Camille Flammarion - A Morte e o Seu Misterio - Vol 1 - Antes Da Morte

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CAMILLE FLAMMARION A MORTE E O SEU MISTÉRIO VOLUME 1° Antes da Morte Conversão para EPUB: UBraga

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O autor versa sobre uma reflexão profunda acerca da vida e da morte .

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  • CAMILLE FLAMMARION

    A MORTE E O SEU MISTRIO

    VOLUME 1

    Antes da Morte

    Converso para EPUB:

    UBraga

  • I PODE SER ATUALMENTE RESOLVIDO O MAIOR DOS PROBLEMAS

    To be or not be.

    Ser ou no ser.

    SHAKESPEARE

    Resolvo-me a oferecer hoje ateno dos homens que pensam uma obra comeada h mais de meio sculo, apesar de ela me no

  • satisfazer completamente. O mtodo cientfico experimental, o nico que vale para a pesquisa da verdade, tem exigncias a que no podem nem devemos eximir-nos O grave problema exposto neste ensaio o mais complexo de todos os problemas e participa tanto da constituio geral do Universo como da do ser humano, microcosmo no grande todo.

    nas horas da mocidade que se empreendem estes estudos sem fim, porque de nada se duvida e temos diante de ns uma longa vida em perspectiva; mas a vida mais longa passa como um sonho, com suas luzes e suas sombras. Se podemos desejar alguma coisa de melhor e til no curso desta existncia, o de servir da algum modo ao progresso lento, mas todavia real da Humanidade, essa raa bizarra, crdula e cptica, indiferente e curiosa, boa e m, virtuosa e criminosa, alis incoerente e ignorante no seu conjunto, sada apenas dos casulos da crislida animal.

    Quando foram publicadas as primeiras edies do meu livro A Pluralidade dos Mundos Habitados (1862-1864), certo nmero de leitores pareceu aguardar a sua natural continuao aparente: A Pluralidade da Existncia da Alma. Se o primeiro problema foi julgado resolvido pelos

  • meus trabalhos seguintes (Astronomia Popular, O Planeta Marte, Urnia, Lmen, Esteia, Sonhos Estrelados, etc.), o segundo ainda o no est1 e a sobrevivncia da alma, seja no espao, seja-nos outros mundos, seja pelas reencarnaes terrestres, pe sempre diante de ns o mais formidvel dos pontos de interrogao.

    tomo pensante, levado sobre um tomo material atravs das imensidades da Via-Lctea, o homem pode perguntar a si mesmo se existe pelo esprito to insignificante como pelo corpo, se a lei do Progresso no o deve elevar numa ascenso indefinida e se h um sistema do mundo moral harmoniosamente associado ao sistema do mundo fsico.

    O esprito no ser superior matria? Qual a nossa verdadeira natureza? Qual o nosso futuro destino? Somos apenas chamas efmeras brilhando um instante antes de nos extinguirmos para sempre? No tornaremos mais a ver os que amamos e que nos precederam no tmulo? As separaes so eternas? Tudo se extingue em ns? Se alguma coisa fica, em que se torna esse elemento impondervel, invisvel, mas

    1 Apesar de um distinto escritor, o filsofo Andr que se declarando meu discpulo, haver publicado desde 1865: A Pluralidade da existncia da alma.

  • consciente, que constituiria a nossa duradoura personalidade? Sobreviver muito tempo? Sobreviver para sempre?

    Ser ou no ser? Eis a grande, a eterna questo, formulada pelos filsofos, os pensadores, os pesquisadores de todos os tempos e de todas as crenas. A morte ser um fim ou uma transformao? Existem provas, testemunhos da sobrevivncia do ser humano aps a destruio do organismo vivo? At hoje, o assunto tem permanecido fora do quadro das observaes cientficas. Ser permitido trat-lo pelos princpios do mtodo experimental, ao qual a Humanidade deve todos os progressos realizados pela Cincia? Ser lgica esta tentativa? Estaremos diante dos arcanos de um mundo invisvel diferente daquele que cai sob os nossos sentidos e impenetrvel aos nossos meios de investigao positiva? No ser possvel ensaiar, procurar, se certos fatos, correta e escrupulosamente observados, so suscetveis de serem analisados cientificamente e aceitos como reais pela crtica mais severa? Dispensemos mais frases, mais metafsica. Aos fatos! Aos fatos!

    Trata-se da nossa sorte, do nosso destino, do nosso futuro pessoal, da nossa existncia.

  • No somente a razo fria que indaga; no somente o esprito; tambm o sentimento; tambm o corao.

    pueril e pode parecer vaidoso que eu entre em cena; mas algumas vezes difcil abster-me e, como sobretudo para responder s dores de coraes ulcerados que tenho prosseguido nestas pesquisas laboriosas, parece-me que o prefcio mais lgico deste livro seria oferecido por algumas das inumerveis confidencias que tenho recebido durante meio sculo, para reclamar angustiosamente a soluo do mistrio.

    Aqueles que nunca viram morrer um ente adorado, no conhecem a dor, no caram no abismo do desespero, no tropearam com a porta fechada do tmulo. Quer-se saber, e um muro impenetrvel ergue-se inexoravelmente diante do pavor. Tenho recebido centenas de adjuraes s quais quisera poder dar resposta. Devo tornar conhecidas estas confidncias?... Hesitei muito tempo... Mas so to numerosas, representam com tanta sinceridade o intenso desejo de chegar a uma concluso, que o meu caminho est traado, visto tratar-se do interesse geral. Tais manifestaes so a introduo natural desta obra, pois foram elas que me determinaram a escrev-la. Peo desculpa,

  • entretanto, de reproduzir estas pginas sem as modificar, pois se revelam o estado da alma dos seres sensveis que as conceberam, exprimem a meu respeito conceitos elogiosos cuja publicao neste lugar poderia dar ensejo a crer-se numa falta de modstia da minha parte. Isto no passa de particularidade pessoal, e, portanto, insignificante, tanto mais que um astrnomo, que se considera tomo diante do Universo infinito e eterno, inacessvel e: hermeticamente fechado s sensaes da vaidade mundana. Os que me conhecem j me julgaram, a este respeito, faz longos anos.

    A minha absoluta indiferena por todas as honrarias prova-o suficientemente.

    Que me chamem grande ou pequeno, que me louvem ou que me censurem, sou espectador longnquo desses atos.

    A seguinte carta foi escrita por desolada me, e transcrita textualmente. Ela mostra quanto seria desejvel tentar, ao menos, aliviar a misria da Humanidade sofredora. Mais do que a medicina do corpo, a medicina da alma que se deveria criar.

  • AO NOSSO GRANDE FLAMMARION

    Reinosa (Espanha), 30 de Maro de 1907.

    Senhor:

    Quisera ajoelhar-me diante do senhor e beijar-lhe os ps, pedindo que me oua e que no repila a minha splica. No sei nem posso exprimir-me; desejava inspirar-lhe lstima, interess-lo na minha dor, mas era preciso v-lo, contar-lhe a minha desgraa, pintar-lhe o horror do que se passa em minha alma, e ento no lhe seria possvel deixar de sentir imensa compaixo. necessrio que eu padea muito para chegar a cometer um ato de audcia e de indiscrio que parece uma loucura! Como me lembrei de dirigir-me ao nosso ilustre Flammarion para pedir-lhe que console uma desconhecida que no tem outro ttulo a sua benevolncia seno o de compatriota? porque sofro! Venho de perder um filho, o meu nico filho. Sou viva e toda a minha felicidade consistia nesse filho e numa filha. Para que me pudesse compreender, Senhor Flammarion, seria preciso que tenha conhecido o filho adorado que acabo de perder e que eu lhe descrevesse os trinta e trs anos de sua existncia.

  • Condenado por todos os mdicos clebres de Madrid e de Paris, na idade de cinco anos, em virtude duma coxalgia, sacrifica, eu e meu pobre marido, uma bela situao em Madrid, retirando-nos para triste campina espanhola, a fim de salvarmos a idolatrada criana. Esteve doente durante oito anos e ficou coxo! Quanto me custou de cuidados, de aflies, de noites de insnia, de angstias, de sacrifcios, impossvel dizer! Mas como era gentil! Criado num carrinho, coberto de carcias e de beijos, era a criana mais adorvel que se podia sonhar! Ah! essa infncia! Se ela perdurasse ainda! Aos doze anos j no sofria da perna, mas no podia andar sem muletas. Que pesar para mim, que o havia dado vida, forte e bem constitudo! Mais tarde, aos dezessete anos, caminhava com uma nica muleta e uma bengala. Aos vinte, era o mais belo moo que se possa imaginar. Se no temesse ser ousada, enviar-lhe-ia o retrato, para lhe mostrar que o amor materno nada exagera. O seu encanto subjugava toda a gente. Possua esse dom de agradar que no se explica nem se define! Homens, mulheres, crianas, velhos e novos, deixavam-se seduzir por qualquer coisa inexplicvel, que irradiava da sua pessoa. Em toda parte onde fosse com ele, recebia felicitaes pela beleza e pela bondade de meu

  • filho! Invejavam-no! Porque era to belo como bom. Em sua alma tudo era nobreza, grandeza, generosidade.

    Inteligente, espirituoso, de carter igual e terno, a vida com ele era um sonho celeste, um perptuo encantamento! E poder avaliar-lhe o mrito, Senhor Flammarion, quando eu lhe disser que aos vinte anos teve uma cistite provavelmente um retrocesso sua primeira doena que foi o ponto de partida de longa srie de sofrimentos, dos quais s o inferno dar idia! No posso compreender que Deus, nosso Criador, permita que a carne humana seja assim martirizada. Sobretudo, quando esse martrio imposto a um ser inocente e bom como era meu filho.

    Todos os grandes especialistas foram novamente consultados; mas, infelizmente! Nenhum o pde curar. Passou treze anos em alternativas de melhorar e piorar, conservando, no meio de dores atrozes, a mesma igualdade de carter, a mesma doura, a mesma bondade e a alegria de sempre, para no entristecer os outros.

    Fazia quatro anos que pouco sofria; e o ano passado encontrava-se to bem que se julgara curado! Desde a morte de meu pobre marido, falecido em 1902, que meu filho era o chefe de

  • nossa pequena famlia: me, irm e ele. Como ramos felizes! Ainda que obrigados a trabalhar para angariarmos o nosso po, a vida parecia-nos to bela! Minha filha no quis casar-se para se consagrar inteiramente ao irmo, a quem adorava. Via os meus dois filhos amarem-se tanto que no receava a morte, certa de que seriam inseparveis, vivendo um para o outro.

    Que lhe dizer senhor, da ternura de meu filho para sua me e da desta por seu filho? Procure no Cu, entre os anjos, l bem alto, nesses mundos onde a sua vista penetra tudo o que a ternura pode produzir de mais suave, de melhor, e ter, perfeita idia do amor filial e do amor materno desses dois entes! Nem quero pensar nisso! No ouso lembrar-me dos olhos, da voz de meu filho quando, fitando-me, dizia: Querida me!

    O ano passado, em Agosto, propuseram-lhe visitar uma mina (ele se interessava por esses negcios e deles se ocupava havia algum tempo) e quis levar-me com ele. Chegados a certo stio, disseram-nos que era preciso montar a cavalo para chegarmos at mina. A princpio recusei, sabendo que a equitao lhe era proibida devido ao sofrimento da bexiga; mas meu filho me

  • garantiu que poderia fazer esse trajeto sem perigo; hesitei, parlamentou-se; cedi.

    Ah! no ser possvel remediar o mal praticado!... Essa excurso fatigou tanto meu filho que ele adoeceu com febre gstrica. Entregue aos cuidados de mdicos ignorantes e estpidos que no conheceram os seus estado e levaram meses a dizer que no era nada, um tumor invadiu-lhe a bexiga e, no podendo as membranas suportar essa prova, ela rebentou!

    Os suplcios do inferno nada so comparveis s torturas experimentadas por meu infortunado filho! Foi chamado um cirurgio clebre; chegaram vinte e duas horas depois do acidente, quando o enfermo j estava prestes a partir para o outro mundo!

    Foi operado, mas era tarde. O infeliz sobreviveu treze dias operao; o cirurgio s lhe dava vinte e quatro horas de vida. Compreendendo, porm, a dor de sua me e de sua irm, resistiu, lutou corajosamente, apesar de tudo. Ah! que treze dias, senhor! Durante esse tempo, deu-nos a medida da grandeza de sua alma.

    No pensando seno em ns, nas conseqncias da sua morte para as duas mulheres que ficavam ss, sem apoio em terra

  • estranha, a chorar eternamente o filho adorado, um irmo, procurou por todos os meios suavizar a crueldade desta situao. O que nos disse nesses momentos supremos no de um moo de trinta e trs anos, mas de um santo, de um anjo, de um ente sobre-humano! Oh! aquele rosto torturado pelos sofrimentos! Aqueles olhos que pareciam ver alguma coisa do Alm!

    a sua boca, contrada pela dor, procurando ainda Sorrir; a sua mo apertando a minha, enquanto me dizia: 'Adeus, me querida! Adeus! Amava-te tanto! No te esqueas de mim!

    Senhor todo poderoso, dizia ele, no deste maior cruz a teu filho que era Deus, do que a mim que sou um pobre homem! A morte! A morte por piedade! Se me quereis, me, pedi a Deus que me envie a morte!

    E foi assim durante treze dias.

    Oh Flammarion! tenha compaixo de mim! Em nome de sua, me, seja misericordioso! Estou louca de dor. H trinta e dois dias que ele morreu e, depois disso, no consegui dormir dez horas. noite, fico de p at as quatro da manh, e quando, vencida pelo cansao, me deito, vestida, no meu leito e fecho os olhos, a idia fixa continua durante o penoso sono; no perco a lucidez um s minuto e, quando abro os olhos,

  • experimento a obsesso que perdura durante o dia. to assustador o que sinto, e to atroz, que a mim mesmo pergunto se o inferno no ser prefervel ao que sofro!

    possvel que seja Deus o criador de seres destinados a suportar semelhantes misrias?

    O senhor, astrnomo e pensador, que pesa os sis e os mundos e cuja vista penetram nessas regies misteriosas onde o nosso esprito se perde, oh! Diga-me, suplic-lo de joelhos, se as almas sobrevivem se posso conservar a esperana de tornar a ver meu filho e se ele me v! Existir algum meio de comunicar com ele?

    Ao senhor, que sabe tantas coisas sobre o cu, sobre os Espritos, sobre as maravilhas do Universo, peo, por piedade, que me diga uma palavra que deixe um raio de esperana, por fraco que seja, no meu corao despedaado, magoado, martirizado! No pode compreender o excesso da minha dor! Quisera morrer dela, e assim o espero, mas... Minha filha implora-me que viva que a no deixe s no mundo, e vejo-me obrigada a viver e a sofrer! Que horror! Quando penso que num s instante podia pr fim a este suplcio!... Se fosse possvel pesar a dor, medi-la como o senhor media os mundos, seria tal o peso da minha, tamanha a extenso, que o assustaria

  • pensar que uma alma possa atingir tal grau de tormento. preciso que haja para isso alguma coisa de infernal no meu destino! Nem ferros em brasa, nem tenazes de tortura so capazes de produzir semelhantes sofrimentos! Meu filho, meu filho adorado! Desejo v-lo. No quero o Cu sem ele! Oh! Meu Emmanuel, idolatrado filho das minhas entranhas! Alegria da minha vida! Felicidade de me, para sempre perdida! H um Deus? Ser ele quem permite estes horrores sobre a Terra? Por piedade, Senhor Flammarion, em nome dos que ama e que o amam, no seja insensvel maior dor humana que jamais supliciou um corao; diga-me alguma coisa, o senhor que possui o segredo dos cus! Que muito sabe, pois ns, simples mortais, no o sabemos nem o compreendemos. Diga-me se as almas sobrevivem em alguma parte, se elas se recordam, se elas amam ainda os que ficam na Terra, se nos vem, se podemos cham-las para junto de ns!

    Ah! Se pudesse visit-lo e ajoelhar a seus ps! Perdoe este proceder insensato; estou louca de dor, no sei se sonho ou se estou acordada! Sei que sinto uma dor aguda que parece ferro em brasa posto sobre uma chaga!

  • Perdoe Senhor Flammarion! Os seus sis, as suas estrelas, to belas e maravilhosas, no sofrem, no sentem, e eu sinto uma dor maior que todos os mundos que se agitam no espao! Ser to pequena coisa, to mida, e, entretanto sentir uma dor to intolervel! Que isso? Que mistrio esse? Um ser to fraco, to limitado e... Sofrer tanto!

    Perdoe mais uma vez, Mestre, em nome de sua me! Perdoe-me e tenha compaixo de sua infeliz compatriota.

    VIVA N. BOFFARD

    (Reinosa (Espanha), Provncia de Santander.).

    A est a carta angustiada que reproduzo textualmente para mostrar todo o horror de semelhante situao. Que me desculpem, mais uma vez, as expresses ditirmbicas que me dizem respeito. A nica significao que tm a de fazerem sentir com exatido essas dores imensas, duplicadas pela esperana ardente de se verem dissipar as trevas.

    Seria preciso ter um corao de pedra para no nos comovermos, at s lgrimas, diante

  • dessas splicas lancinantes do amor materno, para ficarmos surdos ante a angstia de tais desesperos e para no experimentarmos o desejo ardente de consagrar a vida a dar-lhes remdio.

    Os padres recebem diariamente suplicaes desta ordem, porque so considerados ministros de Deus, dotados do poder de penetrar o enigma do sobrenatural e de resolv-lo. Respondem a essas dores levando-lhes os confortos da Religio. O sacerdote afirma em nome da F, da Revelao; mas a f no se impe nem to geralmente aceita quanto se imagina. Conheo padres, bispos, cardeais que a no tm, apesar de a indicarem como benefcio social. H, na Terra, umas cinqenta religies diferentes, teis talvez, mas inaceitveis sob o ponto de vista filosfico. Em face dos espetculos que acabamos de relembrar, podero seus ministros convencer-nos de que um Deus bom e justo rege a Humanidade? O homem de cincia no se senta nem no confessionrio nem na ctedra evanglica e s pode dizer o que sabe. , antes de tudo, leal, franco, independente, racional. O seu dever estudar, pesquisar. Procuramos ainda e no afirmamos ter encontrado e muito menos ter recebido do Cu a revelao da Verdade. Foi tudo quanto pude responder

  • desconhecida, dando-lhe a esperana de tornar a ver um dia seu filho e de ficar doravante em relao espiritual com ele. Quanto eu estimaria levar sua alma uma convico libertadora! Mas no tenho, como Augusto Comte, Saint-Simon ou Enfim, a iluso de ser o grande sacerdote de uma nova religio. Entretanto, no h dvida de que a religio universal do futuro ser fundada na Cincia e em particular na Astronomia associada aos conhecimentos psquicos.

    Procuremos humildemente e todos juntos. Perdoem-me ainda por reproduzir as linhas elogiosas desta epstola: mas suprimi-las seria suprimir ao mesmo tempo a expresso dessa angstia, dessa confiana e dessa f.

    A morte de um filho inspirou a carta precedente. A de uma filha ditou a seguinte:

    Theil-sur-Vanne, Novembro, 1899.

    Mestre,

    Tenho a honra de conhec-lo suficientemente pelas suas obras, para saber que bom e para esperar, embora me no conhea o seu assentimento em ler-me com indulgncia e que se compadecera moralmente com a minha

  • desgraa, concedendo-me o socorro espiritual de que tanto preciso.

    Em 19 de Setembro findo passei pela dor terrvel de perder uma encantadora criana de dezesseis anos e meio, de grande inteligncia, de esquisita delicadeza de sentimento. E como era bela!

    Pensvamos que tnhamos diante de ns uma criatura imaterial, tanto o seu corpo casto era de ninfa como o seu rosto anglico eram idealmente lindos.

    A minha queridinha. Com seus magnficos olhos azuis, to expressivos, franjados de pestanas negras, assim como as sobrancelhas to delicadamente arqueadas, o nariz um pouco longo, fino, direito, a boca talvez grande, mas de expresso to meiga, o rosto de oval to harmonioso, uma tez de lrio branco! Gentil covinha no mento imprimia destaque ao seu sorriso, iluminando-lhe o rosto ordinariamente bastante srio.

    Esplndidos cabelos louros castanhos, anelados naturalmente e finamente encrespados qual musgo de ouro, ornavam-lhe a fronte virginal; as orelhas, mimosas conchas escondidas nos cabelos, eram ninhos de beijos

  • em que jamais pousarei os lbios vidos de ternura...

    Minha filha bem-amada j no vive meus olhos nunca mais descansaro amorosamente no seu rosto adorado, s a posso chorar.

    Tantas perfeies morais e fsicas aniquiladas brutalmente, estupidamente, cruelmente, barbaramente! A morte desapiedada tudo me roubou. A minha Renata estremecida partiu e eu vivo. A vida... Que terrvel gal!...

    Com ela acabaram as nossas interessantes conversas, os nossos colquios sobre as questes mais abstratas do Alm, pois minha filha, apesar de moa, era pensadora, uma preciosa amiga, a minha confidente e minha companheira amada Era tudo para mim, essa bela flor ceifada antes ai desabrochar. Por qu? Que problema!

    Depois da sua morte, pensei muitas vezes no suicdio para reunir a ela..., mas (seria intuio de seu prximo fim?) na vspera de expirar, disse, beijando-me com carinho: a mam no se h de suicidar; devemos esperar, no assim? Fiquei surpreendida e s compreendi tudo no dia seguinte, quando, branca como um lrio admirvel, ela fechou seus belos olhos para sempre, dando-me um ltimo beijo.

  • Ah! Este beijo derradeiro! Ps nele o resto de sua vida. Sinto-o sempre. Que momentos!... Que torturas!

    Hora suprema e inolvidvel, que revivo sempre! Amo o meu sofrimento. Vejo a minha querida morta que havia adivinhado o meu desespero: ela quis que eu ficasse, para chor-la. O meu pesar feito de saudades estreis, de decepo amarga, de revolta contra todos e tudo; barafusto contra o prprio Deus que me levou mais do que mil vezes a vida. Agora, s posso viver da recordao de minha filha, meu pensamento constante, meu culto, minha adorao.

    Quisera encontrar, se isso fosse possvel, uma suavizao minha dor, no Espiritismo; refugiar-me nele com f, esperana e amor...

    Mas sou bem pouco iniciada neste estudo.

    Meu marido e eu temos tentado a experincia da mesa, sem resultado, apesar de empregarmos todos os esforos para conseguir, colocando nela o retrato de nossa querida filha, um anel de seus cabelos, uma pgina de sua escrita, e de termos evocado com toda a fora de nossa vontade. Mas as nossas lgrimas, os nossos apelos, os nossos desejos, tudo foi intil! Quero continuar,

  • perseverar, e com esse fim, caro e ilustre Mestre, que lhe suplico o seu auxilio.

    Ainda existe aquela cuja vida em flor foi to brutalmente ceifada, que era to pura, que teve apenas o tempo de amar sua me?

    Sua mame, palavra to doce na sua querida boca! Eu era demasiadamente feliz! H quanto tempo j que no ouo o suave som da sua voz! Para ouvi-lo ainda, daria de bom grado os anos que me restam de vida.

    Desejo avidamente ter provas da sobrevivncia da alma querida e bela de minha adorada filha, saber, sobretudo se ela pode comunicar comigo. Se alcanasse esta felicidade, dirigida pelo meu caro Mestre, tal fonte perene de consolao seria para mim indizvel. Confundi-lo-ia no mesmo pensamento com minha filha e Deus. A leitura das suas obras admirveis sugeriu-me o pensamento de por em si as minhas esperanas, com a certeza de que pode satisfazer o que lhe peo, e a confiana em que acolher favoravelmente a splica duma pobre me que exulta esperana de tornar a encontrar sua filha desaparecida e no morta. Seja benvolo para esta me triste e ignorante. J que possui a luz, alumie-a, socorra-a na sua

  • misria moral: a mais bela esmola que lhe pode fazer.

    O meu grande desejo de aprofundar esses mistrios no v curiosidade: necessidade poderosa, real, nica, da qual s a morte me poder libertar. Aguardo, com confiana, mas tambm com impacincia, a sua resposta, e, se assim o julga conveniente, irei de boa vontade a Paris, ou a outro qualquer stio que me designar.

    Digne-se, senhor e ilustre sbio, receberem os meus agradecimentos antecipados e os melhores sentimentos da sua humilde criada.

    R. PRIMAULT2

    Reproduzi exatamente esta carta, como a precedente, sem eliminar os termos elogiosas a meu respeito, porque, como j disseram em outro lugar, as sensaes de vaidades pueris so-me desconhecidas, e, alm disso, estou acostumado, h mais de meio sculo, a louvores que me deixam indiferente. A convico absoluta de um astrnomo a de que somos apenas tomos da ltima insignificncia. Todavia, essas

    2 As cartas aqui reproduzidas so guardadas no dossi do meu inqurito

    sobre os fenmenos psquicos, que abri em 1889.

  • expresses de admirao de leitores a um autor, seja ele quem for, justificam a confiana e a f exprimidas e devem ser respeitadas.

    A lealdade cientfica obriga-nos a dizer s o que sabemos. No devemos enganar ningum, nem mesmo na melhor das intenes e com o fim de oferecermos uma satisfao transitria. No pude dar pobre me uma certeza absoluta. Foi h vinte anos. Desde essa poca, no interromperam as minhas pesquisas. Este livro escrito para expor os resultados do meu trabalho.

    Tomei a liberdade de reproduzir, textualmente tambm, a carta to terna da minha correspondente desconhecida, porque a expresso da dor de todas as mes que perderam o seu filho, de todos os que perderam um ente querido e para os quais at o nome de bom Deus parece um insulto realidade. Explica-se perfeitamente a revolta dessas almas. Possuo muitas outras cartas mais severas ainda para as falsas consolaes religiosas, as quais me foram dirigidas por catlicos, protestantes, judeus, espiritualistas de todas as crenas, livres-pensadores, materialistas, ateus, aproveitando as injustias observadas para negarem a existncia dum Princpio inteligente na organizao do mundo. Os homens consolam-se

  • muitas vezes pelo cepticismo, pela submisso ao irrevogvel, pela verificao da indiferena da Natureza para com as impresses humanas. As mulheres no. Essas no se resignam. No aceitam o Nada. Sentem que h quaisquer coisas de desconhecido, mas de real. Querem saber.

    raro passar-se uma semana sem que eu receba cartas deste gnero. Mas, qual a inteligncia universal? Somos inclinados a imaginar que Deus pensa como ns, que o nosso sentimento da justia est de acordo com o dele, que o seu pensamento da mesma natureza que o nosso, apesar de infinitamente superior. talvez outra coisa. O inseto pensa pesadamente quando se transforma em crislida e quando rompe este invlucro para abrir as asas que acaba de adquirir; o nosso pensamento est presumivelmente to longe do de Deus como o da lagarta o est do nosso.

    Encontramo-nos em pleno mistrio! Mas o nosso dever de o perscrutar.

    Durante a infame guerra alem que suprimiu na flor da idade uns quinze milhes de homens, com direito vida, criados pelos pais, pelas mes, muitas vezes custa de sacrifcios enormes, recebi centenas de cartas acusando a injustia e a barbaria das instituies humanas,

  • lastimando que o dio pela Guerra, que um grupo de amigos da Humanidade prega h tanto tempo, no tenha sido compreendido pelos governantes, revoltando-se contra Deus que permite estas pavorosas destruies, e declarando as suas existncias despedaadas para sempre, pelos lutos irreparveis.

    Mais que nunca, o problema atroz dos destinos ergue-se diante de ns.

    Ser verdadeiramente insolvel? O vu no poder afastar-se, levantar-se mesmo ligeiramente?

    Ah! As religies, apesar de terem todas por origem esta necessidade das nossas almas, este desejo de conhecer, a dor de ver diante de si o cadver mudo de um ente querido, no nos deram as provas que prometiam. As mais belas dissertaes teolgicas nada comprovam. No so frases que queremos, so fatos demonstrativos. A morte o maior problema que jamais tem ocupado o pensamento dos homens, o problema supremo de todos os tempos e de todos os povos. Ela fim inevitvel para o qual nos dirigimos todos; faz parte da lei das nossas existncias sob o mesmo ttulo que o do nascimento. Tanto uma como outro so duas transies fatais na evoluo geral, e, entretanto

  • a morte, to natural como o nascimento, parece-nos contra a Natureza.

    A esperana na continuao da vida inata na alma humana; de todos os tempos e de todos os pases. A cultura das cincias nada tem com esta crena universal, que repousa em aspiraes pessoais e no se apia em bases positivas.

    Eis a um fato cuja averiguao tem seu valor.

    O sentimento no uma quantidade omissvel, igual a zero, seu coeficiente cientfico.

    As duas comunicaes j reproduzidas pertencem a uma srie comeada h muito tempo e que os meus leitores conhecem. O nmero das cartas recebidas, aceita e inscritas nesta coleo de documentos, de observaes, de pesquisas, de perguntas motivadas, eleva-se, no meu registro, desde o inqurito comeado em 1899 (ver minha obra O Desconhecido e os Problemas Psquicos, pgina 90) at Julho de 1919, cifra de 4.106, qual devo acrescentar aproximadamente 500 recebidas antes do inqurito. Poderia citar aqui algumas centenas, anlogas s duas precedentes. Eis aqui outra que h de, sob outro aspecto, surpreender mais de um leitor. uma splica veemente que me foi

  • endereada de La Rochelle, em 15 de Agosto de 1904. um pouco grosseira, mas publico-a integralmente, como as anteriores.

    Grande Irmo,

    Meus olhos sofrem de cataratas, mas preciso que lhe escreva. Sou um cptico, um zombeteador empedernido, mas necessito crer em alguma coisa. Uma terrvel catstrofe, irreparvel, acaba de destruir quatro existncias. Minha filha, cujo encanto, ndole, gracilidade haviam seduzido toda a cidade de Rochefort, em 1902, desde as mes das rivais s prprias rivais para o casamento, acaba de seguir para o manicmio em Niort, onde vai aguardar a morte... Foi uma agonia de dezoito meses para a mrtir e para sua pobre me, que a levou a Paris, Bordus, Saujon, onde especialistas ambiciosos mostraram a incapacidade radical de sua pretensa cincia. E aqui estou sozinho com meu filho, vtima da mesma catstrofe. A idia do suicdio persegue-me. O meu crebro repete o estribilho: sua filha est doida. E penso nas misrias gerais, no imenso logro que a vida para a maioria das criaturas. Trazemos, ao nascer, a tara dos nossos ascendentes (com que direito se metem nisto?). Qual ser a nossa personalidade paralisada, afundada na espessa

  • massa carnal? Pelo seu jogo molecular, pelo exemplo da educao dos parentes, pela linha de vida obrigatria, pelas condies da situao fsica e moral dos pais, essa ganga seria ento a poderosa diretriz da personagem que acaba de encarnar-se, ou antes, de fundir-se num agregado de que ser escrava por toda a vida. Que quer dizer tudo isto?

    As asneiras e as imbecilidades declamadas nos plpitos da igreja acabaram por me revoltar. Apenas quero crer em qualquer coisa de aceitvel. Os espritas, com sua credulidade ingnua, so tambm tolos. Serviram-me pginas de Pitgoras, Buda, Abelardo, Fnlon, Robespierre, que no tm senso comum. grotesco.

    H trinta e trs anos que no lia. O drama que me feriu levou-me a ler alguns livros em que esperava encontrar o que procuro.

    Enfim, eis O Desconhecido!

    Confesso-lhe que o li religiosamente. Admito em princpio as manifestaes e aparies que o senhor assinala principalmente as que foram entendidas por animais, como por exemplo, histria do gato da Dra. Maria de Tilo (pgina 166). O medo do gato, que viu o fantasma, parece ser uma excitao de natureza eltrica.

  • Mas, o senhor, meu Grande Irmo, porque no v a seno moribundos?

    Nada prova que o ltimo suspiro, o ltimo pensamento humano daquele que se vai sejam a causa de manifestaes, produzidas sem cincia dele. No se tratar, pelo contrrio, dum primeiro passo no Alm, no momento da ruptura carnal? Perteno seguramente a grande multido dos seus amigos desconhecidos, daqueles que simpatizam com o senhor.

    Eles esperam, agora, um livro definitivo que concluir as suas investigaes psquicas. Os Espritos? Os mdiuns? Que tem verificado cientificamente com o seu mtodo de astrnomo, de matemtico, para o qual 2 e 2 so 4 e no 5? Numa palavra, com a sua autoridade unanimemente reconhecida, a que ponto chegou?

    Queremos sab-lo! a um homem como o senhor (isto sem lisonjas) que cabe esclarecer tantas inteligncias vidas, sedentas. No se decidir? Tem a obrigao de nada poupar para isso. Que servio prestar, escrevendo este livro leal e concludente! Basta de prdicas evanglicas, de dissertaes de mdiuns, de neuroses e de subterfgios. Suplicam-lhe que diga o que sabe!

  • (Carta 1. 465.)

    Compreender-se- que eu no revele a assinatura desta carta, de que autor um alto funcionrio do Estado. Compreender tambm que no tenha publicado esta obra a mais tempo, aguardando que ela estivesse altura do grave assunto de que trata.

    J havia sido principiada quando recebi esta splica, em 1904; fora mesmo em 1861, como se pode verificar pelas minhas Memrias. Estas obras no se redigem num ano.

    De resto, no um livro s que tive de compor em resposta a estes pedidos; uma dezena! Sairo um dia luz? Trabalhando neles h um quarto de sculo, esto em via de concluso.

    Mas comecemos por este.

    Os leitores das minhas obras muito me auxiliaram nesta pesquisa, enviando-me, desde h muito, observaes de natureza a preparar uma soluo reclamada talvez com demasiada confiana.

    Possa os nossos esforos dar em resultado que seja projetada alguma luz nas trevas seculares do problema da morte!

  • *

    Na minha infncia, durante as lies de Filosofia e de Instruo Religiosa dada na sala de estudos, ouvia freqentemente um discurso peridico, tendo por tema estas quatro palavras: Porro unam est necessarium; em portugus: uma s coisa necessria. Esta coisa nica era a salvao da nossa alma. O orador, o professor, falava-nos das guerras de Alexandre, de Csar, de Napoleo, e conclua: De que serve ao homem conquistar o Universo, se acaba perdendo a alma?

    Descreviam-nos tambm as labaredas do inferno e aterravam-nos com quadros medonhos onde os danados eram torturados pelos demnios num fogo inextinguvel que os queimava sem consumi-los e isto eternamente. Sejam quais forem s crenas, estes argumentos, tomado como texto, tem o seu valor. incontestvel que o nico ponto realmente capital para ns o de saber o que nos est reservado depois de soltarmos o ltimo suspiro. To be or not to be!: Ser ou no ser! A cena de Hamlet no cemitrio repete-se todos os dias. A vida do pensador a meditao da morte.

  • Se as existncias humanas no conduzem a nada, que comdia esta? Quer a encaremos ou quer afastemos a sua imagem, a Morte o desenlace supremo da Vida. No querer estud-la uma puerilidade infantil, porque o precipcio est diante de ns e nele cairemos, um dia, inexoravelmente. Imaginarmos que o problema insondvel, que nada podemos saber que perdemos o nosso tempo e com curiosidade um pouco temerria procurando ver claro, uma desculpa ditada por preguia absurda e por temor injustificado.

    Os aspectos fnebres da morte provm principalmente do que a cerca, do luto que a acompanha, das cerimnias religiosas que a envolvem, do Dies irae, do De profundis. Quem sabe se o desespero dos sobreviventes no daria lugar esperana, se tivssemos a coragem de examinar esta ltima fase da vida terrestre, esta transformao, com o mesmo cuidado que consagramos a uma observao astronmica ou psicolgica? Quem sabe se s preces dos agonizantes no sucederia a serenidade do arco-ris depois da tormenta?

    difcil no desejar resposta ao formidvel ponto de interrogao que se ergue diante de ns, quando pensamos em nosso prprio destino

  • e quando a morte cruel nos arrebata um ente querido.

    Como no perguntar se tornar a encontrar-nos ou se eterna a separao? Existe um Deus bom? A injustia, as maldades dominam a marcha da Humanidade, sem nenhum respeito pelos sentimentos de corao com que nos dotou a Natureza? Que ser esta Natureza? Tem ela uma vontade, um fim? Haver mais esprito, justia, bondade, idias, em nossos nfimos crebros do que no Universo imenso? Quantos problemas associados ao mesmo enigma!

    Morremos: nada mais certo. Quando a Terra onde estamos tiver dado umas cem voltas ao redor do Sol, nenhum de ns, caros leitores, ser j deste mundo.

    Devemos temer a morte por ns ou pelos que amamos?

    O terror da morte uma palavra sem sentido.

    De duas coisas uma: ou morremos definitivamente, ou continuamos a existir para alm do tmulo. Se morrermos inteiramente, nada saberemos, jamais, acerca disso, e, por conseqncia, no o sentiremos. Se continuarmos a existir, o assunto merece examinado.

  • Que o nosso corpo acaba, um dia, de viver, no h dvida alguma; ele se dissociar em milhes de molculas que se incorporaro, em seguida, em outros organismos, plantas, animais e homens; a ressurreio dos corpos um dogma obsoleto que ningum pode aceitar. Se o nosso pensamento, a nossa entidade psquica, sobrevive decomposio do organismo material, teremos a alegria de continuar a viver, pois que a vida consciente continuar tambm sob outra forma de existncia, superior a esta, sendo o progresso a lei da Natureza e manifestando-se em toda a histria da Terra, nico planeta que podemos estudar diretamente.

    Sobre este grande problema podemos dizer com Marco Aurlio: Que a morte? Considerando-a em si mesma, e separando-a das imagens de que a cercamos, v-se que no passa de simples obra da Natureza. Ora, quem tem receio de uma obra da Natureza uma criana. Bacon repetiu o mesmo pensamento quando disse: A pompa da morte assusta mais do que a prpria morte.

    O que temos a fazer, escrevia ainda o sbio imperador romano, esperar a morte de corao plcido e no ver nela mais do que uma dissoluo dos elementos que compem cada

  • ser. Isto conforme a Natureza: ora, nunca mau o que conforme a Natureza.

    Mas o estoicismo de Epteto, de Marco Aurlio, dos rabes, dos Muulmanos, dos Budistas, no nos satisfaz. Queremos saber. Alm disso, afirmar que a Natureza nunca procede mal uma proposio discutvel. Todo homem que pensa no pode deixar de ser perturbado, nas suas horas de meditaes pessoais, por esta perspectiva: Que ser feito de mim? Morrerei inteiramente?

    Disse-se, no sem razo aparente, que havia nisso, da nossa parte, obra de ingnua vaidade. Atribumo-nos certa importncia; imaginamos que seria um desastre se cessssemos de existir; supomos que Deus deve ocupar-se de ns, e que no somos, na Criao, uma quantidade que se possa desprezar. Decerto, sob o ponto de vista astronmico, no somos grande coisa, e a Humanidade inteira mesmo no tem tambm grande importncia. No devemos, portanto raciocinar hoje como no tempo de Pascal; os sistemas geocntrico e antropocntrico caram.

    tomos perdidos sobre um tomo igualmente perdido no infinito! Mas afinal existimos, pensamos, e desde que os homens pensam sempre se preocuparam com as mesmas

  • questes, s quais as religies mais diversas pretenderam responder, sem nenhuma delas o ter conseguido.

    O mistrio diante do quais tantos altares e tantas esttuas de deuses foram levantados conserva-se ainda to formidvel como nos tempos dos Assrios, dos Caldaicos, dos Egpcios, dos Gregos, dos Romanos, dos Cristos da Idade Mdia. Os deuses antropomorfos e antropfagos foram derrudos. As religies desapareceram, mas a religio fica: pesquisa as condies da imortalidade. Somos aniquilados pela morte, ou continuamos a existir?

    Francisco Bacon (mais popular e mais clebre do que Roger Bacon, mas que no possua o seu gnio) havia previsto, ao expor os fundamentos do mtodo cientifico experimental, o triunfo progressivo da observao e da experincia, a vitria do fato judiciosamente comprovado sobre as idias tericas, para todos os domnios dos estudos humanos, menos o das coisas divinas, do sobrenatural que abandonou autoridade religiosa e F.

    Isto era um erro (partilhado ainda atualmente por certo nmero de sbios). No h razo valiosa para no estudar tudo, para no sujeitar tudo ao critrio da anlise positiva, e nunca se h

  • de saber seno o que se aprendeu. Se a Teologia se enganou quando pretendeu que esses estudos lhe eram reservados, a Cincia enganou-se identicamente, desdenhando-os como indignos dela ou alheios sua misso.

    O problema da imortalidade da alma no recebeu ainda soluo positiva da cincia moderna, mas tambm no recebeu como por vezes se pretende uma soluo negativa:

    Em geral se pensa que o enigma da esfinge de alm-tmulo est fora da nossa alada e que o esprito humano no tem o poder de penetrar este segredo... Entretanto, no h outro assunto que lhe toque de mais perto do que este. Como no havemos de interessar-nos pela nossa prpria sorte?

    O estudo perseverante deste grande problema leva-nos a pensar hoje que o mistrio da morte menos obscuro e sombrio do que se acreditava at agora, e que ele pode iluminar-se, aos olhos do nosso esprito, de certas claridades reais e experimentais que no existiam h meio sculo. No deve causar admirao o fato de se ver as pesquisas psquicas ligadas s pesquisas astronmicas. o mesmo problema. O universo fsico e o universo moral so um apenas. A Astronomia foi sempre associada Religio. As

  • ignorncias da cincia antiga, baseada nas aparncias enganadoras, tiveram suas conseqncias inevitveis nas crenas errneas de outrora; o cu teolgico deve harmonizar-se com o cu astronmico, sob pena de decadncia. O dever de todo homem honesto o de procurar lealmente a verdade.

    Na poca atual, de livre discusso, a cincia pode estudar tranqilamente, em plena independncia, o mais grave dos problemas.

    Havemos de lembrar-nos, no sem azedume, de que durante os sculos intolerantes da Inquisio, essas pesquisas do livre pensamento levaram os seus apstolos ao cadafalso. Milhares de homens foram queimados vivos pelas suas opinies: a esttua de Giordano Bruno faz-nos relembrar deles na prpria Roma... Passaremos ns diante dela, ou diante da de Savonarola, em Florena, ou da de Etienne Dolet, em Paris, sem sentirmos um calafrio de horror contra a intolerncia religiosa? E Vanni, queimado em Tolosa? E Miguel Servet, queimado por Calvino em Genebra? Etc. etc.

    Afirmou-se o que se ignorava; foi imposto silncio aos pesquisadores. Eis o que atrasou o progresso das cincias psquicas. Sem dvida este estudo no indispensvel vida prtica.

  • Em geral os homens so estpidos. No h um que pense, entre cem. Vivem na Terra sem saber onde esto e sem a curiosidade de o perguntarem a si mesmos. So brutos que comem, bebem, gozam, se reproduzem, dormem e se ocupam principalmente de ganhar dinheiro. Tive a grande satisfao, durante uma carreira j longa, de difundir entre as diversas classes da Humanidade inteira, em todos os pases e em todas as lnguas, as noes essenciais dos conhecimentos astronmicos e estou em situao de apreciar a estatstica dos seres que se interessa por conhecer o mundo que habitam e por formar uma idia rudimentar das maravilhas da Criao. Nas dezesseis centenas de milhes de seres humanos que povoam o nosso planeta, existe aproximadamente um milho nestas condies, isto , um milho de homens que lem as obras de Astronomia por curiosidade ou por outro qualquer motivo. Quanto aos que estudam e se iniciam pessoalmente na cincia, pondo-se a par das descobertas pela leitura das revistas especializadas e anurios, o seu nmero calcula-se em cinqenta mil, em todo o mundo, sendo seis mil franceses.

    Pode concluir-se que h um ser humano entre mil e seiscentos que sabe, de modo vago,

  • em que mundo habita, e um, em cento e sessenta mil, que o conhece bem.

    Quanto ao ensino primrio e secundrio, escolas, colgios, liceus (laicos ou culturais), em matria astronmica, o resultado este: nada ou quase nada. Em psicologia positiva, nada igualmente. A ignorncia universal a lei da nossa Humanidade terrestre desde o seu nascimento simiesco.

    As deplorveis condies da vida em nosso planeta, a obrigao de comer, as necessidades da existncia material, explicam a indiferena filosfica dos habitantes da Terra, sem desculp-los inteiramente; pois milhes de homens e mulheres dispem de tempo suficiente para distraes fteis, para ler folhetins e romances, jogar as cartas, sentar-se mesa dos cafs, preocupar-se com os negcios alheios, continuar a histria antiga da palha e da viga, espiar e criticar em torno de si, fazer politicagem, encher as igrejas e os teatros, sustentar as lojas de luxo, fatigar as costureiras e as modistas, etc.

    A ignorncia universal deriva do pobre individualismo humano que se basta a si mesmo. Viver pelo esprito no necessrio a ningum ou pouco menos. Os pensadores constituem a exceo. Se essas investigaes nos levam a

  • ocupar melhor o nosso esprito, a saber o que viemos fazer a Terra, poderemos estar satisfeitos com tal trabalho, porque, realmente, a vida da Humanidade terrestre parece bem obtusa.

    O habitante da Terra ainda to estpido e to animal, que at agora, e em toda a parte, foi a fora brutal quem fundou o Direito e que o manteve; que o principal ministrio de cada nao o ministrio da guerra; e que os nove dcimos dos recursos financeiros dos povos so consagrados s matanas peridicas internacionais.

    E a morte continua a reger soberanamente os destinos da Humanidade.

    Na realidade, a soberana ela... O seu cetro nunca exerceu um poder dominador com violncia to feroz e to selvagem como nestes ltimos anos. Derrubando milhes de homens nos campos de batalha, fez surgir milhes de pontos de interrogao, dirigidos ao destino. Estudemos este fim supremo. assunto digno da nossa ateno.

    *

  • O plano desta obra traado pelo prprio fim a que visa: Certificar-se das provas positivas da sobrevivncia. Nela no se encontraro nem dissertaes literrias, nem belas frases poticas, nem teorias mais ou menos cativantes, nem hipteses, mas unicamente fatos observados, com suas dedues lgicas.

    Morremos inteiramente? Eis a questo. Que fica de ns? Dizer, pensar que a nossa imortalidade consiste em nossos descendentes, em nossas obras, no progresso que podemos trazer Humanidade, puro gracejo. Se morrermos de todo, nada saberemos dos servios que prestamos e, por outro lado, o nosso planeta acabar e a Humanidade perecer. Tudo ser, pois, aniquilado.

    Para saber se a alma sobrevive ao corpo, necessrio saber primeiro se ela existe independentemente do organismo fsico. Devemos, pois, estabelecer esta existncia sobre as bases cientficas da observao positiva, e no sobre belas frases ou em argumentos ontolgicos com os quais as teologias de todos os tempos se contentaram at agora. E em primeiro lugar teremos de dar-nos conta da insuficincia das teorias fisiolgicas geralmente aceitas e classicamente ensinadas.

  • II O MATERIALISMO

    Doutrina errnea, incompleta e insuficiente.

    Desconfiemos das aparncias.

    COPRNICO

    Todos conhecemos a Filosofia Positiva de Augusto Comte e a sua judiciosa classificao das cincias, descendo gradualmente do Universo ao Homem, da Astronomia Biologia.

    Ningum desconhece tambm Littr, continuador de Augusto Comte. O seu Dicionrio encontra-se em todas as bibliotecas e as suas obras foram difundidas por toda a parte. Conheci-o pessoalmente3. Era um homem eminente, sbio, enciclopedista, pensador profundo, alis, materialista e ateu convicto e absolutamente sincero. A esttica do seu rosto no correspondia beleza de sua alma. Era difcil v-lo sem pensarmos em nossa origem simiesca, e,

    3 Faleceu em 2 de Junho de 1881.

  • entretanto o seu esprito era da mais alta nobreza e o seu corao duma generosidade rara.

    Morava perto do Observatrio; sua esposa era muito devota: ele mesmo a acompanhava, aos domingos, missa de S. Sulpcio, por meiga e pura bondade e sem entrar na igreja. Le Dantec, ateu e materialista, que lhe sucedeu, teve exquias religiosas para no magoar sua mulher, muito religiosa tambm, de quem se pode deplorar este ltimo gesto. Preferir-se-ia que as companheiras da vida dos grandes homens pensassem como seus maridos. Este professor de atesmo era igualmente muito bom. Tudo isto bastante paradoxal. O mesmo se deu com Jules Soury, esse devorador de padres sepultado por eles, entre preces litrgicas. A lgica no deste mundo. Mas as doutrinas nem sempre orientam as obras. Pode-se ser catlico praticante e mentiroso, explorador do prximo, assim como se pode ser materialista e perfeito homem de bem.

    Conheci ainda o excelente Ernesto Renan que, por nobre sinceridade e para se libertar lealmente de toda hipocrisia, recusara o sacerdcio para o qual o levavam os seus estudos teolgicos.

  • Estes eminentes espritos so respeitveis nas suas honestas convices, que devemos respeitar como eles respeitaram as dos outros; mas podem-se discutir as suas idias, e de resto nunca eles tiveram pretenses de infalibilidade.

    Littr ocupou-se das questes psquicas que temos em mira estudar neste livro. Tomaremos os seus argumentos, assim como os de Tain, seu mulo, por base das afirmaes materialistas modernas. No temamos combat-las face a face.

    Na sua obra A Cincia sob o ponto de vista filosfico encontram-se num captulo sobre a fisiologia psquica as seguintes declaraes:

    Talvez parea inslita a expresso de fisiologia psquica. Poderia escolher a de psicologia para designar o estudo das faculdades intelectuais e morais. Eu prprio j a empreguei muitas vezes e, devido ao uso comum que dela se faz, quando o texto no deixar nenhuma obscuridade no meu pensamento, Empreg-la-ei ainda. A raiz grega que a compe, , de fato, apropriada Teologia e a Metapsquica, mas tambm pode ser adaptado Fisiologia, dando-lhe o sentido de conjunto das faculdades intelectuais e morais, locuo muito longa e

  • complexa para ser substituda com vantagem por uma expresso mais simples.

    Entretanto, sendo certo que a Psicologia foi na sua origem e ainda o estudo do esprito, considerado independentemente da substncia nervosa, no devo nem quero servir-me de expresso que pertence a uma filosofia muito diferente daquela que empresta o seu nome s cincias positivas. Nestas cincias no se conhece nenhuma propriedade sem a matria, no porque a priori se tenha a idia preconcebida de que no existe qualquer substncia espiritual independente, mas porque a posteriori jamais se encontrou a gravitao sem corpo pesado; o calor sem corpo quente; a eletricidade sem corpo eltrico; a afinidade sem substncias de combinao, vida, sensibilidade; pensamento sem ser vivo, sensvel e pensante.

    Julguei necessrio fazer figurar a palavra fisiologia no ttulo deste trabalho. Bem podia servir-me da de fisiologia cerebral, mas esta envolve assunto mais vasto. O crebro possui diversas formas de ao de que no pretendo ocupar-me, limitando-me parte que ele tem na impresso de que resulta a noo do mundo exterior e do eu.

  • Eis o motivo por que escolhi a locuo fisiologia psquica ou mais concisamente psicofisiologia. Psquico, isto , relativo aos sentimentos e s idias; fisiologia, isto , formao e combinao destes sentimentos e destas idias em relao constituio e funo do crebro. No tenho a pretenso de introduzir uma nova expresso na cincia: tudo quanto aqui pretendo , duma parte, limitar nitidamente o meu assunto, e doutra, inculcar que a descrio dos fenmenos psquicos, com sua subordinao e seu encadeamento, pura fisiologia e o estudo de uma funo e de seus efeitos. Os progressos realizados pela Psicologia, pelo menos a que deriva da escola de Locke, que rompeu com as idias inatas, aproximaram-na da Fisiologia. Quanto mais esta se deu conta da extenso do seu domnio, menos se assustou com os antemas da Psicologia que interditava as altas especulaes. Hoje no resta dvida de que os fenmenos intelectuais e morais so fenmenos pertencentes ao tecido nervoso; que o caso humano no seno um anel, embora o mais considervel, duma cadeia que se prolonga, sem limite bem ntido, at aos ltimos animais; e que, sob qualquer ttulo que se proceda, contanto que se empregue o mtodo

  • descritivo, de observao e de experincia, ser-se- um fisiologista.

    No concebo uma fisiologia onde a teoria dos sentimentos e das idias, no que ela tem de mais elevado, no ocupe grande lugar4.

    Esta base do sistema materialista da alma. Convido o leitor a pesar escrupulosamente este gnero de raciocnio.

    No devemos admitir a existncia da alma porque no se conhece nenhuma propriedade sem matria, porque jamais se encontrou a gravitao sem corpo pesado, calor sem corpo quente, eletricidade sem corpo eltrico, afinidade sem substncias de combinao, a vida, a sensibilidade, o pensamento, sem ser vivo, sentindo e pensando.

    Ora, s h neste raciocnio uma petio de princpio, fundada sobre a palavra propriedade.

    Assimilar o pensamento gravitao, ao calor, aos efeitos mecnicos, fsicos, qumicos, dos corpos materiais, igualar duas coisas muito diferentes, que esto precisamente dentro da questo: o esprito e a matria.

    4 Littr "A Cincia sob o ponto de vista filosfico" (Paris, 1873)

  • A vontade de um ser humano, mesmo a da criana, pessoal, consciente, ao passo que a gravitao, o calor, a eletricidade, so impessoais, inconscientes, conseqncias de certos estados da matria, fatais, cegas, essencialmente materiais por si mesmo. grande a diferena entre os dois objetos comparados: o dia e a noite.

    O prprio raciocnio cientfico erra pela base. O calor, por exemplo, nem sempre provm de um corpo quente: o movimento, que no tem temperatura alguma, produz calor. O calor um modo de movimento. A luz tambm um modo de movimento. A natureza da eletricidade continua desconhecida.

    Confesso que no sei explicar como um homem do valor de Littr, chefe da Escola Positivista, tenha aceitado este raciocnio, sem perceber que no havia nele mais do que uma petio de princpio, quase um trocadilho, pois esta argumentao baseia-se na palavra propriedade. O que seria preciso provar positivamente que o pensamento propriedade da substncia nervosa, que o inconsciente pode produzir o consciente, o que , em princpio, contraditrio.

  • No se ousaria comparar um pedao de pau com um pedao de mrmore ou de metal, e compara-se tranqilamente o esprito, a razo pensante, o sentimento da liberdade, da justia, da bondade, vontade, com uma funo da substncia orgnica! Taine assegura que o crebro segrega o pensamento como o fgado segrega a blis. Parece que nestas inteligncias a sede do raciocnio feita, de antemo, com a mesma cegueira que a dos telogos. No haver nisto idia preconcebida, convico sistemtica? Deixemos as palavras vs, no comeo desta discusso. Que a matria? , sua opinio geral, o que nossos sentidos distinguem o que se v, o que se toca, o que se pesa. Pois bem! As pginas seguintes vo demonstrar que existe no homem outra coisa alm daquilo que se v, se toca ou se pesa; que h no ser humano um elemento independente dos sentidos materiais, um princpio mental pessoal, que pensa, que quer, que atua, que se manifesta distncia, que v sem olhos, escuta sem ouvidos, descobre o futuro ainda inexistente, revela fatos ignorados. Supor que esse elemento psquico, invisvel, intangvel, impondervel, uma propriedade do crebro, proclamar uma afirmao sem provas, um raciocnio contraditrio em si mesmo, como se dissesse que o sal pode produzir acar e que

  • os peixes podem ser cidados da terra firme. O que queremos mostrar, aqui, que a prpria observao positiva (no temos outro mtodo alm do de Littr, Taine, Le Dantec e outros professores do Materialismo, e repudiamos as teorias bizantinas de raciocnios sobre palavras, puras divagaes) , dizemos, que a observao dos fatos e a experincia provam que o ser humano no somente um corpo material dotado de vrias propriedades, mas tambm um ser psquico, dotado de propriedades diferentes das do organismo animal.

    Como puderam imaginar intelectuais eminentes, tais como Comte, Littr, Berthelot, que a realidade circunscrita ao crculo de impresso de nossos sentidos, to limitados e imperfeitos? Um peixe poderia acreditar que nada existe fora da gua; um co que fizesse uma classificao dos conhecimentos caninos classific-los-ia no pela vista, como os homens, mas pelo olfato; um pombo correio observaria especialmente o sentido de orientao; uma formiga o sentido antenal, etc.

    O esprito sobrepuja o corpo; os tomos no regem; so regidos. O mesmo raciocnio pode ser aplicado ao Universo inteiro, aos mundos que gravitam no espao, aos vegetais, aos animais. A

  • folha da rvore organizada, um ovo fecundo organizado. Esta organizao de ordem intelectual.

    O esprito universal est em tudo; ele enche o mundo, e isto sem crebro.

    impossvel analisar o mecanismo do olho e da viso, do ouvido e da audio, sem concluir que os rgos visuais e auditivos so construdos com inteligncia. Esta concluso deriva com maior evidncia ainda da anlise da fecundao de uma planta, de um animal, de um ser humano. A evoluo progressiva do ovo feminino fecundado, o papel da placenta, a vida do embrio e do feto, a criao deste pequeno ser no seio da me, a transformao orgnica da mulher, a formao do leite, o nascimento, a amamentao, o desenvolvimento fsico e psquico da criana, so outras tantas manifestaes irrecusveis de uma fora diretriz inteligente, organizando tudo e dirigindo as mnimas molculas com a mesma ordem que as esferas planetrias ou siderais na imensidade dos cus.

    Este esprito no procede de um crebro. Disse-se, com razo, que se Deus fez o homem sua imagem, o homem por seu lado lhe pagou na mesma moeda.

  • Se os besouros imaginassem um criador, esse criador seria para eles um grande besouro.

    O Deus antropomorfo dos hebreus, dos cristos, dos muulmanos, dos budistas, nunca existiu. Deus, Jeov, Jpiter, no so mais do que palavras simblicas.

    Se a gerao admiravelmente organizada sob o ponto de vista fisiolgico, est longe da perfeio no que respeita s sensaes da maternidade. Para que sofrimentos? Para que as dores atrozes do fim? A Igreja v nisso o castigo da culpa de Eva. Que gracejo! Ado e Eva existiram? As fmeas dos animais no sofrem? A Natureza pouco se preocupa com as pocas dolorosas da mulher e com a brutalidade da expulso; peca certamente por falta de sensibilidade; o bom Deus no meigo para as suas criaturas; nem sequer humano, e as irms de caridade so melhores do que ele. Problema grave, apesar da certeza da existncia do esprito na Natureza. No compreendemos Deus, evidente. Que prova isto? A nossa inferioridade espiritual.

    Que o esprito, a inteligncia, a ordem mental existem em tudo, inegvel. A cincia experimental detm-se no seu caminho quando ensina que todos os fenmenos do Universo se

  • reduzem, em ltima anlise, ao dualismo matria e movimento, ou mesmo ao monismo matria e propriedades. A Histria Natural, a Botnica, a Fisiologia Animal, a Antropologia, apresentam observao um elemento distinto da matria e do movimento: a vida.

    O fisiologista Claude Bernard no nos mostrou j que a vida no um produto das molculas materiais? Alm disso, o Universo manifesta-se-nos como dinamismo, pois o movimento inerente aos prprios tomos, e este dinamismo no de ordem material, porque h nele a organizao de tudo: seres e coisas5.

    A doutrina que faz do pensamento uma funo cerebral, ou que v entre o trabalho do crebro e o do pensamento um paralelismo, uma

    5 Conheci outrora um naturalista modesto, engenhoso observador do

    mais alto valor pessoal, que estudou diretamente, com seus olhos, a vida dos insetos e descobriu maravilhas. Chamava-se Henri Fubre, e morava em Serignan (Vaucluse). Foi s aps cinqenta ou sessenta anos de trabalhos interrompidos que ele viu a sua reputao ultrapassar o seu departamento. Toda gente leu j (sobretudo depois da sua morte) os dez volumes dos seus Soucenirs entomologignes, e no creio que qualquer leitor possa recusar-se a ver a a manifestaro constante do esprito na natureza em cada inseto em cada molcula viva mesmo. Lembremos como exemplo, o Sphex, inseto hmenptero que cava na areia das tocas vrias celas, pe um ovo em cada uma e, depois de haver depositado ai uma vtima que acaba de ser paralisada, e no morta, para servir de alimentao fresca larva ao nascer; a vtima deve ficar viva, mas inerte, tanto quanto durar o festim larvrio, pois as pequenas larvas no apreciariam a carne podre. Tudo previsto para a sua querida existncia pela me que no as conhecer e que nada saber delas. Toda a vida dos insetos est cheia destes instintos de previdncia.

  • equivalncia, totalmente insuficiente, podemos diz-lo com o psiclogo Brgson.

    Ensina-se que as recordaes so acumuladas no crebro sob a forma de modificao impressa em tal ou tal grupo de elementos anatmicos. Desaparecem-se da memria porque os elementos anatmicos, sobre que repousam, so alterados ou destrudos. As impresses deixadas pelos objetos exteriores subsistiriam no crebro, como na placa sensibilizada ou no disco fonogrfico. Estas comparaes so verdadeiramente superficiais. Se a recordao visual de um objeto, por exemplo, fosse uma impresso causada por esse objeto sobre o crebro, no haveria a recordao de um s objeto, mas de milhares de milhes deles, pois o objeto mais simples e mais estvel muda de forma, de dimenso, de matizes, segundo o ponto de que se avista, a no ser que eu me condene a uma fixidez absoluta, contemplando-o. A menos que os vossos olhos se imobilizem nas suas rbitas, imagens inmeras, de modo algum sobrepostas, desenhar-se-o alternativamente em vossa retina e se transmitiro ao vosso crebro. O que ser, tratando-se da imagem visual de uma pessoa, cuja fisionomia muda, cujo corpo mvel e de quem o vesturio e tudo quanto a rodeia

  • varia cada vez que a vemos? incontestvel, portanto, que a nossa conscincia guarde em reserva uma imagem nica, ou quase nica, uma recordao praticamente invarivel do objeto ou da pessoa, prova evidente de que houve outra coisa e bem diferente duma ao mecnica de registro. Outro tanto se pode observar quanta recordao auditiva. A mesma palavra articulada por pessoas diferentes, ou pelo mesmo indivduo, em momentos diferentes, em frases diferentes, d-nos fonogramas que no coincidem entre si: como seria, pois, a recordao comparvel a um fonograma? Esta nica considerao bastaria para tornar suspeita a teoria que atribui as molstias da memria das palavras alterao ou destruio das prprias recordaes, registradas automaticamente pela pelcula cerebral.

    Mas vejamos, com o mesmo autor, o que se d nestas molstias.

    Ali, onde a leso cerebral grave e onde a memria das palavras atacada profundamente, acontece que uma excitao mais ou menos violenta, uma emoo, por exemplo, faz reaparecer repentinamente a recordao que parecia para sempre perdida. Seria isto possvel se a recordao fosse depositada na matria

  • cerebral alterada ou destruda? As coisas produzem-se de preferncia como se o crebro servisse para lembrar a recordao e no conserv-la. O afsico torna-se incapaz de reencontrar a palavra quando tem necessidade dela: parece andar a volta, no possuir fora suficiente para pr o dedo no ponto preciso; no domnio psicolgico, com efeito, o sinal externo da fora sempre a preciso. Mas a recordao parece estar a; e s vezes, depois de substituir por perfrases a palavra que procurava em vo, o afsico emprega-a numa delas.

    Reflitamos agora no que se d na afasia progressiva, isto , quando o esquecimento de vocbulos se vai agravando sempre. Em geral, as palavras desaparecem ento numa ordem determinada, como se a doena conhecesse a gramtica; eclipsam-se primeiro os nomes prprios, depois os nomes comuns, em seguida os adjetivos, e finalmente os verbos constituiriam outras tantas camadas sobrepostas, por assim dizer, e a leso atingi-las-ia sucessivamente. Sim, mas a enfermidade pode derivar das causas mais diversas, tomar as formas mais variadas, comear num ponto da regio cerebral interessada e progredir em qualquer direo: a ordem do desaparecimento das recordaes fica

  • sendo a mesma. Seria isto possvel se a molstia atacasse as prprias recordaes?

    Se a recordao no foi armazenada no crebro, onde se conserva? A pergunta onde ter de resto um sentido quando se refere a outra coisa que no seja um corpo?

    Os clichs conservam-se numa caixa, os cilindros fonogrficos nas estantes; mas, por que razo as recordaes, que no so coisas visveis e tangveis, necessitariam de um continente, e como poderiam t-lo? Essas recordaes existem noutra parte que no seja no esprito? Ora, o esprito humano a prpria conscincia, e conscincia significa, primeiramente, memrias6.

    Podemos dizer, com o eminente pensador, que tudo ocorre como se o corpo fora simplesmente utilizado pelo esprito. Por conseguinte, no h motivo para supor que o corpo e o esprito sejam inseparavelmente ligados um ao outro.

    Eis aqui um crebro que trabalha. Eis ali uma conscincia que sente que pensa e que quer. Se o trabalho do crebro correspondesse

    6 Conscincias F e Vida no Materialismo atual. (Paris, 1913).

  • totalidade da conscincia, se houvesse equivalncia entre o cerebral e o mental, a conscincia poderia seguir os destinos do crebro e a morte ser o fim de tudo: pelo menos, a experincia no diria o contrrio, e o filsofo que afirma a sobrevivncia teria de apoiar a sua tese em qualquer construo metafsica, base geralmente frgil. Mas, se a vida mental ultrapassa a vida central, se o crebro se limita a traduzir por movimentos uma pequena parte do que se passa na conscincia, a sobrevivncia ento se torna to provvel que a obrigao da prova caber mais ao que nega do que ao que afirma, pois a nica razo que possamos ter para admitir uma extino da conscincia depois da morte a de que vemos o corpo desorganizar-se, e esta razo desvaloriza-se se a independncia, pelo menos parcial, da conscincia para com o corpo , tambm, um fato de experincia.

    Brgson, apesar de metafsico, parece mais positivo do que o fsico Littr. O esprito no a matria. No est demonstrado que a alma seja funo do crebro, propriedade da substncia cerebral, destinada a morrer com ela.

    Pergunta-se mesmo como que uns raciocinados da envergadura de Taine, por exemplo, que aprecia no seu justo valor a

  • concepo e a composio dum trabalho, o seu plano, a sua execuo, e que escreveu precisamente um livro especial sobre a Inteligncia, pode atribuir criao duma obra filosfica secreo duma combinao molecular das partes materiais constitutivas dum crebro. A ao do esprito pessoal a to evidente e irrecusvel que preciso uma verdadeira auto-sugesto sistemtica para obscurec-la.

    O crebro o rgo do pensamento, sem dvida alguma, e ningum o contesta. Mas contrariamente ao que outrora ainda se admitia, a totalidade do crebro no necessria ao pensamento nem vida.

    Aos exemplos extrados das doenas da memria, que acabamos de relembrar, poderamos acrescentar muitos outros que levam mesma concluso. O meu sbio amigo Edmond Perrier apresentou Academia das Cincias, na sesso de 23 de Dezembro de 1913, uma observao do Dr. Rbson, respeitante a um homem que viveu um ano, quase sem sofrimento, sem nenhuma perturbao mental aparente, com o crebro reduzido ao estado de papas, formando vasto abscesso purulento. Em Julho de 1914, o Doutor Hallopeau fez, na Sociedade de Cirurgia,

  • a exposio de uma operao praticada no Hospital Necker numa rapariga cada do Metropolitano. Na trepanao, verificou-se que notvel poro de matria cerebral estava reduzida a papa. Fez a limpeza, drenou-se, fechou-se; a doente restabeleceu-se. Em 24 de Maro de 1917, na Academia das Cincias, o Dr. Gupin mostrou, operando um soldado ferido, que a ablao parcial do crebro no impedia as manifestaes da inteligncia. Outros casos idnticos poderiam ser citados. s vezes, restam bem modestas parcelas: o esprito serve-se engenhosamente do que pode.

    Se os anatomistas no encontram a alma na ponta de seus escalpelos, quando dissecam os corpos, porque l no est. Quando os mdicos, os fisiologistas no vem em nossas faculdades psquicas seno propriedades da matria cerebral enganam-se grosseiramente. H tambm no ser humano outra coisa mais do que a substncia branca ou cinzenta do crebro.

    Pode-se objetar que, em geral, a faculdade de pensar parece acompanhar o estado do crebro e que ela enfraquece com a idade, como com o prprio crebro acontece. Mas no seria o instrumento, o corpo, que enfraqueceria, e no o esprito? Muitas vezes, nos grandes labutadores

  • do pensamento, o esprito mantm-se integro at ao ltimo dia da vida. Todos os meus contemporneos conheceram em Paris escritores como Vitor Hugo, Lamartine, Legouv; historiadores como Thiers, Mignet, H. Martins; eruditos como Barthlemy-Saint-Hilaire (1805-1895); sbios como Chevreuil (1786-1889), que mostraram at uma idade muito avanada a virilidade e a juventude de suas almas.

    Homo sapiens, o homem pensante: eis o ttulo pelo qual certos fisiologistas definem h muito tempo a espcie humana. Podiam, porventura, criar esta designao para agregados de tomos materiais formando um crebro?

    Uma associao qumica de molculas de hidrognio, de carbono, de azoto, de oxignio, etc., poderia pensar? A Biologia uma cincia recente. A biologia determinista uma filosofia. prprio desta filosofia considerar os fenmenos mentais e psquicos como efeitos de reaes fisiolgicas. Ora, as explicaes fisiolgicas no so, sob a forma de expresses figuradas, seno confisso de incompetncia. Considera-se a inveno duma palavra como descoberta e a narrao hipottica dum fato como explicao!

  • A sensao e o princpio vital conservam-se to misteriosos como nos sculos passados, apesar das descobertas modernas sobre a origem puramente fsico-qumica dos movimentos musculares. No se pode deixar de reconhecer em cada um de ns, ao lado, ou melhor, acima dos fenmenos fisiolgicos, um princpio intelectual ativo, autnomo, sem o qual nada se explica e com o qual tudo se compreende.

    Digamos desde j, alm disso, que as manifestaes normais e bem conhecidas da alma, de que acabamos de falar, desaparecem diante das que vamos pr em evidncia nos captulos seguintes.

    A Medicina teria grande interesse em tomar em linha de conta estas consideraes, agindo no somente sobre o organismo fsico, mas tambm sobre o dinamismo intelectual. Um certo nmero de doenas rebeldes aos processos farmacuticos pode ser curado pela ao mental. Temos, de resto, como testemunhos, as curas pelo magnetismo, pela sugesto, e os pretensos milagres da f religiosa, desde o templo de Epidauro e o culto de Esculpio at Lourdes e seus concorrentes. Os glbulos homeopticos da

  • vigsima soluo no atuam um pouco por persuaso? A f move montanhas.

    O esprito no o corpo nem emanao dele, afirmando-se como muito diferente. vontade do homem apreciada por toda gente. A perseverana neste, vontade, boa ou m, o esprito de sacrifcio, o herosmo, o desprezo da dor, a insensibilidade orgnica dos mrtires que desafiaram os suplcios mais atrozes, a abnegao, a dedicao, as virtudes e os vcios, a caridade e a inveja, a amizade e o dio, no so outras tantas provas da independncia da alma relativamente ao crebro?

    H seres que em nada pensam. Encontram-se alguns deles pela Terra.

    Mas, em geral, o homem, mesmo o mais inculto, sente que existe qualquer coisa mais elevada que comer, beber, e acasalar-se, que este mundo efmero dos sentidos no o seu prprio fim, sendo somente a manifestao de um princpio superior de que no vemos seno a sombra confusa. este sentimento que as religies quiseram atender.

    Se estudarmos o corpo humano e as suas funes naturais, somos forados a reconhecer que, apesar dos encantos que oferece s nossas sensaes, , em ltima anlise, um objeto assaz

  • vulgar, quando nele se considera somente a matria. A verdadeira nobreza est no esprito, no sentimento da inteligncia, no culto da Arte e da Cincia; e o valor do homem no reside no seu corpo to pouco duradouro, to mutvel, to frgil, mas na sua alma que se mostra, nesta vida, dotada da faculdade de existir.

    Esse corpo no , alis, uma massa inerte, um autmato; um organismo vivo. Ora, a organizao dum ser, dum homem, dum animal, duma planta, atesta a existncia duma fora organizadora, dum esprito na Natureza, do princpio intelectual que rege os tomos e que no propriedade deles. Se houvesse somente molculas materiais desprovidas de direo, o mundo no caminharia, um caos qualquer subsistiria indefinidamente, sem leis matemticas, e a ordem no regularia o Cosmos.

    Na teoria mecnica do Universo, o conjunto das coisas um efeito fatal das combinaes inconscientes; a criao um nada intelectual que vem a ser alguma coisa e acaba por pensar! Pode-se imaginar hiptese mais absurda em si, e mais contrria observao?

    A misteriosa Natureza ps esprito em tudo e mostra-se mesmo dotada de uma malignidade geralmente insuspeita. Que a garridice da moa

  • que a leva a tornar-se mulher, a sofrer no seu belo corpo, a perpetuar a espcie humana, a ser feliz com a dolorosa maternidade? Que o amor, esse lao adorvel? Que o sofrimento das coraes? Que o sentimento? A muda linguagem da Natureza no se faz ouvir bastante? Que a construo de um ninho por dois pssaros... a ave choca alimentada pelo companheiro... O biscato levado pelos pais aos pequenos famintos? Que so a galinha e os seus pintainhos? Haveis refletido j sobre a primeira palpitao do corao num ovo, numa criana? Haveis analisado algum dia a fecundao das flores? No ver nisto uma ordem raciocinada, uma inteno, um plano, um intuito geral, uma finalidade, uma organizao que nos domina todos; no ver na vida o fim supremo da organizao dos mundos, no ver a luz em pleno dia.

    Aonde nos conduz esta fora misteriosa? Ignoramo-lo. Ao passo que a vida nos impe suas leis, o planeta em que habitamos leva-nos pelo espao com a velocidade de 107.000 quilmetros por hora, joguete ele mesmo das foras diretrizes do sistema do mundo e de catorze movimentos diferentes. Somos tomos pensantes sobre um tomo mvel, um milho de vezes menor que o Sol que um milho de vezes menor do que

  • Canopo, o qual, por sua vez, um tomo da nossa gigantesca nebulosa estelar, que no seno um universo, cercado de outros at ao infinito. Imensidade sem limites! Movimentos prodigiosos! Velocidades assombrosas!

    A fora parece mesmo inerente ao tomo, pois no se nota em parte nenhum tomo imvel. Um ser vivo que no possusse em si mesmo a sua fora diretriz, no poderia viver, cairia em runas, como edifcio abandonado. Renan e Berthelot, estes dois amigos inseparveis, dissertavam s vezes sobre o problema que aqui nos interessa. Um e outro pareceram sem esperana duma vida futura, mas com sentimentos um pouco antagnicos. Em 25 de Agosto de 1892, Berthelot escrevia a Renan, que definhava dia a dia e morreu um ms depois: Consolemo-nos, vendo crescer nossos netos; a nica sobrevivncia que nos dado conhecer de cincia certa. Este modo de dizer no encerra, no seu esprito, uma negao absoluta e respondia, sem dvida, a algumas preocupaes do autor da Vida de Jesus.

  • Em 20 de Julho precedente, Renan havia escrito a Berthelot7.

    O ato mais importante de nossa vida o da nossa morte. Este ato cumprimo-lo, geralmente, em circunstncias detestveis. A nossa escola, cuja essncia a de no carecer de iludir-se, tem, creio eu, nessa hora solene, vantagens particulares.

    Trabalho atualmente na correo das provas do meu quarto e quinto volume de Israel. Quisera rever tudo. Se um outro interviesse nisto, sentiria algumas impacincias no fundo do purgatrio: a maior parte dos melhoramentos que tenciono fazer, ningum, entretanto, salvo o Eterno e eu, os conhecerei. Seja feita a vontade de Deus! In utrumque paratus.

    O filsofo, o antigo telogo, est preparado. Subsiste a sua crena em Deus. Pode-se ser anticlerical e desta (como Voltaire): Renan no estava longe de admitir uma sobrevivncia indeterminvel.

    Segundo seu genro, o Sr. Psichri, que lhe assistiu morte, Renan teria declarado que nada subsistiria dele, nada, nada, nada. Foi esta a

    7 Correspondncia de Renan a Bertelot (Paris, 1898) publicada por

    Bertelot.

  • impresso da sua hora derradeira. Acerca da sobrevivncia da alma, cem outros grandes espritos tiveram o mesmo cepticismo. Preocupavam-se com ela, todavia. Esta opinio oriunda unicamente da nossa ignorncia. Ptolomeu nada conhecia de mais estpido que a hiptese do movimento da Terra, soberanamente ridcula.

    Que o pensamento? Que a alma? O sobrenatural no existe; e a alma, se existe individualmente, to natural como o corpo.

    Chega-se enfim a admitir a unidade de fora e a unidade de substncia8.

    Tudo dinamismo. O dinamismo csmico rege os mundos. Newton deu-lhe o nome de atrao. Mas esta interpretao insuficiente: se s houvesse atrao no Universo, os astros formariam um nico bloco, pois ela h muito tempo os teria reunido; h, alm disso, o movimento. O dinamismo vital rege os seres: no homem que evolucionou, o dinamismo psquico constantemente associado ao dinamismo vital.

    8 Foi este o ttulo que dei, em 1865, notcia cientfica publicada no

    Anurio do Coamos para 1866. A cegueira era, ento, singular; mas os progressos da Cincia no fizeram seno confirmar esta idia dos antigos alquimistas. A estrutura do tomo, composta de turbilhes eltricos, mostra-nos mesmo hoje que a matria se esvai, na noo moderna da energia. Os tomos so centros de fora.

  • No fundo, todos estes dinamismos formam um s: o esprito na Natureza, surdo e cego para ns no mundo imaterial e mesmo no instinto dos animais, inconsciente na maior parte das obras humanas, consciente em um pequeno nmero delas.

    J escrevi na Urnia (1888): Aquilo a que chamamos matria esvai-se quando a anlise cientfica cr agarr-la. Encontramos como sustentculo do Universo, e princpio de todas as formas, a fora, elemento dinmico. O ser humano tem por princpio essencial a alma. O Universo um dinamismo inteligente incognoscvel.

    Escrevi tambm nas Foras Naturais Desconhecidas (1906): As manifestaes psquicas confirmam a que sabemos doutra parte, que a explicao puramente mecnica da Natureza insuficiente e que h outra coisa mais no Universo que a pretensa matria. No a matria que rege o mundo: um elemento dinmico e psquico.

    O progresso realizado nas observaes psquicas depois da data em que estas linhas foram compostas, confirmou-as de sobejo.

    Uma fora mental regula silenciosamente, soberanamente, os instintos dos insetos,

  • assegurando-lhes a existncia e a perpetuidade, como regula tambm o nascimento dum pssaro e a evoluo dos animais superiores, inclusive o prprio homem.

    este dinamismo que leva o inseto lagarta a tornar-se massa informe na crislida e depois em borboleta. ele que do organismo de mdiuns especiais emite uma substncia, transformando-se em rgos vivos de durao efmera, mas reais, dinamismo que cria instantaneamente materializaes transitrias.

    Afirmamo-lo: o Universo um dinamismo. Uma fora invisvel e pensante rege mundos e tomos. A matria obedece.

    A anlise das coisas mostra em tudo a ao dum esprito oculto. Este esprito universal est em tudo, regula cada tomo, cada molcula, mesmo impalpvel, impondervel, infinitamente pequeno, invisvel, constituindo pela sua agregao dinmica as coisas visveis e os seres; e este esprito indestrutvel, eterno.

    O Materialismo doutrina errnea, incompleta e insuficiente que nada explica a

  • nosso contento9. Admitir s a matria dotada de propriedades hiptese que no resiste anlise. Os positivistas laboram em erro, existem provas positivas de que a hiptese da matria, dominando e regendo tudo, pelas suas propriedades, est ao lado da verdade.

    No adivinharam o dinamismo inteligente que anima os seres e mesmo as coisas.

    Podemos dizer com o Dr. Geley que os fatores clssicos so impotentes para resolver a dificuldade geral de ordem filosfica relativa evoluo que do menos faz sair o mais10.

    O materialismo, to difundido, consciente ou inconscientemente, em todas as classes da sociedade, no seno teoria de aparncia, a superfcie das coisas no analisadas. Quod terra immobilis, in medio coeli, si ego contra assererem terram moveri... Escrevia Coprnico na primeira pgina de sua obra imortal, na dedicatria ao papa. E ele prova que o que se julgava demonstrado absolutamente falso. Devemos

    9 O maior dos fisiologistas, Claude Bernard, que passou a vida a investigar as funes do crebro, concluiu que o mecanismo do Pensamento nos desconhecido.

    10 Do Inconsciente ao Consciente.

  • hoje proceder da mesma forma para com a fisiologia psquica.

    pelo prprio mtodo experimental que lhe demonstraremos a fraqueza. Vamos pr em evidncia o erro absoluto do materialismo clssico. Toda a fisiologia psquica oficial errnea, contrria realidade. H no ser humano outra coisa mais do que molculas qumicas dotadas de propriedades: h um elemento no material, um princpio espiritual. O exame imparcial dos fatos vai comprov-lo e v-lo-emos mesmo atuar independentemente dos sentidos fsicos.

  • III QUE O HOMEM? EXISTE A ALMA?

    Devemos procurar a verdade com plena independncia de esprito, livres de toda idia

    preconcebida.

    DESCARTES

    Verificamos que as teorias materialistas no esto inteiramente demonstradas. No assentam em base to slida quanto se imagina; tm lacunas; deixam de lado muitas coisas inexplicadas; esto longe de poderem ser comparadas, como se pretende, a teoremas geomtricos, a certezas matemticas. Est, pois a questo inteiramente aberta ao nosso livre exame.

    Antes de procurar saber se a alma sobrevive dissoluo do corpo, indispensvel indagar, primeiro, se realmente nossas almas existem. Discutir a durao duma coisa que no existisse seria perder tempo ingenuamente. Se o pensamento fosse produto do crebro, extinguir-se-ia com ele.

    Esta noo s se pode adquirir pela observao cientfica positiva, pelo mtodo

  • experimental. Entretanto, at hoje, a Psicologia tem sido mais uma conveno de palavras, de meditaes tericas, de hipteses, do que outra coisa.

    tradio que no seguiremos aqui. Vamos procurar determinar a natureza da alma, por observaes prticas, e conhecer as suas faculdades.

    lamentvel que essas faculdades sejam quase ignoradas ainda. A nova psicologia deve ser firmada sobre a Cincia. Lembremo-nos da origem da palavra metafsica, depois da fsica na classificao de seu fundador, Aristteles.

    Foi demasiadamente esquecida esta circunstncia.

    Para continuar a viver depois da destruio do corpo necessrio existir espiritualmente. O nosso esprito subsiste individualmente? Temos uma alma? Para falar com mais exatido, o homem uma alma? Eis a primeira questo a resolver, o primeiro ponto a estabelecer. J apuramos que os materialistas, os positivistas, os ateus, os regadores do esprito na Natureza, laboram em completo erro, pensando e ensinando que no h no Universo seno a matria e suas propriedades, e que todos os fatos da Humanidade se explicam por esta teoria, ao

  • mesmo tempo erudita e vulgar. Eis aqui uma hiptese inexata. Mas preciso provar a tese contrria.

    Que a alma? Donde provm mesmo esta palavra? Que significa?

    A crena na alma foi estabelecida at agora sobre dissertaes metafsicas e sobre pretensas revelaes divinas no comprovadas. A religio, a f, o sentimento, o desejo, o temor, no so provas.

    Como se apresentou ao esprito dos homens a noo da alma?

    A palavra alma e seus equivalentes em nossas lnguas modernas (esprito, por exemplo) ou nas lnguas antigas, como anima, animus (transcrio latina do grego), spiritus, atroa, alma (vocbulo snscrito ligado ao grego, vapor), etc. implicam todas a idia de sopro; e no h dvida de que a idia da alma e de esprito exprimiu primitivamente a idia de sopro nos psiclogos da primeira poca. Psyche, mesmo, provm do grego, soprar.

    Estes observadores, identificando a essncia da vida e do pensamento com o fenmeno da respirao, e, por outra parte, tendo de conciliar o fato patente, irrecusvel, da decomposio do

  • corpo morto, do corpo privado de sopro, privado da alma, com a crena nas aparies dos mortos, isto , a vida persistente daqueles cujo cadver a jazia inanimado, ou, o que mais, dissolvido e reduzido a cinzas imaginaram que o sopro, a alma, era alguma coisa que abandonava o corpo na hora do decesso, para ir viver em outra parte a sua prpria vida.

    Ainda hoje, o ltimo suspiro designa a morte.

    Se uns admitiam esta persistncia da vida sob forma invisvel, outros s viam nisso uma impresso de sentimento, de saudade, de afeio dos sobreviventes, e, desde a origem dos diversos grupos humanos, vemos duas teorias distintas e mesmo opostas compartilharem as opinies: o Espiritualismo e o Materialismo. Mas tanto uns como outros raciocinam superficialmente.

    O sentido das palavras alma e esprito devem ser mudados, discutido, examinado. H distines fundamentais a determinar. As propriedades do organismo vivo e os elementos psquicos so essencialmente diferentes.

    Em geral, os homens pensam, com uma convico perfeita, que s h no mundo uma nica realidade incontestvel, a realidade dos objetos, da matria, isto , do que se v, do que

  • se toca, do que cai sob a apreciao dos sentidos. O resto para eles no passa de abstrao, quimera, coisa nenhuma.

    Este modo de ver tem por si a imensa maioria dos sbios e de toda a gente. Mas as maiorias e os sbios podem errar, e o que se d.

    A Fsica, a prpria Fsica, ensina-nos que a afirmao de aparncia, mesmo quando tem toda a fora da evidncia mais irresistvel, deve ter-se por suspeita e, direi como o meu saudoso amigo Durand de Gros, verificada severamente. H nada mais patente do que a marcha do Sol e do cu inteiro por cima de nossas cabeas? Esta evidncia tem sido proclamada em todos os tempos e lugares pelos olhos humanos. Haver outra mais imponente? Entretanto, no passa de uma iluso, como a Astronomia demonstrou.

    Quantas vezes os doutrinrios, raciocinando sobre a nica observao aparente, se mostram superficiais na sua crtica do conhecimento, julgando ver o fato experimental no ponto em que o mostram? O Sol um disco luminoso que gira sobre nessas cabeas, de leste a oeste, desde que nasce at que desaparece: eis a uma verdade observada, e que o testemunho unnime dos homens proclamou durante milhares de anos. Como possvel, entretanto, que a Cincia

  • ouse afirmar que esta verdade, firmada pela observao, um erro irrecusvel? E como possvel que todo o mundo saiba hoje que isto um erro?

    O que se pode afirmar rigorosamente, o que um fato de verdadeira observao e que se compreende bem no aquele que se enuncia dizendo: o Sol um disco... etc. o fato que se deveria enunciar assim. Tenho a sensao dum disco brilhante, que designo pelo nome de Sol, fazendo-me tal sensao aparecer o mesmo disco como se movendo de leste para oeste, etc.

    nestes termos que o experimentalista deve limitar a afirmao da sua experincia, se quiser manter-se nos domnios estritos da afirmao experimental, isto , da certeza absoluta.

    E esse disco mesmo no mais do que uma falsa aparncia, pois o Sol um globo.

    Consideremos as sensaes e as percepes, todavia no as confundamos com a realidade. Esta precisa ser demonstrada. Vejo um relmpago; um tiro de canho ressoa ao meu ouvido. Rigorosamente, devemos pensar: tenho a sensao de haver visto um relmpago, tenho a sensao de haver ouvido um tiro de canho. Entretanto, os fisiologistas desconhecem muitas vezes esta distino essencial. O que eles nos

  • apresentam como fatos observados no so muitas vezes, em rigor, seno fatos conjeturados; no so observaes, so indues extradas da observao, sem que eles se dem conta desta operao do seu esprito. Tenho a sensao dum disco luminoso de certo dimetro aparente, caminhando no cu do nascente para o poente: eis o que absolutamente verdadeiro, o que posso afirmar com segurana, segundo o princpio estabelecido pela doutrina experimental da certeza. Mas se digo: um disco caminha no cu, etc. afirmo mais do que sei, estou sujeito a enganar-me; e a prova que estou em erro, neste caso.

    Seria suprfluo multiplicar os exemplos em apoio desta tese. Sentimos tal e tal sensao; temos tal e tal idia; tal e tal emoo; eis o nico conhecimento imediato e certo, a nica verdade propriamente experimental e digna de crena absoluta.

    A noo de objeto supe, pois, uma sensao, uma percepo, uma concepo. Mas que tudo isso? Outros tantos atributos do prprio objeto? No. Esta sensao, esta concepo provam que, em face da coisa sentida, percebida, concebida, h uma coisa que sente, percebe, concebe.

  • Falando rigorosamente, o fato de sentir, perceber, conceber, constitui s por si um fato absolutamente fundamental, o nico que nos impe a observao imediata.

    Raciocina-se assim desde as discusses de Berkeley (1710) e mesmo desde as de Malebranche (1674). Tal raciocnio no de ontem11.

    S julgamos o Universo, as coisas, os seres, as foras, o espao, o tempo, pelas nossas sensaes, e tudo o que podemos pensar sobre a realidade est na nossa idia, em nosso esprito, em nosso crebro. Mas um raciocnio singular concluir da que as nossas idias constituem a realidade. Estas impresses tm uma causa, esta causa exterior aos nossos olhos, aos nossos sentidos. Somos espelhos que se do conta das imagens recebidas.

    O idealismo puro de Berkeley, de Malebranche, de Kant, de Poincar, vai demasiadamente longe no cepticismo; mas no percamos nunca de vista o seu princpio.

    11 Achar a sua discusso geral na minha obra Filosofia Astronmica, no

    captulo sobre o "Mundo exterior e a percepo humana" (obra que estou redigindo).