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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
“CAMINHOS PARA DEUS”
PROPOSTAS RELIGIOSAS DIVERGENTES E IDENTIDADE DO
GRUPO JOANINO: UMA LEITURA EM JOÃO 13.33-14.31
Célia Juliano Roque
São Bernardo do Campo
2015
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CÉLIA JULIANO ROQUE
“CAMINHOS PARA DEUS”
PROPOSTAS RELIGIOSAS DIVERGENTES E IDENTIDADE DO
GRUPO JOANINO: UMA LEITURA EM JOÃO 13.33-14.31
Dissertação apresentada em cumprimento às exigências do
programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da
Universidade Metodista de São Paulo, para obtenção do
grau de mestre.
Orientador: Prof. Dr. Paulo Roberto Garcia
São Bernardo do Campo
Maio de 2015
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ROQUE, Célia Juliano. Caminhos para Deus: propostas religiosas divergentes e
identidade do grupo joanino. Uma leitura em João 13.33-14.31. 2015. 151 f. Dissertação
(Mestrado em Ciências da Religião) — Universidade Metodista de São Paulo, São
Bernardo do Campo, 2015.
RESUMO
No Quarto Evangelho Jesus se apresenta por meio de metáforas, sendo o objeto de
nossa pesquisa a frase: “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida”, que será o ponto de
partida condutor em busca da identidade do grupo joanino. No final do primeiro século,
o grupo joanino se entende como fiéis herdeiros de Jesus, agora seguidores do discípulo
João (filho de Zebedeu), o qual caminhou com Jesus.
O grupo não se apresenta alheio à realidade da multiplicidade religiosa do período, mas
está atento aos conflitos e aos caminhos divergentes para Deus. Isso nos aponta o quão
identitário é o tema. A partir de uma leitura em João 13.33-14.31, nossa dissertação tem
como objeto o modo como o grupo joanino recebe essa mensagem no imaginário, a
exterioriza e reage no cotidiano, bem como os grupos posteriores do gnosticismo —
como o Evangelho da Verdade da Biblioteca Copta de Nag Hammadi, elaborado a partir
de leituras ulteriores que plasmam o mundo simbólico imaginário, cultivando diferentes
características de pertença, gerando a identidade do grupo joanino.
Palavras-chave: Evangelho de João; Metáforas; Identidade; Grupo joanino; Caminho,
verdade e vida.
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ROQUE, Célia Juliano. Ways to God: Divergent Proposals and Religious Identity of
Johannine Group. A Reading in John 13.33-14.31. 2015. 151 p. Dissertation (Master’s
Degree in Religious Studies) — Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do
Campo, Brazil, 2015.
ABSTRACT
The Fourth Gospel presents Jesus through metaphors, being the object of our research
the phrase: “I am the way, and the truth, and the life” that is the guiding starting point in
search of the identity of the Johannine group. At the end of the first century, the
Johannine group sees itself as the faithful heirs of Jesus, now followers of the disciple
John (son of Zebedee), who walked with Jesus.
The group is not alien to the reality of religious multiplicity of the period, being aware
of the conflicts and the divergent ways to God. This shows us how identitary this theme
is. From a reading in John 13.33-14.31, our dissertation has as object how the Johannine
group receives this message in the imaginary, externalizes it and reacts in everyday life,
as well as later groups of Gnosticism — as the Gospel of Truth from the Nag Hammadi
Coptic Library, drawn from subsequent reading currents shaping the symbolic-
imaginary world, cultivating different belonging characteristics and creating the identity
of the Johannine group.
Keywords: Gospel of John; Metaphors; Identity; Johannine group; Way, truth and life.
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ROQUE, Celia Juliano. Caminos hacia Dios: propuestas divergentes y la identidad
religiosa del grupo joanino. Una lectura en Juan 13.33-14.31. 2015. 151 f. Tesis
(Maestría en Ciencias Religiosas) — Universidade Metodista de São Paulo, São
Bernardo do Campo, Brasil, 2015.
RESUMEN
En el cuarto Evangelio, Jesús se presenta a través de metaforas, siendo el objeto de
nuestra pesquisa la frase: “Yo soy el camino, y la verdad, y la vida” que es el punto de
partida conductor en busca de la identidad de lo grupo juánico. Al final del primer siglo,
el grupo juánico se entiende como los fieles herederos de Jesús, ahora seguidores del
discípulo Juan (hijo de Zebedeu), el que caminó con Jesús.
El grupo no se mantiene ajeno a la realidad de la multiplicidad religiosa de este período,
pero es consciente de los conflictos y los caminos divergentes que llevan a Dios. Esto
nos muestra cómo la identidad es el tema. A partir de una lectura en Juan 13.33-14.31,
nuestra tesis tiene como objeto la forma en que el grupo juánico recibe este mensaje en
la mente, la exterioriza y reacciona en la vida cotidiana, así como grupos posteriores del
gnosticismo — como el Evangelio de la Verdad de la Biblioteca Copto de Nag
Hammadi, elaborado a partir de lecturas subseguientes que formam el mundo simbólico
imaginario, cultivando diferentes características de pertinência, criando la identidad del
grupo juánico.
Palabras-clave: Cuarto Evangelio; Metaforas; Identidad; Grupo juánico, Camino,
verdad y vida.
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Dedico este trabalho à minha mãe e aos meus filhos(as), netos(as),
bisneta e ao meu ex-marido Sérgio, de quem o período de desafio em
nossas vidas causou certo distanciamento. Cada um teve uma
participação nessa tarefa árdua, compreendeu os momentos de
minhas ausências, cansaços e correrias, ansiedade e medo. A figura
de vocês me ajudou a atravessar pelo caminho do conhecimento que
me leva à descoberta de novos caminhos.
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Esta pesquisa foi realizada com o apoio das instituições:
IEPG (Instituto Ecumênico de Pós-Graduação)
CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior)
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Minha eterna gratidão ao IGESP pelo apoio financeiro no início e no final da pesquisa,
sem o qual se tornaria inviável este projeto de dissertação.
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AGRADECIMENTOS
A Deus
Chegar até aqui foi uma jornada difícil e solitária. Tive muito medo de não
conseguir concluir. Pensei em desistir em alguns momentos, mas os valores que adquiri
a partir do momento em que me apresentaram um Deus geraram força para continuar até
o fim. E como a pesquisa trata de um caminho árduo que gera vida, assim foi possível
essa caminhada, cujo trabalho diário gerou esperança na minha vida! Agradeço a Deus,
eterno companheiro por ter chegado comigo até aqui, por me sustentar com a sua paz e
me guiar nos momentos difíceis.
Aos mestres
Àqueles que dedicam seu tempo, orientação, paciência nesse período de
formação e aprendizado de vida; àqueles que de alguma forma contribuíram na
caminhada, aconselhando e apontando o caminho a ser seguido, minha eterna gratidão.
Prof. Dr. Paulo Roberto Garcia (UMESP)
Prof. Dr. Paulo Augusto de Souza Nogueira (UMESP)
Prof. Dr. Jung Mo Sung (UMESP)
Prof. Dr. Dario Paulo Barrera Rivera (UMESP)
Prof. Dr. Etienne Alfred Higuet (UMESP)
Prof. Dr. José Ademar Kaefer (UMESP)
Prof. Dr. Tércio Machado Siqueira (UMESP)
Profa. Dra. Sandra Duarte de Souza (UMESP)
Às secretárias
Àquelas cujas presenças são muito importantes nesse período; são colaboradoras
compreensivas. Sua dedicação não tem preço: nos orientam, nos suportam, tornam-se
pessoas impossíveis de cair no esquecimento — minha eterna gratidão!
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Ana Maria Fonseca, pelo carinho, seu tempo, seu auxílio no IEPG.
Camila Costa Sanches, Secretaria Acadêmica de Pós-Graduação Stricto Sensu, o
quanto você me ajudou com os direitos e deveres da academia!
Eliane Taylor Quintela, secretária do Prof. Dr. Paulo Roberto Garcia, sempre
pronta a nos auxiliar.
Regiane da Silva Dias, secretária da Pós-Graduação em Ciências da Religião,
sua dedicação é algo inesquecível, sempre a nos orientar, a nos lembrar. Nossa
agenda acadêmica se chama Regiane!
Aos amigos
Não é possível registrar o nome de todas as pessoas que contribuíram com a
minha caminhada até aqui. Amigas(os), obrigada pelas conversas, por ter tido o
privilégio de conhecê-las(os), pela força necessária para que eu seguisse em frente.
Obrigada pelos conselhos e pelos momentos de compartilhar as nossas expectativas,
medos, descobertas, frustrações, conquistas, trabalhos, relatórios, congressos,
apresentações e, por fim, a participação especial de cada um(a) de vocês no meu
projeto. Minha eterna gratidão!
Angela Cabrera (Cara Profa. e Dra., você participou de uma maneira muito
especial em minha vida. Foi a primeira pessoa a apontar o caminho deste
sonho)
Anderson de Oliveira Lima (Prof. Dr. e amigo, você foi fundamental para que
este sonho se tornasse realidade. Caro mestre, você simplesmente acreditou e
sua amizade foi e é valiosa)
Prof. Dr. Paulo Roberto Garcia (Pela paciência em me orientar, pelo apoio na
qualificação e por ser meu orientador)
Prof. Dr. Paulo A. de S. Nogueira (Grande responsável pelo meu interesse na
linguagem narratológica, sempre a impulsionar constantes atualizações, cujos
títulos se tornaram conhecidos para mim — como é o caso do terceiro anexo da
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dissertação — e pelo tempo vivido nas aulas, nos almoços, no Grupo de
Pesquisa Oracula)
Prof. Dr. José Ademar Kaefer (não posso negar a sua influência a partir das
exegeses do AT, o café em sala de aula, o grupo de arqueologia)
Kellen Cristina Rodrigues (companheira de aulas, congressos, trabalhos e por
ter me recebido com tanto carinho em sua casa)
Lilian Araújo Baleeiro (pelo companheirismo e pelo sumário)
Marcos Scarpione (pela disposição e orientação nas aulas de projeto)
Regina A. Lourenço Cardoso (pelos trabalhos, apresentação e congressos)
Tina Pinto (Pelo seu carinho como amiga, pela ajuda no espanhol)
Prof. Dr. Paulo Roberto Garcia
Como agradecer o seu incentivo! Desde o início, quando me aceitou em suas
aulas como ouvinte e a posteriori como orientador, foi verdadeiramente significativo.
O senhor viu a minha disposição em aprender e acreditou, foi além, me fez acreditar
que é possível chegar até o final, mesmo com as intempéries da vida. Esteve ao meu
lado como orientador, mestre, pastor e amigo. Nas horas difíceis, não cobrou quando
poderia ter cobrado; respeitou o momento em que estive em caos. Quando digo que
serei grata, esse sinal é insuficiente para exprimir meus reais agradecimentos. Quero
dizer que em alguns poucos momentos foi difícil ouvir, mas ter o privilégio de tê-lo
como orientador e mestre é um aprendizado com carga de conhecimento profundo de
coisas, de alma, da vida, pessoa boa que ama e que ampara. Nesse percurso sempre
aprendo com você. A cada aula, cada orientação saio impressionada com suas
mensagens. Digo: você é meu líder acadêmico, me trouxe um novo caminho. Agora
tenho pistas de conhecimento naquilo que me propus a realizar. Finalizo o mestrado em
que você é meu referencial como mestre, e quando pensei que o barco iria naufragar,
ouvi você dizendo que Jesus anda por sobre o mar, por sobre o dia mau. Você
caminhou ao meu lado e disse que posso passar pelo mar. Obrigada! Serei eternamente
grata!
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SIGLAS E ABREVIATURAS
BJ Bíblia de Jerusalém
E1 Evangelho 1 (Primeira redação do QE)
E2 Evangelho 2 (Segunda redação do QE)
E3 Evangelho 3 (Terceira redação do QE)
EV Evangelho da Verdade
NDD Narrativa do discurso de despedida
QE Quarto Evangelho
RevBib. Revista Bíblica
RIBLA Revista de Interpretação Bíblica Latino-
Americana
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ______________________________________________________ 14
CAPÍTULO I: “EU SOU O CAMINHO, E A VERDADE, E A VIDA” __________ 18
Introdução _______________________________________________________________ 18
1 Metáforas clássicas em Ricoeur _____________________________________________ 19 1.1 Retórica e poesia _____________________________________________________________ 20 1.2 Mythos ____________________________________________________________________ 21 1.3 O declínio da retórica clássica __________________________________________________ 23 1.4 Produção de sentido no QE _____________________________________________________ 24
1.4.1 Mas o que vem a ser ficção? ________________________________________________ 25 1.4.2 Ficção e metáfora no QE ___________________________________________________ 27
1.5. Metáfora e realidade no QE ____________________________________________________ 28 1.6 A semântica da metáfora no QE _________________________________________________ 29 1.7 O movimento da metáfora _____________________________________________________ 30 1.8 Um enigma: metáfora e comparação _____________________________________________ 31 1.9 Dos relatos bíblicos às narrativas hermenêuticas ____________________________________ 31
2 Identidade ______________________________________________________________ 34 2.1 Identidade social do grupo joanino _______________________________________________ 35 2.2 Características do grupo joanino _________________________________________________ 37 2.3 A questão da afiliação ao grupo joanino ___________________________________________ 38 2.4 Atitudes e opiniões para ler o grupo joanino _______________________________________ 39 2.5 O cognitivo e as atitudes no grupo joanino _________________________________________ 40 2.6 O extremismo (Eu sou o caminho, a verdade e a vida) ________________________________ 41 2.7 Estereótipos e preconceitos no grupo “do caminho” _________________________________ 42 2.8 “Eu sou” (evgw, eivmi) __________________________________________________________ 43 2.9 O caminho dos... do caminho ___________________________________________________ 44
Conclusão ________________________________________________________________ 45
CAPÍTULO II: A DESPEDIDA DE JESUS ________________________________ 46
Introdução _______________________________________________________________ 46
1 Exegese da narrativa do discurso de despedida (NDD) ___________________________ 47 1.1 Texto grego de João 13.33-14.31 ________________________________________________ 47 1.2 Tradução literal de João 13.33-14.33 _____________________________________________ 49 1.3 Tradução literária de João 13.33-14.33 ____________________________________________ 51 1.4 Delimitação do texto __________________________________________________________ 53 1.5 Estrutura do texto ____________________________________________________________ 58
1.5.1 Nossa macroestrutura _____________________________________________________ 58 1.5.2 Microestrutura ___________________________________________________________ 59 1.5.3 Molduras redacionais _____________________________________________________ 62
1.6 A perícope do discurso de despedida _____________________________________________ 64 1.7 Gênero literário ______________________________________________________________ 66 1.8 Campo semântico exegético ____________________________________________________ 68 1.9 Composição, data e local ______________________________________________________ 72
1.9.1 O relato da paixão ________________________________________________________ 72 1.9.2 Pós-destruição do templo __________________________________________________ 73
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1.10 Interpretação _______________________________________________________________ 74 1.10.1 A revelação de Jesus aos seus (13.33-14.31) ___________________________________ 74 1.10.2 O anúncio da caminhada da partida de Jesus (13.33-35) __________________________ 75 1.10.3 Diálogo: Pedro quer seguir com Jesus (36-38) _________________________________ 78 1.10.4 “Eu vou e vocês conhecem o caminho!” (14.1-4) _______________________________ 80 1.10.5 Revelação do caminho (5-7) _______________________________________________ 82 1.10.6 “Conhecer a Deus!” O caminho leva ao Pai (8-11) ______________________________ 85 1.10.7 Um solene “Amém, amém!” O caminho para um novo santuário (12-24) ____________ 87 1.10.8 Bênção da despedida (25-27) ______________________________________________ 93
Conclusão ________________________________________________________________ 97
CAPÍTULO III: O CAMINHO, A VERDADE E A VIDA EM NAG HAMMADI ___ 99
Introdução _______________________________________________________________ 99
1 Gnosticismo ____________________________________________________________ 100 1.1 O caminho do mito gnóstico clássico no Livro Secreto de João ________________________ 102
1.1.1 A vida no drama mítico se desenrola em quatro atos ____________________________ 102 1.2 O espírito da vida no gnosticismo _______________________________________________ 103
2 A verdade em Valentino __________________________________________________ 104 2.1 O Evangelho da Verdade _____________________________________________________ 105
2.1.1 O Evangelho da Verdade é alegria __________________________________________ 105 2.1.2 A verdade está na mente do Todo ___________________________________________ 106 2.1.3 Verdade = alegria da descoberta do conhecimento ______________________________ 106 2.1.4 A vida sem o conhecimento _______________________________________________ 108 2.1.5 O caminho para o conhecimento do Pai ______________________________________ 108 2.1.6 As cartas da verdade falam sozinhas a quem as conhece _________________________ 109
3 O Tratado sobre a ressurreição _____________________________________________ 111
Conclusão _______________________________________________________________ 115
CONSIDERAÇÕES FINAIS ___________________________________________ 116
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ____________________________________ 119
ANEXO I __________________________________________________________ 127
ANEXO II _________________________________________________________ 137
ANEXO III _________________________________________________________ 142
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INTRODUÇÃO
Num certo momento da minha caminhada acadêmica, para ser mais exata, no
ano de 2009, iniciei o Bacharelado em Teologia pelo ICEC (Instituto Cristão de Estudos
Contemporâneos). Tive o privilégio de ter como professores, que fazem jus ao uso dos
títulos de Mestres e Doutores, entre outros a Profa. Angela Cabrera e o Prof. Anderson
de Oliveira Lima. Estes não só apontaram o caminho como me pegaram pela mão e me
levaram à UMESP (Universidade Metodista de São Paulo). Fui então apresentada ao
Prof. Dr. Paulo Roberto Garcia, a quem tenho orgulho e privilégio de ter como
orientador na composição desta dissertação.
Nesse período surge um questionamento: “Sou produto do quê e de quem”?
O homem produz instrumentos de toda espécie imaginável, e por meio
deles modifica o seu ambiente físico e verga a natureza à sua vontade.
O homem produz também a linguagem e, sobre esse fundamento e por
meio dele, um imponente edifício de símbolos que permeiam todos os
aspectos de sua vida.1
Diante dessa premissa produzida pela linguagem humana e vivendo no contexto
universal de exteriorização, objetivação e interiorização2, de crise de atitudes e valores,
buscamos um estudo que ajude a iluminar esse momento de incertezas, de
multiplicidade religiosa, de identidade social. Para isso selecionamos o texto de João
13.33-14.31, que pode nos fornecer pistas de como o imaginário recebe a mensagem e
como a transforma em símbolos a serem codificados por um grupo — no caso, o grupo3
joanino (GJ4) que, em meio à busca de unidade e identidade, também precisa legitimá-
la. Entre essas pistas está a definição de “caminho”. Portanto, a metáfora do “caminho”,
1 BERGER, Peter. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. 6. ed. São Paulo:
Paulus, 2009, p.19. 2 BERGER, 2009. 3 Conjunto de pessoas ou coisas que têm as mesmas características, traços, objetivos, interesses comuns.
HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 1487. 4 Daqui por diante o grupo joanino será referido pela abreviatura GJ.
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presente nessa perícope, contribui na escolha do grupo de pertença e desempenha uma
função identitária em uma comunidade marcada por conflitos e divisões.
A presente pesquisa propõe-se a caminhar pela experiência do GJ, no qual as
ideias são entendidas como marco fundante de uma reestruturação religiosa,
caracterizada por “atitudes”5 e valores que ajudem a entender o cristianismo vivido
hoje, cuja ênfase está no processo de segregação e exclusão. O texto do “caminho, e a
verdade, e a vida” é utilizado para entender parte da identidade que nasce a partir da
compreensão dessa imagética do GJ, o que nos ajuda a pensar em novas possibilidades
de apropriação para os dias de hoje. Além disso, a pesquisa se insere na tarefa da
reconstrução dos cristianismos primitivos6, nesse caso, os cristianismos da
Transjordânia, local onde assumimos o GJ.7
A manifestação identitária do GJ se dá por meio de diversos sinais expressos no
Quarto Evangelho (capítulos 2-12) e pela narrativa do discurso de despedida (NDD8),
na qual os personagens apresentam diversas reações frente à despedida de Jesus — para
onde “vai”. Essas reações são narradas a fim de que o leitor implícito se identifique ou
não a cada uma delas. Ocorre uma adesão incipiente ou um desconhecimento do
personagem Jesus (14.8-9). Logo, os personagens do texto são veículos caracterizados
que levam à identidade de Jesus e, consequentemente, ao GJ.
No primeiro capítulo iremos trabalhar a produção de sentido no imaginário do
GJ por meio do uso das metáforas, as quais foram contempladas com a seleção do
cânon. Para tal pesquisamos a metáfora como palavra significante que desloca e estende
o sentido de outras palavras, a ser tratada não apenas como uma denominação
5 Nas vezes em que o termo “atitude” surge entre aspas nos referimos a ela como “uma variável latente
que organiza um corpus de opiniões, portanto a atitude é a instância geradora e organizadora de
opiniões”. CAVAZZA, Nicoletta. Psicologia das atitudes e das opiniões. São Paulo: Loyola, 2008, p. 22. 6 “Na abordagem aos diversos textos judaicos produzidos no período II século a.C. ao II século d. C.,
percebemos que havia uma pluralidade de movimentos que coexistiam no judaísmo, o que não permite a
redução desta religião em um único movimento — o judaísmo rabínico. Do mesmo modo, percebemos
esta leitura da história no “singular” quando o cristianismo é descrito, da sua origem (ministério de Jesus)
à oficialização, no viés do cristianismo ocidental — helênico. Quando estudamos os escritos cristãos
produzidos no período compreendido entre morte e ressurreição de Jesus à oficialização do cristianismo
como religião do império romano, encontramos uma riqueza de movimentos que, de igual modo ao
judaísmo não pode ser reduzido a essa expressão única”. GARCIA, Paulo Roberto. O sábado do Senhor
teu Deus: o Evangelho de Mateus no espectro dos movimentos judaicos do I século. 2001. 211 f. Tese
(Doutorado em Ciências da Religião) — Universidade Metodista de São Paulo, 2001, p.4-5. 7 VIDAL, Senén. Los escritos originales de la comunidad del discipulo “amigo” de Jesus. Salamanca:
Sígueme, 1997, p. 25-26. 8 A narrativa do discurso de despedida de Jesus aos discípulos será referida no decorrer da dissertação
pela abreviatura NDD.
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cambiável, mas como um enunciado com começo, meio e fim. Ainda, dialogamos com
a filosofia, psicologia, sociologia, antropologia e teologia na busca de um itinerário
metafórico proposto ao leitor pelo texto de João 13.33-14.31 a partir de uma releitura do
GJ.
Nossa perícope se trata da despedida de Jesus. O narrador implícito aproxima o
leitor do personagem protagônico e dos coadjuvantes fazendo com que o texto seja
vivido por eles no momento de cada leitura. Nossa frase principal e única no Quarto
Evangelho (QE9) está contida na tensão metafórica entre “Eu sou o caminho, e a
verdade, e a vida” (14.6). É por meio dessa tensão metafórica que se pode buscar a
produção identitária do grupo. De fato, quando lemos a perícope em questão
encontramos a produção de sentido na experiência que os personagens narram enquanto
relato de testemunhas cuja identidade é revelada e construída.
O segundo capítulo terá como ferramenta a exegese pelo método histórico-
crítico. A autorrevelação personificada de caminho como parte da identidade de Jesus
aparece apenas nessa perícope. Com base na revelação do personagem principal é
possível traçar pistas da identidade do GJ em meio à relação conflituosa interna e
externa vivida no final do primeiro século.
Segue-se, então, o terceiro capítulo com a proposta de analisar o dito “Eu sou” e
as metáforas “o caminho, e a verdade, e a vida”. Pela proximidade temporal, essa
análise nos levou a perceber a importância da investigação com a literatura da
Biblioteca de Nag Hammadi, em nosso caso, o escrito de Valentino (140-180 d.C.).
Além disso, partindo do exame dos capítulos anteriores, este também propõe traçar
convergências e divergências literárias, bem como perceber ecos do GJ em outros
grupos, denominados por Irineu de “interpretes malignos”10 — o que mostra como a
literatura joanina foi popular e como se deu para outros grupos a recepção da mensagem
do GJ, qual a imagética simbólica de cada um deles sobre a verdade.
A presente dissertação conta, ainda, com três anexos assim compostos:
Anexo I – Mapeamento no QE do dito revelacional e das metáforas de “Eu sou o
caminho, e a verdade, e a vida”. Por meio desse mapeamento, o leitor pode seguir as
9 Daqui por diante o Quarto Evangelho será referido como QE. 10 PAGELS, Elaine. Além de toda crença. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.
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sequências crescentes dentro da narrativa do GJ, sendo o dito e as metáforas o nosso
alvo de informações, de modo a perceber que essa frase foi analisada dentro do contexto
do QE.
Anexo II – Ecos do dito “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida” em Nag
Hammadi. Aqui o leitor é informado do que vem a ser o dito e cada um dos verbetes
para o grupo de identidade gnóstica. Pode perceber, no decorrer do espaço-tempo, como
a recepção da mensagem do GJ vai tomando outros rumos no imaginário e observar as
similaridades e desigualdades no processo identitário de cada um dos grupos sociais.
Anexo III – A recepção do QE na antiga comunidade cristã do século II. O QE é
considerado como de uma produção tardia, logo está bem próximo do gnosticismo, de
Valentino e de Irineu de Lyon. Em uma breve comparação, percebe-se como, num
período de tempo não muito extenso após a morte de Jesus, o modo como a mensagem
foi recebida por esses grupos constituiu a identidade social religiosa, dando corpo à
sociedade. “A questão da identidade, assim, deve ser vista não como questão apenas
científica, nem meramente acadêmica; é sobretudo uma questão social, política”11 e
religiosa.
11 CIAMPA, Antônio da Costa. A estória de Severino e a história da Severina. 4. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1994, p. 127.
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CAPÍTULO I
“EU SOU O CAMINHO, E A VERDADE, E A VIDA”
Introdução
Para iniciar o presente capítulo, pensamos ser importante desenvolver e
demonstrar uma abordagem aplicada sobre as metáforas caminho, verdade e vida no
QE, em particular 14.6: “Diz a ele Jesus: Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida”
(le,gei auvtw/| Îo`Ð VIhsou/j\ evgw, eivmi h` o`do.j kai. h` avlh,qeia kai. h` zwh,\). Trata-se de
entender o sistema de coerência na produção de sentidos, oposições e rupturas entre os
diversos elementos da construção tanto do texto quanto da realidade. Tratamos como
metodologia teórica da metáfora no QE a visão mais antiga, a qual, segundo nossos
precursores de linguagem, tais como Paul Ricoeur e George Lakoff12, está associada a
Aristóteles (século IV a.C.). Lakoff argumenta que a teoria clássica da metáfora era tida
como verdade absoluta. As pessoas não percebiam a linguagem como uma teoria
gramatical metafórica, ou como uma figura de linguagem.
Inicialmente, nossa intenção é contemplar recortes da obra A metáfora viva, de
Paul Ricoeur, que trata a função narrativa do desenvolvimento da metáfora em
Aristóteles, passando, então, a esclarecer a compreensão de mundo, de vida, de verdade
e de caminho no GJ. Numa análise teórica, ainda com Ricoeur e suas obras A
hermenêutica bíblica e Hermenêutica e ideologias, atravessaremos brevemente esses
temas pelo nível semântico, finalizando no nível hermenêutico. Esses textos serão nossa
base de compreensão ao trabalharmos as metáforas do caminho, da verdade e da vida
personificadas em Jesus na comunidade do QE.
12 LAKOFF, George. Metáforas da vida cotidiana. São Paulo: EDUC; Editora PUC, 2008.
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Embora haja um constante vai e vem entre os autores quanto à delimitação da
perícope no QE (aqui fixada entre 13.33-14.31 como unidade completa), assumimos a
frase metafórica de 14.6 — “Diz a ele Jesus: Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida”
— como o fio condutor da narrativa, estabelecendo correspondência na formação
identitária de um grupo, que é conhecido como os “do caminho”.
Dessa maneira, a literatura do QE se torna um meio de desvelar a identidade de
uma comunidade que, por pertencer ao domínio de uma época conflituosa e
diversificada, tem sua marca no jogo de metáforas. É na diversidade que surge essa
frase singular e exclusivista, cuja harmonia de forma e conteúdo semântico será
responsável pelo nascimento de um grupo dentro dos cristianismos primitivos.
1 Metáforas clássicas em Ricoeur
Buscar esclarecer a existência humana é buscar o sentido da vida. “A intriga
narrativa imita a realidade das ações humanas”13, um pensamento reflexivo. Segundo
Ricoeur, isso é “redescobrir a autenticidade do sentido graças a um esforço de
desmistificação” na linguagem.
Aristóteles define assim metáfora: A metáfora é a transferência para uma
coisa do nome de outra, ou do gênero para a espécie, ou da espécie para o
gênero, ou da espécie de uma para o gênero de outra, ou por analogia. Além
disso, sua análise situa-se no cruzamento de duas disciplinas, a retórica e a
poética, que têm objetivos distintos: a “persuasão” no discurso oral e a
“mimeses” das ações humanas na poesia trágica.14
O ser humano se distingue pela sua capacidade de pensar sobre si, o outro e o
mundo ao seu redor; é um ser que busca explicações existenciais. Por isso é considerado
um ser “em estado de inacabamento”15. Explicar ou entender a realidade é um desafio
hermenêutico, “o poder de redescrever a realidade”16, visto que o real é um jogo
polissêmico da linguagem, em nosso caso particular, da linguagem escrita no GJ.
13 RICOEUR, Paul. A hermenêutica bíblica. São Paulo: Loyola, 2006, p. 34. 14 RICOEUR, Paul. A metáfora viva. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2005, p.13. 15 MIGUEL, Igor da Silva. “Mischlei” e mediação educacional: uma análise pedagógica de Provérbios
de Salomão. 2013. 144 f. Dissertação (Mestrado em Letras) — Universidade de São Paulo, São Paulo,
2013, p. 12. 16 “A hermenêutica é a teoria das operações da compreensão em sua relação com a interpretação dos
textos”. RICOEUR, Paul. Hermenêutica e ideologias. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 23.
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20
Por conta dessa incompletude, o ser humano busca respostas para a sua
existência, construção de crenças, formação do cognitivo, pois essas características e
outras dependem fundamentalmente de saberes culturais e existenciais, sendo a
linguagem primordial para essa realização.
O caminho da linguagem se encontra na essência do ser humano. Não existe
compreensão de si que não seja mediada pela sua comunicação, pelos textos, pelos
símbolos: a linguagem articula, esclarece a experiência humana e lhe apresenta a
realidade17. Nessa ótica, a teoria moderna da metáfora (meta: além de + o verbo fe,rw:
levar) se mostra como instrumento linguístico adequado à função hermenêutica. O título
do presente capítulo indica que a revelação do personagem Jesus se constitui, em sua
natureza, de metáforas que possivelmente representam verdades para o GJ, as quais se
apresentam como um dos tópicos identitários.
Outra característica da metáfora, segundo Aristóteles, é a transferência para uma
coisa do nome de outra. “A metáfora na retórica considera ‘a palavra’ como unidade de
referência”18; “metaforizar”, dizia ele, é perceber o semelhante.
1.1 Retórica e poesia
Aristóteles trabalha com a metáfora na retórica e na poesia, sendo a retórica
clássica dividida em três intenções: a elegância do discurso, a introdução de provas no
discurso e a persuasão, uma figura de linguagem destinada a influenciar. Segundo a
antiga definição dos sicilianos, “a retórica é escrava (ou mestra) da persuasão”.19
O problema da metáfora clássica está em que ela chegou até nós amputada, pois
a disciplina foi encerrada em meados do século XIX. Dizemos “amputada” porque, ao
chegar até a modernidade sem o vínculo da filosofia, a metáfora sofre um reducionismo.
A retórica é tão antiga quanto a filosofia. Daí que a arte do “bem falar”20 libera-se do
17 WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento: manual de metodologia. 6. ed. São Leopoldo: Sinodal,
2009, p. 205. 18 RICOEUR, 2005, p. 9. 19 RICOEUR, 2005, p. 18-19. 20 MIGUENS, Sofia. As ciências cognitivas e a naturalização do simbólico. Lisboa: FCH-UNL, 1995, p.
75 de seu artigo “Metáfora” na cadeira de Filosofia da Linguagem na FLUP, 2001-2002: “A fala é um
conjunto de elementos simbolizando os estados da alma, e a escrita é um conjunto de elementos
simbolizando a fala. E, assim como os homens não têm todos o mesmo sistema de escrita, eles não falam
todos da mesma maneira. No entanto o que fala significa imediatamente são os estados da alma, que são,
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21
cuidado de “dizer a verdade”. Logo, a técnica de um bom orador, aquele que articula a
linguagem, gera o poder de convencimento e confere a quem fala um poder de
dominação do que é a “verdade”.
A poética, cuja arte é compor poemas, métricas, rimas, tem como produção
principal a “trágica”. A poesia não é eloquente, não tem interesse em persuadir, produz
“a purificação das paixões”21. Ao contrário da retórica, a poesia não busca aprovação,
mas busca semelhanças:
... seu alcance é compor uma representação essencial das ações humanas, seu
modo próprio de dizer a verdade por meio da ficção, do mythos trágico. A
tríade poiésis-mimesis-kátharsis, sem confusão com a tríade da retórica-
prova-persuasão.22
1.2 Mythos
Na poesia, mythos teria mais a ver com a representação das ações humanas:
“‘Pode-se imitar narrando’ [...] ou apresentando todas as personagens tanto agindo quanto
em ato. Aqui o termo ‘imitar’ tem a ver com ‘mimeses’, que é a produção original do
‘mythos’, tratando-se da “interpretação do real pela representação (ou imitação) literária”.23
O termo “mito” vem do grego mythos (muqoj) e deriva de dois verbos:
mytheyo (contar, narrar, falar alguma coisa para os outros) e mytheo
(conversar, contar, anunciar, nomear, designar). Para os gregos mito é um
discurso pronunciado para ouvintes que recebem como verdadeira a
narrativa, porque confiam naquele que narra; é uma narrativa feita em
público, baseada, portanto, na credibilidade do narrador, cuja legitimidade
provém de ter sido escolhido pelos deuses para a missão de proferir um
discurso. O mito é uma narrativa sobre a origem de alguma coisa. Nesta
definição nos encontramos com a crise existencial da origem humana, da
visão de mundo, “do aspecto cosmogônico na lógica do mito”. A palavra
gonia vem de duas palavras gregas: do verbo gennao (engendrar, gerar, fazer
nascer e crescer) e do substantivo genos (nascimento, gênese, descendência,
gênero, espécie). Gonia, portanto, quer dizer: geração, nascimento a partir da
concepção sexual e do parto. Cosmos [...] quer dizer mundo ordenado e
esses, idênticos para todos os homens; e o que esses estados de alma representam são as coisas, não
menos idênticas para todos. Aristóteles, Acerca da interpretação I, 16a”. 21 RICOEUR, 2005, p. 23. 22 RICOEUR, 2005, p. 23-24. 23 AUERBACH, Eric. Mimesis: The Representation of Reality Western Thought. Princeton: Princeton
University Press, 2013, p. 549.
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22
organizado. Assim, a Cosmogonia é a narrativa sobre o nascimento e a
organização do mundo a partir de forças geradoras (Pai e Mãe) divinas.24
No sentido antropológico, mito é uma “solução imaginária para tensões,
conflitos e contradições que não encontram caminhos para ser resolvidos no nível da
realidade25”. Para Marilena Chauí, nada mais é do que “aquele que não cessa de
encontrar novos meios para exprimir-se, novas linguagens, novos valores e ideias, de tal
modo que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo.26
Karen Armstrong escreve que temos a tendência de pensar que nossos ancestrais
entendiam a produção de sentido da vida como nós. No entanto, eles tinham dois modos
diferentes de pensar, agir e adquirir conhecimento, o Mythos e o Logos27, ambos usados
como métodos a fim de se chegar à verdade. Mythos se refere a questões profundas da alma,
às origens da vida. Está ligado diretamente ao que a psicologia chama de inconsciente, a um
nível mais profundo do ser humano. O Mythos tem acesso ou promove acesso ao obscuro,
ao inacessível da mente, causando um efeito em nosso comportamento28. Por sua vez, o
Logos trata o racional, o objetivo, aquilo que se pode provar empiricamente.
“O mito não era racional; suas narrativas não comportavam demonstrações
empíricas. O mito fornecia o contexto que dava sentido e valor às atividades práticas29”.
Na falta de documentação escrita, a oralidade transmitiu por muitos anos um
“patrimônio cognoscitivo30”. Assim, o mito se coloca ao lado das pinturas rupestres, dos
artefatos arqueológicos. Mediante ele temos as fábulas, ecos, ainda que deformados, do
acontecimento passado. Além disso, o mito também pode ajudar a reconstruir uma
civilização nunca vista:
os mitos podem responder a cada uma destas perguntas: Como uma
sociedade particular veio à existência? Qual o sentido dessa instituição? Por
que algumas coisas são proibidas? Que é que legitima uma autoridade
particular? Por que a condição humana é tão miserável? Por que sofremos e
morremos?31
24 CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. 4. ed. São Paulo: Perseu Abramo,
2001, p. 28-30. 25 CHAUÍ, 2001, p. 9. 26 CHAUÍ, 2001, p. 9. 27 ARMSTRONG, Karen. Em nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no
islamismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p.13. 28 ARMSTRONG, 2001, p. 13-14. 29 ARMSTRONG, 2001, p.15. 30 GINZBURG, Carlos. Mitos, emblemas, sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 151-152. 31 RICOEUR, 2006, p. 248.
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23
1.3 O declínio da retórica clássica
O segundo estudo de A metáfora viva, que tem como tema o declínio da retórica,
revela o curso da metáfora a partir daí. As duplas interpretações de retórica e poesia não
foram mantidas como deveriam e os elementos da retórica foram reduzidos a
“ornamentos de discurso”, depois a uma classificação de figuras de linguagem, uma
tropologia32. Com isso queremos dizer que a metáfora deve passar por algumas fases
estruturais, tais como da retórica à semântica e desta à hermenêutica. Trataremos no
momento somente a passagem da primeira à segunda parte da afirmação. A metáfora foi
pouco a pouco perdendo o significado dado pelos gregos, em que era usada para
representar uma verdade. Sendo reduzida a uma figura de linguagem, “foi amputada a
teoria da argumentação e a teoria da composição”.33
“Fogo do amor” ou “espelhos das águas” certamente são metáforas nas quais a
retórica vê um desvio entre a literalidade e o sentido figurado. Retornando ao QE, temos
“[...] mas para que o mundo conheça, pois, o amor do Pai!” (e;rcetai ga.r o` tou/ ko,smou
a;rcwn\) e “Eu sou o pão da vida!” (evgw, eivmi o ̀ a;rtoj th/j zwh/j\), (6.35). No primeiro
caso, a metáfora teria um sentido de estilo, no qual o termo mundo se transfere para
pessoas ou humanidade, empobrecendo a dinâmica da metáfora. Nesse exemplo
trocaríamos apenas o nome mundo por pessoas; não trabalharíamos a frase. O mesmo
ocorre no segundo caso, com a metáfora pão da vida. Alterando-a para alimento da
vida, nossa análise pararia aí, perdendo a capacidade de perceber, pensar o cotidiano de
um grupo. Segundo Ricoeur, isso empobreceria a metáfora, reduzindo-a a uma função
denominativa34 e não predicativa35 (ação).
Enquanto a função denominativa qualifica nome ou coisa, a metáfora, por sua
vez, não nomeia, mas caracteriza o que já está nomeado, e, neste sentido, ela
é portadora de uma nova informação, que não está contida na simples
denominação.36
32 RICOEUR, 2006, p. 47. Tropologia é o emprego de linguagem figurada (cf. HOUAISS, 2001, p. 2777). 33 RICOEUR, 2005, p. 17. 34 Que ou o que denomina, nomeia, que é do nome, dar nome (HOUAISS, 2001, p. 938). 35 Que predica, que serve para predicar, atribui predicação a uma argumentação, liga o sujeito ao objeto
(HOUAISS, 2001, p. 2283). 36 PEUZÉ, Pascal Jean André Roger. A parábola-metáfora na literatura rabínica: o mashal à luz dos
trabalhos de Paul Ricouer e Jonáh Freenkel. 2010. 94 f. Dissertação (Mestrado em Letras) —
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 14.
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24
1.4 Produção de sentido no QE
Até o momento, percebe-se certo nível de dualismo na metáfora, sendo esta
apresentada por Aristóteles na retórica e na poesia, respectivamente, como persuasão e
mimeses. Na narrativa mitológica e na reinterpretação da realidade, na tensão entre
verdade e real, essa interpretação é a que nos interessa, a que foi utilizada no primeiro
século como produção de sentido. O QE, por ter sua produção de sentido contida nas
metáforas clássicas, emprega uma linguagem dual (noite/dia; luz/trevas) — o que nos
faz pensar na intenção do narrador implícito ao fazer uso de metáforas para explicar,
aproximar-se da realidade vivida naquele momento, identificar os “pertencentes ao
caminho” (At 9.2).
Entre as figuras de expressões das metáforas temos a ficção como uma
semelhança na qual se dá a personificação de coisas inanimadas, insensíveis, como no
caso da nossa frase principal — “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida” (14.6). A
subjetividade ganha imagens de uma pessoa, a qual não pode, na literalidade, ser o
caminho: não se anda sobre um corpo humano para viver e muito menos se considera
isso um padrão antropológico natural. Por outro lado, nosso cotidiano é repleto de
metáforas, uma vez que os sinais de linguagem são insuficientes para representar as
ideias.
Ainda que se tenha perdido o conceito clássico que lhe conferia sentido real, a
metáfora é interiorizada no cotidiano pelo imaginário religioso. Este passa a ser uma
tradição com tamanha propriedade que não consegue romper seu vínculo com a
realidade. No QE, a metáfora não é aplicada unicamente como estética, mas para
explicar, dizer algo para o que os signos da língua, em seu sentido literal, mostram-se
insuficientes. Mediante esse jogo de linguagem fazemos nossa leitura de conhecimento
de mundo.
Cada metáfora carrega sobre si uma especialização, uma sistematicidade, assim
como o ser humano é classificado como racional, pois pensa e crê que controla outros
seres vivos, como os animais, as plantas, o espaço físico etc. Em sua sistematicidade na
linguagem, racional é bom, auxilia no suposto controle e escolhas no período em que
está vivo. Baseado na razão, viver é bom. Quando temos a notícia do nascimento de um
bebê, ficamos felizes e felicitamos os pais pelo recém-nascido. Por outro lado, no caso
-
25
de um óbito, ficamos tristes, pois para os seres humanos isso é a representação do fim
da vida, fim do bom e do para cima, oposto à vida. Num diagrama seria assim
representado:
Bom base experiencial Positivo
Ruim Negativo
Nascer base experiencial Positivo
Morrer Negativo
1.4.1 Mas o que vem a ser ficção?
Ficção seria, segundo Ricoeur, o auge da metáfora. Aqui ela assume um caráter
ficcional por intermédio do discurso metafórico, ressignificando a realidade,
interpretando-a com o ficcional, quando o discurso libera o poder da ficção em
redescobrir o real. Dessa junção entre ficção e redescrição concluímos que o lugar
íntimo da metáfora não esteja possivelmente apenas no nome (substantivo), mas no
verbo “ser”: o “é” metafórico se tensiona entre o “é” e o “não é”. Vejamos um exemplo
em Jo 3.18:
“Quem crê nele não é julgado” (ò pisteu,wn eivj auvto.n ouv kri,netai\).
“Quem não crê está julgado” (ò de. mh. pisteu,wn h;dh ke,krita.).
Encontramos aí uma condição de pertença ao GJ. A narrativa nos apresenta o
termo julgar (kri,nw) como sendo negativo. Conforme Jo 5.29, não é bom ser julgado:
“e sairão os que tiverem feito o bem para uma ressurreição de vida; os que tiverem feito
o mal para uma ressurreição de julgamento” (kai. evkporeu,sontai oi` ta. avgaqa.
poih,santej eivj avna,stasin zwh/j( oi ̀ de. ta. fau/la pra,xantej eivj avna,stasin kri,sewjÅ).
Logo:
Crer Positivo/ Para cima
Não crer Negativo/ Para baixo
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26
No QE, os signos julgamento, morte, não crer, não permanecer, trevas, judeus,
fariseus, Nazaré, mundo como oposto de céu (gh/j) etc. são sinais negativos para o GJ.
“[...] porque sei donde vim e aonde vou!” o[ti oi=da po,qen h=lqon kai. pou/ up̀a,gw\
“Mas vós não sabeis u`mei/j de. ouvk oi;date
donde venho e aonde vou.” po,qen e;rcomai h' pou/ u`pa,gwÅ (8.14).
“Eu, pois, de Deus saí e aqui estou!” evgw. ga.r evk tou/ qeou/ evxh/lqon kai. h[kw\
“[...] nem, pois, de mim mesmo vim” ouvde. ga.r avpV evmautou/ evlh,luqa(
“mas aquele me enviou” avllV evkei/no,j me avpe,steilenÅ(8.42).
O vínculo metafórico tem o seu auge na ficção, que nessa troca do conhecido
pelo desconhecido, ou não compreendido originariamente, vem por meio dessa
ferramenta abrir possibilidades de conhecimento. Nesse conhecimento encontramos
ideias, sugestões cognitivas que auxiliam a compreensão de mundo, no nosso caso, do
GJ.
Quando o narrador implícito usa a afirmação: “Eu sou o pão da vida” (6.34),
reconhecemos o pão como alimento antropológico. O pão é a base na alimentação
judaica. Ele passa a ser o representante da vida, da sustentabilidade existencial básica da
vida, pois, se saciarmos a nossa fome, sairemos do risco de morte e viveremos. Essa é
uma verdade contida na metáfora. Aqui o personagem Jesus passa a ser o próprio pão, a
própria água (4.14). Quem deles comer e beber não tornará a ter este tipo de
necessidade antropológica; está para além da necessidade fisiológica. A água, além de
gerar vida antropológica, faz do que bebe dessa fonte metaforizada outra fonte de água
viva, que se tornará uma fonte de água viva eterna. Não sabemos como o ser humano
pode vir a ser um pão, mas compreendemos o que pão e água são em sua literalidade e
sua finalidade. Assim se consegue reler a realidade revelada por essa comunidade cristã
“do caminho”.
Esse conceito de revelação deriva das ideias gnósticas que a comunidade
joanina herdou de sua tradição. De acordo com esse conceito gnóstico, a
palavra do revelador só pode ser entendida por aqueles que não são “do
mundo”, mas “de Deus” (8.47) ou da “verdade” (18.37). [...]. Em primeiro
lugar, não somente o mundo do revelador, mas também sua presença é uma
resposta a uma necessidade humana, realmente existente, isto é, a questão da
-
27
verdadeira vida que está na base de todas as buscas da humanidade. A essa
busca Jesus responde com sua declaração: “Eu Sou”.37
1.4.2 Ficção e metáfora no QE
Segundo Ricoeur, “a ficção tem grande afinidade com a metáfora”38. Ela
empresta a um pensamento as características de outro pensamento, tornando-o
agradável e de melhor compreensão, com mais intensidade. A personificação que é uma
ficção faz do abstrato o ideal; o inanimado ganha vida, movimento, significação. Por
exemplo, Jo 14.4-6:
E para onde [eu] vou (kai. o[pou Îevgw.Ð up̀a,gw)
conheceis o caminho (oi;date th.n o`do,nÅ)
Tomé lhe diz: (Le,gei auvtw/| Qwma/j\)
Senhor: (ku,rie()
Não sabemos aonde vais! (ouvk oi;damen pou/ u`pa,geij\)
Diz para [ele] Jesus: (le,gei auvtw/| Îo`Ð VIhsou/j\)
Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida (evgw, eivmi h` o`do.j kai. h ̀avlh,qeia kai. h ̀
zwh,\)
Nesse exemplo temos uma primeira parte composta por ideias contrárias. Os
tropos trocam de lugar: “Para onde vou conheceis o caminho” e “não sabemos aonde
vais”. A presença do “e” e do “não”, característica da epífrase (elaboração de frases
ambíguas), ajudará a esclarecer nossa metáfora principal, a nossa ficção personificada
em Jesus: “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida”.
A metáfora começa a elucidar o contexto: “[...] para aonde vou conheceis o
caminho, eu sou o caminho”, “Eu sou o pão da vida”, “Eu sou o pão o que vive”, “Eu
sou a luz do mundo”, “ Eu sou a verdadeira videira.39
37 KÖESTER, Helmut. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulus, 2005. v. 2, p. 207-208. 38 RICOEUR, 2006, p. 99-101. 39 LURKER, Manfred. Dicionário de figuras e símbolos bíblicos. São Paulo: Paulus, 1993, p. 261.
Na Mesopotâmia antiga, a videira era identificada como a “erva da vida” pelas suas propriedades
fortificantes e excitantes. Na Suméria, o sinal simbólico para se referir à vida era originalmente uma folha
de videira. No Antigo Testamento, a vinha e a plantação de uvas eram imagens simbólicas para se referir
ao povo eleito de Deus: “Pois bem, a vinha do Senhor dos Exércitos é a casa de Israel e, os homens de
Judá são sua plantação preciosa” (Is 5.7). A imagem da vinha passa para videira: “Israel era uma vinha
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28
Temos no QE um jogo de metáforas que se aglutinam com a finalidade de
formar outro pensamento, usando a imagem do caminho real como um caminho
subjetivo — uma cosmovisão diferenciada, cuja metáfora produz intensidade na
transposição do sentido, na personificação.
“Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida!”
“Vós perscrutais as Escrituras porque julgais ter nelas a vida eterna; ora, são elas
que dão testemunho de mim” (5.39).
“Sei que vem um messias (que se chama Cristo). Quando ele vier nos explicará
tudo”. Disse-lhe Jesus: “Sou eu, que falo contigo” (4.25).
As revelações criadas pelo nosso autor implícito com o uso de metáforas são
diversificadas. Estas giram em torno de conflitos da comunidade presente no QE, os
quais convém demarcar. O GJ precisa anunciar que eles fazem parte de um grupo, os
“do caminho”, o qual tem como meta final a vida eterna, o que é legitimado pela
verdade como tema central da frase.
1.5. Metáfora e realidade no QE
Até o momento vimos a metáfora como enunciado, o mito como representação
do que não conseguimos explicar e a ficção como auge da metáfora personificada do
real. Ademais, a metáfora não se limita a substituir um nome por outro ou uma coisa por
outra coisa, mas tem função predicativa que vem dizer algo novo. Tentaremos, no
entanto, extrair da definição nominal, bem como da definição genérica, as oposições
entre elas que num dado momento se cruzam no caminho da frase.
A metáfora — e com ela as narrativas, os discursos, as fórmulas de
reconhecimento — tem algo a dizer sobre a realidade existencial. As metáforas usadas
pelo autor do QE fazem parte do seu cotidiano. As fórmulas metafóricas, ressignificadas
em reconhecimento, não são um mero jogo ou figuras de linguagem. Elas têm um
significado carregado de sentido referente à exteriorização, de modo que o discurso de
despedida (13.33-14.31) se tornará uma narrativa hermenêutica.
exuberante, que dava frutos (Os 10.1); “A noiva convida o seu celeste noivo a entrar na vinha: vejamos se
a vinha floresce, se os botões estão se abrindo [...] lá te darei meu amor” (Ct 7.12).
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29
A hermenêutica não é outra coisa senão a teoria que regula a transição da
estrutura da obra ao mundo da obra. Interpretar uma obra é desvendar o
mundo ao qual ela se refere em virtude de sua “disposição”, de seu “gênero”
e de seu “estilo.40
1.6 A semântica da metáfora no QE
Como vimos anteriormente com os trabalhos de Ricoeur, a metáfora seguiu do
nome para a frase. Daí se chegou ao conceito de “enunciado metafórico” na semântica.
Neste ponto da pesquisa seguimos com a proposta de que nossa frase metafórica narra,
num discurso de despedida, pistas da identidade do grupo, tais como fatores
comportamentais, crenças e ritos nos quais relações e conexões linguísticas podem ser
percebidas.
Segundo a retórica clássica41, a teoria da semântica considera que é o enunciado
inteiro que formula o significado da metáfora, mas a atenção se concentra em uma
palavra particular. É um jogo linguístico no qual a semântica é irredutível à semiótica.
Para que o leitor entenda, o signo, o termo, a palavra é a unidade significante e com
outras unidades significantes forma uma frase mais longa ou mais complexa. Esta dá
origem ao discurso, à narrativa, ao significado. Logo, semiótica é a unidade significante
(palavra) e a semântica o significado (frase).
Com efeito, uma metáfora nunca aparece só. Uma metáfora chama outra e
todas em conjunto permanecem vivas devido à sua tensão mútua e o poder de
cada uma evocar o conjunto da rede. Por exemplo, na tradição hebraica, Deus
é chamado de rei, pai, esposo, dono da casa, pastor, juiz e também rocha,
fortaleza e redentor, etc. Do mesmo modo, emergem certas metáforas que
reúnem muitas metáforas parciais tiradas de diferentes campos de experiência
e que lhes fornecem uma espécie de equilíbrio. Essas metáforas “fonte” têm
uma aptidão particular em engendrar um número ilimitado de interpretações
potenciais em um nível mais conceitual. Assim, ao mesmo tempo reúnem e
difundem. Reúnem metáforas subordinadas e difundem novas correntes de
pensamento.42
A sustentação de uma teoria semântica na metáfora apoia que o sentido
metafórico ocorre da tensão das suas características — como a tensão dual entre o “é” e
o “não é” do verbo ser na justaposição, articulação etc. entre as palavras de uma
narrativa, pressupondo um princípio de associação entre dois ou mais termos, os quais
40 RICOEUR, 2006, p. 337. 41 RICOEUR, 2005, p. 107. 42 RICOEUR, 2006, p. 183.
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30
podem ser semanticamente opostos, mas que irão produzir sentido. Isso exige de nós o
entendimento de que o reconhecimento emergente surge dentro do contexto no qual está
sendo proferida a assimilação histórica desse novo sentido. No QE:
“Eu sou, que falo contigo!” evgw, eivmi( o` lalw/n soiÅ (4.26)
“Eu sou o pão da vida” evgw, eivmi o` a;rtoj th/j zwh/j\
(6.35;38)
“Eu sou o pão o que vive” evgw, eivmi o` a;rtoj o` zw/n (6.51)
“Eu sou a luz do mundo” evgw, eivmi to. fw/j tou/ ko,smou\ (8.12)
“Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida!” evgw, eivmi h` o`do.j kai. h` avlh,qeia kai.
h` zwh,\ (14.6).
“Eu sou a videira verdadeira” VEgw, eivmi h` a;mpeloj h̀ avlhqinh.
(15.1).
1.7 O movimento da metáfora
O deslocamento de um termo que se repete recebe o nome de epífora. A epífora
se desloca no final do enunciado, provocando uma informação ambígua, porque ao
invés de trocar o nome pelo produto como a metonímia, ou a sinédoque, um caso
especial da metonímia, substitui uma parte pelo todo, coisa que ocorrerá nas taxonomias
da retórica posterior.
Segundo Ricoeur, a epífora é portadora de som complexo de significado que se
estende do nome ao verbo até a esfera da locução, ou seja, a frase completa. Podemos
dizer que ela afeta o centro do significado semântico, mudando a estrutura de produção
de sentido. É somente no contexto do texto, no discurso, que a palavra recebe seus
vários sentidos.
Ricoeur adota a distinção entre semântica e semiótica. Como dissemos
anteriormente, esta última se fixa na palavra como sinal e a semântica foca a frase como
portadora de significado. Esses são os códigos mais importantes da linguagem, sendo o
semântico o mais abstrato código da memória. Permitindo armazenar o sentido das
coisas e das palavras, ele se manifesta pela metáfora: “palavra na ponta da língua”. Um
bom exemplo disso é um doente aléxico (perda da capacidade de leitura), que consegue
entender e repetir uma palavra ouvida, mas não consegue desenvolver a grafia.
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31
1.8 Um enigma: metáfora e comparação
De acordo com Ricoeur, a metáfora na retórica encontra um paralelo com a
comparação, o que não acontece na poesia. Por quê?
A característica essencial da comparação é o efeito em seu caráter discursivo:
“Deixo-vos a paz, minha paz vos dou; não vo-la dou como o mundo a dá” (14.27). Para
haver uma comparação é preciso que existam dois termos presentes no discurso. Em
“Não vo-la dou como o mundo dá, eu dou a minha paz”, temos a paz do personagem
Jesus e a paz do mundo. “[...] como o mundo [...]” sozinho não estabelece uma
comparação, mas precisa de outro termo, no caso, “[...] eu dou a minha paz”. Notamos a
presença implícita da epífora, posto que a narrativa irá transpor de um polo para outro.
O autor da metáfora utiliza um termo conhecido na realidade e o transfere para o campo
ficcional, de modo a apresentar a identidade do personagem — uma transferência de
gênero: a paz de um sistema governamental, possivelmente o de Roma (a Pax Romana),
para a espécie humana na pessoa de Jesus (“a minha paz vos dou”). Essa comparação
cria uma atribuição ao que não é habitual. O mundo oferece uma paz que é conhecida
pelo GJ. No meio dos conflitos vividos pela comunidade do QE é oferecida uma paz
diferente, fora do habitual, insólita, e que para ser compreendida se faz necessário o uso
da comparação metafórica.
Este, ao meu entender, é o interesse entre a relação metáfora e comparação;
desde o momento em que Aristóteles subordina a comparação à metáfora,
descobre nesta uma atribuição paradoxal.43
1.9 Dos relatos bíblicos às narrativas hermenêuticas
Muito especificamente, Ricoeur explicita com relatos de parábolas a forma
narrativa: “Que é que nas parábolas que nos leva a olhá-las como metáforas de outra
realidade diferente daquela de que aparentemente falam?”. A frase “Eu Sou o que sou”
(Êx 3.14), fórmula que desvela o nome de Deus, tanto preserva o seu mistério como o
revela. Em “Eu o sou, eu que falo contigo” (Jo 4.26), Jesus traz a fala do Antigo
Testamento e se desvela da mesma maneira que Deus a Moisés. O autor legitima a sua
revelação com a mesma fórmula e com isso Jesus diz ao povo quem é!
43 RICOEUR, 2005, p. 43.
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“Filipe lhe diz: Senhor mostra-nos o Pai e isso nos basta”!
“Diz-lhe Jesus: Há tanto tempo convosco e tu não me conheces Filipe”?
Ricoeur detalha como nas formas narrativas as metáforas ganham uma expressão
extravagante. O texto sofre uma tensão metafórica sob a pressão de “expressões
limite”44, no nosso caso, “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida”! A partir da rede
tensional estabelecida entre as metáforas, uma análise estrutural pode ser procedida em
uma narrativa conflituosa seguida pelo desenlace do conflito, gerando no GJ uma marca
identitária. Vejamos o seguinte exemplo:
Como pode uma moradia ter muitas moradas (Jo 14.2)? O templo era, até então,
o santuário para os judeus, mas não para o GJ. “[...] não façais da casa de meu Pai uma
casa de comércio” (Jo 2.16). O templo é para os judeus a casa de Deus, mas a revelação
vai além. Os judeus questionam qual sinal Jesus apresentará que justifique a sua atitude.
“Respondeu-lhe Jesus: Destruí este santuário, e em três dias eu o levantarei”. Naquele
momento Jesus falava de si mesmo como sendo ele próprio o santuário e que o
levantaria dos mortos — ele ressuscitaria a si mesmo!
Como pode uma pessoa se autopersonificar no “caminho, e a verdade, e a vida”?
Isso se torna possível mediante o emprego da ficção. O imaginário humano codifica
essas metáforas de várias maneiras como sendo uma estrada simbólica que sirva de
ponte entre o ser humano da terra para o paraíso celeste. A subjetividade dará
significado pessoal, mas de maneira geral a linguagem é carregada em sua expressão
extravagante, ganhando sentido em sua recepção pelo senso comum.
Podemos observar a recepção dessa mensagem pelas imagens que são
produzidas, pelas metáforas, pelo mito e pela ficção, por meio do que é possível fazer
uma leitura do imaginário humano. A ponte construída da terra para o céu geralmente é
representada por uma cruz. Não basta ser uma ponte; precisa ser uma cruz, pois no
imaginário a cruz passa a ter sentido e significado de vida eterna. Os dois mundos são
separados por um abismo em fogo. A verdade no imaginário está contida em cruzar,
percorrer esse caminho sem cair no abismo, e agarrar na mão de Jesus, que fica com o
braço estendido o tempo todo para receber a todos que conseguem concluir a travessia.
44 RICOEUR, 2006, p. 40.
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O que representa no imaginário humano uma moradia com várias casas? Temos
novamente uma recepção carregada pelo imaginário: o céu seria outro planeta onde os
seres humanos possuem suas moradias perfeitas, da maneira que gostariam de ter
quando vivos. No entanto, nesse imaginário é preciso morrer para cruzar o caminho,
tendo alcançado a verdade e chegado à vida eterna em sua morada celestial.
As expressões-limite do QE, elaboradas na desordem metafórica, provocam uma
refiguração do real, uma ruptura com o dia a dia existencial do GJ, e direcionam o leitor
num outro projeto de vida. A desorientação leva a uma reorientação de valores
comportamentais, “abre para a dimensão transcendente da existência humana e provoca
um agir renovado”.45
Esse jogo de intertextualidade entre as metáforas será aqui também chamado de
polarização mútua46. Tal processo de polarização se estende ao QE e, filtrando nossa
perícope (13.33-14.31), tem-se uma rede de intersignificação entre o personagem
protagonista Jesus e os personagens adjuvantes aí encaixados. Assim Ricoeur
estabelece, segundo a narrativa da paixão, a identidade de Jesus que, de acordo com a
teoria estrutural, constituirá a identidade do grupo “do caminho” (At 9.2).
É necessário entender um pouco de quiasmo para trabalharmos nossa verdade
metafórica principal e, consequentemente, todo o contexto da perícope em questão.
Os “quiasmos” ocorrem quando elementos de uma frase ou partes de uma
perícope se correspondem de maneira cruzada. As “estruturas concêntricas”,
que se caracterizam por apresentar diversos elementos equidistantes de um
centro comum. No centro da frase ou do texto há pares que se
correspondem.47
Como ilustração, vejamos nossa metáfora, nossa expressão-limite, com a sua
polarização.
“Eu sou o caminho” (A)
“E a verdade” (centro)
“E a vida” (A’)
45 RICOEUR, 2006, p. 41. 46 RICOEUR, 2006, p. 41. 47 WEGNER, 1998, p. 92.
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Aqui nosso objeto ganha um pouco mais de intensidade: entender a função
metafórica de caminho e vida, aparentemente termos diferentes, mas que, numa leitura
cuidadosa e trazendo à mente o que lemos até o momento sobre metáfora, com suas
transposições intertextuais, ajudam-nos a compreender a representação metafórica do
quiasmo “caminho, verdade e vida”, com a verdade ao centro.
Qual o papel desempenhado por essa imagética na formação identitária do GJ?
A partir de nossa análise estrutural, o que essa construção quiástica representa para o
grupo joanino e a para a sua função identitária que será gerada no GJ? Essa identidade
será definida de várias perspectivas: valores, crenças, ritos, gestos, comportamentos,
linguagem, aparências, relações internas e externas.
2 Identidade
Cremos ser necessário tratar brevemente sobre identidade, o que nos auxiliará na
identificação do GJ. Nosso fio condutor será a psicologia social48. O intuito é despertar
o leitor para o não reducionismo teológico, mas abrir o leque acadêmico e pensar a
multiplicidade de ideias como produtiva na formação de outras ideias.
Como definição do conceito assumiremos a de Antonio Ciampa, para quem a
construção da identidade é um fenômeno social que remete à transformação49. Segundo
a psicologia social, a formação identitária é constituída sobre dois aspectos: o pessoal e
o coletivo, cuja reflexão se assenta na integração pessoal num espaço coletivo.
A identidade pode ser entendida como um fenômeno subjetivo, dinâmico e
produto de semelhanças e diferenças entre si mesmo e entre alguns grupos. Pessoas num
espaço coletivo buscam o reconhecimento de pertença.
Todo indivíduo é caracterizado por traços de ordem social que assinalam sua
pertença a um grupo. As identidades sociais são partilhadas por aqueles que
ocupam posições semelhantes e que possuem pertenças comuns.50
48 DESCHAMPS, Jean Claude; MOLINER, Pascal. A identidade em psicologia social: dos processos
identitários às representações sociais. Petrópolis: Vozes, 2009. 49 CIAMPA, Antônio da Costa. A estória de Severino e a história da Severina. 4. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1994, p. 144-146. 50 CAVAZZA, 2008, p. 23.
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2.1 Identidade social do grupo joanino
O sentimento de pertença, entretanto, tem sua base alicerçada nas semelhanças e
nas diferenças reconhecidas de outros grupos. Sem a diferença se faz impossível a
identidade individual e a social.
Depois disso, veio Jesus com os discípulos para o território da Judeia e
permaneceu ali com eles e batizava. João também batizava em Enom, perto
de Salim, pois lá as águas eram abundantes e muitos se apresentavam para
serem batizados (3.22-23).
Temos aqui a representação de dois grupos semelhantes. Os dois batizam em
água, tanto o grupo de João Batista como o grupo de Jesus. Uma dissimilaridade:
Ao ver Jesus que passava, disse: “Eis o Cordeiro de Deus”. Os dois
discípulos ouviram-no falar e seguiram Jesus (1.36-37).
Possivelmente a primeira divisão de um grupo, ou o reconhecimento de uma
diferença, leva os dois discípulos à tomada de atitude referente ao grupo de pertença, à
formação identitária. Ainda que os dois possuam similaridades, pois ambos batizam em
água, o narrador implícito coloca na fala do personagem João Batista uma revelação
importante: “Este que passa é o Cordeiro de Deus. Eu não sou o Cordeiro de Deus”.
Temos a formação de dois grupos: o endogrupo e o exogrupo.
Na percepção dos grupos, os seres terão a tendência de reconhecer traços
comuns. Esses traços, denominados pela psicologia de estereótipos51, são determinados
por crenças, o que permite caracterizar um comportamento que define um grupo. Na
formação do grupo temos presente a imitação, que se trata da adoção por um sujeito de
um suposto comportamento. Esse sujeito do grupo passa a ser um líder, uma referência.
O adotado ou o iniciado passa por um processo de aprendizagem para depois reproduzir
o comportamento. Por exemplo:
Jesus lhe respondeu: “Aquele que bebe desta água, terá sede novamente; mas
quem beber da água que lhe darei, nunca mais terá sede. Pois a água que eu
lhe der, tornar-se-á nele fonte de água jorrando para a vida eterna” (4.13-14).
51 “O conceito estereótipo foi introduzido por Walter Lippman em 1922. Como tantos outros conceitos da
psicologia, torna-se difícil uma definição precisa, pois a ideia de estereótipo tem sido muito empregada na
psicologia social [...] o termo estereótipo é usado para se referir aos estereótipos sociais ou culturais”.
SILVA, Paul César. Percebendo o ser. São Paulo: LCTE, 2009, p. 75.
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A linguagem deve ser semelhante, pois se trata de uma identidade discursiva.
Isso distingue um grupo do outro, que deve continuar reproduzindo-a (fonte de água
jorrando para a vida eterna).
A cena do lava-pés (13.4-15) denota total caráter de pertença. Vejamos:
Em verdade, em verdade, vos digo: o servo não é maior do que o seu senhor,
nem o enviado maior do que quem enviou (13.16).
Se, portanto, eu, o Mestre e o Senhor, vos lavei os pés, também deveis lavar-
vos os pés uns aos outros. Dei-vos o exemplo para que, como eu vos fiz,
também vós o façais (13.14-15).
Um comportamento de igualdade. O GJ conhece o poder da hierarquia religiosa
dos adversários, em que cada um tem o seu papel — um regime parecido com o
patronato. O regime de Jesus é o da igualdade. Não existe patrono, e todos cumprem o
mesmo papel. O GJ deve imitar essa ação e lavar os pés uns dos outros como um sinal
de comportamento humilde e igual. Jesus os adotou. Ele é o mestre e ensina o grupo,
que deve aprender e imitar as atitudes do seu líder. No entanto, o aprendizado leva um
tempo. É um processo que gerará a identidade do grupo.
“Filhinhos, por um pouco de tempo ainda estou convosco. Vós me procurareis e,
como disse aos judeus, agora também vo-lo digo. Para aonde eu vou vós não podeis ir”
(13.33). Para Simão Pedro, um dos componentes do grupo, é dito: “Não podeis seguir-
me agora para onde vou, mas me seguirás mais tarde” (13.36). O grupo dos judeus, os
fariseus, ouvindo murmúrios a respeito do líder do GJ, envia guardas para prendê-lo
(7.32-36). Esse grupo de judeus é diferente; não acredita na fala de Jesus. Não devemos
esquecer de que Jesus é judeu (4.9), bem como os seus seguidores.
Dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros; como eu vos
amei, amai-vos também uns aos outros. Nisto conhecerão que sois meus
discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros (13.34-35).
Outra característica do grupo: eles devem amar uns aos outros. Estamos diante
de uma linguagem de conflito. Possivelmente o povo não está amando, mas vivenciando
um período de brigas. O povo não ama, não é humilde. Esse amor não se resume a um
sentimento, mas é comportamental. As palavras devem gerar atitudes. O amor é uma
condição do GJ que encontramos em 1 João 3.11-18; 4.7-5.4. Esse mandamento não é
novo para o grupo, diferente dos fariseus. O que não ama não conhece a Deus, de modo
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que o não amar é uma condição identitária. O amor carrega salvação; o medo carrega
castigo. O que teme não é completo no amor e, segundo o GJ, não é pleno.
O processo de categorização social implica um fenômeno importante do ponto
de vista identitário. A estereotipia se baseia efetivamente em cognições (traços
comportamentais, as crenças etc.) que os indivíduos vão interiorizando e exteriorizando,
e que vão se associando a eles mesmos.
2.2 Características do grupo joanino
Mas o que vem a ser um grupo?
Caracteriza-se por um conjunto de pessoas que partilha de um mesmo espaço
e tem interesses comuns, podendo vir a tornar-se um grupo. A passagem de
agrupamento a um grupo propriamente dito resultaria da transformação de
interesses comuns em interesse comum; isto é, os integrantes reúnem-se em
torno de uma tarefa e de um objetivo comum ao interesse de todos. Além
dessa peculiaridade, forma uma nova entidade, com leis e mecanismos
próprios, garante, além de uma identidade própria, as identidades específicas:
preserva a comunicação, garante espaço, tempo e regras que normatizam a
atividade proposta, organizam-se em função de seus membros e esses em
função do grupo, apresentam duas forças contraditórias, uma tendente à
coesão e outra à desintegração, apresenta interação afetiva e distribui
posições de modo hierárquico.52
O texto do QE apresenta a formação do GJ como um agrupamento de doze
seguidores, sendo que os dois primeiros saíram do grupo de João Batista. Os demais
eram parentes e conhecidos. Tinham em comum serem judeus, como objetivo
aguardavam a vinda de um messias (Cristo), interagiram diariamente por um período
aproximado de três anos, possuíam um tesoureiro e sabiam que faziam parte de um
grupo, mais conhecido como “os do caminho”. No texto eles ouviam o mestre e eram
chamados a reproduzir a sua linguagem, bem como as suas crenças: Jesus é o caminho;
é a ponte imaginária entre a vida terrena e a vida eterna; vida plena; vida justa; as
palavras de Jesus são espírito e vida (6.63b); Jesus é a verdade (5.30-33). Não são
testemunhas oculares, a narrativa pertence ao texto como uma citação posterior.
“Se permanecerdes na minha palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos e
conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (8.31-32). O centro, o mistério de uma
52 ZANELLA, Andreia Vieira; PEREIRA, Renata Susan. Constituir-se enquanto grupo: a ação de sujeitos
na produção do coletivo. Estudos Psicológicos, v. 6, n. 1, p. 106, 2001.
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vida completa, o desafio do GJ é apresentar a verdade, é apresentar a pessoa de Jesus. A
verdade é um poder gerador de vida, é um projeto, é uma pessoa. E todo o que tem
experiência com Deus é liberto: liberto do medo, do pecado, da injustiça. O GJ tem
como tratado a vida eterna. Ser justo é não ir embora, é não romper com o irmão, é
permanecer: Deus permanece, Jesus permanece, o amor permanece, a pessoa
permanece.
Como um grupo, este deve possuir coesão, “a qual se apresenta na quantidade de
pressão exercida sobre os membros do grupo, a fim de que nele permaneçam”53. Quanto
maior a coesão do grupo, maior a necessidade de estar junto, dialogar no sentido de
buscar a unidade, a igualdade e as semelhanças (14.15-17).
Como grupo também possuem normas. Estas governam a linha comportamental
de seus membros, tendem a se mover em busca de seus objetivos (12.12), aumentar as
recompensas (14.2) e suas ideias e opiniões giram em torno das normas dominantes do
grupo (14.6).
2.3 A questão da afiliação ao grupo joanino
A vida em grupo está organizada na linguagem, na comunicação. É por meio
dela que não somente as ideias circulam e ganham movimento, mas o sentido é
compartilhado54. Há uma necessidade de as pessoas se entenderem entre si. O grupo
precisa agir em consenso para ser coeso, e deve ter símbolos importantes em comum.
A afiliação a um grupo não consiste em fato físico, mas no simbólico. No
princípio da formação do GJ, dois membros do grupo de João Batista seguiram Jesus ao
ouvirem de seu líder a frase: “Eis o Cordeiro de Deus” (1.36). No imaginário eles
estavam aguardando o Cordeiro, o Cristo, o Libertador. Mesmo tendo um tempo de
afiliação com João Batista, o simbólico constitui mais força que o vínculo com os
membros anteriores.
53 DESCHAMPS; MOLINER, 2009, p. 327. 54 STRAUSS, Anselm L. Espelhos e máscaras: a busca da identidade. São Paulo: Editora da USP, 1999,
p. 149.
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No caso do GJ, este é considerado um grupo pequeno. Logo, torna-se possível
determinar seus limites de afiliação. Como uma característica, possivelmente os
membros tivessem todos uma idade bem próxima.
Todo mundo vive com pessoas da mesma idade e de idades diferentes, tendo
diante de si do mesmo modo várias possibilidades de experiências. Mas para
cada um o mesmo “tempo” é um tempo diferente — isto é, representa um
período diferente de seu Self55 que só podemos partilhar com pessoas da
mesma idade que a nossa.56
Os grupos são constituídos por membros que experimentam a diferença no
ambiente social. Assim sendo, quanto mais instável esse ambiente, maior a
probabilidade de mudança de atitudes e de comportamento que leva “à discordância,
pois trazem consigo um corpo de símbolos derivado de suas afiliações a outros
grupos”57. Essas informações contribuem para o inevitável: a divisão do grupo — às
vezes a dissolução.
Podemos concluir, então, que os símbolos geram possibilidades de convergência
e divergência; os sentidos “geram outros sentidos58”; as identidades implicam não
apenas histórias pessoais, mas também histórias sociais; a visão de mundo de uma
pessoa está intimamente ligada ao conjunto de ideias vividas no passado; essa visão
contribui com a legitimação de um membro no seu grupo de pertença, pois “quanto
mais estável o ambiente social, mais a identidade mantém-se relativamente imutada por
um considerado período de tempo”.59
2.4 Atitudes e opiniões para ler o grupo joanino
Estamos tratando a identidade individual e a social como construídas por meio
de crenças, logo pelo cognitivo. Mas o que vem a ser o processo cognitivo e como é
intercambiável na formação identitária do indivíduo no grupo? Como ele pode nos
ajudar a ler o GJ?
55 Assumimos a definição de self como elemento definidor da vida mental de acordo com SIEGEL, Allen
M. Heinz Kohut e a psicologia do self. São Paulo: ABEPPS, 2005, p. 203. 56 STRAUSS, 1999, p. 137. 57 STRAUSS, 1999, p. 153. 58 STRAUSS, 1999, p. 154. 59 SIEGEL, 2005, p. 142.
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40
Atitudes e opiniões são sinônimas?60
A distinção entre uma e outra não é rígida. Assumiremos a diferenciação no que
diz respeito aos objetos cuja construção faz intercambialidade. Dessa maneira, atitude
como “orientação permanente a responder de modo favorável ou desfavorável a uma
classe de estímulos, enquanto que opinião uma resposta específica a uma questão
particular de interesse coletivo”61. Em nossa dissertação temos o GJ e os adversários,
além de variadas opiniões sobre ritos ou sobre outros temas ligados ao objeto Jesus em:
“Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida” (14.6).
2.5 O cognitivo e as atitudes no grupo joanino
Partimos do pressuposto de que a atitude de um indivíduo referente ao grupo é
formada pela síntese das crenças que ele possui quanto ao seu objeto. Uma crença é
compreendida a partir da subjetividade do objeto que o indivíduo possui. Toda crença
associa um valor62 ao objeto. Portanto temos: Atitude = valor x expectativa63. Isso
significa que dois ou mais grupos podem apresentar opiniões diversas acerca de um
objeto, mas parte das mesmas crenças. O diferente é o valor atribuído somado à
expectativa de realização.
Quanto à identificação que parte do GJ, tomamos os crentes e não crentes na
formação identitária do grupo, sendo estes, respectivamente, os que creem em Jesus e
creem em Deus e os que não creem em Jesus e não creem em Deus64 (5.38; 8.46-47). O
GJ tem em seu processo de linguagem o dualismo luz e trevas como identificação dos
crentes e não crentes. Em termos de oposição, este considera os que estão fora do grupo
como os que estão nas trevas, os que estão seguindo outro caminho, outra verdade e
60 Atitude = comportamento ditado por disposição interior, maneira de agir em relação à pessoa, objeto,
situação etc.
Opinião = julgamento pessoal, posição precisa, ponto de vista que se adota em um domínio particular,
(social, religioso, político, intelectual, etc.) (HOUAISS, 2001, p. 335, 2071). 61 CAVAZZA, 2008, p. 21. 62 “Conceito de valor fazendo referência à ideia de avalição [...] valores sendo assumidos como objetos
abstratos (liberdade, amor, igualdade, humildade, justiça social et