998), Da Vinci Séries II (1997) e Self/Data

Body (1998) do americano Eric Fong (figura 05).

Figura 6 – Tomós (1996). Mônica Mansur. Série Estrutura da Ob-sessão impressão sobre acetato) 20 tiras de 45x200cm.Portfólio, Site Mônica Mansur

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A artista Mônica Mansur fotografou as imagens dos

seus exames médicos e diminui a luz, distorceu, ampliou e alterou

a imagem. Em 1996, ela se apropriou das imagens médicas e

imprimiu-as em acetato para a instalação Tomós (figura 06), e

depois se apropriou da linguagem do vídeo para criar uma [...]

instalação com imagens em movimento do interior de estômagos

e cólons humanos (MONTEIRO, 2007, p.04).

Tais imagens apropriadas e operadas esteticamente são

elementos essenciais para a configuração de obras artísticas na

contemporaneidade que se apropriam do alto índice de exposição

do corpo real, sensível, frágil, fragmentário, imperfeito e sua

condição biológica, como poética.

A apropriação que os artistas fazem das imagens bio-

médicas e tecnocientíficas para fins poéticos é resultado de uma

necessidade secular de presentificar, tornar visível e humani-

zar o corpo em sua fragilidade, multiplicado e, agora, visto por

dentro, ao avesso. O que apresentamos nesta breve introdução

fortalecem nossas inquietações sobre o corpo, um signo que so-

breviveu à crise da representação exatamente porque passou a ser

presentificado por um corpo virtual.

Dessa forma, defendemos que as técno-imagens são

signos visuais que participam da construção do imaginário corpo-

ral, humanizando a percepção visual criadora para a sua condição

biológica, real e sensível frente à constante espetacularização

visual e idealização no campo social, político e econômico. Para

Santaella, o escancaramento interno perturba a imagem que se

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tem do corpo como aparência e as projeções de nossas fantasias:

Imagens de diagnóstico são insuporta-velmente indiciais. Órgãos, tecidos, bu-racos e reentrâncias, pedaços do corposão expostos, postos a nu. [...] Diantede tanto real, não há imaginário que re-sista. Suprema ironia, pois nada podeser mais erótico do que as cavidades,lábios, sulcos, fendas e curvas para den-tro do corpo (SANTAELLA, 2003, p.288).

Este corpo interessa, particularmente, pois as imagens

de diagnósticos médicos têm se apresentado como fonte poética

para a linguagem das videoinstalações. E, ainda, porque per-

guntamos: se as imagens de raios-x, scanners, ressonâncias e

câmeras virtualizam o corpo e possibilitam a reconstrução de

órgãos internos, expondo o interior que permanece dentro, como

ficam as relações entre corpo-visível e o corpo-sensível?

Para responder à questão, defendemos a hipótese de

que as tecnologias responsáveis pela virtualização como o scan-

ner, o vídeo e o computador apropriadas por linguagens artísticas

humanizam e sensibilizam novas corporalidades e são potencial-

mente fontes geradoras de novas experiências estéticas e poéticas.

Neste contexto, as técno-imagens mediam a virtua-

lização, tornam híbridas as linguagens artísticas e promovem

experiências estéticas atemporais. Entretanto, muitos aspectos da

mediação, criação e recepção na estética digital se encontram em

aberto, aguardando que novas Pesquisas em Artes Visuais, como

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esta que propomos realizar em diálogo com a Arte Contemporâ-

nea Brasileira para aprofundar suas implicações no campo das

Abordagens Teóricas, Históricas e Culturais da Arte, tendo como

método a Transdisciplinaridade.

Referências:

CAPRA, Fritjof. As conexões ocultas: ciência para uma vida sustentável. 7a. ed. São Paulo:Cultrix, 2011.

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3 Técno-Imagens: hibri-

dismo estético.

Luis Alberto Souza

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Técno-Imagens: hibridismo estético.

Luis Alberto Souza

Durante os seis encontros realizados no primeiro semes-

tre de 2017, no Instituto de Artes da UNESP/SP, pude ampliar um

pouco a ideia da arte e suas interfaces tecnológicas. Pois, foram

aulas/encontros em que foi possível transitar por uma diversidade

de temas e enfoques da arte contemporânea, trazendo sempre

reflexões tanto de ordem técnica, quanto de ordem política, esté-

tica e filosófica, caminhando por assuntos que perpassavam as

relações do cinema com a fotografia e o vídeo.

A relação dessas linguagens com os ambientes imer-

sivos da realidade virtual e os hibridismos que vão se acentuar

na segunda metade do século XX, culminando numa profusão

de experiências das mais diversas naturezas no campo das artes,

que agora já não mais se encontram compartimentadas nos seus

conceitos estanques dessa ou daquela linguagem.

A percepção de uma nova realidade surgida a partir do

século XX e que tem como uma das principais características,

a inserção da tecnologia em todos os âmbitos da vida social,

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contribuiu para o desencadeamento de profundas mudanças na

forma como o ser humano se relaciona com a mundo. A esse

conjunto de transformações empregou-se o termo “globalização”

para designá-lo, considerando a abrangência e dimensões assumi-

das por esse processo, até então inalcançadas no desenvolvimento

das sociedades humanas.

Essa concepção de globalização, tem como fonte o pen-

samento de Fritjof Capra (2002), o qual identifica que a partir da

criação, em meados da década de 1990 da Organização Mundial

do Livre Comércio houve a disseminação, por setores majoritá-

rios da economia mundial, do discurso de que essa globalização,

construída sobre os pilares marcadamente orientados por interes-

ses econômicos, representaria uma nova ordem, cujos benefícios

seriam igualmente usufruídos por todas as nações e atingiria a

todas às pessoas, garantindo assim o desenvolvimento de um

mundo com melhores condições de vida.

Essa perspectiva, no entanto, tem se mostrado profun-

damente contraditória. Pois, ao centrar o foco principalmente no

campo econômico e nas novas formas de transação comercial, as

questões sociais foram relegadas a segundo plano, o que motiva

o apontamento crítico realizado por diversos grupos ativistas.

Dentre esses pontos podemos situar o aumento da pobreza, as

agressões ao meio ambiente, a submissão da democracia, ali-

enação e o aumento de doenças endêmicas. A identificação

desses fatores no cenário mundial tornou-se uma importante ta-

refa, capaz de possibilitar a compreensão das raízes sistêmicas da

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contemporaneidade, assim como o papel das novas tecnologias

aliadas à expansão das grandes empresas.

Primeiramente, de acordo com Capra (2002) a partir da

desintegração do bloco comunista soviético, na década de 1980 e

a elevação do capitalismo à condição de hegemonia, houve uma

reorganização do mundo de acordo com um conjunto de regras

econômicas, comuns em escala mundial.

Em segundo lugar, Capra (2002) atribui à Revolução In-

formática contribuições para que houvesse a elaboração da noção

de sociedade global sustentada, sobretudo, pelos avanços de três

áreas fundamentais da eletrônica: a microeletrônica, as teleco-

municações e os computadores. Esses fatores inter-relacionados

operaram uma nova reconfiguração de tempo/espaço, permitindo

a interconexão de milhões de pessoas a partir de uma rede global

de comunicação e moldando novas maneiras de relacionamento

com a realidade. Essa nova sociedade reformulada a partir da

Segunda Guerra Mundial, possui como suas principais caracte-

rísticas o fato de que suas atividades econômicas são globais;

suas principais fontes de produtividade e competitividade são

a inovação, a geração de conhecimento e o processamento de

informações; e ele se estrutura principalmente em torno de redes

de fluxos financeiros. (CAPRA, 2002, p.135).

Importante ressaltar também, que a todos esses fatores

citados podemos acrescentar que, visivelmente, foi promovido

um maior estreitamento entre culturas, compreendendo também

que muitas vezes esses processos não ocorrem de maneira igua-

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litária, sendo mediados por relações assimétricas de poder, o

que contribui para a exclusão e apropriação cultural. Esse des-

locamento realizado entre diferentes culturas, também pode ser

compreendido a partir do que Nestor Canclini (1997) denomina

como desterritorializar. Ou seja, atribui um significado de perda

da relação “natural” da cultura com territórios geográficos e so-

ciais, provocando re-localizações da nova produção simbólica e

o redimensionamento da relação entre o nacional e o popular, o

que é reforçado por processos migratórios e de valorização de

uma visão de cultura experimental, multifocal e tolerante. Essa

re-elaboração possibilitou a construção de novos sentidos em co-

nexões com as práticas sociais e econômicas, travando disputas

pelo poder local e alianças com poderes externos.

Assim, é inegável que a constatação de que as expres-

sões culturais também são afetadas e transformadas pelos novos

sistemas eletrônicos de comunicação que a exemplo podemos

citar a criação de hipertextos, onde há combinação de sons, ima-

gens e palavras (escritas e faladas), o poder e força da comu-

nicação audiovisual (propaganda), o campo de convivência e

embate do binômio comunicação de massa versus conteúdo li-

mitado direcionado, principalmente, a um determinado público

identificado em mercados regionais, tem não só criado valores

e comportamentos, como têm sustentado a própria percepção

da realidade. Essa atuação direta dos meios de comunicação

em todas as esferas da vida pública e privada tem contribuído

também para realizar em muitos casos, uma indistinção acerca

do que é real.

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Nas teias e emaranhados que desenham as improváveis

cartografias rizomáticas da pós-modernidade, Zygmunt Baumam

(2000) adota o termo “Sociedade da modernidade fluida” ou”

Modernidade líquida” para designar uma série de transformações

que se distingue de um período caracterizado como modernidade

pesada/sólida e aponta duas características dessa nossa nova e

diferente situação.

A primeira que diz respeito ao fim de certezas alimen-

tadas quanto a um futuro em que a perfeição, o equilíbrio e a

satisfação das nossas crenças e necessidades se fariam de maneira

a atender um curso de estabilização. E a segunda, refere-se ao

deslocamento da ideia de sociedade regulamentadora para uma

lógica de auto-afirmação do indivíduo, traduzido como aperfeiço-

amento e que expressa pelo pensamento de que “A sociedade mo-

derna existe em sua atividade incessante de “individualização”,

assim como as atividades dos indivíduos consiste na reformula-

ção e renegociação diárias da rede de entrelaçamentos chamada

“sociedade”. Portanto, cabe ao indivíduo a tarefa de transformar

a identidade humana, assim como assumir a responsabilidade e

consequências dessa ação.

No campo Cultural o termo “Culturas híbridas” para

Canclini (1997) o pós-modernismo é a co-presença tumultuada

de todos os estilos, a descontinuidade e lhe empresta uma abor-

dagem com forte carga política a partir de reflexões realizadas no

encontro da cultura indígena e a cultura de elite, considerando

nesse caso, a possibilidade de renovação da cultura e a produção

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de novos sentidos, sendo em alguns casos apontados por alguns

autores a necessidade de cuidado em relação a esse otimismo,

observando que se adotado por uma intenção estritamente capita-

lista, poderá a vir a ser tornar um instrumento de dominação. Para

Peter Burke (2003), entretanto, “Hibridismo cultural” implica

em interações de alta complexidade, que apontam para infinitas

possibilidades e extensões e o se associa à ideia de ação humana

inconsciente.

O termo hibridismo na contemporaneidade é uma res-significação de um termo adotado do campo da biologia e daquímica para designar misturas entre espécies ou elementos quí-micos diferentes. Hoje ele é utilizado no universo cultural comosinônimo de ação consciente, disseminado para diversas áreasdo conhecimento humano, inclusive em arte, ressaltando a suadimensão tanto política quanto estética, ou seja, tanto no quese refere ao modo de agir, como ao modo de construir objetosculturais, conforme destaca Lúcia Santaella (2003):

São muitas as razões para esse fenô-meno da hibridização, entre os quaisdevem estar incluídas as misturas demateriais, suportes, e meios, disponí-veis aos artistas e propiciadas pela so-breposição crescente e sincronizaçãoconsequente das culturas artesanal, industrial-mecânica, industrial-eletrônica e telein-formática. (SANTAELLA, 2003, p.135).

Ao sugerir intencionalidades de contestação e provoca-

ção às normas culturais pré-estabelecidas, extrapolando limites e

transgredindo normas, Santaella (2003) elege para a discussão

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a questão das hibridizações em três campos significativos, que

resumidamente podem ser colocadas da seguinte forma:

Primeiro: Misturas no âmbito externodas imagens, interinfluências, acasala-mentos passagens entre imagens arte-sanais (cinema e vídeo) e infográficas.Segundo paisagens sígnicas das instala-ções e ambientes que colocam objetos,imagens artesanais bi e tridimensionais,fotos, filmes, vídeos, imagens infográ-ficas e ciberambientes numa arquite-tura capaz de instalar novas ordens desensibilidade. Terceiro: as misturasde meios tecnológicos presididos pelainformática e teleinformática que, gra-ças à convergência das mídias, trans-formou as hibridizações das mais di-versas ordens em princípio constitutivodaquilo que vem sendo chamado de ci-berarte. (SANTAELLA, 2003, p. 135-136).

Essas novas possibilidades de criação em arte utili-

zando diferentes meios que se relacionam e criam novas per-

cepções, desloca a valoração da arte enquanto objeto de apro-

priação material criando indagações no campo epistemológico,

abrindo-se para novas intervenções e possibilidades infinitas de

combinações estéticas.

Dentre os exemplos possíveis que apontam para essas

combinações estéticas, resultante do hibridismo das imagens

técnicas, encontra-se a obra do artista mineiro Éder Santos, con-

siderado um dos pioneiros da videoarte no Brasil.

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O artista inicia suas pesquisas nesse campo a partir da

década de 1980, desenvolvendo uma multiplicidade artística em

diversas mídias como em videoinstalações, vídeoesculturas, per-

formances, longas-metragens e videoclipes. Um traço caracterís-

tico de suas obras é a amplificação das imagens, rompendo com

a tradicional produção de vídeo para monitores (single channel),

além de incorporar ao seu trabalho imagens consideradas, comu-

mente, como defeitos técnicos, aliando a essa escolha elementos

simbólicos e a proposição de novas formas de relacionamento

entre espectador e imagem, incentivando a discussão acerca da

subordinação dessas ao discurso midiático.

Entre suas obras, podemos destacar a premiada Ja-

naúba (1993), na qual o artista evoca a gênese das imagens

audiovisuais, dialogando com elementos cinematográficos e ex-

plorando novas maneiras de operar com os recursos eletrônicos.

Também se situa entre a sua produção obras como a instala-

ção Call Waiting (2006), na qual imagens de pássaros, fios e

gaiolas são projetadas na parede por meio de sombras, o que

remete às reminiscências da sua infância. Outros trabalhos são

em vídeo como Tumitinhas (1998), Eu Não Vou à África Porque

Tenho Plantão (1990) e Mentiras & Humilhações (1988). Rea-

liza também dois longas-metragens: Enredando Pessoas (1995)

e Deserto Azul (2014). Estas obras exploram a temática existen-

cialista, da religiosidade mística, da crítica social e da memória.

Por fim, destaca-se a exposição Estado de sítio, reali-

zada em 2016, na Grande Galeria Alberto da Veiga Guignard

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do Palácio das Artes, em Belo Horizonte/MG. Nessa mostra o

artista busca o diálogo e a crítica relacionada ao atual contexto

político brasileiro, ressaltando o estado de exceção e de ataque

à democracia, como o fim dos programas sociais, a perda de

direitos civis, a intolerância religiosa e a deposição da presidente

Dilma Roussef. Estão na mostra cinco instalações: Cascade, To-

dos os santos, A casa dos sinais flutuantes, Distorções contidas e

Cinema.

Figura 7 – Foto da obra (vídeoarte) Janaúba (1993) de Éder Santos.

Considerações finais

Pensar a arte e suas relações no campo tecnológico

representa uma escolha estética e política. Pois, não é possível

pensar um determinado meio sem considerar as suas implicações.

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Figura 8 – Foto da instalação Call Waiting (2006) de Éder Santos.

Figura 9 – Foto da instalação Call Waiting (2006) de Éder Santos.

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Figura 10 – Foto da vídeoinstalação Cascade (2016) de ÉderSantos.

O desenvolvimento das novas tecnologias está inevitavelmente

associado a uma concepção de sociedade que se quer global,

mas que, nem por isso foi capaz de eliminar de seu meio as

diversas mazelas sociais como a pobreza, a destruição ambiental,

a desigualdade e a fome.

A arte pode ou não representar uma crítica, direta ou in-

direta, mas não devemos ignorar as condições históricas e filosófi-

cas em que se desenvolvem essas relações de criação/proposição

e contato/fruição com esses “objetos” artísticos, observando até

que ponto é possível, aceitável e ético a ação d(a) artista, sem

com isso justificar o senso comum de que “tudo é arte”.

Os encontros que se sucederam durante o primeiro

semestre do ano de 2017, foram profundamente férteis na propo-

sição de diálogos tecidos durante as aulas ou nas apresentações

dos seminários, contando sempre com a sensibilidade e o cui-

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dado da Professora Regilene Sarzi em mediar a reflexão acerca

do vasto universo das técno-imagens, considerando a existência

de uma grande heterogeneidade entre os componentes do grupo,

o que sem dúvida se tornou um fator de enriquecimento ao serem

abordados os assuntos sob diferentes pontos de vista.

Durante esses encontros pude despertar o interesse em

pesquisar mais a respeito desse campo de conhecimentos, tra-

zendo novas possibilidades de se pensar no ensino de arte na

escola e de promover com os alunos novas relações e perspecti-

vas no campo artístico.

Referências:

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BURKE, Peter. Hibridismo cultural. São Leopoldo: Ed. da Unisinos, 2003.

CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas - estratégias para entrar e sair da modernidade.Tradução de Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão. São Paulo: EDUSP, 1997.

CAPRA, Fritjof. As Conexões Ocultas: Ciência para uma vida sustentável. Tradução: MarceloBrandão Cipolla. São Paulo: Editora Cultrix, 2002, 296p.

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SANTOS, Éder. Call Wairing -Instalação, 2006. Fonte:htt p : //payload526.cargocollective.com/1/23/752667/12825592/29_03_2017_call −waiting_ f oto_1000. jpg. Acesso em 22/10/2017.

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SANTOS, Éder. Cascade - Videoinstalação, 2016. Fonte:http://hojeemdia.com.br/polopoly_fs/1.429225!/image/image.jpg_gen/derivatives/landscape_653/image.jpg- Acesso em 22/10/2017.

SANTAELLA, Lúcia. Cultura e artes do pós-humano. São Paulo; Paulus, 2003.

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4 Automatização, Repro-

dução e Imagens.

Miguel Alonso A. Carvalho

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Automatização, Reprodução e Imagens.

Miguel Alonso A. Carvalho

No universo da arte, ao abordar dispositivos, máquinas,

aparelhos e imagens técnicas, vários caminhos podem ser trilha-

dos, sejam em uma busca cronológica e histórica das origens de

cada um, sejam pelas aproximações de processos de funciona-

mento, pelos graus de complexidade, ou até pela generalização

de seus usos, entre outros possíveis. Neste texto, será trilhado

um breve percurso, uma revisão bibliográfica, considerando a

saga humana pela ação de automatização das máquinas de produ-

ção de imagem, como uma proposta de ligação entre diferentes

saberes e fatores, até chegar a uma possível estrutura ampla de

abordagem para as relações do ser humano com as máquinas.

A trilha aqui proposta pelo olhar sobre a automatização

na produção de imagens se inicia nas imagens pré-históricas,

preservadas nas cavernas, com a impressão carimbada da mão,

com pigmentos orgânicos e minerais, diretamente no suporte da

parede, ou com a mão utilizada de máscara, com o pigmento

borrifado e registrando sua silhueta (Figura 11).

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Figura 11 – Detalhes das pinturas rupestres de 9300 a 1300 anos atrás,com mais de 800 mãos.Sítio arqueológico “La Cueva deLas Manos”, Argentina, 2015.

O ser humano ficciona, imagina, ritualiza seu mundo.

As imagens impressas em diversos suportes, como as das caver-

nas, são parte do domínio lingüístico1 humano. . Tais processos

são relevantes para que se constate a ambição milenar humana

por criar e reproduzir imagens. Essa ambição é a construção de

significados e é decorrente de aspectos cognitivos e emotivos.

Elas dão coesão as distintas sociedades, participando da pró-

pria noção de consciência individual. “A linguagem permeia, de

modo absoluto, toda a nossa ontogenia como indivíduos, desde

o modo de andar e a postura até a política”(Maturana e Varela,

2001, p.234).

1 Conforme Maturana e Varela “Chamamos de Domínio lingüístico de um organismo ao âmbito

de todos os seus comportamentos lingísticos.”(2001, p.231).

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A produção de imagens é uma característica humana.

Construir imagens é criar realidades, mas acima de tudo, é orga-

nizar o ambiente em representações abstratas. Conforme indicam

Humberto R. Maturana e Francisco J. Varela, no livro “A Árvore

do Conhecimento”, a comunicação junto a linguagem estão to-

talmente ligadas e formam o universo mental do ser humano, a

consciência. A significação constituída por imagens está no meio

dessa estrutura e a arte permeia todo o sistema. É importante

entendermos que estas imagens também são indícios de ação

humana em seu meio.

Tais construções de imagens são acrescidas da procura

histórica pela capacidade de automatizar seus processos. Ed-

mound Couchout em seu texto “The automization of figurativete-

chniques: Toward The Autonomous Image”, no livro “Media Art

Histories”(2007), editado por Oliver Grau faz uma leitura dessa

junção entre individuo/imagem/meios de produção de imagens.

Segundo Couchout (2007), na história existem períodos

em que a pesquisa por técnicas de automatização esteve mais

lenta, como na Idade Média, e períodos acelerados, como na

Renascença. Em ambos os casos, as questões econômicas e

sociais foram determinantes para essa variação. Mas além desse

ponto de vista de Couchout, a necessidade de automação não é

a mesma da necessidade de reprodução de produtos e imagens.

Nestes processos os dois objetivos são distintos, contudo estão

intimamente ligados e ao avaliar as tecno-imagens é essencial ter

isso em mente.

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O celebre texto de Walter Benjamin, “A obra de arte

na era da sua reprodutibilidade técnica” aponta a consolidação

da reprodutibilidade como fator excludente do valor de aura, de

objeto único, e a consolidação das novas qualidades e problemas

que as imagens ganharam com a Revolução Industrial e que se

diferenciam dos parâmetros de outras técnicas.

As mudanças na capacidade de reprodutibilidade das

imagens, feitas no século XX, foram frutos dos avanços, quími-

cos e mecânicos, feitos no século anterior, principalmente pelos

processos de foto-sensibilização, de fixação química de imagens

e de elaboração de matrizes para sua repetição. Destaca-se nesse

contexto o meio fotográfico, vindo do século XIX, principal-

mente por sua capacidade de registro e de reprodução, o qual

rompeu com muitas estruturas e trouxe novidades para o de-

senvolvimento de imagens e de conhecimento, que duram até

hoje.

Percebe-se uma evolução progressiva desses meios,

mas eles ainda estão imbricados em um mesmo paradigma. Ao

se pensar nessa estrutura, sempre há necessidade de uma única

matriz de reprodução, seja um fotolito ou uma chapa de metal,

pedra ou outro material.

A divisão paradigmática - citada acima - nesse período

da história é apontada por muitos autores e possui diversas leitu-

ras, como a feita por Lúcia Santaella (2005) e seus três paradig-

mas da imagem: Pré-fotográfico, fotográfico e pós-fotográfico2

2 Como exemplo de outro autor que estrutura paradigmas para os processos técnicos de criação,

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. A divisão da autora leva em consideração, principalmente, as

metodologias de produção de cada época e seus meios, sendo

possível relacionar a materialidade e as formas de distribuição,

ou melhor, do acesso do público e da obra.

Tais características da automação, nas formas que fo-

ram apresentadas até agora neste texto, se enquadram nos dois

dos primeiros paradigmas de Santaella, o pré-fotográfico e o

fotográfico. Mas é importante perceber que mesmo com o au-

mento da complexidade desses processos de automação (seja

mecânico ou químico) eles ainda têm sua funcionabilidade e

linguagem ligadas a uma reprodução futura da matriz, possuem

uma linearidade no processo, com começo, meio e fim.

É somente no paradigma pós-fotográfico que a auto-

mação se desliga da reprodução. Na interface entre humano-

máquina desse novo paradigma a imagem passa a ser virtual, ela

acompanha o desenvolvimento da tecnologia informacional e

passa a se formar com dados, com os bytes, que são a tradução

dos símbolos convencionais, como o alfabeto (ou uma fotografia),

em informação binária3 .As imagens digitais são interativas, pois

só estão presentes no momento de interação com o observador,

ou em sua materialização pela interface (projeção, configuração

na tela do monitor ou até mesmo em sua impressão).

não só de imagens, mas de construção e compartilhamento de informação, destacamos Pierre

Levy em seu livro “Tecnologias da Inteligência” (1992).3 Conjuntos de cálculos executados, informações das combinações de Zeros (0) e uns (1) que se

armazenam no hardware por meio de cargas elétricas que se armazenam nos componentes (

chipes).

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Dessa forma a comunicação passa a ser feita direta-

mente na interface da máquina. Couchout (2007) destaca a

produção digital, por seu diferencial radical no modo de au-

tomatização, pois esta passa a ser “um cálculo automático” e o

processo que era físico, na matriz, passa a ser virtual, convertido

em dados. A reprodução não é apenas futura ela já é automática.

O criador de uma imagem digital é o observador dessa

interação, ele não reproduza imagem, ele a programa para ser

reproduzida automaticamente, isto é, ele faz um processo de

automação que independe de uma estrutura fixa, ela ocorre e é

reprodutível concomitantemente.

Não é mais um processo linear, é atemporal e seu es-

paço é múltiplo. Couchout (2007) evidencia esse objeto virtual,

pois este deixa de seruma representação bidimensional ou tridi-

mensional, não tem aura e nem reprodução no sentido tradicional.

Todas as versões são originais. Ele é a automatização da forma

como ação.

Máquinas autônomas

Dentro deste terceiro paradigma, o pós-fotográfico, de

Santaella (2005), muitas novas possibilidades surgiram e estão

surgindo para o conhecimento humano. Não só nas artes, mas

nas ciências e no desenvolvimento de novas tecnologias. As

barreiras tradicionais destas áreas são modificadas a cada dia e o

grande desenvolvimento da automação, como indica Couchout,

vai além de reprodução irrestrita, e de matrizes para repetição.

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Esse novo parâmetro influencia todas as áreas do co-

nhecimento. A automação se torna tão complexa até o ponto do

desenvolvimento de formas de vida digitais, máquinas autôno-

mas e, radicalmente, a inteligência artificial, com a capacidade

de aprendizado.

A capacidade humana de fazer arte-fatos para simular inteligência, vidae processos evolucionários vai certa-mente mudar dramaticamente as ativi-dade humanas neste século. Uns po-dem desejar essa agitação, outros po-dem certamente achar assustadora. Es-tando atentos para não deixar esse sis-tema unicamente no caminho da efici-ência lógica, deverão os artistas- ou nãodeverão- manter o controle desses se-res para dotar de autonomia, no nomeda livre criatividade? (COUCHOUT,2007 p.190).

Conforme Couchot (2007) defende, é dentro dessa nova

modalidade de automação e de produção de imagens que o artista

deve se posicionar e explorar as novas capacidades de produção

humana e do humano junto às máquinas. Daí à importância

do estudo da cibernética, visando pensar uma teoria sobre as

relações dos homens com as máquinas.

A automação chegou ao ponto de automatismo e de

quase auto-suficiência. Nesse ponto, com o desenvolvimento

automatizado dos dados,surgem as máquinas de Turing (Figura

12), principio dos computadores atuais, máquinas automatiza-

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das que quantificam muitas informações complexas do mundo,

traduzindo-as de forma binária, e, dessa forma, constroem novas

formas de raciocínio. Surge a grande pergunta “as máquinas

podem pensar?”4

Figura 12 – Detalhe da máquina que Turing construída no filme “OJogo da Imitação”, Direção: Morten Tyldum, 2015.

Por mais que, até agora, tenha se abordado a automa-

ção no processo de criação de imagens, é essencial pensar em

quais novos conteúdos essas máquinas sofisticadas trouxeram,

automatizando não só as imagens, mas o próprio meio. Tem

que se ter cuidado com a ideia de automatismo numa estética

cibernética, por conta de seu caráter extremamente racionalista,4 Esta pergunta faz parte do artigo Computing machinery and intelligence. [S.I.:s.n, 1950 ],

de Alan Turing, do qual nasce a proposta do “Jogo de imitação”, um marco dos estudos da

cibernética.

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a partir dos parâmetros da informação, pressupondo a interação

e a comunicação.

O observador não pode ser entendido independente de

seu meio. Pensar a automação considerando a atualidade dos

meios artísticos e técnicos não é uma questão tão usual, mas

eminente das relações mais cotidianas de arte-tecnologia. Pois,

reformulando a frase dita no início do texto: A produção de

imagens é uma característica humana e de suas criações, estas

imagens são indícios de alguma ação, seja de quem a produziu,

seja de qual meio ela foi elaborada e de quem a percebe, isto

é, dispositivos, máquinas, aparelhos e imagens técnicas podem

auxiliar tanto na criação artística, quanto na fruição de uma obra.

Referências:

COUCHOUT, Edmound. “theautomization of figurative techniques: Toward The AutonomousImage”. In GRAU, Oliver. Media Art Histories. Leonardo Book Series. 2007.

GIANETTI, Cláudia. Estética Digital– Sintopia da arte, a ciência e a tecnologia. Belo Horizonte:C/Arte, 2006.

SANTAELLA, Lúcia. Os três paradigmas da imagem. In: SAMAIN, Etienne. O Fotográfico. 2a.Ed. São Paulo: Ed. Hucitec, SENAC. 2005. p.295-307.

TURING, Alan. Computing machinery and intelligence. [S.I.:s.n, 1950]. Disponível em:< htt p : //loebner.net/Prize f/TuringArticle.html > Acesso em: 11 de Outubro de 2017.

Sumário de Imagens:

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Figura 11: Detalhes das pinturas rupestres de 9300 a 1300 anos atrás. Sítio arqueológico “La Cuevade Las Manos”, Argentina, 2015. Disponível em: < htt p ://www.terraadentro.com/2015/01/31/arte− rupestre−da− cueva−de− las−manos/ >Acesso em: 11 de Outubro de 2017.

Figura 12: Detalhe da máquina que Turing construída no filme “O Jogo da Imitação”, Direção:Morten Tyldum, 2015. Disponível em: <http://bitaites.org/tecnologia/o-enigma-alan-turing>Acesso em: 11 de Outubro de 2017.

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5 Quase-Cinema: cinema,

bitola e conceito.

Yardena do Baixo Sheery

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Quase-Cinema: cinema, bitola e conceito.1

Yardena do Baixo Sheery

Introdução

Em carta a Antonio Dias, escrita em 1980, Oiticica

relaciona sua “FILMOGRAFIA (?)”. Entre as obras relacionadas

estão as Cosmococas, datadas de 1973 e descritas como inaugu-

rais do conceito de quase-cinema. As Cosmococas não foram

concretizadas durante sua vida, assim como nenhum dos projetos

de Oiticica realizados em Nova Iorque, mas o intenso tráfego

epistolar de Oiticica trouxe ao Brasil o termo quase-cinema que

foi empregado por outros artistas ao tratarem de sua obra, muito

embora se considere o quase-cinema uma questão exclusivamente

oiticiqueana. Estes outros artistas usaram o termo referindo-se,

inclusive, a vídeos. Oiticica cunha o termo para tratar da mistura

entre cinema e experiência sensorial que é a Cosmococa.

1 Este texto é uma compilação, um pequeno inventário, uma curadoria de informações pontuais

e questões sobre a criação do “conceito designação” de quase-cinema de Hélio Oiticica.

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Das bitolas

O mais próximo, na obra de Oiticica, da vídeo-arte, é a

presença de uma televisão fora do ar em um de seus Penetráveis.

Não há, além desta exceção, vídeo (ou quase-vídeo) em sua obra,

todas as suas bitolas são película, ou seja, acetato.

O uso de filme na obra de Oiticica começa com foto-

grafias, empestadas de notícias de jornal, no B33 Bólide Caixa

18 Homenagem a Cara-de-Cavalo e no estandarte Seja Marginal,

Seja Herói (alto-contrastada e transferida por serigrafia). Além

destas, existem as fotografias-registros dos Parangolés. É digno

de nota que foi com a introdução da fotografia (seja na obra em

si ou como forma de registro) que também se introduz na obra de

Oiticica a figura humana, e esta só aparecerá no suporte fílmico,

ou seja, em película/acetato (fotografia, slide, super-8).

Do “cinema” em quase-cinema.

Antes do quase-cinema, Hélio Oiticica realizou várias

experimentações cinematográficas, todas elas a seguir:

No final dos anos 1960 Oiticica manuscreve dois rotei-

ros que nunca chega a filmar. Em 1968 atuou em Câncer (1972)

de Glauber Rocha. É ainda no final dos anos 1960 que, para Ivan

Cardoso, produziu o cartaz de Sentença de Deus (1972).

Em 1971, ao mudar-se para Nova Iorque, matricula-se

em um curso livre na NYU para aprender a usar câmera super-8.

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Figura 13 – Cartaz de Sentença de Deus (1972).

Passa a frequentar os círculos de Jack Smith, cineasta under-

ground, que lhe apresenta Mario Montez, uma das superestrelas

de Andy Warhol.

Em 1972, numa visita de Júlio Bressani a Nova Iorque,

assina a cinematografia de seu filme Lágrima Pantera (1972).

Também em 1972, aceita uma encomenda, por carta,

de Ivan Cardoso, para que fizesse um “short” com uma de suas

atrizes, Cristiny Nazareth, que visitara Nova Iorque e se hos-

pedara com Oiticica, para “complementar” seu filme A Múmia

Volta a Atacar. O filme de Cardoso nunca foi concluído. Já o

short, que se chama Agripina é Roma-Manhattan e tem Mario

Montez e Antonio Dias no elenco, é considerado pelo Centro de

Arte Hélio Oiticica o único dirigido pelo artista.

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Figura 14 – Cristiny Nazareth e David Starfish em fotografiados bastidores da filmagem de Agripina é Roma-Manhattan (1972).

Há ainda uma pequena coleção de rolinhos super-8:

Brasil Jorge (1971), Battery Park (1971), Filmore East 1, 2, 3

e 4 (1971-2), Igreja Notre Dame (1972), Haffer’s Office (1973),

TV’s Stones 1 (1973), Making Off – CC1 (1973), Gay Pride 1, 2

e 3 (1973), Neyrótika (1973) e Teresa Jordão (1973).

Realizou também, em meados dos anos 1970, alguns

curtas experimentais com os irmãos Thomas e Andreas Valentim:

Nova York 1972-1976 (1971-1976), All Language (1974), Rio de

Janeiro 1974-1976 (1974-1976), One Night on Gay St. (1975)

(com Luís Carlos Joels e Wally Salomão), Flit (1976) e Phone

(1976).

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Figura 15 – Still de Flit (1976).

Em 1973 projeta Neyrótika e as Cosmococas, e em

1975, Helena Inventa Angela Maria. Todas essas três recebem a

designação de quase-cinema, e são projetos que Oiticica não tem

a chance de realizar. Sobre o conceito de quase-cinema, Oiticica

trata de sua inauguração ao relatar sua “FILMOGRAFIA (?)” em

carta a Antonio Dias:

HÉLIO OITICICA - FILMOGRAFIA (?)

1972 – AGRIPINA É ROMA-MANHATTAN – New York

Super 8 não terminado: material feito a ser utilizado como parte

de programa futuro.

1973 – NEYRÓTIKA – New York nãonarração montada em

NEW YORK abril/maio 73: 80 slides com marcação de tempo e

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trilha sonora: inacabado!

1973 – COSMOCOCA–programa in progress– New York

constituído de BLOCO-EXPERIÊNCIAS com a designação CC

de CC1 a CC5 com NEVILLE DALMEIDA a partir de 13 de

março de 73 inaugurando o conceito designação de

quase-cinema

CC6 com THOMAS VALENTIN

CC8 sozinho

São BLOCOS constituídos de slides-trilha

sonora-INSTRUÇÕES: essas INSTRUÇÕES são especiais em

cada caso exigindo a construção de ambientação-ocasião

próprios

1975 – HELENA INVENTA ÂNGELA MARIA – New York

5 BLOCOS-SESSÕES a serem tomados do mesmo modo q

COSMOCOCA e NEYRÓTIKA como experiência de

quase-cinema: suas INSTRUÇÕES variam conforme a situação

pedida: quanto à trilha-sonora também: há maquete feita do

ambiente-PENTÁGONO feito como protótipo para sua

apresentação: programação nova e especial a ser feita para cada

apresentação2

As obras que designam o conceito de quase-cinema

não são, portanto, o clássico “filme de artista” resultante do2 Arquivo Projeto Hélio Oiticica 163.80.

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artista experimentando nesta linguagem. O quase-cinema, no

contexto da obra de Oiticica, é o resultado do casamento do que

se convencionou chamar “arte sensorial”, já explorada em seus

Penetráveis, com sua experimentação cinematográfica, que não

era filme de artista e sim cinema, mais especificamente cinema

underground ou marginal.

Depois da experimentação quasecinematográfica de

meados dos anos 1970, Oiticica reincursiona no cinema margi-

nal. Em 1978 realiza a instalação Tenda Luz para Gigante da

América, de Júlio Bressane. Em 1979 Ivan Cardoso fez um curta

documentário sobre sua obra chamado H.O. Oiticica participa

também do documentário Uma Vez Flamengo (1980) de Ricardo

Sollberg e atua em O Segredo da Múmia (1982), também de Ivan

Cardoso.

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Figura 16 – Hélio Oiticica nos bastidores de O Segredo da Mú-mia (1982).

Figura 17 – Hélio Oiticica em copião perdido e não datado deIvan Cardoso (anos 1970).

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Figura 18 – “Filmografia (?)” de Oiticica conforme apresentadaem carta a Antonio Dias em 1980.

Do (não) conceito de quase-cinema

[. . . ] COSMOCOCA–programa in pro-gress– New York constituído de BLOCO-EXPERIÊNCIAS [...] inaugurando oconceito designação de quase-cinema[. . . ]. Hélio Oiticia em Carta a Anto-nio Dias, relacionando sua “FILMO-GRAFIA (?)”3

[...] Nas décadas de 1970 e 1980 tra-balhei muito com o Super-8 e o ví-deo, realizando 29 filmes dentro doconceito/definição de Hélio Oiticica de

3 Idem

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Quasi Cinema, que é o filme de artista[. . . ] Paulo Bruscky 4

Quando o “conceito designação” de quase-cinema foi

inaugurado, Hélio Oiticica não o definiu claramente, de maneira

que as próprias obras serviram como uma declaração desta nova

designação. As obras foram produzidas anos após sua morte,

mas o conceito, mesmo sem a obra que designava, fez a ponte

aérea NY-RJ ainda nos anos 1970 e foi apropriado por artistas

brasileiros em obras de natureza muito diversa das que Oiticica

havia planejado sem chance de realizar em vida.

Assim, quase-cinema, conforme a ideia original de

Hélio Oiticica, considerando-se as obras que recebem esta desig-

nação, é a projeção de películas (slides ou super-8) associada a

experiências sensoriais, incluindo, necessariamente, trilha sonora.

Quase-cinema conforme a definição de outros artistas, pode ser

todo e qualquer filme ou vídeo de artista, o que não fere neces-

sariamente o conceito de Oiticica porque sua obra sempre foi

aberta a participação e sua “FILMOGRAFIA (?)” permaneceu

aberta a revisões, ou seja, poderia vir a incluir este tipo de obra.

4 BRUSCKY, Paulo. Cinema de Inversão/Invenção. in MACHADO, Arlindo (org.). Made in

Brasil: Três décadas de vídeo brasileiro. São Paulo: Iluminuras, 2007, p.81

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Referencias:

Arquivo Projeto Hélio Oiticica (APHO) 163.80

BRUSCKY, Paulo. Cinema de Inversão/Invenção. In MACHADO, Arlindo (org.). Made in Brasil:Três décadas de vídeo brasileiro. São Paulo: Iluminuras, 2007.

DACOSTA, Cláudio. Hélio Oiticica e a morte do Cinema. In Arte e Ensaios – Revista doPrograma de Pós-Graduação em Artes Visuais EBA. Rio de Janeiro: UFRJ, 1999.

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6 Videoinstalação: um co-

meço.

Natalie Mireya Mansur Ramirez

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Videoinstalação: um começo.

Natalie Mireya Mansur Ramirez

Nas décadas de 1960 e 1970, muitos artistas utilizaram

o vídeo para criticar a sociedade que, a cada passo para a globali-

zação, tornava-se mais superficial. É a partir desse contraponto

que a vídeo arte ganha força, pois o vídeo é tido como um meio

manipulável, no qual o autor pode expressar sua subjetividade

individual ou política. Enquanto a televisão apresenta uma idea-

lização do mundo exterior, relacionada às ambições das grandes

corporações publicitárias, o vídeo por si só como meio e mídia

é o viés pelo qual se transgride o reducionismo de informações

que a televisão traz ao espectador, possibilitando um espectador

reflexivo e não passivo diante do bombardeio de programas não

educativos e de entretenimento e propagandas que instigam o

capitalismo libidinal. 1

1 Para o francês Jean François Lyotard, o capitalismo é movido pela libido, ou seja, cria-se a ne-

cessidade de se adquirir bens de consumo a fim de suprir a produção desenfreada e consequente

excesso de estoque. A libido é o desejo, o motor do desenvolvimento do capital.

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É importante lembrarmos que a imagem animada -

filme, vídeo - é consequência das experimentações com foto-

gramas nos fins do século XIX e início do século XX, denomi-

nadas cronofotografia, que consistia na captação do movimento

com inúmeras máquinas fotográficas a fim de reconstitui-lo em

imagens. Muitos artistas utilizaram a fotografia para estudos

pictóricos, como o pintor francês Edgar Degas e demais impres-

sionistas. Pode-se perceber que tanto os artistas do surgimento

da fotografia como os artistas do surgimento do vídeo utilizaram

do recurso tecnológico em voga. Quando se trata do surgimento

do cinema mudo utilizado pelas vanguardas ou do surgimento

da câmera Portapak nos anos 1960, percebe-se que o uso desses

recursos tecnológicos se deu como meio de aperfeiçoamento ou

desconstrução das linguagens tradicionais como pintura, escul-

tura e desenho, ou ainda como narrativas pessoais em busca de

identidade cultural, sexual e liberdade política. (RUSH, 2006, p.

99).

A pesquisadora Rosalind Kraus, em seu texto Vídeo: A

Estética do Narcisismo (2008) alega que com o surgimento do

vídeo - aparato tecnológico - o uso do corpo como objeto central

foi muito comum entre os artistas da época. Tanto na videoarte

como nas videoinstalações, o corpo do espectador ganhou espaço,

se pensarmos em artistas como os americanos Joan Jonas, Bruce

Nauman, Dan Graham e os brasileiros Letícia Parente e Nelson

Lerner.

Mas o que é o vídeo? Para a autora Inês Gouveia, “do

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ponto de vista técnico, o vídeo é um processamento tecnológico

que permite registrar e reproduzir simultaneamente som e ima-

gem através de um processo magnético” (GOUVEIA, 2011, p.15).

Essa mesma definição é cabível para a imagem de Televisão que

a autora atribui no mesmo texto.

Discutem-se três fases sobre o surgimento e a utilização

da imagem do vídeo. Na primeira, entre 1952 e 1964, iniciam-

se as utilizações não funcionais do vídeo por parte de artistas

como Wolf Wolstell e Nam Jun Paik, ambos do FLUXUS. Esses

dois artistas utilizavam da imagem do vídeo desconstruindo sua

nitidez e funcionalidade através da intervenção em seu circuito

eletrônico original.

A segunda fase, de 1965 a 1973, corresponde ao pe-

ríodo do surgimento da câmera portátil Portapak, produzida pela

Sony, a qual torna mais prático o processo de gravação e difusão

da imagem de vídeo e a proliferação da performance para a câ-

mera. Nesse contexto, a performance dialoga com o vídeo, visto

que os acontecimentos históricos americanos e europeus de cará-

ter libertário como o movimento feminista, anti-guerra, de lutas

raciais e estudantis, são os mesmos que marcam e influenciam,

de certa forma, o surgimento da arte da performance, e talvez

por isso o uso do corpo para se produzir imagem de vídeo foi tão

recorrente por parte dos artistas. (GOUVEIA, 2011, p.24).

É interessante ressaltar que os EUA foi o país que de-

teve por muitas décadas o domínio sobre as pesquisas em relação

à tecnologia televisiva, e por isso a vídeo arte tem seu surgimento

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em solos norte-americanos. Tratava-se de uma demonstração de

poder político, já que a época do surgimento da câmera portátil

é a mesma da Guerra fria. Também é nesse contexto que o pen-

sador e influente da Revolução Estudantil de Maio de 1968 na

França Guy Debord faz uma crítica a mass mídia2 através de seu

livro A Sociedade do Espetáculo (1967), no qual ele apresenta

sua tese sobre a televisão programada e a nossa relação com o

que acontece no mundo. No referido texto Debord propõe que

vivemos através da recepção de imagens, isto é, as imagens televi-

sivas são intercessoras da nossa experiência como espectador. O

mundo, na crítica de Debord, seria aquele em que um indivíduo

não precisa sair de casa para ver os horrores da guerra ou pro-

gramas fúteis de entretenimento. Tal crítica visa denunciar um

mundo supérfluo no qual todo acontecimento é espetáculo, não

havendo espaço para a distinção entre o real e a espetacularização

da vida pela mídia, tornando nossas experiências reais baseadas

em imagens fictícias ou representativas de algo, naturalizando

acontecimentos catastróficos e hediondos.

A terceira fase, de 1974 a 1981, ainda para a autora

Inês Gouveia, consiste na absorção do uso do vídeo, por parte dos

artistas, como uma linguagem potencial e exploratória. Nesse

período, as galerias e instituições museológicas dedicaram seus

espaços expositivos para a difusão e o incentivo à produção de

vídeo arte, como no “caso do primeiro departamento de vídeo

2 Do inglês, são os meios de comunicação de massa como rádio, televisão, imprensa. O termo

geralmente é embutido de carga pejorativa, pois sugere que os meios de comunicação visam

padronizar as informações para o espectador, e que as mesmas são desprovidas de criticidade,

servindo mais como espetáculo, na concepção do francês Guy Debord.

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criado, em 1971, no Everson Museum of Art, em Siracusa, e

a gerar uma proliferação de centros de vídeo por toda a Amé-

rica do Norte” ou como a “Documenta 6 de Kassel, em 1977

e sob curadoria de Manfred Schneckenburger, abarca uma das

primeiras análises e classificações da nova prática artística, tendo

promovido, em simultâneo, a primeira transmissão via satélite

de obras em vídeo.” (GOUVEIA, 2011, p.32 - 34). É nessa fase

que as videoinstalações se propagam com maior força, visto a

maturidade que os artistas dispunham devido ao avanço do uso e

dos próprios meios tecnológicos.

O conceito de videoinstalação está ligado ao de instala-

ção. Assim como na instalação, todos os elementos envolvidos

em uma videoinstalação irão integrar o conceito da obra. Não

apenas o conteúdo do vídeo, mas sua forma de apresentação, o

tipo de projeção/monitor, o ambiente em que é alocado e sua dis-

posição nesse ambiente, a iluminação, os objetos da sala, como

outros elementos.

Para o autor americano Michael Rush (2006), as vide-

oinstalações remetem aos trípticos medievais. Esse exemplo é

cabível e interessante para elucidarmos o conceito. Se pensarmos

em um artista como o americano Bill Viola, o qual produz vídeos

verticalizados, dispostos lado a lado, e muitas vezes exibidos

dentro de espaços físicos religiosos, compreenderemos o quão

significativas são as formas de constituição da videoinstalação.

A videoinstalação, assim como toda produção artística

contemporânea, visa à reflexão. A relação do espectador com o

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monitor é modificada justamente para estimular outra concepção

sobre o conteúdo de vídeo/TV. Ao pesquisarmos sobre videoinsta-

lação, encontramos menção a fragmentação da imagem. Tal pode

ser associada à fragmentação do sujeito, que é algo que existe

desde o Cubismo, no início do século XX. No Cubismo a repre-

sentação do corpo era fragmentada em um plano bidimensional.

As narrativas da contemporaneidade são subjetivo-singulares,

podendo ser associadas a um indivíduo. Nas videoinstalações,

a fragmentação do sujeito pode ser lida como a fragmentação

da narrativa, isto é, não há uma leitura linear e concreta, mas

fragmentos de conteúdo imagético, narrativo, e afins, os quais

somados dá consistência ao conceito da videoinstalação. (LA-

COMBE, 1998 p.92).

A videoinstalação também está ligada à arte conceitual,

pois a ela é conferida a ideia de desmaterialização do objeto de

arte. A facilidade de reprodução da mídia torna o vídeo tão aces-

sível, que seu valor mercadológico passa a ser desconsiderado,

aproximando-se da difícil tentativa de se cotar algo imaterial.

Daisy Peccinini (1980) discorre com criticidade sobre

o conceito de Novos Meios/Novas Mídias. A autora infere que

a inovação no ramo da tecnologia não define o caráter daquilo

que é novo, tendo em vista que com mídias tradicionais o artista

ou quem as manipula tem a possibilidade de transgredir o seu

tempo. Portanto, novos meios se trata também de novas formas

de apreensão daquilo que já dispomos em dado contexto e a

forma como iremos abordar ou utilizar isso.

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Considerações finais

A pesquisa sobre videoinstalação no Brasil foi um

pouco difícil devido à escassez de material disponível no Galpão

Vídeo Brasil e no Acervo do Itaú Cultural, locais escolhidos

para pesquisa de campo quando da procura pelas referências

presentes no livro de Arlindo Machado. O importante para uma

pesquisa em videoinstalação é ter acesso a uma descrição deta-

lhada da montagem do trabalho, e não apenas ao conteúdo do

vídeo. Citaremos aqui dois artistas brasileiros contemporâneos

com produção relevante para a continuação da cena.

Mariana Manhães vive e trabalha no Rio de Janeiro.

Suas videoinstalações são engenhocas complexas, as quais ela

constrói em parceria com seu pai, que é engenheiro. Ela utiliza

utensílios domésticos inanimados, com os quais cria animações e

depois as projeta em superfícies circulares, rodeadas de materiais

infláveis ou parafernálias que remetem a um corpo robótico,

improvisado mecanicamente. Seu trabalho se assemelha ao da

suíça Pippilot Rist e ao do americano Tony Oursley.

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Figura 19 – Mariana Manhães, Arvorar, 2006.

Figura 20 – Mariana Manhães, Então Vaso Verde, 2003. Fonte:http://www.marianamanhaes.com/

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Outro importante artista, contemporâneo, porém per-

tencente à primeira geração de videoinstalações no Brasil é o

mineiro Eder Santos. Possui uma extensa carreira como diretor

de cinema, mesclando artes visuais, teatro, dança, vídeo, novas

mídias. Seu trabalho é um dos mais bem catalogados encontrados

nessa pesquisa. No site de compartilhamento de vídeo, Vimeo do

artista, é possível encontrar até o making of de algumas de suas

videoinstalações. Eder Santos explora o espaço físico onde irá

exibir sua instalação, criando ambientes, por vezes, imersivos.

Figura 21 – Eder Santos, Galeria das Almas, 2009. Fonte:https://vimeo.com/channels/edersantos

Referencias:

GOUVEIA, I. S. Televisor e monitor em contexto artístico 1952 – 1981. 2011. 170f. Dissertação(Mestrado) – Universidade do Porto Faculdade de Belas Artes, Porto, 2011.

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LYOTARD, Jean François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991.

MACHADO, Arlindo. Made in Brasil. Três décadas do vídeo brasileiro. SP 2007.

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MELLO, Chirstine. Extremidades do vídeo. SP, 2008.

PECCININI, Daisy. Arte e Novos Meios, Brasil 70/80. FAAP 1985.

RUSH, Michael. Novas mídias na Arte Contemporânea, 2006.

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7 Sobre Desenhos e Ilu-

sões.

Elisângela de Freitas Mathias

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Sobre Desenhos e Ilusões.

Elisângela de Freitas Mathias

Ao longo da história da arte o modo de produzir ima-

gens se transformou rapidamente. Essas mudanças foram geradas

pelo desenvolvimento dos meios técnicos, em especial, a partir

da criação de aparatos tecnológicos, como câmera fotográfica e

computadores utilizados nesta produção. A evolução nos tipos

de instrumentalização para a produção de imagens modificou os

modos de produção e também os papéis dos agentes de produção

destas imagens. Ao artista, além do potencial estético dos mé-

todos avançados de criação de imagens, coube criar opções de

percepção e formas inovadoras de interação com essas imagens.

A realidade virtual surgiu bem antes dos computadores e faz parte

da relação dos homens com as imagens. Dos afrescos romanos

aos panoramas, das pinturas em quadros que sugerem movimento

às representações do próprio movimento na tela, a realidade vir-

tual é o resultado das estratégias em produzir a ilusão e imersão,

cada qual com os meios técnicos disponíveis. Segundo Oliver

Grau, “na realidade virtual, uma visão é associada à exploração

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sensório-motora de um espaço imagético que produz a impressão

de um ambiemte vivo”(GRAU, 2007, p.21).

Penso que o conceito de imersão pode ser amplo quando

se refere as formas de interagir com uma imagem, seja ela um

desenho ou um holograma. Para a arte virtual, tanto no presente

como no passado, a imersão é a passagem de uma estado mental

para outro. Um processo que se caracteriza pela “diminuição

da distância crítica do que é exibido e o crescente envolvimento

emocional com aquilo que está acontecendo”, ao mesmo tempo

que as “perspectivas de espaço real no espaço da ilusão” (GRAU,

2007, p.30) atraem a atenção de quem as observa. O efeito

imersivo da arte virtual, apela aos sentidos através das imagens

em diálogo com os aparatos midiáticos para que a impressão

de ‘estar’ num mundo artificial seja completa. Para Oliver Grau

(2007), as realidades virtuais imersivas são um ‘faz-de-conta’ da

imaginação estimulada. O que irá interferir no grau de imersão

da imaginação estimulada serão os meios à disposição para tal

ilusionismo.

Durante as aulas sobre imagens, arte e técnologia, cons-

truì significados para as discussões, a partir do meu repertório

pessoal baseado nas Histórias em Quadrinhos (HQs). Por ve-

zes para compreender sobre muitos conceitos desenvolvidos em

discussão com os colegas, invoquei meu acervo quadrinístico

para ilustrar certas concepções. Neste exercício de compreensão

através da comparação e equivalência, muitas questões povoaram

meu pensamento. Espaço imersivo necessariamente tem que ter a

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relação de interação corpo/espaço ou, corpo no espaço? Sempre

para se imergir é necessário a ilusão de espaço? A imersão que

uma criança ao criar um desenho pode ser considerada espacial?

O efeito de imersão do macro espaço dos panorâmicos é diferente

do micro espaço de uma página de História em Quadrinhos?

Não pretendo discorrer aqui sobre a arte virtual que

opera com ilusão e imersão assistida por computador, nem como

o uso da tecnologia modificou o potencial estético da arte. Ao

contrário, tomo a liberdade de comparar os estudos sobre ilusão e

imersão de Oliver Grau com as estratégias de ilusão da gramática

dos quadrinhos feitos no suporte papel. Me atento ao suporte

papel, pelo fato de existir pesquisas sobre a hibridização dos

quadrinhos com as novas mídias. O pesquisador Edgar Franco

(2012) nomeou esta linguagem intermídia como “HQtrônicas”,

destacando suas principais características, sendo elas: interati-

vidade, animação, trilha sonora, efeitos sonoros, tela infinita e

multilinearidade. Essas características nos remetem aos apara-

tos tecnológicos da arte virtual e suas pretensões ilusionistas de

expansão de espaço. A pretensão desta escrita é pensar sobre o

modo simplista de recorrer à ilusão que os quadrinhos em suporte

de papel apresentam. Afasto aqui, qualquer intenção de comparar

o efeito imersivo da arte virtual do efeito imersivo da leitura de

uma HQ. Apenas desejo vislumbrar a existência de um diálogo

entre elas no que se refere aos elementos que compõem o efeito

de ilusão que gera imersão. Na arte virtual, a multimídia é usada

para alimentar e maximizar a sugestão de ilusão, enquanto que

nas HQs, os códigos ideogramáticos são responsáveis por isso.

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As Histórias em Quadrinhos (HQs) são histórias em

uma sequência de imagens que tem como característica básica a

junção de texto e imagem. Nestas histórias desenhadas, percebe-

mos a utilização de recursos gráficos, ou códigos ideogramáticos,

que dão a impressão de movimento, expressividade, sons e sen-

sações no desenho dos quadrinhos. Existe uma infinidade de

códigos ideogramáticos nos desenhos das histórias em quadri-

nhos - figuras cinéticas, metáforas visuais, balões e onomatopeias

– que unidas num mesmo quadro potencializam a impressão de

ilusão de ‘realidade’ ocasionando uma imersão que varia de su-

ave a intensa. As figuras cinéticas dão a ilusão de mobilidade,

obtida através de linhas, grafismos e riscos, próximos aos perso-

nagens e objetos que pretendemos movimentar e destacar. As

metáforas visuais servem para expressar ideias e sentimentos

por meio de signos ou convenções gráficas que se relacionam

indireta ou diretamente com expressões do senso comum, como

‘ver estrelas’ ou ‘falar cobras e lagartos’. Um híbrido de ima-

gem e texto, o balão, representa uma densa fonte de informações

uma vez que sua própria estrutura indica desde a tonalidade de

voz do personagem até sua ordem de leitura. As onomatopeias

são signos convencionais que representam os sons por meio de

caracteres alfabéticos, que apresentam uma plasticidade típica

que também sugere a intensidade e a direção do som produzido.

Segundo Quella-Guyot, tais códigos “servem para representar,

por meio de uma série de indicadores reconhecíveis, o que não

é figurativo, visando reproduzir o real em sua totalidade e em

sua complexidade visual e sonora” (QUELLA-GUYOT, 1994

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p.27). Desse modo, “a constituição de uma página de quadrinhos

é feita de modo a considerar todos os elementos que influem na

leitura, buscando criar uma dinâmica interna que facilite o enten-

dimento” (RAMA e VERGUEIRO, 2012, p.37). Até mesmo o

formato dos quadros dentro de uma página e os ângulos de visão

propostos por estes, colaboram para que a leitura da imagem não

seja monótona, com o intuito de afastar a percepção de fraude na

ilusão.

Para Oliver Grau, ao longo da história da arte, a ilu-

são funcionou de dois modos. O primeiro, basicamente lúdico,

onde a ilusão é tida como um prazer puramente estético e, o

segundo, quando os efeitos sinérgicos, obtidos por meio de apa-

ratos tecnológicos, causam a inibição temporária da percepção

entre realidade e espaço imagético, sugerindo a ilusão total.

Na leitura dos quadrinhos, a possível imersão decorre

a partir desses dois modos de ilusão, logicamente em graus dife-

renciados dos propiciados pela arte virtual. Na HQ a ilusão opera

entre o prazer estético e a tentativa de inibir a percepção do real,

uma vez que a visão periférica está constantemente em funcio-

namento, o que impede por vezes uma imersão mais intensa. A

suposta imersão nos quadrinhos irá depender da imaginação esti-

mulada por meio de elementos gráficos e da coautoria de quem

as lê. Nos quadrinhos o leitor é participante ativo na criação de

sentidos. Em sua leitura o indivíduo revive o universo sonoro,

rítmico e visual dos personagens e das cenas, completando com a

imaginação as situações sugeridas. A imaginação é solicitada até

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mesmo para preencher o vazio entre um quadro e outro, pois no

quadrinho a ação pode começar na primeira vinheta e concluir-se

na segunda saltando todas as passagens intermediárias. A essa

ação dá-se o nome de “inferência” que é a capacidade gerada

pela imaginação de concluir coisas que não são vistas.

Figura 22 – Guilherme, 13 anos. Tira cômica “O homem invisívele seu cachorro”. 2013. Lápis de cor sobre papel sulfite.10x28cm. Piracicaba/SP

Na imagem acima, percebemos o recurso da inferência

utilizado por um aluno nas aulas de Arte. A sugestão de ilusão

da figura 22, não chega a uma imersão completa pois o lugar, ou

o espaço, onde ocorre as cenas é reduzido, porém os mecanismos

acionados para a narrativa visual colaboram para uma inferência

do leitor. E é essa inferência, juntamente com os outros recursos

gráficos existentes nas histórias em quadrinhos que desconfio dar

a sugestão de uma “ilusão multimídia” para a leitura, entendendo

como multimídia entre aspas, as variações gráficas de um sistema

de signos.

Considerações finais

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O conceito de ‘espaço imersivo não hermético’ de Oli-

ver Grau, cujo grau de imersão na arte virtual é menor por ter a

mídia reconhecida, esbarra na dinâmica da leitura de uma Histo-

ria em Quadrinhos. Nesta dinâmica, o leitor sabe que aquilo que

tem em mãos não é real como o ambiente no qual está situado

fisicamente (será?) mas é afetado por artifícios ilusórios e sensí-

veis que dão a impressão de pertencimento àquilo que vê. Quero,

para finalizar, propor ao leitor deste artigo um convite à deriva

reflexiva/imersiva com a inserção de um quadrinho com graus

diferentes de entendimento (figura 23) e com uma afirmação de

Oliver Grau em que:

“a realidade é apenas uma afirmaçãosobre o que podemos observar. As ob-servações dependem dos nossos limitesmentais e físicos individuais e de nos-sas observações teóricas e científicas,dependendo desses limites é que obser-vamos”. (GRAU, 2007, p. 36).

Numa experiência de leitura compartilhada de quadri-

nhos com os alunos, pude perceber o forte grau de ilusão entre

uma inferência e outra, quando uma criança dispara do meio da

sala de aula a frase: “Dá uma vontade de morar aí dentro, né?”.

Referencias:

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Figura 23 – Will Eisner. Nova York: A vida na grande cidade. SãoPaulo: Companhia das Letras, 2009.

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DERDYK, Edith. Formas de Pensar o Desenho. São Paulo, Scipione: 1989.

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GOMBRICH, Ernest. Arte e ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica. SãoPaulo: Martins Fontes, 1986.

GRAU, Oliver. Arte Virtual: da Ilusão à Imersão. São Paulo: Editora UNESP, 2017.

IAVELBERG, Rosa. O Desenho Cultivado da Criança. São Paulo: ECA-USP, 1992 (dissertaçãode mestrado).

LOWENFELD, Victor; BRITTAIN, W.L. Desenvolvimento da Capacidade Criadora. São Paulo,Mestre Jou, 1977.

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MÈREDIEU, Florence. O Desenho Infantil. São Paulo, Cultrix: 1974.

QUELLA-GUYOT, Didier. A História em Quadrinhos. Edições Loyola: São Paulo, 1994.

RAMA, Angela; VERGUEIRO, Waldomiro, (orgs.). Como usar as histórias em quadrinhos nasala de aula. 4a ed. São Paulo: Contexto, 2012.

RAMOS, Paulo. A Leitura dos quadrinhos. São Paulo: Contexto, 2010.

RODARI, Gianni. A gramática da fantasia. São Paulo: Summus, 1982.

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8 A(R)Tivismo Indigenista

no Brasil.

Luis Roberto Andrade Quesada

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A(R)Tivismo Indigenista no Brasil.

Luis Roberto Andrade Quesada

Preâmbulo sobre a situação indígena no Brasil

No Brasil de hoje persiste um enorme desconhecimento

no que diz respeito à diversidade cultural existente em territó-

rio nacional. Segundo o censo demográfico do IBGE de 2010

(Último censo publicado), “existem 274 línguas indígenas fa-

ladas por indivíduos pertencentes a 305 etnias diferentes em

território brasileiro” 1. Inclusive estima-se que existem muitos

mais povos do que se reconhece oficialmente. Porém, até muito

recentemente, os índios no Brasil viveram em uma condição de

invisibilidade quase total2. Relegados à condição de vitimas

passivas e condenados, tanto no espaço (marginalidade, invisibili-

dade, isolamento) como no tempo (coisa do passado e empecilho

para o futuro e a noção de progresso).1 IBGE. Os indígenas no censo demográfico de 2010. In htt p :

//indigenas.ibge.gov.br/images/pd f/indigenas/ f olderindigenasweb.pd f . Acessado

em 17/01/2017.2 DA CUNHA, Manuela Carneiro. Historia dos Índios no Brasil. (1992).São Paulo: Companhia

das letras. Pp. 279-282

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Existem diversas manifestações legais, internacionais

e nacionais vigentes que se preocupam por defender aos povos

originários. Dentre eles o Convênio 169 da Organização Interna-

cional do Trabalho (OIT) do qual o Brasil se tornou consignatário

em 2002 3. Esta convenção assegura aos povos indígenas o di-

reito ao trabalho com relação ao exercício da agricultura e a

pecuária tradicionais, o direito fundamental ao território e a terra,

o direito à saúde, o direito à educação que deve ser intercultural,

o direito a manter e preservar seus idiomas e valores tradicionais

se desejarem, tanto como identificar-se com a cultura própria

do país ou região em que habitam sem deixar, por este motivo,

de ser indígenas. Além desta convenção, os povos indígenas

foram recordados também na Constituição de 1988 no “Título

VIII – Da Ordem Social – Capítulo VIII – Dos Índios – Artigos

231/232” 4, onde “São reconhecidos aos Índios sua organização

social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos origi-

nários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo

à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus

bens”5. Por outra parte dentro do sistema brasileiro de educação

a lei no 11.645/2008 estabelece a obrigatoriedade da temática da

história e da cultura indígena dentro da rede de ensino fundamen-

tal e médio público e privado brasileiro 6. Mas, se tivermos em

3 SCHKOLINK, Susana. et al POPOLO, Fabiana. (2005). Los censos y los pueblos indígenas

en América Latina: una metodología regional. CEPAL. p. 44 BRASIL. Constituição Federal de 1988. (1988). Constituição da República federativa do Bra-

sil. Brasília, DF: Senado. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm.

Acessado em 14/06/20175 Ibd.6 SILVA, Edson. (2012). Povos indígenas: História, culturas e o ensino a partir da lei 11.645.

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conta que se trata de uma lei recente, vemos uma preocupação

que chegou muito tarde, além de ter uma importante falha: não

existe a obrigatoriedade da temática dentro do ensino universi-

tário brasileiro público ou privado, de tal forma que podemos

questionar de que forma são capazes, os professores do ensino

fundamental e médio, de abordar tais questões sendo que carecem

da formação prévia para o ensino da temática indígena? Como

abordar a temática indígena deslocando a visão hegemônica da

cultura dominante instituída ao longo dos anos?

Apesar de alguns sinceros esforços, o Brasil mantêm

uma dívida social com relação aos povos indígenas, tais leis

não são respeitadas e nossa história se encontra impregnada de

opressão e marginalização que segue nos dias de hoje, princi-

palmente na expropriação territorial por parte das sucessivas

oligarquias brasileiras, dominante desde à escravidão dos “ne-

gros da terra” (escravos nativos) nos tempos da colonização. As

elites do poder que governaram e governam o nosso país são

os responsáveis por toda essa violência estrutural. Cegos pela

cobiça e atendendo aos processos desenvolvimentistas de expan-

são capitalista e especulação econômica, se camuflam na velha

noção de “progresso”, atendendo maioritariamente, às necessi-

dades e interesses econômicos das empresas transnacionais que

expropriam as riquezas naturais da terra (por vezes territórios

indígenas), mediante o extrativismo, a agropecuária extensiva e

intensiva de hoje, o agronegócio baseado na monocultura (por

exemplo da soja), a construção de hidroeléctricas(por exemplo,

Revista historien. Vol. 7, pp. 39-49

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Belo Monte) a especulação imobiliária e os projetos políticos

de grandes interesses econômicos que surgem das mãos de uma

verdadeira minoria, como os parlamentares da bancada ruralista,

grandes proprietários de terra e defensores das empresas multina-

cionais do agronegócio que legislam em favor de seus interesses

próprios e cobiçam terras indígenas demarcadas ou em processos

demarcatórios por todo o Brasil.

Cibercultura indígena no Brasil

Mediante os avanços do que alguns autores chamam

Cibercultura (LEVY, 2007) ou sociedade da informação (CAS-

TELLS, 1999), criam-se processos de hibridismo cultural (CAN-

CLINI, 1990) nos quais encontramos envolvidas comunidades

indígenas que habitam o território brasileiro. O Ciberespaço

qualifica-se como um território transfronteiriço onde sujeitos

tradicionalmente invisíveis no mapa do Brasil assim como à soci-

edade hegemônica, encontram um meio de auto-representação

e identificação cultural, expondo um tipo de conhecimento an-

tropológico virtual. A crescente presença indígena na internet

(sites, redes sociais, blogs) permite repensar identidades culturais

e questionar a imagem genérica e estereotipada do “Índio” no

imaginário popular brasileiro (sujeito nú, morador da mata que

vive somente da caça e da pesca).

É certo que a mestiçagem, não somente biológica, mas

também cultural foi muito profunda ao longo dos séculos em

grande parte dos povos que habitam o Brasil, mas este fenômeno

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deve ser estudado e compreendido mediante a interculturalidade7.

Toda cultura é dinâmica, se transforma com o tempo e se conta-

giam das ideias, modos de vida e costumes mediante os “contatos”

(no melhor dos casos) que se produzem entre elas, isso não têm

porque significar uma aculturação completa, pois reestruturam-

se, recriam-se e reinterpretam-se tanto cultura subordinada como

cultura dominante dentro das histórias dos “contatos”, surgindo

assim novas realidades, por meio das manifestações culturais

hibridas.

Observamos que a visibilidade indígena melhorou nos

últimos anos, foram demarcados territórios com base legal na

constituição, de tal forma que 13 por cento do território do país

são terras indígenas, e 25 por cento da Amazônia brasileira8. Isto

é algo valioso, pois onde habitam povos indígenas a natureza está

melhor preservada, não há grandes níveis de contaminação ao

meio ambiente e existe um profundo respeito ao equilíbrio do

ecossistema do plantea. Entretanto, as invasões à suas terras não

cessam, neste atual (des)governo de Michel Temer vemos um

claro exemplo dessa opressão e extorsão territorial, que perpassa

não somente os direitos indígenas mas afeta de maneira cruel e

desenfreada à natureza e o meio ambiente por vías da exploração

direta das riquezas do sólo. O governo Temer pretende abrir uma

7 Entendemos interculturalidade de acordo com a definição de Canclini (CANCLINI, 1990), ou

seja, nos referimos a aqueles processos fecundos de hibridismo que originam novas realidades

culturais, neste caso, novos costumes apropriados pelos povos indígenas, e não uma perda de

identidade ou “aculturação completa”.8 FLIP 2014. “Tristes trópicos” com Beto Ricardo e Eduardo Viveiros de Castro. Confe-

rência flip 2014:Paraty. In https://www.youtube.com/watch?v=ndtlzFzbSBw. Acessado em

21/06/2017

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nova era de caça ao ouro entre outras atividades delitivas para

com o ecossistema, mediante parcerias do Estado brasileiro com

grandes corporações mineradoras de capital transnacional que já

operam e pretendem agora expandir suas atividades “delitivas”

na Amazônia brasileira. Em sua ultima “pedalada” contra a

Amazônia o atual presidente pretende dar legitimidade à um

Decreto lei que permita a exploração mineral de uma região

do tamanho do Estado do Espirito Santo que abriga diversas

comunidades indígenas e que até então estava restrita à pesquisas

ambientalistas e à paz dos povos originários que lá habitam.9

Por outro lado, hoje podemos afirmar que alguns desa-

fios relacionados, por exemplo, com a visibilidade das demandas

dos povos indígenas começam a ser superados com a imersão dos

índios na Cibercultura, pois o uso da tecnologia e do ciberespaço

por parte da população indígena tanto como de seus aliados não

indígenas, estão abrindo grandes vias para um conhecimento

mais amplo da alteridade indígena do país e cartografando assim

novos mapas, tanto culturais como territoriais.

Dentro destes processos vemos como a “Era da cone-

xão” (LEMOS, 2005) é capaz de gerar novos questionamentos

sobre as políticas de representação que predominam na educação

e no imaginário coletivo da sociedade contemporânea brasileira

ao redor da questão indígena. As conectividades atuais vêm

9 MENDONÇA, Heloísa (2017).Temer reage a críticas com novo decreto que

mantèm mineração em Zona da Amazônia EDICIONES EL PAÍS, S. L. In

https://brasil.elpais.com/brasil/2017/08/29/politica/1503961054_236858.html . Acessado em

16/09/2017.

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contribuindo para o aumento do reconhecimento, a visibilidade

e o estudo da Alteridade e a diversidade cultural indígena do

país. Sem dúvida alguma isto é o reflexo do hibridismo cultural

em grande parte tecnológico que provêm do que alguns autores

chamam Cibercultura ou sociedade da informação (CASTELLS,

1999) pois se tivermos em conta que nas atuais condições da

chamada globalização cultural (não nos referimos aqui à glo-

balização econômica entendida como a exportação do modelo

econômico neoliberal) existem vários movimentos indígenas que

se afirmam politicamente contrários à devastação ambiental de

seus territórios gerando discursos ecológicos utilizando meios

de comunicação como o rádio, a televisão e principalmente a

internet, que é utilizada como uma ferramenta importante para a

visibilidade do pensamento ameríndio na atualidade e diversos

movimentos e lideranças indígenas estão procurando reverter a

situação em que vivem: Condições de pobreza, analfabetismo,

marginalização, isolamento etc.

Podemos apreciar que estão reivindicando seus valores,

saberes e modos de vida, apostando pelo uso das tecnologias

emergentes de informação e comunicação, de tal forma que pode-

mos encontrar uma enorme quantidade de sites criados para exigir

melhorias, respeito e reconhecimento aos seus direitos, assim

como para aprender seus valores culturais e formas simbólicas

de compreender o mundo, além de entender a internet também

como uma ferramenta de defesa e de denúncia social ao redor

dos conflitos demarcatórios e aos abusos do poder governamental

para com os povos indígenas. Neste sentido a publicação do

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relevante estudo sobre a temática da comunicação indígena brasi-

leira na internet realizado por Eliete Pereira da Silva, Ciborgues

[email protected]: A presença nativa no ciberespaço (PEREIRA DA

SILVA, 2012) a autora nos apresenta “o mapeamento de 50 sites

de organizações e de sujeitos auto identificados “indígenas” e

as interpretações nativas sobre esse ambiente informacional.”10.

O estudo conta com o mapeamento de sites de organizações

nacionais, regionais, locais, de etnias, pessoais (de importan-

tes lideranças indígenas do país) e nos revela as interpretações

indígenas sobre os canais info-comunicacionais midiáticos e a

internet. Na maioria dos casos vemos que a internet não implica

uma perda de identidade, muito pelo contrário, se mostra como

uma forte aliada na defesa de seus propósitos.

Outro grande exemplo que comprova a efetividade

desta Cibercultura indígena no Brasil é o caso do líder Almir

Narayamoga Suruí, pertencente à tribo amazônica Paiter-Suruí.

O cacique Almir, descobriu Google Earth em 2007 durante uma

visita a um cybercafé e posteriormente desenvolveu um projeto

ativista com Google para realizar a delimitação do seu território

no mapa atual do Brasil. Desde então, acolheu a tecnologia de

criação de mapas como uma forma de proteger a floresta tropical

e preservar a forma de vida de seu povo em harmonia com a natu-

reza, além de usar a tecnologia de vídeo-gravação dos telefones

celulares para denunciar invasões em suas terras por parte dos

10 PEREIRA DA SILVA, Eliete (2012). Ciborgues [email protected]: A presença nativa no ciberes-

paço. Ed. Ana Blume: São Paulo.

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que se dedicam à tala ilegal11. Internacionalmente reconhecido

por sua criatividade no uso da tecnologia em benefício de seu

povo, o cacique Suruí atualmente se dedica à gestão de projetos

com foco no desenvolvimento sustentável da aldeia, a área de-

marcada dos Paiter Suruí se encontra no Estado de Rondônia e

outras informações sobre projetos tecnológicos atuais podem ser

consultadas no site dos Paiter-Surui12.

A(r)tivismo indigenista

O uso de câmeras de vídeo, telefone celular, internet

e outros meios são utilizados pelos povos indígenas para de-

nunciar as desigualdades e prejuízos às autoridades nacionais e

internacionais, assim como para criar material audiovisual onde

expliquem suas distintas culturas e conhecimento. Apesar das

dificuldades de conexão, enfrentam essas barreiras e utilizam es-

ses meios para ser vistos e escutados pela sociedade hegemônica

e suas instituições, muitas vezes em parceria com aqueles que

compartem preocupações socioambientais similares.

Um projeto, que considero pioneiro nesta imersão tec-

nológica dos povos indígenas é o Vídeo nas Aldeias13, criado

11 USTINOVA, Anastasia. Google breaks Amazon tribe‘s isolation. San Francisco Chroni-

cle. 2008 In http://www.sfgate.com/business/article/Google-breaks-Amazon-tribe-s-isolation-

3278226.php#ixzz1qWmqWLrV. Acessado em 6/7/201712 Paiter-Sururi (2016). Carta de principios e aspirações do parlamento Paiter-surui. em

http://www.paiter.org/parlamento_surui/ Acessado em 6/07/2017.13 VNA (2016). Projeto Vídeo nas Aldeias. Em

http://www.videonasaldeias.org.br/2009/index.php Acessado em 8/4/2016

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em 1986 por Vincent Carelli, este trabalho é um exemplo que

corresponde com o ideal de “apoiar as lutas dos povos indígenas

para fortalecer suas identidades e seus patrimônios territoriais

e culturais”14 através de oficinas de produção cinematográfica

para os povos indígenas e contando ativamente com indivíduos

indígenas. Atualmente o projeto conta com uma vasta produção

de vídeos e documentários feitos por realizadores cineastas in-

dígenas de todo o Brasil. Uma parte importante desse material

foi exposto na 32a Bienal de Arte de SP Incerteza Viva (07 de

setembro à 11 de dezembro de 2016) na obra titulada “O Brasil

dos índios: Um arquivo aberto” onde assistimos um recorte de

85 fragmentos de 27 povos indígenas diferentes, com imagens

filmadas entre os anos 1911 e 201615. Grande parte dos vídeos

foram gravados por sujeitos indígenas, que após receberem ins-

trução em oficinas de vídeo por parte do projeto, encontraram no

audiovisual uma ferramenta de denúncia social e um aliado para

a conservação e preservação de seus saberes. É neste sentido que

podemos afirmar que a existência do ativismo indígena em redes,

deu passo ao que quero chamar aquí de A(r)tivismo (junção de

Arte + Ativismo) indigenista brasileiro. Podemos afirmar que

hoje em dia a arte contemporânea esta sendo utilizada como uma

valiosa ferramenta educacional, em função do aumento da visi-

bilidade indígena e seu (re)conhecimento político no Brasil do

século XXI.

14 Ibid.15 Publicação comissionada pela Fundação Bienal de São Paulo em ocasião da 32a Bienal de

São Paulo – Incerteza Viva.

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A tradição de uso de estéticas estrangeiras e a exibi-

ção de culturas Outras (muitas vezes culturas indígenas), assim

como sua “arte” em grandes exposições de matizes ocidentais

e hegemônicas, não é algo novo. A novidade está, de fato, na

intencionalidade com que tratam essa questão os artistas con-

temporâneos. Hoje devemos analisar o compromisso ético que

acompanha um trabalho de criação artística que se envolve politi-

camente com minorias étnicas desfavorecidas diante dos grandes

interesses dos Estados ou nações em que se encontram. Muitos ar-

tistas estão trabalhando de forma colaborativa com comunidades

e grupos étnicos minoritários afim de pesquisar e compreender

suas demandas e levá-las ao público na forma de material artís-

tico.

Apesar da contradição ao deparar-se com os inúmeros

agentes capitalistas “patrocinadores da cultura” ao adentrar o

Pavilhão, não podemos dizer que a Bienal das Incertezas e uma

importante quantidade de obras expostas nela, foram criadas com

as mesmas intenções daquela época em que o “primitivo” era

a grande novidade dentro dos movimentos artísticos que qua-

lificaram as vanguardas heroicas de raiz europeia. Muito pelo

contrário, reconheço sinceros desejos de manifestar a importân-

cia das mensagens atuais dos povos originários que habitam o

Brasil e outros países Latino-americanos. Tampouco se trata aqui,

daquela velha insistência de “dar voz” aos índios, mas sim, de

finalmente, dar “ouvidos” e enxergarmos, de fato, às mensagens

dos povos nativos que preservam saberes tradicionais e formas

de viver, que do mesmo modo que as nossas vidas urbanas exi-

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gem o diálogo, a comunhão, o respeito e algum tipo de relação

harmônica direta ou indireta com a nossa mãe natureza.

Neste sentido, destaco duas obras que geraram impor-

tantes debates e ricas polêmicas nesta 32a Bienal de Arte de

Sp Incertezas Vivas, que me permitiram chegar ao título que da

nome à este artigo e crer na existência de um tipo de arte ativista,

socioambiental e indigenista no Brasil.

Em primeiro lugar a obra já descrita acima “O Brasil

dos índios: um arquivo aberto”, nela vemos a ferida aberta

que não deixará de sangrar tão cedo, bem como o próprio título

indica o arquivo está aberto e sua ampliação audiovisual torna-

se indiscutível nos tempos que correm, já que as discussões

políticas e artísticas sobre o tema estão muito vivas, sem espaço

para incertezas como reza o título da 32a Bienal.

A segunda obra que, na minha visão como mero es-

pectador que adentrou o acolhedor pavilhão- mágico, capaz por

sí só de legitimar como Arte (com maiúscula) tudo que alí se

encontra por encantamento espacial é a destacada, comentada e

criticada obra do artista Bené Fonteles titulada “Ágora: OcaTa-

peraTerreiro”. Como o seu próprio título induz, o autor realiza

uma tentativa de fundir o espaço aberto de discussão e reunião

que representava a ágora das polis gregas, levando o público à

debate sobre questões políticas de ativismo ecológico, questões

indigenistas e socioambientais que inundam de polêmica o Brasil

pós-Mariana16. Para isso, Bené Fonteles criou uma programação

16 No dia 5 de novembro de 2015 ocorreu em Mariana (MG) uma das piores catástrofes ambien-

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contínua de ativação e extensão da obra onde contou com diver-

sas apresentações e encontros de seus convidados com o público.

Alguns convidados e colaboradores foram o líder indígena Aílton

Krenak, o xamã yanomami Davi Kopenawa, a fotógrafa Claudia

Andújar, os artistas Lourival Cuquinha e Ernesto Neto, o músico

Chico César e o compositor Carlos Rennó, entre outros.

As propostas de reunião e debate, aconteceram durante

todo o período de duração da Bienal nas chamadas ativações da

obra, onde o autor introduziu o público nas chamadas Conversas

para adiar o fim do mundo. Se a obra não é oca porque não foi

moradia de nenhum individuo indígena, não é terreiro porque

ali não ocorreu nenhuma gira ou ritual do tipo mágico-religioso

e não é tapera porque não se tratava de uma casa de pau a pi-

que em ruínas, penso que a obra funcionou como Ágora, pois

acredito que o autor realmente conseguiu ultrapassar a linha da

representação artística e levar adiante grandes encontros e trocas

de saberes nas reuniões e nos debates posteriores. Os encontros

propostos funcionaram como espaço de discussão sobre as po-

líticas opressoras do Estado brasileiro e as grandes corporações

extrativistas com relação aos povos indígenas, que hoje em dia

atuam muitas vezes como guardiões das florestas e do equilíbrio

ecológico e termodinâmico do planeta Terra. Uma grande adver-

tência se encontra na visão do xamã Yanomami Davi Kopenawa,

quem nos recorda que a "Queda do Céu"está por vir, se aproxima

tais da história do Brasil, após o rompimento de uma barragem da mineradora Samarco que é

controlada pela Vale e pela BHP Billiton. O acidente arrastou aproximadamente 62 milhões de

metros cúbico de rejeitos de mineração ao longo do Rio Doce. A tragédia causou várias mortes

e deixou várias pessoas desabrigadas, além de impactos ambientais irreversíveis.

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tragicamente graças à noção de progresso e desenvolvimento

econômico defendida pelos que ele define (“Nós”) como o "povo

da mercadoria".

Referências:

CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas híbridas: estrategias para entrar y salir de lamodernidad. Grijalbo: México, 2005.

CASTELLS, Manuel. A Era da Informação: economia, sociedade e cultura, vol. 3,São Paulo: Paz e terra, 1999, p. 411-439

DA CUNHA, Manuela Carneiro. Historia dos Índios no Brasil..São Paulo: Compa-nhia das letras, 1992. p. 279-282

LEMOS, André. Cibercultura e mobilidade: A era da conexão. Intercom: Rio dejaneiro, 2005.

LÉVY, Pierre. Cibercultura: la cultura de la sociedad digital. Barcelona: Antrophos,2007. p.230.

PEREIRA DA SILVA, Eliete. Ciborgues [email protected]: A presença nativa no cibe-respaço. Ed. Ana Blume: São Paulo. 2012

SCHKOLINK, Susana; POPOLO, Fabiana. Los censos y los pueblos indígenas en

América Latina: una metodología regional. CEPAL, 2005 p. 4

Artigo de revista:

SILVA, Edson. (2012). Povos indígenas: História, culturas e o ensino a partir da lei 11.645.Revista historien. Vol. 7, 2012. p. 39-49

Homepage:

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106

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Constituição da República federativa do Brasil. Brasília,DF: Senado. Disponivel em:< htt p : //www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm >. Acesso em 14 deJun. 2017.

USTINOVA, Anastasia. Google breaks Amazon tribe‘s isolation. San Francisco Chronicle. 2008.Disponivel em < htt p : //www.s f gate.com/business/article/Google−breaks−Amazon− tribe−s− isolation−3278226.php#ixzz1qWmqWLrV >. Acesso em 6 jul 2017

FLIP 2014. “Tristes trópicos” com Beto Ricardo e Eduardo Viveiros de Castro. Conferência flip2014:Paraty. Disponivel em< https://www.youtube.com/watch?v=ndtlzFzbSBw > Acesso em 21 deJun. 2017. MENDONÇA, Heloísa (2017). Temer reage a críticas com novo decreto que mantèmmineração em Zona da Amazônia. EDICIONES EL PAÍS, S. L. Disponível em<https://brasil.elpais.com/brasil/2017/08/29/politica/1503961054_236858.html>. Acessado em 19de Out de 2017.

PAITER-SURUI. Carta de principios e aspirações do parlamento Paiter-surui. Disponível em< htt p : //www.paiter.org/parlamentosurui/ >. Acesso em 6 de Jul 2017.VNA. Projeto Vídeo nas Aldeias. Disponivel em< htt p : //www.videonasaldeias.org.br/2009/index.php >. Acesso em 8

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9 Uma Carroça Sonora e

uma Bicicleta Sonora,

a Deriva como Disposi-

tivo para Poéticas na Ci-

dade.

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Uma Carroça Sonora e uma Bicicleta Sonora, a Derivacomo Dispositivo para Poéticas na Cidade.

Mirian Steinberg

O espaço da cidade é formado por um complexo fluxo

de informações, pessoas, imagens, sonoridades, onde se apre-

sentam vários elementos que formam as estruturas e imagens

urbanas. Elementos estruturais da cidade como as ruas e as calça-

das, os tapumes, os cruzamentos com carros, pessoas, carroceiros

com suas carroças, ciclistas, semáforos, faixas de pedestres, ci-

clovias. A cidade como um lugar, ou lugares onde pessoas e

coisas interagem e convivem mutuamente e simultaneamente,

como fluxos de circulação de formas e sonoridades na paisagem.

Há uma dinâmica numa diversidade de fluxos de pes-

soas se apropriando dos espaços e ao me colocar com o olhar

atento a região central de São Paulo e observar ás pessoas de dife-

rentes classes sociais e idades, os moradores de rua, passeadores

de cachorros e carrinhos de bebês, nota-se na multiplicidade de

pessoas com diferentes ritmos e velocidades dos passos, uma

infinidade de ruídos entre pássaros tímidos, motores de carros,

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buzinas, sirenes, vozes de ambulantes, fragmentos de narrativas,

ao mobiliário urbano como os bancos da praça ora vazios ora

cheios, a movimentação de caminhantes em trajetórias diversas e

simultâneas.

Nesse contexto, o caminhar nas ruas de São Paulo

pode parecer um filme a céu aberto, sendo transmitida numa

sala expandida, a cidade, cujo expectador é o público observador

atento a essa dinâmica. Situa-se no urbano um lugar de percepção

e de acontecimentos, um espaço como um sistema de coisas e

relações, não como as definições clássicas de espaço, mas sim

como um conjunto indissociável de que participam de um lado

certo arranjo de objetos geográficos, objetos naturais e objetos

sociais, e de outro lado à vida que os preenche e os anima, seja

a sociedade em movimento. (SANTOS, 1998, p.10).

Nas derivações pelas ruas, além das percepções visuais,

a escuta das diferentes narrativas particulares, subjetividades e

conteúdos em movimento na cidade também são estímulos de

construção de poéticas. Conforme Santos:

O conteúdo (da sociedade) não é inde-pendente, da forma (os objetos geográ-ficos), e cada forma encerra uma fra-ção do conteúdo. O espaço, por conse-guinte, é isso: um conjunto de formascontendo cada qual fração da sociedadeem movimento. As formas, pois temum papel na realização social. (SAN-TOS, 1998, p 10).

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A deriva é uma prática de um caminhar sem rumo,

passando por diversos ambientes e sendo afetado na cidade e

afetando ela mesma. Foi nas derivas pelas ruas de alguns bairros

de São Paulo que se inicia esta pesquisa e encontro personagens

com suas narrativas e formas originais de se colocar no espaço

urbano. Tal prática da deriva leva a deambulação na cidade. A

deambulação é um chegar caminhando a um estado de hipnose, a

uma desorientação ou perda de controle, é um médium através do

qual se entra em contato com a parte inconsciente do território.

(CARERI, 2013). Hélio Oiticica diria Delirium Ambulatório,

ao se referir à arte na vida. A ideia de que arte e a vida se

embaralham já estava na Land Art em Robert Smith na década

de 1960 e 1970 criava-se um imaginário à volta da natureza. Os

mapas afetivos tem uma lógica própria e a derivação é retratada

no espaço gráfico, seguindo uma lógica pessoal despertada pela

atmosfera na inter-relação da cidade e o corpo em movimento.

O disparador dessa pesquisa se deu durante as deri-

vas, na modalidade de registros em vídeo em andamento, na

observação de alguns modos de vida e de deslocamentos nas

ruas da cidade. Dois principais personagens foram encontrados

na cidade com seus objetos sonoros e estes ao circularem ex-

pressam seus desejos, numa produção de suas particularidades e

singularidades.

A escolha do objeto a ser pesquisado se deu durante as

derivas: um carroceiro e morador de rua com sua carroça sonora

no centro da cidade (figura 24) e um ciclista com sua bicicleta

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de 25 mil leds e caixas de som no bairro do Butantã (figura 25)

morador de uma das maiores favelas da região do Morumbi, a

Paraisópolis.

Figura 24 – Carroça Sonora de Lucena - Região Central de SãoPaulo – 2017. Fotografia do autor do artigo.

A deriva me levou, por acaso, ao encontro dos per-

sonagens protagonistas Lucena e Berbela. Ambos com seus

respectivos objetos sonoros 1 criando eventos sonoros 2 nas ruas.

Lucena carroceiro e morador de rua desde seus cinco anos de1 Objeto Sonoro – Pierre Schaeffer inventor desse termo (lóbject sonore) o descreve como um

“objeto acústico para a percepção humana e não um objeto matemático ou eletroacústico para

síntese”. Definido pelo ouvido humano como a menor partícula independente de uma paisagem

sonora e é analisável pelas características de seu envoltório. Embora possa ser referencial como

um sino, um tambor, é considerado como uma formação fenomenológica. Comparado com

Evento Sonoro. (Schafer, 1977, p.366).2 Evento Sonoro – alguma coisa que ocorre em certo lugar durante um intervalo de tempo. O

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idade, atualmente com 32 anos, morador do centro de São Paulo

carrega uma carroça sonora com 10 caixas de som e com pendrive

de músicas de sua preferência dentro do seu repertorio variado

de músicas internacionais da década de 90.

Figura 25 – Bicicleta do Berbela, Paraisópolis – 2017 Autor doartigo - fotografia de celular.

Berbela de 53 anos de idade, artista, artesão e mecâ-

nico de moto na Favela Paraisópolis – no bairro do Morumbi, sua

casa é um ponto turístico na Paraisópolis. Há 15 anos equipou

evento sonoro, como OBJETO SONORO é definido pelo ouvido humano como a menor partí-

cula independente da PAISAGEM SONORA. Difere do objeto sonoro na medida em que é um

objeto acústico para estudo simbólico, semântico e estrutural para estudos de maior magnitude

de que ele próprio. (Schafer ,1977, p.366).

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uma bicicleta com 25 mil leds, dvd, televisão, sirene, um rádio

com bateria de carro que abastece o sistema de luzes e som do

alto-falante. Toca em seu rádio músicas variadas de seu reperto-

rio musical internacional da década de 80, John Lennon, Elton

John, e também gosta muito de Raul Seixas. Sai semanalmente

pedalando ao anoitecer sua bicicleta sonora e sempre concentra

muitas pessoas em volta dele e da bicicleta.

Ambos os personagens urbanos se colocam de uma

forma singular na cidade. Além de eles estarem engajados em

seus trabalhos, o corpo é como uma máquina de carregar o peso

dessa estrutura sonora e visual, já percorrem as ruas da cidade

com um objeto sonoro, sendo este um veículo móvel, onde o

corpo é o motor que transporta resíduos sólidos, objetos, mobi-

liário, bateria, caixas de som, músicas, luzes, além de estarem

engajados na dinâmica da cidade. Lucena exibe esporadicamente

jogos de futebol nas praças do centro da cidade com uma TV den-

tro da carroça. Em ambos, o corpo escolhe o trajeto conforme os

limites do peso possíveis do corpo em transportar os seus objetos

sonoros e visuais e os limites impostos pela própria geografia e

os relevos das ruas. Tanto em Lucena, o carroceiro e em Berbela,

o ciclista, o corpo está inteiramente implicado na caminhada

e assim ambos criam um rastro de musicalidades previamente

selecionadas, conforme suas preferências e repertorio, reiterando

a subjetividade, singularidade e identidade musical através do

objeto móvel, sonoro e musical.

Uma ação do corpo em experimentar o espaço da ci-

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dade, numa atitude de esforço e atividade de interação com a

cidade. Um gesto para além do transitar com um objetivo de

chegar a algum destino. O local de chegada e de saída não é a

prioridade, e sim o tempo de deslocamento e de relações, como

caracteriza um espaço nômade e também o nomadismo.

Nômade é aquele que não tem uma habitação fixa. Es-

tabelece uma estreita relação com o espaço, um espaço do ir e

do deslocamento. Vive em contraposição entre o espaço fixo e a

sedentariedade dos agricultores e a dinâmica do nomadismo dos

pastores. Nessa relação é criado um espaço neutro, vazio, entre o

nômade e o sedentário, no deserto vazio e a cidade. Deleuze e

Guatarri (2009) descrevem essas diferenças entre sedentarismo e

nomadismo como o espaço estriado é determinado pela ordem

e pelos limites, muros, calçadas, percursos definidos e o espaço

liso marcado por traços indefinidos e novos percursos.

Personagens como Lucena e Berbela, ambos em situa-

ções de vulnerabilidade social, em situações precárias de sobre-

vivência e ativam a cidade com seus objetos musicais, criando

percursos como um evento sonoro / musical e visual. Estabe-

lecem uma relação de apropriação do espaço não determinado

pelas regras de utilização do espaço urbano, como nômades tra-

çando percursos construídos numa interação entre a cidade e

as singularidades de seus corpos, das musicalidades emitidas

em seus veículos e no rastro de luzes na bicicleta de Berbela.

Colocam o próprio corpo como um todo, em derivas e imerso

na multiplicidade de estímulos, em estado de deslocamento no

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ambiente das ruas, sendo esse um dos contextos de significação

do trabalho. Formam acontecimentos potentes de ampliação da

escuta e da observação das fluências e opacidades urbanas.

Os Situacionistas3, poderiam dizer em fazer uma revo-

lução a partir dos acontecimentos da cidade, e desenvolvem a

ideia de um pensamento urbano situacionista. Nesse pensamento

Francis Alys se inspira e passa anos percorrendo várias cidades

do México (onde vive atualmente), Cuba, Londres, Jerusalém.

Realiza a série Construir Caminhando e a obra The Green Line

(figura 26) em Jerusalém em 2004. Ele diz que a cidade se con-

verte em um laboratório de experimentações e num labirinto que

obriga a se perder.

Os Situacionistas propõe a deriva como um procedi-

mento de passagem através dos variados ambientes que cons-

troem conhecimentos de natureza psicogeográfica4, um compor-

tamento que se opõe as noções clássicas de viagem e de passeio e

visa o rompimento do olhar automatizado e ampliação da escuta

da paisagem sonora.

A deriva nas ruas é uma potência de processos criativos

e composições estéticas, um campo para criar mapas, cartografar

3 Situacionista - A Internacional Situacionista - fundada em 1957 por Guy Debord (1997)

caracteriza-se como um tipo de comportamento da sociedade urbana. Composta por artistas,

pensadores, e ativistas propunha a pratica coletiva da criação artística e apropriação dos espa-

ços urbanos através da construção de situações. (MAZZILLI, , 2015,p. 99).4 Psicogeografia estudava o ambiente urbano, sobretudo os espaços públicos, através das derivas

e tenta mapear os diversos comportamentos afetivos diante dessa ação básica do caminhar na

cidade (MAZZILLI, 2015 p. 99).

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Figura 26 – The Green Line de Francis Alys. Jerusalém /2004.

situações e formas de resistência e relações com a sociedade.

Oiticica ao trazer o conceito de anti-arte com os Parangolés

critica o conceito de museu, galeria de arte e a própria ideia de

exposição e afirma ser a anti-arte por excelência, e se estende ao

conceito de “apropriação” ás coisas do mundo, sobre as coisas

do mundo a cidade como um labirinto, o museu é o mundo!

(OITICICA, 2010, p.21)

Uma primeira questão a ser colocada é sobre as caracte-

rísticas estéticas da carroça e da bicicleta sonora como elementos

urbanos geradores de um campo de forças, uma singularidade

de produção e alteração da paisagem visual e sonora das ruas,

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criando uma atmosfera poética no ambiente, uma relação de con-

vívio entre as pessoas que param para escutar e ver a carroça

e a bicicleta. Nesse sentido, uma obra pode funcionar como

dispositivo relacional com certo grau de aleatoriedade, máquina

de provocar e gerar encontros casuais, individuais ou coletivos.

(BOURRIAUD, 2009).

A artista Sophie Calle também se insere nas caminha-

das estéticas e segue um determinado passante nas ruas de Paris e

depois formaliza através de uma experiência biográfica que a leva

a colaborar com as pessoas com quem se deparou. As relações

de convívio como forma de arte é uma constante histórica desde

os anos de 1960.

Ligia Clark propõe na sua obra interativa Caminhando

(1964) um corte com tesoura na fita de Moebius trazendo a refe-

rência a um espaço topológico, a partir da experiência do corpo

em realizar uma caminhada, com escolhas, curvas, percursos

longos, infinitos e constantes, a vida como uma caminhada, o

emaranhado entre arte e vida.

A modalidade das experiências estéticas nas derivas

se insere na relação de um embaralhamento entre a arte e a

vida já bastante frequente na arte. Na literatura de Alan Põe

com o celebre conto o homem das multidões e no flanar de

Baudelaire. Os objetos sonoros na cidade suscitam uma reflexão,

uma proposição, o gesto do artista e não a produção de um objeto

artístico, como nos ready-made em Duchamp.

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Uma obra é uma máquina de significar (. . . ) osready-made são objetos de adoração, nem de uso,mas de invenção e de criação. Duchamp pretendereconciliar arte e vida, obra e espectador (. . . ) artefundida a vida é arte socializada, não arte socialnem socialista e ainda menos atividade dedicadaá produção de belos objetos ou simplesmente de-corativos (. . . ) a arte que obriga o espectador eo leitor a converter-se em um artista e em poeta.(PAZ, 2012 p.61)

Os elementos sonoros encontrados nas ruas suscitam

algumas reflexões. Serão a carroça sonora de Lucena e a bicicleta

sonora de Berbela objetos relacionais? Eles criam situações e

relações, favorecem um intercambio humano e urbano, uma

atmosfera de acontecimentos na cidade, inseridos no espaço

relacional como define Bourriaud sobre arte relacional, como

uma espécie de ready-made urbano ao criar uma admiração no

espectador-passante-publico na rua que o fazem muitas vezes

reinventar os percursos e segui-los. Como também a artista Sofie

Calle ao seguir um passante na rua e converter essa caminhada

criando vídeos, fotografias, poesia na rua.

Serão esculturas sonoras na cidade conforme propõe

Rosalind Krauss apontando a arte relacional na criação de espa-

ços de poéticas? A proposição de que toda obra de arte pode

ser definida como objeto relacional, como o lugar geométrico de

uma negociação com inúmeros correspondentes e destinatário

e está implicada nessa atmosfera criada pela carroça e pela bici-

cleta sonora encontrada na deriva pela cidade. (BOURRIAUD,

2009).

Nesse contexto Bourriaud, referindo-se à Rosalind

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Krauss sobre escultura expandida no campo ampliado, levanta

uma questão sobre os acontecimentos nas ruas da cidade, e que

aqui não se trata mais de ampliar os limites da arte, mas sim

capturar ready-made, esculturas sonoras, relações criativas nas

derivas pelas ruas e viver na cidade um campo expandido de

acontecimentos e potências criativas.

Testar a capacidade de resistência dentro do camposocial global, a função crítica e subversiva da artecontemporânea agora se cumpre na invenção delinhas de fuga individuais e coletivas, nessas cons-truções provisórias e nômades com que o artistamodela e difunde situações perturbadoras. (BOUR-RIAUD, 2009 p.44).

OPACIDADES, um jogo deesconde-esconde na cidade

A ideia do caminhar ser como um jogo em busca de

situações lúdicas já existentes pela cidade, uma busca da cidade

nômade escondida dentro da cidade sedentária ou, como explica

Deleuze e Guatarri, um jogo de esconde-esconde em que os

jogadores caminhantes buscariam o próprio princípio do jogo

que coexiste num espaço indeterminado da cidade, seria o mote

desta pesquisa. Milton Santos chamou esse espaço de espaços

opacos. Considerados espaços abertos do aproximativo e da cria-

tividade, em oposição aos espaços luminosos considerados como

espaços fechados de exatidão, racionalizados e racionalizadores.

A distinção de espaços luminosos e espaços opacos de Santos,

Deleuze e Guatarri chamaram de espaços estriados e espaços

lisos. (CARERI, 2015, p.13).

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Os personagens dos objetos sonoros, Lucena e Berbela

seriam criadores dos espaços menos estriados e racionalizadores,

e também de opacidades capazes de construírem espaços abertos,

opacos e lisos, numa função poética de ampliação da observação,

de relação e de criação de novos campos com publico, de realizar

aproximações de pessoas, produzir encontros e acontecimentos

estéticos como um jogo lúdico na cidade.

Nesse sentido a deriva pretende encontrar com o so-

noro/musical desses veículos moveis e escutá-los, como num

jogo de esconde-esconde onde a regra é capturar poéticas, rastros

musicais ao meio do caos da paisagem sonora urbana, registrar

formas inusitadas no caos da metrópole, ressaltar e reconhecer

os gestos e narrativas humanas dos transeuntes. Uma deriva que

ressalta e cria opacidades dentro da cidade luminosa e estriada

com suas inúmeras regras, poderes e exclusões sociais.

A carroça de Lucena e a bicicleta de Berbela, itine-

rantes, num certo nomadismo, forma como um jogo de esconde-

esconde deslizando pelos espaços lisos e opacos da cidade, tornando-

a menos estratificada.

O espaço nômade é um espaço vazio, desabitado, é o

próprio percurso que define o espaço formado durante o trajeto,

como um rastro móvel. Não há a relevância dos pontos de partida,

nem os de chegada, o deslocamento é o lugar. “Assim como o

percurso sedentário oferece uma estrutura e dá a vida á cidade,

o nomadismo considera o percurso como o lugar simbólico em

que se desenrola a vida da comunidade.” (CARERI, 2015, p.42).

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Os elementos sonoros encontrados nas derivas criam

espaços nômades na cidade e permitem coexistirem com os au-

tomatismos velozes da metrópole, compondo o que Massimo

Canevacci em 2004 apresenta como cidade polifônica. Ele re-

aliza um ensaio sobre suas observações pessoais da cidade de

São Paulo possibilitando novas formas de interpretação das soci-

edades complexas. Não pretendo me estender nesse estudo, mas

focar no que ele denomina a cidade como “cidade patchwork” e

apresenta uma metodologia de “dar voz a muitas vozes” expe-

rimentando um enfoque polifônico á cidade multifocal. E, para

capturar a realidade local utiliza-se da deriva, que ele caracteriza

como “um abandono ao fluir das emoções” e defende o apuro

no olhar e na escuta (grifo próprio) para interpretação dos signos.

(MAZZILLI, 2015, p.98).

Estética do precário

Outra questão importante nessa pesquisa é a reflexão

sobre o paradoxo da precariedade. Por um lado Berbela e Lucena

vivem em situações de rua ou morando na favela com alta vulne-

rabilidade social, são anônimos, comuns, inseridos na sociedade,

em suas particularidades e simplicidade, com seus objetos sono-

ros, criam eventos sonoros, alterando a paisagem sonora e visual

na cidade. Ambos não têm uma formação nas artes, tampouco

uma iniciação na educação que prescreve, codifica a arte e a

cultura como relevantes.

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Nesse contexto, cabe destacar o interesse de Dubuffet,

um artista em Paris que realiza viagens e pretende nelas encontrar

o que ele chama do homem comum, coisas do povo, as origina-

lidades no precário, artista do lado de fora, outsiders. Ele faz

uma “deriva” como “curador” e busca em suas viagens encontrar

pessoas com forte expressividade, mas sem uma formação esté-

tica convencional, uma busca de pessoas comuns, artistas fora

do circuito das artes. Visita hospitais psiquiátricos, periferias,

cria coleções e organiza todo esse material. Nega o domínio do

percurso da técnica, do artista que cumpre com as etapas formais

para ser reconhecido, e ser encaixado no circuito das modalida-

des artísticas. Tenta nesses artistas e suas obras, desconstruir

com o mito de ser artista, com isto faz uma critica a ideia de arte

genial com qualidade técnica, do artista como um sacerdote. Cria

a noção de Arte Bruta que designa produções de arte não conven-

cionais, faz críticas à educação formal engessada pelo sistema,

numa cultura asfixiante. Fez um texto manifesto consagrado e

publicado em 1968. (DUBUFFET, 1998).

No Brasil destaca-se essa influência a atuação da mé-

dica Dra. Nise da Silveira com forte dissidente desse pensamento

na obra do Bispo do Rosário, paciente psiquiátrico, artista reco-

nhecido depois da sua morte. O domínio do olhar naquilo que se

impõe como o precário como arte, os objetos não uteis, mas com

uma qualidade estética.

Em se tratando de objetos sonoros, existe a escuta do

sonoro da carroça e da bicicleta na rua. No contexto da escuta da

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paisagem sonora5, o som na cidade é um ruído. Cabe uma breve

analogia metafórica sobre a precariedade e o ruído. O ruído é

um elemento sonoro que interfere na ordem harmônica, como

algo a ser evitado. O ruído é um conceito trazido pela música

contemporânea, mas se expande na ideia de tudo aquilo que ainda

não está inserido e que provoca reações de estranhamento, que

pode ser desagregador do ambiente e ameaçar a sociedade. O

ruído como metáfora do que não deve ser visto, nem escutado. Na

música contemporânea foi colocado em destaque desde Russolo,

pintor e compositor, construiu o primeiro instrumento de ruído

das máquinas e publicou um tratado sobre o ruído em 1913. Na

vanguarda norte-americana da música de John Cage o ruído pode

ser um acaso, um descontrole, um improviso.

Em princípio, sabemos que o ruído e o lixo são colo-

cados à margem, como algo que a sociedade não quer escutar

nem ver, algo que atrapalha o bem-estar, elementos de rejeição

e de “poluição sonora e visual” que deve ser eliminado, jogado

fora, um lixo! O precário como um ruído social, naquele em

que há uma relação de aceitação ou de rejeição das pessoas que

escutam o ruído. O ruído como metáfora de precariedade. Cabe

aqui apresentar algumas questões complexas que se pretende

aprofundar durante a pesquisa. Qual a ética e a estética dos ruí-

dos emitidos pelos nossos protagonistas e seus objetos sonoros?

Será ele algo incômodo, marginalizado, periférico, rejeitado ou

5 Paisagem Sonora – é o ambiente sonoro. Tecnicamente, qualquer porção do ambiente sonoro

vista como um campo de estudos. O termo pode referir-se a ambientes reais ou a construção

abstrata, como composições musicais e montagens de fitas, em particular considerada como um

ambiente (SCHAFER,1997, p. 366).

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provoca musicalidades e estão no centro da discussão? O ruído

e o precário aqui estão em movimento, dinâmico, num transito

entre o centro e a periferia da cidade, abrindo a discussão sobre

o que é de fato a precariedade na sociedade.

Bourriaud em Radicantes traz à discussão o tema da

precariedade estética e as formas errantes na sociedade desde o

início do século XXI com a generalização dos descartáveis, o

grito de alerta, muitas vezes clichês, dos ecologistas. Coloca a

questão da precariedade e da brevidade da vida dos objetos, o

precário é efêmero.

O termo “precário” qualificava um direito de usorevogável a qualquer momento (...) matéria frá-gil, curtas durações, matizes incertas (...) e sobre-puja o longo prazo e o direito de acesso à propri-edade, à estabilidade das coisas, dos signos e dosestados se torna exceção. Bem-vindos ao mundodos descartáveis: um mundo de destinos custo-mizados (...) um consumismo globalizado repre-sentado pelo shopping centers que representam aface gloriosa e as favelas ou os mercados de pul-gas, o avesso miserável, em um universo que pre-valece uma competição generalizada entre empre-gados descartáveis, consumidores e consumidos.(BOURRIAUD, 2011, p. 81).

Estamos numa sociedade conduzida por uma precarie-

dade generalizada. Um mundo pós-moderno onde os princípios

se mesclam e se multiplicam com incessantes multiplicações.

Em suma, a precariedade hoje impregna a totalidade da estética

contemporânea.

Aqui com nossos objetos sonoros há um paradoxo, pois

é no precário das ruas e das favelas que se encontra uma estética

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fora dos sistemas de consumo e comercialização, pertencentes e

engajados na criação de uma nova escuta e olhar, uma difusão

cultural que define outro território numa situação inédita. Rompe

com o lugar-comum dos automatismos do ritmo metropolitano,

acorda um tempo de intensidades e memórias afetivas estimula-

das pelo repertorio musical que atravessa as ruas. Propõe uma

escuta na rua singular e cria subjetividades no publico. Uma

estética do esvaziamento das crenças e valores de que uma obra

deve estar nas galerias e museus e sendo realizadas por artistas

consagrados.

Pois o que hoje se vê, quando se observa a produ-ção artística, é que novos tipos de contratos pa-recem estar se constituindo entre cultura e pre-cariedade, entre duração física da obra de arte esua duração como informação, alterando a basede certezas sobre as quais se apoiavam até entãoo pensamento crítico (. . . ) ter encontrado novosmeios de resistir a esse novo ambiente instávelcomo também de extrair dele uma nova força, eque uma nova cultura (. . . ) que tem a precarie-dade como pano de fundo. (. . . ) neste início desec. XXI, se desenvolva a partir dessa falênciada duração, no próprio cerne do turbilhão consu-mista e da precariedade cultural, vindo se opor áfragilidade dos territórios humanos sob efeito domaquinário econômico globalizado. (BOURRI-AUD, 2011, p. 84).

Não pretendo me deter, mas citar brevemente alguns

artistas que se utilizaram da estética do precário, com o uso de

materiais e objetos achados, como Kurt Schwitters em suas cola-

gens criando relevos no espaço. Rauschenberg (figura 27) com

uma perspectiva Duchampiana com dejetos industrializados acu-

mulados, pelos artistas italianos da Arte Povera e as composições

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do movimento Fluxus na valorização do cotidiano numa poética

do quase nada.

Figura 27 – Robert Rauschenberg – Riding Bikes, 1998 – Berlim– Alemanha – Fotografia Hans Bug.

Considerações finais

O que defendo nesta pesquisa é que os objetos sonoros

de Berbela e Lucena ao produzirem eventos sonoros, conduzidos

pelo simples desejo de emitir e produzir imagens, sons e músicas

alteram o olhar e a escuta dos passantes e modificam os espa-

ços da cidade. As derivas como instrumentos de investigação

podem permitir ao pesquisador encontrar espaços de opacidades

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na cidade e acredita-se que através de registros é possível poten-

cializar tais ações, com o objetivo de devolver e amplificar os

sons das ruas e suas significações.

O que se propõe é criar nas pequenas ações e nas adver-

sidades caóticas da vida urbana, novas maneiras, mais nômades

e fluentes de circulação pela cidade, sem pontos fixos e sentidos

de propriedade, com mais liberdade e experimentações aos per-

cursos menos determinados, abrindo frestas de subjetividades e

singularidades, ampliando as referências culturais naqueles que

transitam. Essas pequenas ações do cotidiano de Berbela e Lu-

cena permitem revisitar a cidade e mesmo nas suas adversidades

e vulnerabilidades sociais transmitem suas poéticas no cotidiano,

ativando a cidade e sendo protagonistas na cena criativa fora do

circuito das artes e das galerias. Uma política de pessoas co-

muns, engajadas numa vida menos capitalista e consumista, com

menos sentidos de propriedade e de mais sentidos inventivos na

vida. Essa é a relevância da pesquisa, através dos registros e suas

formas de exibição e invenção de proposições artísticas a serem

desenvolvidas no decorrer da pesquisa, tornar publico e dar voz

aos anônimos artistas encontrados nas derivas pela cidade de São

Paulo.

Trazer a estética do precário e questionar a sociedade

liquida (Zygmunt Bauman, 1925- 2017) do consumo, sendo ela

sim precária de conteúdos e produções de subjetividade e desejos.

A pesquisa está em andamento, já foram iniciados os

primeiros registros em vídeo e o cronograma com as ativida-

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des teóricas estão sendo realizados, com o levantamento dos

principais autores e referenciais, os conceitos centrais que norte-

arão a pesquisa e a contextualização histórica no campo da arte

contemporânea.

Neste sentido, eu pretendo aprofundar nos registros

em campo em vídeo na cidade e no exercício das derivas juntos

com os protagonistas (Berbela e Lucena) acompanhá-los, realizar

filmagens, conversas, escutas das narrativas, contemplando as

aproximações e abordagens possíveis dentro da linguagem do

vídeo, procurando manter a natureza da deriva no trabalho. O

roteiro será feito durante a deriva e na edição dos vídeos serão

melhores elaboradas. Os processos e procedimentos artísticos

serão aprofundados no decorrer da pesquisa de campo.

Referencias:

BOURRIAUD, Nicolas. Radicante. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

CARERI, Francesco. Walkscapes, O caminhar como prática estética. São Paulo: Editora GG, 2015.

DUBUFFET, Jean. L’ Homme du Commun á L’ ouvrage. Paris: Gallimard, 1973.

DELEUZE E GUATARRI, Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia. Vol1. São Paulo: Editora 34,2009

MAZZILLI, Clice de Toledo Sanjar. Projeto e Linguagem. Design, Arte, Arquitetura e cidade.Defesa em 2015. 270 f. Livre Docência Departamento de Projeto em Faculdade de Arquitetura eUrbanismo em Universidade de São Paulo. São Paulo, 2015.

OITICICA, HELIO. Museu É o Mundo. Catálogo do Instituto Itaú Cultural. São Paulo: 2010

PAZ, Otavio. Marcel Duchamp ou o castelo da pureza. 3aedição. São Paulo: Editora Perspectiva,2012.

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129

SANTOS, MILTON. Metamorfose do espaço habitado, fundamentos teóricos e metodológicos dageografia. São Paulo: Hucitec, 1998.

SCHAFER, Muray. A afinação do mundo. São Paulo: Editora UNESP, 1997.

TEORIA DA DERIVA E O URBANISMO SITUACIONISTA. Portfólio. Disponívelem:htt p : //reverbe.net/cidades/port f olio/teoria−da−deriva− e−o−urbanismo−situacionista/.Acessoem : 06 jun.de2017.

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10 Arte Emergente: sis-

tema arte e complexi-

dade.

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Arte Emergente: sistema arte e complexidade.

Judivan José Lopes

Sistema, Complexidade,pensamento sistêmico.

O desenvolvimento da teoria geral de sistema teve iní-

cio na primeira metade do século XX pelo biólogo austríaco Karl

Ludwig von Bertalanffy, que a concebe e configura como estudo

da organização de fenômenos. Segundo (BERTALANFFY, 1973,

p. 84), “um sistema pode ser definido como um complexo de

elementos em interação”, ou um grupo de unidades combinadas

que formam um todo organizado que se relacionam entre si.

Os sistemas, independentes de sua natureza, abrigam

princípios gerais como os de “totalidade e soma, mecanização,

ordem hierárquicas, aproximação a estados estáveis, equifinali-

dade” (idem, p.120), e pode habitar a investigação dos princípios

comuns a todas as entidades complexas as quais podem ser utili-

zadas para a sua descrição.

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A teoria de sistemas permite reconceituar os fenô-menos dentro de uma abordagem global, permi-tindo a inter-relação e integração de assuntos quesão, na maioria das vezes, de naturezas completa-mente diferentes. Dando assim uma visão em di-versas áreas do conhecimento. Um sistema é com-posto por inúmeros fatores que quando usadosadequadamente pode contribuir muito no cresci-mento de uma organização. (SOUSA, 2013, p.2).

Dessa forma pode abordar questões científicas e empí-

ricas ou pragmáticas dos sistemas, e tem como fator importante

o modo sistêmico de pensar, para Senge (2017, p. 127), “o pen-

samento sistêmico é uma disciplina para ver o todo, É um quadro

referencial paraver inter-relacionamentos [. . . ] os padrões de

mudanças” que permite mudar os sistemas com maior eficácia e

agir mais de acordo com os processos do mundo natural, adminis-

tração, engenharia, economia, política, ecologia e até fisiologia

(idem, p. 128).

Praticar o pensamento sistêmico é abordar os principais

conceitos da teoria de sistemas “entrada, saída, processamento,

retroação, homeostasia e ambiente” como disse Souza (2013,

p. 2), é pensar nas relações entre suas partes, nas inter-relações

entre elas, o que atingir e onde se pretende chegar, é pensar como

o organismo pode funcionar. O pensamento sistêmico por sua

vez é:

Enxergar através da complexidade para entendersuas situações, suas causas profundas e as con-sequências das ações. Para tal, segundo Argyrise Shon (1974, 1978 e 1979), ambientes assim fa-vorecem a confiança, de forma a criar um vínculovirtuoso de aprendizagem e abertura. (CARVA-LHO, 2010, p.13).

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O pensamento sistêmico favorece uma visão holística

da complexidade ao facilitar a identificação e visualização de

variáveis e estruturas complexas que, através de ferramentas da

dinâmica de sistemas podem ser facilmente entendíveis por ele

e pelos demais envolvidos na situação em análise. Na prática

o compartilhamento destas ferramentas, os objetivos e detalhes

de cada parte da situação e dela como um todo, se tornam mais

claros, é o que diz (MENDES, 2011), em seu blog, ao se referir

as principais ferramentas relacionadas ao pensamento sistêmico.

Com base ainda em Peter Senge (2017, p. 209), “as or-

ganizações só aprendem por meio de indivíduos que aprendem”,

destacando a importância do que ele conceitua como domínio

pessoal frente a aprendizagem organizacional, em função do cres-

cimento criativo do coletivo para atingir metas escolhidas, que

sem as “ferramentas que promovem a consciência pessoal e as ha-

bilidades reflexivas, ‘infraestruturas’ que tentam institucionalizar

a prática regular dos modelos mentais”. (idem, p. 270).

A integração das disciplinas ao pensamento sistêmico

não poderia ser melhor sucedida sem a associação, por um lado,

ao assumimos o comprometimento mútuo de manter uma mesma

imagem no panorama não individual, mas, em conjunto, em uma

visão compartilhada. Por outro lado, acrecido de um compor-

tamento de “alinhamento e desenvolvimento da capacidade da

equipe de criar os resultados que seus membros realmente de-

sejam” (idem, p.339). “A disciplina aprendizagem em equipe

envolve o domínio das práticas do diálogo e da discussão, as duas

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formas distintas de conversação em equipes”.

O pensamento sistêmico associado ao domínio pes-

soal, modelos mentais, visão compartilhada e aprendizado em

equipe, se transforma em uma técnica de resolver de problemas

utilizando modelos e simulações para observar e analisar as trans-

formações ocorridas no sistema, se transforma em um processo

mental que compreende a análise das inter-relações, ciclos de

retroalimentação, em vez de cadeias lineares de causa e efeito e

uma análise dos processos de mudança ao longo do tempo em

vez de tirar instantâneos de momentos estanques.

Pensamento sistêmico, é um termo, também utilizado

por Edgar Morin, Isabelle Stengers e Ilya Prigogine, associado

a epistemologia da complexidade, que pode ser considerado

um ramo da filosofia da ciência inaugurado no início dos anos

1970. Termo ainda não consolidado como movimento científico,

embora tenha gerado uma série de consequências nas áreas tecno-

lógicas e filosóficas pelo seu caráter de visão transdisciplinar dos

sistemas complexos adaptativos, comportamento emergente de

muitos sistemas, complexidade das redes, teoria do caos, compor-

tamento dos sistemas distanciados do equilíbrio termodinâmico

e das suas faculdades de auto-organização.

Para Pimenta (2013, p. 35), Morin se apropria do con-

ceito de processos auto-organizadores e auto-eco-organizadores

para dar complexidade ao real, que era ignorado pela ciência

determinista. Esses conceitos sustentam que cada sistema cria

suas próprias determinações e as suas próprias finalidades sem

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perder a harmonia com os demais sistemas com os quais inte-

rage, sendo possível resgatar os conceitos de autonomia e de

sujeito, para eliminar a ideia da “visão tradicional da ciência,

onde tudo é determinismo, não há sujeito, não há consciência,

não há autonomia” (MORIN, 2007, p. 65).

Edgar Morin entende que como sujeitos, somos autô-

nomos e dependentes. Somos ainda muitos para nós mesmos e

bem pouco para o universo, além de que “somos uma mistura

de autonomia, liberdade, heteronomia” (MORIN, 2007, p. 66),

por não sermos apenas resultado dos pensamentos inconscien-

tes, o que sustenta nossa sensação de sermos livres sem sermos.

Para Morin (2013, p. 36), há três princípios que nos facilitam o

entendimento da complexidade: dialogicidade, recursão organi-

zacional e holográfico.

Resumidamente a dialogicidade é o princípio garante a

sobrevivência ao mesmo tempo que garante a reprodução para a

continuidade da espécie, a recursão organizacional é um princípio

no qual o sistema aberto permite que produtor e produto sejam

um só e o princípio holográfico contém todos os elementos do

todo até a parte mais infinitesimal.

Morin acredita que a complexidade como abordagem

transdisciplinar dos fenômenos é a mudança de paradigma, a

partir dos quais se abandona o reducionismo que tem pautado as

pesquisas e investigações científicas nas abrangências de todas as

áreas do saber para dar lugar à criatividade e ao caos, questiona

todas as formas de pensamento unilateral, dogmático, quantita-

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tivo ou instrumental. Em fim, toda incerteza é parte constituinte

e paradigmática da complexidade, uma abertura de horizontes,

de princípio de mobilidade do pensamento.

Pensar de forma aberta, incerta, criativa, prudente e

responsável é um desafio à própria democracia. Daí a noção de

democracia cognitiva, que visa estabelecer o diálogo entre as

diversas formas de conhecimento, ser um caminho que se faz no

próprio transcurso, no próprio fazer e repensar-se continuamente.

Decorrente desses pensamentos se desenvolve também uma te-

oria de complexidade computacional, que é um filão científico

tecnológico mais estável e melhor definido, e que evoluiu separa-

damente daquele referente ao conceito de sistema não linear, mas

afinal está sutilmente ligado a este. Sobre a arte neste contexto

de complexidade tecnológica Rosangela Leote defende:

A arte, inclusive a produzida por parâmetros deestéticas tecnológicas, apresenta uma complexi-dade que me faz, longe de ter clareza, trazer ape-nas alguns pontos que podem ajudar a penetrarnos meandros desta complexidade. Após loca-lizar os modos de fruição, presentes no âmbitoartístico que envolve as tecnologias contemporâ-neas, aponto processos perceptivos da obra.

[. . . ]

Nesse âmbito, também se modifica o modo peloqual a obra é fruída. (LEOTE, 2015. p. 97).

Rosangela Leote, percebe o fenômeno da complexi-

dade, e destaca o maior envolvimento do interator com as obras

de arte produzidas com mídias emergentes, o fruidor “se expressa

na ludicidade; na interatividade (percepção/reação/recriação); e

na imersividade (vivência/virtualidade)”, (LEOTE, 2015. p. 98),

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concluindo que as obras que têm na constituição de seu funciona-

mento o algorítimo, a linguagem de programação computacional

permite essa relação de estímulo resposta com o interator, ge-

rando um dialogo ininterrupto entre o fruidor e a máquina, entre

a máquina e o fruidor.

As artes tecnológicas não se destacam apenas por essa

relação com o interator, talvez essa característica seja a mais

evidente e relevante, mas outro aspecto de muita importância

é levantado por diversos artistas e pesquisadores da produção

de arte de estética tecnológica, a imbricação da relação arte-

ciência, relevante e presente no “produto” artístico. A arte, nesse

caso, abriga fenômenos de distintos saberes, que se bifurcam

por duplo caminho: conhecimento de uma realidade objetiva e

questionamentos a cerca de realidades subjetivas.

[...] frisamos a distinção sempre citada entre Artee Ciência, quando, para nós, ciência é conheci-mento acerca de uma realidade e a arte é conhe-cimento acerca de realidades possíveis. O pro-blema quanto aos tipos de conhecimento acarreta,portanto, aquele relativo à quais procedimentos,ou métodos, que devemos seguir para atingir osobjetivos de cada tipo. (VIEIRA, 2013. p. 2).

Quando comparamos arte e ciência, vemos que elas

diferem quanto à admissão da hipótese e quanto ao método no

estudo concernente a realidade, mesmo mutável ou relativo às

realidades possíveis. Do ponto de vista do método é visível a

ênfase nos experimentos intersubjetivos porque têm uma aparente

liberdade ou, para os mais conservadores, “frivolidade”. Ainda a

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partir de Vieira, perguntamos e nas atividades artísticas? Ele nos

responde:

A Arte, por lidar com realidades possíveis, traba-lha em um elevado nível de complexidade. Nãoestamos querendo afirmar que a arte seja maiscomplexa, enquanto conhecimento, do que a ci-ência, mas sim que questões, as quais um artistaenfrenta cotidianamente, são “caladas” pelo cien-tista mais conservador, que também as enfrenta.(VIEIRA, 2013, p. 2).

Considerando o processo de investigação e criação de

arte, recheado de aspectos com muita subjetividade e pela poética

que lhe é inerente, o conhecimento artístico é de alta comple-

xidade, construído e elaborado por sistemas vivos, nos quais a

complexidade dispara em crescimento, conforme aduz Leote:

Ampliando a discussão e adotando a Teoria daComplexidade como guia, entendo que, sendo areorganização do sistema imprevisível, em um ní-vel maior ou menor de complexidade, nessa ideiade imprevisibilidade estão também as ações dointerator em determinada obra. Não se trata deacaso, mas de lógica de integração dos elementosdos sistemas abertos. (LEOTE, 2015. p. 106).

As mídias eletrônicas, as ciências da computação, a

robótica, vivem uma dinâmica de transformação tecnológica,

são campos de pesquisa que se tem obtido muitas inovações e

superações das ferramentas, a ponto de não nos permitir afirmar

qual é a tecnologia mais recente, ou quando fica ultrapassada e

não é essa temporalidade da ferramenta que tem feito a diferença,

mas o uso dessas ferramentas eletrônicas interfacetando a obra

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de arte e envolvendo sua audiência, que de certo modo questiona

se esta envolvido pela arte ou pela ciência e tecnologia.

Com essa nova presença artística que se distancia da

pintura ou escultura no sentido mais clássico da cultura, se quer

saber: Isso é arte ou ciência? Quando o uso da ciência é arte?

No senso comum se sabe o que é arte pelo trabalho de consenso

na sociedade sobre determinados aspectos: se ela está exposta

em um museu, centro cultural ou galeria de arte; se está sendo

comentada por uma personalidade artística, um crítico de arte,

especialista da arte ou se é expressa na mídia por meio da deter-

minação que se impõe sobre algo como arte, sendo assim parece

não haver dúvidas que seja uma obra de arte, então essa coisa

é, na sociedade e nas situações dadas, uma obra de arte. No

entanto, “podemos distinguir três dimensões de funcionamento

do sistema da arte contemporânea: uma dimensão econômica,

uma dimensão cultural e uma dimensão política.” (MELO, 2012,

p. 07).

Precisamente é dessas interligações que a manifestação

artística constitui um sistema de arte, com a ressalva de que seus

componentes não são exclusivos da arte. “O mercado parece

acompanhar a diversidade dos trabalhos contemporâneos, pois

instalações e performances, obras consideradas invendáveis em

épocas anteriores, têm sido valorizadas, compradas em leilões

por museus e colecionadores e até alugadas por galerias” (Ibidem,

2012, p. 118). Coelho por sua vez ressalta:

Pode-se verificar que Melo, utilizando-se do con-

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ceito da transitoriedade da arte enunciado por Nel-son Goodman (1975), valorizou a atuação de ato-res do sistema que, em seus contextos, influem nalegitimação da obra de arte, chegando a afirmarque não há mais possibilidade de se conceituararte através de um paradigma da estética, comoanteriormente, pois tal definição da arte só seriaatualmente possível no plano da sociologia, den-tro daquilo que as pessoas nas suas funções no te-cido social consideram e denominam “arte”. (CO-ELHO, 2014, p. 167).

As transformações artísticas ocorreram ao longo dos

séculos, essas mudanças na arte foram reconhecidas por estilos

de acordo com as concepções vigentes, o valor e o entendimento

estético das obras de arte, que enquadravam as formas de produzir

dos artistas. Não podemos negar que essas posições ocorreram

e se tornaram regras estéticas legitimadas pela estética e pela

história da arte, mesmo assim os paradigmas se modificaram su-

cessivamente e a arte contemporânea encarnou em outros corpos,

arte tecnológica ou arte eletrônica, ou mídia art e todas as suas

variações neologismas se inserem nessas tendências.

Obra de arte como sistema.

Com essas alterações de contextos econômicos, cul-

turais e políticos sociais, os movimentos de mercado, cultura e

tecnologia, nos dizem que, uma abordagem sistêmica é aquela

que vai além do objeto artístico que é exposto isoladamente,

apenas para fins apreciativo ou contemplativo, Para Oliveira; Hil-

debrand (2010. p. 1027) o conceito de “sistema como obra de

arte é influenciado pela ciência, através de novas formulações

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teóricas que observam os fenômenos sob o ponto de vista sistê-

mico”, também pelas modificações da obra com a utilização de

suportes e interfaces tecnológicas, que consequentemente novas

possibilidades físicas expositivas, conceituais e poéticas.

Existe ainda a reflexão a respeito dessas transforma-

ções e da assimilação dessas mídias emergentes pelos artistas

como descrevem Oliveira e Hidelbrand (2010, p. 1027-1028),

considerando que nos dias atuais a produção artística se permite

fazer conexões entre arte, ciência e tecnologia e a utilização de

suportes digitais amplia o foco na arte sistêmica abarcando para

além da arte, ciência e tecnologia, pondo o público como sujeito

preponderante dessa relação artística.

Focar nos sistemas em vez da obra de arte propri-amente dita é dar ênfase, às conexões, aos nós, àfluidez das bordas e dobras, aos espaços vazios, àsubjetividade, ao sujeito mediado pelo Outro nalinguagem e na cultura e, de fato, às forças nãovisíveis do mundo que nos cerca. (OLIVEIRA;HIDELBRAND, 2010, p. 1027-1028).

Em Estética Digital, Gianetti (2006) aborda a propo-

sição ‘a arte como sistema’, ela parte do entendimento que a

media art não é uma corrente autônoma, mas, é parte integrante

do contexto da criação artística contemporânea, um recurso para

diferenciá-lo das manifestações artísticas que utilizam outras fer-

ramentas que não as baseadas nas tecnologias eletrônicas e/ou

digitais.

Podemos compreender que nessa perspectiva do sis-

tema como obra de arte, em Simondon (apud OLIVEIRA, 2010.

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p. 1030), o sistema é algo em contínuo movimento e em processo

de individuação, onde o indivíduo se constitui, construindo a sua

subjetividade no campo do pré-individual de singularidades e de

potencialidades diante das novas proposições artísticas.

Para Milton Sogabe (2008. p.129), a presença da TV,

vídeos e projeções nos espaços das instalações resultam em novas

maneiras de compor e organizar os ambientes expositivos, ge-

rando espaços quase vazios, “ocupados apenas por uma imagem

projetada na parede que se modifica com a nossa presença”.

Sogabe (2008. P. 131), defende que a partir dessa

atitude expositiva, aliada a obras com outras características de

se apresentar ao público, a arte nos conduzirá para o que vem

ser chamado de “interação propriamente dita”, o público afetar

os eventos, o público tem uma nova função ou característica,

participa da obra com seu corpo e reflexão mental, e contempla o

espaço virtual, para além da postura interpretativa.

O próprio ciberespaço, no que diz respeito às re-des de comunicação pode ser inserido no espaçoda instalação, conectando espaços físicos com es-paços simulados ou outros espaços reais à distân-cia, tornando mais complexa a questão do espaçoda instalação. A moldura da “sala escura e fe-chada” da instalação quebrou-se por causa da tec-nologia utilizada. (SOGABE, 2008. p. 131).

Podemos compreender a media art como as formas de

arte geradas em sua totalidade ou em parte, nas interfaces das

novas mídias. São obras que se diferenciam das obras do passado

por articular novas configurações em todas as etapas da obra

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de arte, da criação até a fruição. Desde os agentes de criação,

processos e procedimentos criativos passando pelos recursos

utilizados; combinados aos espaços expositivos e presentificação

da obra até as formas de fruição da obra de arte caracterizada por

uma participação ativa e interativa e complementar do público.

Aspectos múltiplos renderizados em sistemas e com-

plexidade, sem ordem preestabelecida. Podemos compreender

melhor essa proposição de obra de arte como sistema, e suas vari-

ações observando seus princípios em três obras de arte propostas

por artistas distintos.

Figura 28 – Osmose - Char Davies – Captura de imagens imersi-vas em tempo real, um voo durante uma performance.Museu de Arte Contemporânea de Montreal - 1995 -16 min.

A primeira obra, Osmose, criada em 1995, é uma obra

de realidade virtual interativa com gráficos em 3D e som 3D

interativo, uma instalação de ambiente imersivo, onde o fruidor

coloca um capacete na cabeça, veste aparatos tecnológicos que

a partir de seus movimentos e respiração se faz conduzir por

cenas de um mundo criado por Char Davies, que para dar forma e

interatividade perceptual conta com uma equipe de engenheiros,

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cientistas e especialistas da lógica de programação, computação

gráfica e de sons para que pela tela montada na cabeça e pelo

rastreamento de movimento em tempo real do interator a obra

o remeta a um espaço para explorar e mobilizar a consciência

sobre si e sobre esse novo mundo que ele agora habita.

[. . . ] você encontra uma pequena sala cheia decomputadores, cabos e aparelhos eletrônicos detodos os tipos, onde um assistente o convida a su-bir em uma plataforma onde há um dispositivoinfravermelho para captar seus movimentos. Li-geiramente assustado, uma parafernália razoavel-mente pesada é colocada ao redor de seu peito.Depois, colocam em sua cabeça um capacete con-tendo óculos-telas estereoscópicos e fones de ou-vido. "Para subir, inspire. Para descer, expire."

[. . . ]

Agora você se encontra lançado no espaço sideral.Uma música suave, flutuante, cósmica, acompa-nha a gravitação tranquila, o lento movimento gi-ratório que o leva em direção ao planeta brilhante,bem abaixo, que é o seu destino. Você pareceter se tornado o feto que retorna à Terra. (LÈVY,2010, p. 39).

Pierre Lèvy, nos ajuda a compreende de um lado a es-

trutura técnica do virtual, presente em obras de realidade virtual,

evidenciando no primeiro momento os dispositivos desenvolvidos

pelas pesquisas científicas em tecnologia, que numa observação

mais apurada se sugere o encontro das especificações técnicas

que foram elaboradas parte por parte, por uma equipe que a ar-

tista, em seu site, atribui os créditos Davies (1990), “Conceito,

direção, direção artística de Char Davies - Software personali-

zado VR de John Harrison - Computação gráfica de Georges

Mauro - Arquitetura Sonic / programação de Dorota Blaszczak -

Composição / programação de som de Rick Bidlac”.

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E por outro lado, Lèvy nos guia no entendimento e

percepção da aventura virtual, a mudança de referencial de relaci-

onamento do fruidor com a abra, tanto com o corpo físico como

com a subjetividade a partir de seu embarcamento, acoplagem e

conexão, o sujeito é tomado pela emoção, sensações e instintos

no mundo simulado e “realista”.

A segunda obra, Atrator Poético: Instalação Multimí-

dia Interativa, de 2005, do grupo SCIArts – EquipeMutidisci-

plinar. Desenvolvida para o diálogo entre imagem, som com o

ferro-fluído e o interator. A poética da obra se acontece com

participação do público e sua interferência na imagem. Essa

interação produz construções sonoras e provoca a movimenta-

ção do líquido magnético que se conforma ao campo formado

por bobinas eletromagnéticas (ferro-fluído). A imagem dessa

movimentação é captada por uma câmera e é projetada numa

superfície circular, veja o gráfico de funcionamento na figura 30.

O público toca na superfície de projeção, circulaem torno dela e gera imagens que parecem cons-telações, formas que surgem e desaparecem, ouvesons associados à imagem, e quando percebe queas imagens projetadas têm relação com o que acon-tece com o ferro-fluído no totem, volta para obser-var as formas do ferro-fluído, percebendo o pro-cesso e refazendo o percurso. (SCIArts, 2010).

Para Blumenschein (2008, p. 103), uma das artistas en-

volvidas na criação dessa obra, “A experiência estética de fluidez

e os trânsitos comunicantes entre as partes do sistema são algu-

mas das questões conceituais que emergem a partir das interações

com a instalação”. Ela, ainda nos diz que uma das características

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Figura 29 – Equipe Mutidisciplinar. Atrator Poético: InstalaçãoMultimídia Interativa – 2005. Cinético Digital –Instituto Cultural Itaú.

Figura 30 – Esquema de montagem do Atrator Poético. Blumens-chein (2008, p. 130).

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da obra Atrator Poético é a possibilidade de interações circulares

e dinâmicas causando a impressão nos visitantes que seus o sur-

gimento das imagens tem estreita ligação com suas ações, não

percebendo que há imprevisibilidades e aleatoriedade o tempo

todo tanto nas imagens quanto nos sons. O que de fato ativa os

sensores são os gestos das mão e do corpo em cima e em volta

do totem/tablado.

SCIArts é uma Equipe Interdisciplinar, compostas por

vários artistas: Fernando Fogliano (Físico, doutor em Semiótica),

Júlia Blumenschein (Design Digital, mestra em Tecnologia da

Inteligencia), Milton Sogabe (Artista, doutor em Comunicação e

Semiótica, Hermes Renato Hildebrand (Matemático, doutor em

Semiótica) e Rosangela Leote (Performer e doutora em Semio-

tica), nessa obra em particular teve uma participação especial,

a parceria com o músico Edson Zampronha. O SCIart, sem-

pre buscou em seus projetos a intersecção entre Arte, Ciência e

Tecnologia. Na elaboração de suas instalações:

[. . . ] procura tanto exprimir a profunda comple-xidade existente na relação entre estes elementos,que são a essência da cultura humana, quanto a re-presentação de conceitos artísticocientíficos con-temporâneos que demandem novas possibilidadesmidiáticas e poéticas. (SCIart, 2005).

E por fim, EntreMeios, uma vídeo instalação interativa,

produzida pelo LabInter - Laboratório Interdisciplinar Interativo-

UFSM, em 2010, composto por: Andreia Machado Oliveira (Ba-

charel e Licenciatura em artes Visuais, doutora em Informática

na Educação), Marcos Cichelero, Matheus Moreno (Arquiteto,

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Figura 31 – Labinter. EntreMeios: Videoinstalação Interativa,2010.

Figura 32 – Registro fotografico de EntreMeios. OpenLab Hipe-rorgânicos5, CAC4, UFRJ, em 2014. (CAMARGO,2016, p. 45).

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mestre em Arte), Fabio Gomes (Ciências da Computação) e Eva-

risto Nascimento. É uma projeção em tecido branco esticado em

curva, que pode ser visto pelos dois lados, superfície impregnada

de imagens generativas efêmeras, sensíveis e outopoéticas, que

pode ser visualizada e experienciada.

Essa instalação propôs uma modificação do espaço

real, mesclando imagens de realidades distintas em um mesmo

lugar, no ciberespaço se relacionam meios geográficos a partir de

imagens capturadas de lugares localizados em Santa Maria, no

Rio de Janeiro e as imagens do interator projetadas em tempo real.

Para Camargo (2016, p. 45-46), “A instalação EntreMeios é um

hiperespaço cibrido, onde a experiência transorgânica acontece”

onde:

O corpo do interator funciona como controladordigital para a entrada de sinais infravermelhos quereconhecem o centro de massa através de um sen-sor Kinect e uma câmera. O gerenciamento di-gital é realizado como o software Processing, queenvia e recebe informações dos dispositivos sensí-veis, processando e realizando respostas nas ima-gens projetadas. (CAMARGO, 2016, p. 46).

Para o Labinter (2010), a instalação “propõe a sobre-

posição de espacialidades e temporalidades nas imagens” para

questionar as relações de lugares que habitamos, proporciona

um deslocamento simbólico pelas camadas de imagens, e sugere

a simulação da passagem do interator entre passado, presente e

futuro.

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Conexões entre sistema, complexidade e midia art.

Inicialmente podemos dizer que a midia art se confi-

gura como um tipo de arte composta por máquinas e softwares.

Dispositivos produzidos pelas engenharias, máquinas com “vida”,

proporcionadas por impulsos elétricos, eletrônicos e códigos nu-

méricos da computação. Softwares combinados com imaginário

criativo e diferentes estéticas de artistas, técnicos e cientistas.

Tudo formando um complexo de conhecimentos, talentos e habi-

lidades que geralmente só pode ser encontrados em equipes.

Processo criativo que geralmente acontecem em grupos,

que se organizam para criar por participação ou colaboração, para

oferecer ao público, como diz Domingues “[...] ambientes com

uma realidade ampliada em aspectos biológicos e emocionais

que se caracterizam em formas de vida, simulando o existir pós-

biológico ou expandido por tecnologias” (DOMINGUES, 2002,

p.46).

São obras desenvolvidas com para interfaces de equi-

pamentos eletrônicos que podem proporcionar hiperconexão,

telepresença, ação remota, realidade virtual imersiva, simula-

ção de fenômenos físicos dentre outras possibilidades. Obras

munidas de dispositivos que sugerem possibilidades de ação de

relacionamento intrínseco do interator com a obra:

[...] mouses, teclados, modens, câmeras, senso-res, capacetes, luvas, sondas espaciais, microscó-pios de varreduras são dispositivos que capturamvidas, ações do corpo e do ambiente em suas capa-cidades de emitir sinais, pensar, imaginar, simular

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e interpretar micromundos celular, codificar par-tículas do universo, tarefas de mundos virtuais,robôs, permitem a telepresença e encarnam iden-tidades vividas na rede (DOMINGUES, 2002. p.33).

Por essas características de recursos das tecnologias

e das ciências que a concepção de criação de tais obras de arte

envolvem equipe de multi saberes para pensá-la e desenvolvê-

la, além de oferecer um espaço de relacionamento prazeroso

e desafios entre as pessoas, com as permutas de de ideias e

concepções.

Saberes multi e transdisciplinares compõem obras de

arte, objetos ou instalações de corpo maquinico. Obras que ocu-

pam espaços bidimensionais, tridimensionais, ambientes espaci-

ais, físicos, virtualizados e imersivos pensados para a presença do

fruidor como elemento ativo, participativo e cocriador. São obras

que se configuram como um sistema, onde todos os componentes

dessa relação se complementam, não só os aspectos relacionados

a criação e sobretudo a fruição, mas todas as relações implícitas

de cultura, poder e política da sociedade em que se desdobra o

contexto de criação e apresentação da obra.

É importante enfatizar que são obras com dinâmicas

capazes de nos levar como sujeito mediado pelo outro na lingua-

gem e na cultura, pelas forças que nos cercam no mundo. Têm

como princípio básico à interatividade, a partir da qual podem

proporcionar uma relação de deslocamento do fruidor para o

mundo maquinico e/ou o mundo maquinico para o seu mundo

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biológico.

A obra de arte interativa, segundo Sogabe (2006), pode

ser entendida como sendo de prática recorrente baseada em um

sistema de estímulo/resposta, que convida o público a reencontrar

com ela, o gesto natural. Assim, o público inter(ator) pertence

à obra, já que, por exemplo, “[...] o espaço das instalações que

era ocupado com elementos tridimensionais dá lugar ao público

que precisa se movimentar e atuar dialogando com os elementos

virtuais que se atualizam” (SOGABE, 2008, p.1990).

A obra pode se configurar como o acontecimento da re-

lação artista-obra-interator, ela abarca possibilidades conceituais

desde a concepção possibilitada pela multiplicidade de interfaces

tecnológicas, exigindo multiplicidade de conhecimentos e técni-

cas, não mais de um único artista em torno da obra, mas, agora,

da equipe de criação.

Essa interação retira o fruidor da condição passiva e o

proporciona uma participação imersiva na condição de interator

ocupando um duplo papel, sendo cocriador e também parte da

criação, por ser imprescindível sua presença em ação no aconte-

cimento da obra de arte, seja no seu acionamento como sujeito

aparelhado, por interatividade em acoplagem, conectividade, vi-

vencia e/ou toque, em que dialoga com ela em percepção sináp-

tica, como referência (COUCHOT, 2003), em que nessa relação

obra-interator o envolvimento pode se doar de corpo, coração

e mente, tornando seu corpo expandido, sentidos ampliados e

amplificados e de consciência “cibernetizada”.

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Consciência em que atuam inteligência individual e co-

letiva, interagindo objetividade e subjetividade entre significantes

e significados, em que, para Deleuze (1996, p.119), “estabelece

uma comunicação interativa entre as ordens díspares de grandeza

ou de realidade; ou que ela atualiza a energia potencial ou integra

as singularidades”; Consciência que resolve o problema posto pe-

los díspares, organiza uma dimensão nova na qual os envolvidos

formam um conjunto único de grau superior.

Essa consciência “cibernetizada” permite as trocas en-

tre a inteligência humana e a inteligência da máquina, em pro-

cessos de trocas conhecimentos estabelecidos e de aprendizados

constantes e indefinidamente limitados, a medida em que ex-

ploram a percepção dos sentidos: visualidade, espacialidade,

sonoridade; imersão e imaginação, articulação de cognição e cul-

tura em diferentes níveis proporcionais aos níveis de articulação

e interatividade dos fruidores inseridos no sistema obra.

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11 Realidade Virtual: am-

bientes imersivos.

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Realidade Virtual: ambientes imersivos.

Vanessa Pereira do Nascimento

Segundo Kátia Maciel (2017) no livro Transcinemas,

o conceito homônimo define a participação do sujeito na cons-

trução do “espaço-tempo cinematográfico”, o que abrange uma

“situação-cinema”, ou seja, coloca o cinema enquanto dispositivo

e sua forma hegemônica como apenas uma das diferentes possibi-

lidades de experienciar a linguagem. Ao definir as características

do cinema tradicional, Parente (2017) destaca a arquitetura, a

tecnologia utilizada e a forma narrativa. Ao modificar esses ele-

mentos as tecnologias contemporâneas acabam influenciando

essa forma cinema. O cinema expandido, por exemplo, vai am-

pliar a espacialidade da tela convencional, ganhando o espaço da

instalação, tornando-se híbrido com outras linguagens, enquanto

o cinema interativo adiciona a capacidade de agência do interator,

isto é, se modifica de acordo com suas ações.

É nesse campo, onde há um espaço cinematográfico

sem as mesmas características do cinema tradicional que se si-

tua as experiências envolvendo realidade virtual (RV). Além de

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apresentar diferentes graus de agência essa tecnologia ainda apre-

senta um ambiente imersivo potencializado pelos dispositivos

envolvidos, ou seja, um ambiente no qual o sujeito se envolve

emocionalmente e passa por uma espécie de inibição temporária

do ambiente físico a qual está realmente inserido (GRAU, 2007).

Dentre as aplicações em realidade virtual está a constru-

ção do “espaço-tempo cinematográfico” em 360 graus, podendo

ser exibido em diferentes arquiteturas desde que provoquem a

imersão, o que é mais comumente alcançado com as interfa-

ces mais avançadas do período considerado, já que a RV busca,

sobretudo, provocar a ilusão nos sentidos humanos (KIRNER;

TORI, 2006). Iniciativas como o documentário “Rio de Lama”

(2016) do cineasta Tadeu Jungle, gravado nesse formato com o

objetivo de provocar a empatia daqueles distantes da tragédia em

Mariana1 e a instalação “Blackout” (2017) do grupo Scatter que

também se apresenta como um ambiente imersivo em 360 graus,

aproximando o público dos relatos de desconhecidos dentro do

metrô de Nova York, serão relacionadas nesse texto com o intuito

de levantar aspectos e possibilidades dessa forma de cinema.

Outros espaços.

Em crítica a definição mais utilizada por pesquisadores

sobre o que seria a realidade virtual, Romero Tori (2015) atuali-

zou a definição criada em 1994 por Paul Milgram. Na ocasião

1 Em 05 de novembro de 2015 a vila Bento Rodrigues localizada na cidade foi destruída devido

ao rompimento de duas barragens da empresa Samarco.

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Milgram definiu o espaço virtual como oposto a realidade do

mundo físico, e de acordo com o autor conceitos como a rea-

lidade aumentada, na qual elementos virtuais se sobrepõem ao

ambiente físico e a virtualidade aumentada, na qual elementos

do mundo físico integram algum espaço virtual estariam entre

os dois opostos, formando uma realidade mista. Considerando o

espaço virtual como parte da realidade, Tori sugere que exista o

real virtualizável, como são as imagens digitais que ainda assim

não deixam de ser reais, e o real não virtualizável, como uma ima-

gem impressa que não pode simplesmente ser desfeita, apagada

sem deixar rastros como ocorre com os dados digitais. O virtual,

ou realidade virtualizável seria, portanto, o que pode ser mate-

rializado e desmaterializado sem deixar resíduos no ambiente

físico.

Segundo Kirner e Tori (2006), os elementos chave para

a identificação de RV são as representações geradas por com-

putador, a interação em tempo real e os dispositivos especiais.

Dessa maneira os games, as narrativas interativas e os ambientes

de simulação podem ser classificados como RV, porém, como a

imersão é fator definitivo para essa tecnologia, os dispositivos

envolvidos precisam proporcionar a ilusão dos sentidos, portanto,

o que é RV para uma geração pode se tornar a interface padrão

para a próxima, tornando essa definição móvel e normalmente

associada à tecnologia mais avançada do período considerado.

Atualmente os chamados óculos de realidade virtual (HMD –

head-mounted displays) são os dispositivos mais comuns, presen-

tes em exposições multimídia, usados como interface para games

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e até mesmo disponibilizados em modelos acessíveis como o

Google Cardboard 2, feito de papelão para ser utilizado junto a

um celular com giroscópio, o sensor responsável por identificar

os movimentos necessários para a navegação em RV.

Apesar da definição de RV envolver representações

geradas por computador, o vídeo gravado em suporte digital se

caracteriza como uma realidade virtualizável, portanto pode ser

apresentado como RV ao potencializar a imersão com a utilização

de óculos especiais e adicionar a interatividade. Tal liberdade

cedida ao interator provoca mudanças nas obras feitas para esse

suporte. Além de pensar a cena não mais como um plano retan-

gular, o artista pode optar pela não linearidade, já que o sujeito

pode escolher olhar para um determinado espaço enquanto uma

ação se desenrola fora do enquadramento produzido.

Ao escrever sobre seu documentário “Rio de Lama”,

Tadeu Jungle descreve a realidade virtual como a tecnologia

capaz de provocar empatia nas pessoas, já que elas não mais

assistem ao filme, mas se sentem parte dele (JUNGLE, 2015).

Durante os 9 minutos de duração do curta-metragem é possível

ver os destroços da vila de Bento Rodrigues, situada no município

de Mariana, que foi atingida pela destruição das barragens da

empresa Samarco em 05/11/2015. A sobreposição em áudio das

memórias dos habitantes da cidade provoca o público a imaginar

como era a vida no local.

2 Display de realidade virtual para ser utilizado junto a um celular. Lançado em 2014, pela

empresa Google.

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Para ter a experiência de assistir ao documentário em

RV é necessário a instalação do aplicativo que contém o vídeo

no celular e a utilização de óculos especiais, que privam com-

pletamente a visão do ambiente físico e situam o interator nas

cenas gravadas. Com a navegação disponível em seis graus de

liberdade3 (KIRNER; TORI, 2006), isto é, a possibilidade de

olhar para qualquer direção movimentando a cabeça como se

realmente estivesse no local, o dispositivo de RV apresenta uma

obra que é um espaço a ser explorado, que pode ser diferente a

cada acesso, pois o diretor construiu o ambiente, mas é o intera-

tor que vai definir a forma final do enquadramento (PARENTE,

2017).

Ao adicionar aos seis graus de liberdade o ambiente

físico como forma de se locomover pelo espaço virtual, a ins-

talação “Blackout”, do estúdio americano Scatter, proporciona

a sensação de caminhar pelo ambiente criado digitalmente, en-

quanto é possível interagir com diferentes personagens dentro

de um metrô em Nova York e ouvir suas histórias. O interator

pode caminhar pelo espaço que simula o interior de um metrô e

tem as mesmas dimensões do ambiente virtual que é sobreposto

pelo uso dos óculos especiais. Através dessa interface é possível

entrar em contato com os pensamentos e histórias de pessoas em

um ambiente onde tal interação não costuma acontecer.

As possibilidades narrativas apresentadas pelo “Rio de

Lama” e pelo “Blackout”, demonstram a capacidade da RV ir

3 Liberdade em se movimentar rotacionando nos eixos x (largura), y (altura) e z (profundidade).

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além dos dispositivos tecnológicos envolvidos e da modificação

da arquitetura tradicional de exibição. Junto às interfaces das cha-

madas novas tecnologias modificam-se também as possibilidades

narrativas, alterando a forma cinema, já que ao interator é dada a

capacidade de interferir na temporalidade da obra, produzindo

assim outros espaços cinematográficos (MACIEL, 2017).

Considerações finais.

É possível observar como a inserção da realidade vir-

tual como outra forma de cinema é capaz de modificar as três

características levantadas por Parente (2017) sendo a arquitetura,

as tecnologias envolvidas e a narrativa. Partindo de diferentes

dispositivos tecnológicos como são os óculos especiais, a arquite-

tura do ambiente pode ser totalmente substituída pela informação

virtual, como no caso do documentário “Rio de Lama” ou relaci-

onada diretamente à narrativa, como na instalação “Blackout”,

afastando-se de qualquer maneira da sala tradicional de cinema.

A presença da interatividade e a potencialização da imersão al-

teram ainda a forma narrativa, tornando o interator responsável

pela forma final que a obra será exibida, na qual ele é capaz de

definir o enquadramento, a movimentação da câmera e no caso

da ambientação no metrô de Nova York, até mesmo a ordem que

as histórias são ouvidas.

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KIRNER, Claudio; TORI, Romero. “Fundamentos de Realidade Virtual” in KIRNER, Claudio;SISCOUTTO, Robson; TORI, Romero (org.). Fundamentos e Tecnologia de Realidade Virtual eAumentada. Livro do Pré-Simpósio VIII Symposium on Virtual Reality Belém – PA, 02 de Maio de2006. Porto Alegre: Editora SBC – Sociedade Brasileira de Computação, 2006. P. 2-21.

MACIEL, Kátia. “Transcinemas” in MACIEL, Kátia (org.). Transcinemas. Rio de Janeiro: ContraCapa, 2017. P. 12-19.

PARENTE, André. “A forma cinema: variações e rupturas” in MACIEL, Kátia (org.).Transcinemas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2017. P. 21-45.

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12 Autores

Elisângela de Freitas Mathias

Possui Bacharelado e Licenciatura em Ciências Sociais

pela Universidade Estadual Paulista - UNESP/Marília (1999)

e Licenciatura Plena em Educação Artística pela Universidade

Estadual Paulista - UNESP/Bauru (2005). É especialista em

Linguagens da Arte pelo Centro Universitário Maria Antônia-

USP (2013). Atualmente cursa o mestrado profissional em Artes,

PROFARTES, no Instituto de Artes da Universidade Estadual

Paulista - UNESP/São Paulo (2016). Tem experiência na área de

Artes, com ênfase em Artes Plásticas, Arte Educação e Desenho

de Humor. Atualmente é titular de cargo efetivo como Professora

na Secretaria de Educação do Estado de São Paulo.

Judivan Lopes

Artista, Professor de Arte no Instituto Federal de Ala-

goas – IFAL – Campus Arapiraca, lider do do grupo de pesquisa

Lambe-Lambe Digital: as mil faces do mundo, Coordenador dos

coletivos artísticos: Grupo de Produção de Arte com Tecnologia

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Interativa Geparti e ArtVírus: grupo de arte-intervenção urbana.

Membro do GIIP: Grupo Internacional e Interinstitucional de

Pesquisa em Convergências entre ARTE, CIÊNCIA E TECNO-

LOGIA, doutorando em Arte Visuais, orientando da Professora

Dra. Rosangela Leote, Universidade Estadual Paulista “Júlio de

Mesquita Filho” - Unesp - Instituto de Artes (Campus São Paulo),

na Linha de Pesquisa em Processos e Procedimentos Artísticos,

com a pesquisa: “CORPO/ARTE: percepção humana, pele, ossos

e nervos de tecnologia.”

Luis Alberto de Souza

Mestrando pelo Programa de Mestrado Prof-Artes, na

UNESP/SP, em 2016. Pós-graduando Lato sensu em Arte na Edu-

cação: Teoria e Prática, pela Universidade de São Paulo (USP).

Pós- graduação Lato sensu, em Gestão de Pessoas e Projetos

Sociais pela Universidade Federal de Itajubá/MG (UNIFEI), em

2014. Licenciatura em Pedagogia, pela Universidade Federal

de São Carlos, (UFSCar), 2014. Licenciatura em Artes Visuais

pela Universidade do Vale do Paraíba (UNIVAP). Atualmente,

exercendo o cargo de professor de Arte na Prefeitura Municipal

de São José dos Campos/SP e na Rede Estadual do Estado de

São Paulo/SP.

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Luis Quesada

Artista Visual, Docente e pesquisador em Artes. Atual-

mente é doutorando em Artes pela UNESP, bolsista do programa

internacional PAEDEX-AUIP e membro oficial do grupo GIIP

e do grupo LABDIC. Licenciado em Artes Visuais e Mestre em

Produção e Investigação em Artes pela Universidade de Gra-

nada (Espanha). Desenvolve sua obra e pesquisa acadêmica

mediante a perspectiva do hibridismo cultural, do estudo da Iden-

tidade/Alteridade, da antropofagia nas artes e do a(r)tivismo

indigenista.

Miguel Alonso A. Carvalho

Artista plástico e arte educador, Mestrando no Pro-

grama de pós-graduação em Artes da UNESP, Universidade

Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", São Paulo, SP.

Formado em bacharelado e em licenciatura em Artes Visuais

na UNESP. Bolsista de Iniciação Científica, FAPESP (vigência

2014 e 2011/2012), na área de Convergências Artes, Ciências

e Tecnologias, junto a Prof.a. Dr.a Rosângella Leote. Esteve

em intercâmbio na ESMAE (Escola Superior de Música, Artes

e Espetáculo) do Instituto Politécnico do Porto (Portugal), com

bolsa de estudos da AREX- UNESP, onde foi aluno nos cur-

sos de TCM (Tecnologia da Comunicação Multimídia) e TCAV

(Tecnologia da Comunicação em Audiovisual). Envolvido com

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trabalhos de extensão dentro da universidade, no projeto Zonas

de Compensação; e em trabalhos artísticos coletivos, como no

coletivo Laranja Azul. Além dos estudos acadêmicos e da área de

Multimídia, trabalha diretamente nas áreas da Pintura, Gravura e

desenvolvimento Tridimensional. Já trabalhou como educador

no Museu da Cidade de São Paulo e no Centro de Memória do

Circo, entre outras instituições.

Mirian Steinberg

Pesquisadora pela CAPES. Mestranda no Instituto de

Artes da UNESP em 2017 na Linha de Pesquisa em Processos

e Procedimentos Artísticos. Especialista em Historia das Artes.

Licenciatura em Musica e Formação em Musicoterapia. Artista

Educadora no PIÁ – Programa de Infância e Artes da Secretaria

de Cultura do Município de São Paulo em 2016. Produção ar-

tística de vídeos e áudios, instalação sonora, performance vocal

coletiva na Mobile Radio na 30a Bienal de SP. Exerceu atividade

Docente do Curso de Graduação da Faculdade Paulista de Artes

de 99 a 2013.

Natalie Mireya

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É bacharel em Artes Plásticas pela Universidade Fede-

ral do Espírito Santo. Possui pesquisa de Iniciação Científica pelo

CNPq na área de Teoria e História da Arte Moderna e Contempo-

rânea e na área de Performance Artística. A artista e pesquisadora

trabalha com performance, fotografia, vídeo e objetos, envolvi-

dos em sua atual pesquisa artística Qual o Resultado da Equação

com Elementos Delicados x Agressivos? Participou de mostras

em diversos estados do Brasil e países da Europa, como Relações

Urbanas, nas Caixas Culturais, e Venice Experimental Video Art

Festival, no Palazzo Cazanardi, em Veneza, além de países da

America Latina.

Regilene A. Sarzi-Ribeiro

Pós-doutora em Artes pelo Instituto de Artes UNESP/SP.

Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Professora

Assistente Doutora (RDIDP) do Departamento de Artes e Repre-

sentação Gráfica da FAAC/UNESP/Bauru/SP. Membro Diretoria

ANPAP 2017-2018. Líder do Grupo de Pesquisa labIMAGEM

– Laboratório de Estudos da Imagem – CNPq. Desenvolve pes-

quisas em História da Arte do Vídeo, Corpo e Imagens híbridas,

Fundamento e Crítica da Arte e Transdisciplinaridade

Vanessa Pereira do Nascimento

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É mestranda no Instituto de Artes da UNESP (2016),

pós-graduada em Estéticas Tecnológicas pela PUC-SP (2013),

graduada em Design de Multimídia pelo SENAC-SP (2007) e

técnica em Design Gráfico pela ETEC Carlos de Campos (2005).

Possui experiência na área de comunicação visual, no desenvol-

vimento de peças gráficas e multimídia. Desde 2010 ministra

oficinas, cursos e palestras que relacionam tecnologias e artes

no SESC-SP e em diferentes espaços culturais. Integra o grupo

de idealizadores do projeto de cultura digital LINCE, criado em

2014 e atuante na Zona Leste de São Paulo.

Yardena Sheery

Mestre e doutoranda em Artes no Instituto de Artes

da Unesp, artista plástica atuante em São Paulo/SP e bacharel

em Artes Visuais na mesma instituição, além de bacharel em

Comunicação pela Faculdade de Comunicação Social Cásper

Líbero. Pesquisa a obra de Hélio Oiticica, particularmente o

período da pós-Tropicália, em Nova Iorque, e sua produção em

cinema marginal.

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