CALLON, Michel - A Agonia de Um Laboratorio

33
5 ____________ A agonia de um laboratório por Michel Callon (traduzido por Ivan da Costa Marques) Reprodução livre, em Português Brasileiro, do texto original de Michel Callon para fins de estudo, sem vantagens pecuniárias envolvidas. Todos os direitos preservados. (Free reproduction, in Brazili- an Portuguese, of Michel Callon’s original for study purposes. No pecuniary advantages involved. Co- pyrights preserved). Que papel particular os laboratórios desempenham no desenvolvimento do conhecimento e mais particularmente na construção dos fatos científicos? Es- ta questão é inevitável quando se reconhece a importância da pesquisa orga- nizada, seja tomando a forma de pequenas equipes no seio das quais indiví- duos dispõem de importantes margens de manobra, ou seja na forma inspira- da em modelos industriais, com equipamentos importantes e uma divisão de trabalho estrita. Contudo, a despeito de seu papel estratégico, os laboratórios têm sido pouco estudados. Muito se escreveu sobre a ciência e a sua organi- zação, ou mesmo sobre os cientistas trabalhando nos laboratórios, mas rela- tivamente pouco sobre a contribuição própria dos laboratórios para a constru- ção dos fatos científicos. Deste modo a filosofia da ciência e a epistemologia por muito tempo decidi- ram ignorar o trabalho material dos cientistas para privilegiar sua atividade in- telectual e se concentrar somente sobre a construção das teorias. Introduzin- do a oposição hoje clássica entre o contexto da descoberta e o contexto da justificação, os epistemólogos transformaram seu desinteresse pelos labora- tórios num imperativo metodológico. Eles estão prontos a reconhecer que os pesquisadores são movidos pela necessidade de glória e pela sede de pres- tígio, que eles são algumas vezes autoritários e arrebatados pelo poder e que

description

CALLON, Michel - A Agonia de Um Laboratorio

Transcript of CALLON, Michel - A Agonia de Um Laboratorio

Page 1: CALLON, Michel - A Agonia de Um Laboratorio

5

____________

A agonia de um laboratório por Michel Callon

(traduzido por Ivan da Costa Marques)

Reprodução livre, em Português Brasileiro, do texto original de Michel Callon para fins de estudo,

sem vantagens pecuniárias envolvidas. Todos os direitos preservados. (Free reproduction, in Brazili-

an Portuguese, of Michel Callon’s original for study purposes. No pecuniary advantages involved. Co-

pyrights preserved).

Que papel particular os laboratórios desempenham no desenvolvimento do

conhecimento e mais particularmente na construção dos fatos científicos? Es-

ta questão é inevitável quando se reconhece a importância da pesquisa orga-

nizada, seja tomando a forma de pequenas equipes no seio das quais indiví-

duos dispõem de importantes margens de manobra, ou seja na forma inspira-

da em modelos industriais, com equipamentos importantes e uma divisão de

trabalho estrita. Contudo, a despeito de seu papel estratégico, os laboratórios

têm sido pouco estudados. Muito se escreveu sobre a ciência e a sua organi-

zação, ou mesmo sobre os cientistas trabalhando nos laboratórios, mas rela-

tivamente pouco sobre a contribuição própria dos laboratórios para a constru-

ção dos fatos científicos.

Deste modo a filosofia da ciência e a epistemologia por muito tempo decidi-

ram ignorar o trabalho material dos cientistas para privilegiar sua atividade in-

telectual e se concentrar somente sobre a construção das teorias. Introduzin-

do a oposição hoje clássica entre o contexto da descoberta e o contexto da

justificação, os epistemólogos transformaram seu desinteresse pelos labora-

tórios num imperativo metodológico. Eles estão prontos a reconhecer que os

pesquisadores são movidos pela necessidade de glória e pela sede de pres-

tígio, que eles são algumas vezes autoritários e arrebatados pelo poder e que

Page 2: CALLON, Michel - A Agonia de Um Laboratorio

seu maquiavelismo, na verdade sua duplicidade, os leva freqüentemente a

estabelecer alianças ou compromissos com os poderes estabelecidos e em

particular com os militares. Mas, para a filosofia da ciência, a atividade dos

pesquisadores transcende todas estas dimensões às quais ela não é reduzí-

vel. Para dar conta do essencial - esta mistura rara de razão e de submissão

à experiência -, é preciso saber ver além das contingências do laboratório.

Não somente este não diz nada sobre a ciência, como, mais ainda, nos dá

uma imagem falsa. É pelo “contexto da justificação”, onde são discutidos e

avaliados os resultados e proposições, e não pelos laboratórios, que todos

aqueles que se esforçam em dar conta da realidade da ciência considerada

como uma atividade humana particular devem se interessar.

Durante muito tempo os sociólogos colaboraram com esta empreitada de mis-

tificação, se contentando em descrever a instituição científica, suas normas,

seus valores e suas formas gerais de organização (colégios invisíveis, espe-

cialidades). Livres de todas as ligações organizacionais, os pesquisadores,

reagrupados em comunidades de especialistas, são analisados no momento

onde eles discutem seus resultados e não no processo de produção ou fabri-

cação do conhecimento. Os laboratórios estão ainda estranhamente ausen-

tes. Os raros estudos que lhes são consagrados permanecem muito formais,

se prendem a identificar e a repertoriar as estruturas organizacionais e seus

determinantes assim como seu impacto sobre o desempenho ou a eficácia do

trabalho dos pesquisadores.

Rejeitando este acordo implícito da filosofia e da sociologia, uma nova disci-

plina, a antropologia das ciências, se constituiu progressivamente, colocando

o laboratório no coração de sua perspectiva de pesquisa. Em lugar de colocar

entre parênteses a produção de conhecimentos, este famoso contexto da

descoberta tão desprezado pelos filósofos, a antropologia das ciências consi-

derou como prioritário o estudo da ciência em se fazendo. Com aplicação, ela

estudou os pesquisadores no trabalho, montando experiências, interpretando

e discutindo entre eles os primeiros resultados, preparando artigos. A fecun-

Page 3: CALLON, Michel - A Agonia de Um Laboratorio

didade de tal virada não se fez por esperar: em um piscar de olhos se evapo-

rou a pretensa separação entre contexto da descoberta e contexto da justifi-

cação. É no laboratório, no decorrer do processo de construção dos argumen-

tos, de fabricação dos resultados, de conformação das teorias que se testa e

se constitui sua força e que se escolhem, se imaginam e se testam as audi-

ências que eles são destinados a convencer. A antropologia das ciências tem

mostrado que é falso distinguir etapas e traçar fronteiras: o processo é contí-

nuo. A elaboração de idéias, sua explicação, sua submissão à comprovação

se entrelaçam incessantemente segundo os caprichos das múltiplas intera-

ções que enlaçam os pesquisadores, seus financiadores e seus públicos po-

tenciais. Nesta perspectiva, o laboratório ocupa uma posição crucial. Não

somente é no seu seio que se observa a construção de interpretações ou de

enunciados, mas é igualmente lá que se prepara e se gere a transformação

de conhecimentos inicialmente locais em conhecimentos negociados e troca-

dos em mercados mais largos que ele contribui para criar, para transformar

ou para desfazer. O laboratório assegura a ligação entre o contexto da des-

coberta e o contexto da justificação, entre a fabricação de enunciados ou de

teorias e a sua difusão em meios sociais particulares. O laboratório é o agen-

te desta universalização de conhecimentos em que se consiste precisamente

a construção dos fatos científicos.

Para bem compreender este papel particular do laboratório, uma boa estraté-

gia é seguir, acompanhando-o até a sua desintegração, a evolução de um de-

les. Da mesma maneira que a pré-história de um laboratório nos permitiu

compreender a importância das redes, a lenta agonia de um laboratório nos

mostrará o papel que ele desempenha na permanente transformação e adap-

tação dos produtos e de seus mercados. É ele que gere a heterogeneidade e

a complexidade dos elementos que concorrem para a fabricação e para a

universalização dos conhecimentos. Quando mudam simultaneamente a defi-

nição de problemas, as relações de dependências internas, as demandas in-

dustriais, as comunidades científicas de referência, os modos de experimen-

tação, os conceitos utilizados, o laboratório é o lugar e o motor destas adap-

Page 4: CALLON, Michel - A Agonia de Um Laboratorio

tações. Jamais se vê o laboratório tão claramente quanto quando os movi-

mentos se tornam tão bruscos e os rearranjos tão profundos que o laboratório

não pode senão se desmembrar para se recompor depois sob formas dife-

rentes. Para dar conta do papel desempenhado pelo laboratório nesta gestão

complexa dos conteúdos, dos recursos necessários para sua fabricação e

dos contextos de sua utilização-difusão, nós introduzimos a noção de atores-

redes cuja construção coincide com a construção dos fatos científicos eles-

mesmos.

O laboratório de Beauregard e as pesquisas sobre as células de com-bustível

No inicio dos anos sessenta uma ação concertada (AC) visando coordenar os

esforços de diferentes laboratórios de pesquisas, universitários e industriais,

foi lançada pelo DGRST sobre o tema geral de conversão de energia. O de-

senvolvimento de células combustíveis - dispositivos técnicos permitindo a

transformação de energia química fornecida por um eletrólito renovável em

energia elétrica - constitui uma das prioridades estabelecidas pelo Comitê en-

carregado da ação concertada. As razões desta escolha são múltiplas. Antes

de tudo, os programas espaciais acabavam de colocar evidência o desempe-

nho das células de combustível e deixavam entrever possíveis aplicações in-

dustriais. Aliás é esta a argumentação que desenvolve Baccala, membro do

comitê e diretor do laboratório de Beauregard, importante centro de pesquisa

do CNRS especializado no estudo da eletrocatálise. Além do mais este tema,

fora sua importância econômica potencial, coincide com as prioridades políti-

cas do momento, pois ele tem por virtude essencial promover uma coopera-

ção entre industriais e universitários e, de um modo mais geral, entre pesqui-

sa tecnológica e pesquisa de base. Por fim, uma das principais vantagens da

escolha é a de delimitar um terreno fácil para o DGRST investir, pois não ha-

via nenhuma concorrência a temer: o CNRS ou a Universidade são pouco

dispostos a embarcar em colaborações incertas com as empresas e hesitam

Page 5: CALLON, Michel - A Agonia de Um Laboratorio

em apostar em disciplinas que, como a eletroquímica, ainda só desfrutam de

um prestígio medíocre. Aproveitando estas circunstâncias favoráveis, Baccala

impõe sem dificuldades o tema das células de combustível, de uma só vez

em seus aspectos tecnológicos e fundamentais; e no mesmo ato coloca seu

laboratório no primeiro plano da cena. Beauregard se torna um ponto de pas-

sagem obrigatório. Dominando tanto as técnicas como os conhecimentos teó-

ricos necessários à elucidação do funcionamento das células de combustível,

este laboratório se encontra colocado, desde o início da ação concertada, em

uma posição de articulação. Ligando pesquisas fundamentais e aplicadas a

um programa nacional, ele será levado a gerir esta tensão permanente que

se instala entre a dinâmica da pesquisa e aquela da ação política. Seguindo

Beauregard no seu difícil trabalho de intermediário, analisando a evolução

dos problemas e dos objetos de pesquisa, nós mostraremos que a construção

de fatos científicos dentro dos laboratórios é indissociável da estratégia do la-

boratório no seio das redes que ele gere.

Primeiras traduções: o eletrodo monotubular como objeto de pesquisa

Ao escolher dar apoio financeiro a esta ação concertada particular, o DGRST

estabeleceu uma primeira equivalência entre um campo de pesquisa e um

objetivo político. Ele postula que para dar vigor à indústria nacional, para re-

forçar a independência energética da França, a conversão de energia é um

dos temas prioritários: ele permite organizar transferências tecnológicas da

pesquisa de base em direção à pesquisa aplicada e coloca as empresas em

caminhos julgados promissores. Nós chamamos de tradução esta equivalên-

cia postulada por um ator particular (aqui, o DGRST) entre objetivos hetero-

gêneos, equivalência não imposta a priori por ninguém e que é por conse-

qüência conjectural.

Baccala, seguido sem discussão pelo comitê, acrescenta duas novas tradu-

ções que prolongam a precedente: a) para promover novas formas de ener-

Page 6: CALLON, Michel - A Agonia de Um Laboratorio

gia, uma das escolhas prioritárias é o desenvolvimento de células de combus-

tível; b) para alcançar este objetivo, a prioridade das prioridades é otimizar

cada um dos elementos constitutivos da célula, e em particular aperfeiçoar o

desempenho dos eletrodos. Estas três operações de tradução alinhadas cri-

am um curto-circuito impressionante entre, de um lado, o futuro industrial e a

independência política da França e, de outro lado, as pesquisas conduzidas

por um punhado de pesquisadores e de técnicos sobre o funcionamento dos

eletrodos. A noção de tradução dá conta perfeitamente deste estabelecimento

de um tipo particular de relação que consiste em formular uma equivalência

entre séries de preocupações, tipos de atividades, categorias de enunciados

e discursos radicalmente diferentes.

Uma tradução, qualquer que ela seja, raramente se dá sem problemas. Ela

está freqüentemente sujeita à controvérsias. Aquelas propostas por Baccala

não escapam a esta regra e suscitam rapidamente vivas oposições. Muitos

cientistas, não representados no seio do comitê, estimam que seja prematuro

estudar a estrutura dos eletrodos e que, antes de se lançar ao desenvolvi-

mento das células, a prioridade deva ser dada a um problema mais funda-

mental: a elucidação dos mecanismos de eletrocatálise propriamente ditos e,

mais particularmente, a utilização da mecânica quântica para descrever e

compreender o papel exato dos catalizadores. Muito rapidamente sua argu-

mentação é descartada. Baccala consegue agregar suficientes interesses em

torno de sua tradução para impô-la sem a menor dificuldade. Durante um lon-

go período, esta equivalência não será contestada nos meios da política cien-

tífica que vão mobilizar importantes financiamentos para apoiá-la e consolidá-

la. A linha de pesquisa indiscutível é o estudo do transporte dos reagentes, a

colocação em contato do eletrodo e do eletrólito assim como a cinética das

reações e não a eletrocatálise enquanto tal, que, supõe-se, se produz de mo-

do não problemático na interface.

Quando, uma vez tomadas estas decisões, Baccala volta para Beauregard,

não é só um homem que reencontra seu laboratório. Ele se tornou um pode-

Page 7: CALLON, Michel - A Agonia de Um Laboratorio

roso macro-ator que fala em nome do comitê da ação concertada do ministé-

rio da Pesquisa como também da política francesa de independência nacio-

nal. Graças às traduções impostas, ele se encontra investido de uma missão

nacional e dispõe de recursos financeiros importantes para estudar e melho-

rar o funcionamento dos eletrodos porosos que são aqueles mais corrente-

mente usados nas células de combustível.

Afim de evitar qualquer discussão, na verdade qualquer contestação, no seio

de seu laboratório, e para colocar em funcionamento a linha que foi fixada,

Baccala recruta rapidamente pesquisadores e técnicos de sua confiança e

que ele pensa que não colocariam em questão as traduções já estabelecidas.

Ele contrata primeiramente Blondelet, que foi seu aluno no CNAM, onde ele

ensina, e que ele conhecia havia muito tempo. Após completar seus estudos,

Blondelet trabalhou muitos anos no ministério da Aeronáutica num laboratório

de controle especializado em análises metalográficas ( exame de peças me-

tálicas de aviões acidentados). Blondelet, no momento em que Baccala o

chama, domina e utiliza os conhecimentos e as técnicas da metalografia. Pa-

ra ele um metal se caracteriza pela sua “estrutura”, que pode ser observada

graças à micrografia ou à radiocristalografia. As variáveis explicativas às

quais ele recorre mais freqüentemente são : “l’écrouissage” (ação de martelar

o metal à frio), o estado de grão, a ação de dar têmpera ao ferro e ao aço, as

interfases. Acompanha-o um técnico, Pelletier, especializado no trabalho e na

análise dos metais. Ambos vão constituir por muitos anos o núcleo central da

equipe célula de combustível do laboratório de Beauregard.

A solicitação endereçada a Blondelet por Baccala é clara: trata-se de estudar

o funcionamento do eletrodo poroso na célula hidrogênio/oxigênio.13 Blondelet

se põe a trabalhar. Ajudado por Pelletier ele constrói nos meses que se se-

guem uma célula experimental. Rapidamente os resultados foram julgados

deploráveis pelos próprios pesquisadores, como prova esta frase tirada de

um relatório de 1961: “Apesar dos eletrodos porosos de 150 mm de diâmetro,

os rendimentos obtidos são fracos.”

Page 8: CALLON, Michel - A Agonia de Um Laboratorio

Como Blondelet e Pelletier, acuados no seu laboratório, vão explicar o seu

fracasso e relançar as suas pesquisas? Pelas orientações que eles escolhe-

ram, tudo se passa como se eles não estivessem nem prontos para abando-

nar nem decididos a se opor ao macro-ator que Baccala se tornou. Confron-

tados com uma tarefa que eles nem contestaram nem negociaram, encon-

trando-se na incapacidade de produzir os resultados esperados, eles suspei-

tam daquilo que eles têm força para suspeitar: definindo sua especialidade

técnica como o único recurso mobilizável - especialidade que limitava as pos-

síveis investigações aos aspectos estruturais do eletrodo - é bastante natu-

ralmente que eles decompõem o eletrodo poroso em seus poros, levando-o

ao que eles chamam de sua estrutura, que, segundo eles, torna problemático

o seu funcionamento.14 Acostumados a associar texturas e desempenhos,

eles se perguntam o seguinte: em que a repartição dos poros no seio da

massa metálica constituída pelo eletrodo condiciona os desempenhos deste

último? Questão que sublinha a importância do poro no funcionamento do

eletrodo e que, colocada em relação com uma interpretação elementar da ci-

nética das reações, desemboca para nossos pesquisadores nestas interroga-

ções: como organizar a disponibilidade de combustíveis e a retirada dos pro-

dutos da reação? onde se estabelecem no poro as zonas de reação? Estas

questões continuam a relegar para segundo plano o estudo dos fenômenos

catalíticos enquanto tais. Trata-se simplesmente de assegurar-se em cada

poro um triplo contato satisfatório entre o oxigênio (o combustível ), o potássio

(o eletrólito) e o suporte catalítico, sem o qual a reação eletroquímica não se

fará. O que está em questão é a estrutura do eletrodo e a sua aptidão para

favorecer o triplo contato, e não o que alguns chamam na mesma época de

mecanismos íntimos da catálise.

Para Blondelet e Pelletier, o “poro” torna-se assim, a unidade pertinente, o

módulo elementar da estrutura-eletrodo.

Para estudar os eletrodos porosos, é necessário estudar-se primeiramente

Page 9: CALLON, Michel - A Agonia de Um Laboratorio

um só poro. Isto pode ser feito graças a um tubo de vidro (diâmetro de 50 a

100 microns) metalizado no interior; este dispositivo permite o estudo do

menisco 02 / potássio e suas variações15.

Ver Figura 1 (Pág. 183 no original)

Para estudar essa interface, a técnica escolhida é aquela que os metalúrgicos

conhecem bem e utilizam para detectar defeitos estruturais: os raios X.

Tinha-se o hábito de utilizar os raios X e de se virar com poucas coisas;

graças a esta técnica observou-se de modo sistemático a interface eletrólito-

gás num poro.16

O estudo do eletrodo real da célula de combustível é substituído pelo estudo

de um “eletrodo modelo monotubular”, para retomar-se a expressão utilizada

pelos próprios pesquisadores. Esta operação de redução inscreve igualmente

sua lógica na escolha dos constituintes do eletrodo monotubular. Não somen-

te os reagentes (02, KOH) são os mesmos que os freqüentemente utilizados

nas células de combustível, mas o catalisador escolhido é idêntico: a prata.

Nós escolhemos a prata como constituinte das paredes, por um lado porque

muitos catodos para células de gás são construídos com este metal e, por

outro, porque o método de metalização é aparentemente bastante sim-

ples.17

A realidade desta operação de redução é afirmada explicitamente por Blonde-

let num texto de 1962:

Os resultados obtidos permitem mostrar que se pode facilmente passar das

características do eletrodo monotubular às do eletrodo poroso, sob a condi-

ção de se conhecer a densidade dos poros e o espectro da sua repartição.18

O sistema de equivalentes ou das traduções é então o seguinte: o estudo do

Page 10: CALLON, Michel - A Agonia de Um Laboratorio

eletrodo monotubular é idêntico ao do eletrodo poroso, sendo este ele próprio

idêntico ao estudo da célula de combustível. Dar à luz aos mecanismos que

governam as reações eletroquímicas do eletrodo monotubular é elucidar as

leis que regem o rendimento das células de combustível: os conhecimentos

obtidos para uma valem para a outra.

Definindo assim o novo problema de pesquisa, Blondelet e Pelletier prolon-

gam, sem as colocar em questão, as traduções anteriormente operadas por

Baccala; graças ao trabalho deles, a cadeia das equivalência se prolonga: o

destino energético da França está agora em parte nas mãos de dois pesqui-

sadores que estudam, em algum lugar nos subúrbios de Paris, um contato tri-

plo dentro de um eletrodo monotubular.

A consolidação do objeto de pesquisa: alianças de todos os gêneros

Foi assim que o eletrodo monotubular se constituiu num objeto de pesquisa.

Na sua materialidade, pelas questões que ele levanta, pelas observações às

quais ele conduz, ele dá forma ao estado de forças sociais e naturais nas

quais Blondelet está aprisionado.

Blondelet, dando continuidade à programação inicial, solidifica a autoridade

de Baccala, os objetivos da ação concertada (AC) e a política do ministério. A

natureza sobre a qual Blondelet se apoia e que ele mobiliza, os conhecimen-

tos que ele tem dela, as técnicas que ele está em condições de utilizar, as re-

lações sociais de que ele (não) dispõe, sua situação contratual estatutaria-

mente precária, não lhe permitem em momento algum transformar a solicita-

ção [colocada por Baccala], desatar as equivalências, os laços e as redes pa-

ra, por exemplo, reorientar o curso das pesquisas, ou, pura e simplesmente

largar ... o laboratório.19 Blondelet, e isto é a prova da habilidade da política

conduzida por Baccala, não pode contestar o ministério ou o diretor do labo-

Page 11: CALLON, Michel - A Agonia de Um Laboratorio

ratório mais do que ele está em condições de recorrer à mecânica quântica

para dissociar os íons e fazer os elétrons girarem sobre si mesmos. Na prova,

o que se revela é que os aliados humanos ou não humanos com os quais ele

pode contar não lhe permitem considerar outra coisa a não ser a perseguição

pura e simples da tradução iniciada por Baccala.

Esta tradução e o objeto que ela constitui recebem ao longo dos meses que

se seguem, o apoio de novos reforços.

É assim que são recrutados dois novos pesquisadores (um deles é um esta-

giário americano) de formação em eletrônica. Tomando como não problemá-

tico o objeto de pesquisa (o eletrodo monotubular) construído por Blondelet,

eles propõem um estudo puramente elétrico dos mecanismos eletroquímicos

sediados no eletrodo. As disposições de Villa e Pommier, são estes os nomes

destes dois pesquisadores, fazem-nos por vocação ocupar as posições que

lhes são propostas. Jovens, e um deles estrangeiro além de estagiário, eles

se encontram na impossibilidade de reunir os recursos que lhes permitiriam

transformar redes e objetos de pesquisa. Escolhendo estudar o triplo contato

independentemente de qualquer consideração sobre a catálise, reduzindo-o a

algumas variáveis elétricas que o caracterizam, eles reforçam o eletrodo mo-

notubular e todas as suas ramificações sociais, econômicas, políticas e tecno-

científicas20 . Esta política de recrutamento vai se ampliar ao longo dos anos

seguintes e contribuir fortemente para reforçarem as pesquisas sobre o ele-

trodo monotubular e as traduções que elas concretizam.

Nos efetivos globais do laboratório, que entre 1960 e 1964 passam de 41 a

73, a relação entre o número de pesquisadores e o número de técnicos cai

brutalmente de 1 para 0,5. Uma análise detalhada dos recrutamentos e das

atribuições mostra que durante todo este período, o ritmo do crescimento

demográfico do laboratório e a natureza deste crescimento são inteiramente

imputáveis à influência crescente de Blondelet e de seu eletrodo monotubular.

Page 12: CALLON, Michel - A Agonia de Um Laboratorio

A interpretação desta evolução é simples se se admite que o recrutamento

maciço de técnicos no lugar de universitários traduz a vontade estratégica de

consolidar objetos [de pesquisa] estratégicos já constituídos. O aumento de

seus efetivos fortalece sem dúvida o eletrodo monotubular como objeto de

pesquisa e reforça as escolhas iniciais operadas por Baccala.21

Uma parte importante dos recursos contribui igualmente para consolidar o ob-

jeto de pesquisa de Blondelet. A análise do financiamento do laboratório entre

1960 e 1965 mostra que Baccala, graças ao apoio embora limitado da

DGRST (auxílio de suporte exclusivamente para os equipamentos e estrita-

mente limitada às células), consegue que o CNRS crie novos cargos no seio

do laboratório: os investimentos em equipamento têm um efeito multiplicador

pois eles tornam necessário o recrutamento de pesquisadores e de técnicos

para colocá-los em funcionamento. A importância estratégica de Blondelet é

aumentada. É um pouco graças a ele que o CNRS manifesta em relação ao

laboratório uma generosidade que nunca havia demonstrado antes. Blondelet

controla financeiramente a expansão do centro. O eletrodo monotubular atrai

o dinheiro e concentra em si os financiamentos que aumentam sua solidez e

sua legitimidade.

Esta política se inscreve igualmente na organização do trabalho no interior do

laboratório. Três fatos são relevantes: a) a força crescente relativa da equipe

Blondelet; b) a designação para [as equipes] de Casto, Lavillier e Chenin (os

três pesquisadores fundamentalistas que, como veremos, irão contestar a

orientação de Blondelet) de jovens engenheiros tecnólogos explicitamente

encarregados de estabelecer um laço com as pesquisas sobre o eletrodo

monotubular; c) a ausência de qualquer estrutura formal de coordenação inte-

lectual: o laboratório é “balcanizado”, composto por uma célula gigante (a de

Blondelet) e de uma miríade de pequenas células adjacentes. Esta situação é

agravada pelos remanejamentos que intervêm entre 1960 e 1965: a equipe à

qual Villa e Pommier estavam ligados se funde com a de Blondelet, enquanto

Page 13: CALLON, Michel - A Agonia de Um Laboratorio

os engenheiros a serviço de Casto, Lavillier e Chenin deixam o laboratório ou

se juntam a Blondelet.

A estratégia de publicação contribui da mesma maneira para fortalecer o lu-

gar e a importância crescente das pesquisas sobre as células. Entre 1960 e

1964, os artigos tratam na sua maioria de células de combustível para dar

conta do trabalho de Blondelet e de sua equipe. Eles aparecem em revistas

de orientação acadêmica, francesas e estrangeiras (resumos da Academia

das ciências, Eletrochimica Acta, Journal of the Electrochemical Society ... ).

Estas publicações são em geral assinadas em conjunto por alguns pesquisa-

dores cuja identidade varia pouco. Em 1964, ano em que as publicações são

mais numerosas, quatro quintos dos artigos produzidos pelo laboratório no

seu todo se referem às células de combustível e são co-assinados por Bacca-

la, Blondelet, Villa e Pommier. Isto é suficiente para dizer o quanto a atividade

literária do laboratório está publicamente centrada no eletrodo monotubular e

na atividade de seu diretor que se torna aos olhos do maior número de pes-

soas a principal orientação da pesquisa de Beauregard.

Atores-redes e laboratórios

O eletrodo monotubular poderia ser descrito como um objeto de pesquisa ca-

racterizado por suas propriedades científicas e técnicas, e considerado como

o suporte de fatos observáveis. Uma tal descrição seria correta mas insufici-

ente. O eletrodo se encontra no cruzamento de diversas redes heterogêneas

que ele tem por função enlaçar umas às outras. Redes que ligam o ministério

e seu comitê a instrumentos, a disciplinas, a pesquisadores, a créditos, mas

igualmente a tensões e a intensidades. O eletrodo monotubular, ao associar

estas diferentes entidades, faz o futuro energético da França depender do

comportamento de um íon sobre a superfície da prata. O eletrodo não é so-

mente uma realidade científica e técnica; ele não é somente uma peça chave

num programa político; ele é os dois ao mesmo tempo. É uma realidade com-

Page 14: CALLON, Michel - A Agonia de Um Laboratorio

posta. Ele constitui ele próprio, totalmente só, uma rede sociotécnica. Para

fazer aparecer sua natureza híbrida assim como sua extensão, foi suficiente

seguir o processo de sua construção, isto é, o recrutamento de todos os alia-

dos humanos e não-humanos que tiveram que ser mobilizados para lhe dar

ao mesmo tempo sua forma e sua robustez. As redes, das quais o eletrodo

monotubular é ao mesmo tempo o elemento e a materialização, são dupla-

mente heterogêneas: primeiro porque elas reúnem elementos de natureza ra-

dicalmente diferentes (um órgão governamental, elétrons...), mas igualmente

porque as relações que unem tais elementos são de uma grande diversidade

(relações de autoridade, de troca, relações químicas, elétricas...).

Descrever o eletrodo como um ponto numa multiplicidade de redes heterogê-

neas que ele mobiliza e mantém juntas e que em retorno lhe dão sua coerên-

cia e sua solidez, e não como um simples objeto de fronteiras bem demarca-

das, conduz a propor a noção de ator-rede que permite ultrapassar a oposi-

ção comum entre conteúdos científico-técnicos e contextos sociais, ao mes-

mo tempo dando conta de suas constituições e de suas interações. No caso

que nos ocupa, o ator-rede junta todos os elementos, humanos ou não-

humanos, que foram recrutados em um momento ou noutro da construção do

eletrodo monotubular e que são associados a ele. Encontramos, entre outros:

o DGRST, um comitê de ação concertada (AC), um laboratório próprio do

CNRS, elétrons, contatos triplos, técnicos de situação estatutária precária, o

CNAM, ... Se recorremos a uma noção nova, a do ator-rede, para descrever

esta configuração particular, este complexo sociotécnico, é para designar o

conjunto heterogêneo dos elementos recrutados e suas interações, mas é

igualmente para sublinhar a capacidade dinâmica deste conjunto que se

transforma e evolui sob a força dos elementos que o constituem.

Esta dupla dimensão do ator-rede se deve à natureza da atividade dos ele-

mentos que ele associa. Cada um destes actantes, se tomarmos da semiótica

esta noção para designar as entidades humanas ou não humanas agindo

dentro de uma rede, se caracteriza pela maneira particular pela qual ele defi-

Page 15: CALLON, Michel - A Agonia de Um Laboratorio

ne os outros actantes aos quais ele se liga e os quais ele liga entre si. Bacca-

la, levado por estas operações de tradução, se esforça por associar seu labo-

ratório à política científica da França, para estabelecer uma relação imprová-

vel entre o eletrodo monotubular e a conversão de energias, e, para atingir

este resultado, recruta toda uma gama de aliados heterogêneos. Blondelet

investiga o triplo contato e reforça as associações propostas por Baccala. Os

próprios elétrons, saltando do eletrólito para o eletrodo ou, ao contrário, per-

dendo-se no caminho, contribuem para o sucesso, ou para o fracasso, das

ligações postuladas. E como esquecer os catalizadores que em se envene-

nando agem em sentido contrário, desatando o que Blondelet e Baccala pro-

curam com fervor atar? Uma tal descrição, que restabelece a totalidade dos

elementos associados e reconstitui a construção de suas interações, não cap-

tura contudo mais do que uma parte da dinâmica do ator-rede. Com efeito, a

identidade dos actantes que o compõem não está fixada de uma vez por to-

das: é um compromisso que resulta do entrecruzamento das definições que

cada um dentre eles propõe para todos os outros. Baccala faz do comitê de

ação concertada, que nada predispunha a priori a desempenhar este papel,

uma possante máquina de guerra a favor das células de combustível, organi-

za o apoio do CNRS à eletroquímica, transforma a célula de combustível em

eletrodo monotubular que se torna a razão de ser de uma tropa de técnicos e

de pesquisadores. Mas, em contrapartida, a própria estratégia dos pesquisa-

dores assim como o comportamento do eletrodo monotubular vão acabar por

“ressoar pela proximidade*” sobre os projetos de Blondelet, de Baccala, modi-

ficando-os, e depois, enfim, sobre as orientações políticas da DGRST: se os

catalizadores se envenenam obstinadamente, se a camada dupla se deses-

tabiliza, se os cientistas transformam a catálise em realidade problemática,

então é a política da DGRST, seu papel e em particular sua determinação de

apoiar o desenvolvimento das células de combustível e, mais amplamente, de

promover novas formas de conversão de energia, que correm o risco de se-

rem questionadas.

Para dar conta desta estranha entidade coletiva, cujo futuro é ao mesmo

Page 16: CALLON, Michel - A Agonia de Um Laboratorio

tempo compartilhado e decidido por uma série de actantes heterogêneos que

se entre-definem, as noções tradicionais de redes ou de atores são insuficien-

tes. Este é o porquê de introduzirmos a noção de ator-rede para descrever

estas múltiplas interações heterogêneas entre actantes eles próprios hetero-

gêneos que se esforçam permanentemente para consolidar ou para transfor-

mar ao mesmo tempo sua própria identidade, a identidade de outros actantes

e a natureza das relações que os une. O ator-rede forma um conjunto com-

pósito, cuja constituição (repertório de actantes e de suas relações) está su-

jeita a flutuação e cuja extensão evolui, que é móvel em certos lugares e que

se endurece em outros. É ele que permite seguir a evolução conjunta dos

contextos e dos conteúdos, assim como sua adaptação permanente. A figura

2 sintetiza tudo o que foi associado, no caso estudado, para definir e autono-

mizar um objeto de pesquisa, para o ligar neste mesmo movimento a um inte-

resse-risco** nacional, e para lhe assegurar a estabilidade necessária ao seu

estudo sistemático.

Ver Figura 2 (Pág. 193 no original)

É à gestão e à consolidação destas múltiplas associações que são devotados

os laboratórios. Estes, como mostra o caso presente, desempenham três pa-

peis distintos na organização e na dinâmica dos atores-redes das quais eles

são protagonistas. Primeiro, eles permitem concentrar e colocar em relação,

num lugar preciso, os recursos heterogêneos (ou actantes) que têm que ser

mobilizados para construir e fazer funcionar o ator-rede: recrutamento de

pesquisadores e de técnicos, obtenção de contratos, compra e instalação de

equipamentos e de instrumentos de análise, vínculos com as diferentes co-

munidades científicas, assim como com a DGRST e a direção do CNRS... O

segundo papel do laboratório é favorecer a aparição de porta-vozes legítimos,

isto é, não questionados, que asseguram o vínculo entre o interior e o exteri-

or, entre o trabalho de pesquisa e todos os atores mobilizados. É assim que

Baccala se ergue, no mundo político, como porta-voz único e não questiona-

do das células de combustível e dos pesquisadores que as estudam, ao

Page 17: CALLON, Michel - A Agonia de Um Laboratorio

mesmo tempo que ele se impõe, junto aos cientistas trabalhando com o ele-

trodo, como porta-voz da DGRST, dos industriais e mesmo da eletroquímica

no seu conjunto. O laboratório, enquanto forma de organização que assegura

a legitimidade de porta-voz que domina as operações de tradução, liga deste

modo as entidades heterogêneas, mas de forma simples, inteligível e não

controvertida. Enfim, simplificando as relações complexas entre o objeto de

pesquisa e suas redes sóciopolíticas, o laboratório, para se manter, tem que

se transformar, e é seu terceiro papel, em ponto de passagem obrigatório:

não somente ele é um ponto, mas um ponto pelo qual a passagem é indis-

pensável. Por fim, não há outras questões, para todos aqueles que buscam a

independência energética da França, a não ser apoiar Beauregard sem dis-

cussão. Ao invés de ter diante dela a diversidade infinita da comunidade cien-

tífica, a DGRST sabe que um dos aliados sobre os quais ela pode se apoiar

para mobilizar a pesquisa de base é este particular laboratório, que se torna

uma entidade simples, uma caixa-preta cuidada por seu diretor, que exprime

todas as potencialidades e todos os projetos, com a qual nós podemos contar

sem ter que entrar no conteúdo de suas atividades.

Assim novamente mergulhado nos atores-redes que ele contribui para gerir e

animar, o laboratório aparece como um dispositivo essencial para separar e

colocar em relação permanente os conteúdos e os contextos. E por isso a

transformação dos objetos de pesquisa, que passa necessariamente por uma

transformação, e até uma multiplicação, dos atores-redes dentro dos quais

age o laboratório, chega algumas vezes a colocar em questão a própria exis-

tência deste último. É esta aventura que vai viver o laboratório de Beauregard

e que nós vamos agora brevemente apresentar sem entrar no detalhe dos

problemas de pesquisa, mas insistindo sobre sua transformação e sobre

aquela simultaneidade das alianças que eles estabelecem.

A gestação de um ator-rede: novos problemas e novas alianças

Page 18: CALLON, Michel - A Agonia de Um Laboratorio

Em 1965 o laboratório de Beauregard consagra uma grande parte de seus

recursos e de suas atividades a estabelecer e consolidar a tradução que liga

a conversão de energias ao eletrodo monotubular. Nós observamos a impor-

tância crescente desta direção de pesquisa em termos de efetivos (de pesso-

al), de publicações, de créditos, de investimentos técnicos... Contudo o labo-

ratório não saberia reduzir-se totalmente ao eletrodo monotubular. A história

que ele herda o conduz a selecionar outros temas e a construir outros objetos

de pesquisa. Estes vão progressivamente se consolidando e contestando o

monopólio do eletrodo monotubular, ainda que se ligando a ele, para chegar a

uma situação em que o próprio laboratório não será capaz de gerir atores-

redes tão diferentes, até mesmo antagônicos.

Antes mesmo de ser dada a partida da “ação concertada”, um jovem pesqui-

sador do laboratório, Casto, se viu encarregado por Baccala de desenvolver

um novo método de estudo da cinética das reações na interface eletro-

do/eletrólito. Esta direção corresponde então perfeitamente às grandes orien-

tações estratégicas do diretor do laboratório que pretende multiplicar os mei-

os de investigar a cinética das reações eletroquímicas. Casto se exila na

Alemanha por alguns meses, em um laboratório de boa reputação, de onde

ele retorna trazendo em sua bagagem o método dito da impulsão galvano-

estática dupla. Com sua formação universitária de químico, sua condição de

pesquisador titular do CNRS, que lhe confere autonomia e segurança de em-

prego, este método vai constituir o essencial dos seus recursos. Já então tu-

do o distingue de Blondelet, metalurgista, adepto dos raios X e de condição

de emprego incerto.

Em que consiste o método? Ele visa capturar as reações, e principalmente as

velocidades das reações, uma vez estabelecido o equilíbrio elétrico que acon-

tece algumas frações de segundo após a imersão do eletrodo e de seu catali-

zador no eletrólito, isto é, uma vez carregada a camada dupla.

Este método permite a eliminação dos fenômenos que podem mascarar

Page 19: CALLON, Michel - A Agonia de Um Laboratorio

parcialmente ou mesmo completamente a reação eletroquímica.

Casto recita sua lição. Ele aprendeu que o eletrodo é a sede de vários fenô-

menos: a) a carga da camada dupla; b) a reação de óxido-redução propria-

mente dita; c) a difusão dos reagentes. O método da impulsão dupla, que é a

partir de então seu método, permite isolar e estudar a reação de óxido-

redução. Confrontado com a solicitação de Baccala (estudo da cinética), mo-

bilizando os únicos recursos que ele pode mobilizar, Casto conduz experiên-

cias que visam capturar em sua pureza a reação eletroquímica propriamente

dita. A construção de Baccala, estabilizada por Blondelet sob a forma do ele-

trodo monotubular, não foi ainda abalada; ela foi simplesmente prolongada.

Mas, nas mãos de Casto, o método da impulsão dupla vai se transformar em

uma temível máquina de guerra. Vê-se rapidamente que a reação eletroquí-

mica pode ser capturada de mil maneiras diferentes, mas nunca em toda a

sua “pureza”. Uma pura reação de óxido-redução, isto não existe! Como pro-

va [estão] estes resultados que se lê nos mostradores dos instrumentos, e

que variam de uma experiência para outra, dependendo, segundo Casto, do

estado de superfície da platina, da qualidade do hidrogênio, da preparação do

eletrodo. Casto controla todos os parâmetros, posiciona todas as variáveis

que perturbam os resultados e nota, desabusado, que “mesmo a natureza da

atmosfera e a temperatura do recozimento trazem modificações importantes

no valor da corrente de troca e do processo de descarga”. O eletrodo mono-

tubular, definido simplesmente por seus componentes e sua estrutura, explo-

de e se desloca. A questão é só de estado de superfície, de pureza de rea-

gentes, de preparação do eletrodo. Dito de outra forma, para Casto, o eletro-

do monotubular não é uma unidade pertinente: o que conta é a maneira de

preparar as paredes, a maneira em que os reagentes se estabelecem. Não é

mais a distribuição do catalizador e dos poros assim como sua acessibilidade

que são importantes, mas simplesmente o estado do catalizador e o compor-

tamento dos átomos de hidrogênio sobre esta superfície. A estabilização ten-

tada por Blondelet não resiste ao método da impulsão dupla e ao uso que

Page 20: CALLON, Michel - A Agonia de Um Laboratorio

Casto faz dele. Tornando incomparáveis dois eletrodos monotubulares, Casto

ataca implicitamente o ator-rede do qual Blondelet e Baccala são os obreiros

principais.

Diante de um ator-rede tão poderoso, uma experiência e alguns resultados

não bastam para parar ou reorientar as direções de pesquisa a que ele con-

duz. Imaginar que nós possamos reduzir a falsificação [invalidação] à sua di-

mensão cognitiva somente é esquecer todos os investimentos que permitiram

dar autonomia a ela [à dimensão cognitiva], e que precisam ser reconsidera-

dos para transformar a construção dos objetos de pesquisa e a formulação

dos problemas. A única saída para Casto é se lançar na edificação de um no-

vo ator-rede portador de problemas de pesquisa que sejam os seus e que se-

ja suficientemente robusto para os impor aos atores-redes existentes: ele está

condenado a se expandir.

Sua primeira iniciativa o conduz a estabelecer, no próprio seio do laboratório,

alianças visando crescer a suspeita legítima da qual o eletrodo monotubular

se torna pouco a pouco o objeto. Dois outros pesquisadores, Lavillier e Che-

nin, o apoiam sem tardar. A aventura deles se parece com a de Casto ponto a

ponto: mesma formação, mesma condição (de emprego), mesma idade,

mesma identificação com um método de análise. Para Chenin, é a micro-

termometria. Para Lavillier, a quem Baccala havia solicitado estudar a cama-

da dupla, é uma técnica de enumeração dos íons absorvidos. Os resultados

que eles obtêm são tão erráticos quanto os de Casto. Aplicados ao eletrodo

monotubular, seus instrumentos teóricos e técnicos não produzem nenhuma

ordem, nenhuma regularidade. Na língua de Lavillier e de Chenin, assim co-

mo na de Casto, os fenômenos falam contra Blondelet: a absorção e sua me-

dida não conduzem a nenhum resultado estável, as capacidades de camada

dupla se modificam de um eletrodo para outro e os coeficientes da lei de Tafel

(que liga intensidade e tensão) dependem das condições da experiência.

Além do mais, estes diferentes pesquisadores se esforçam para recrutar alia-

Page 21: CALLON, Michel - A Agonia de Um Laboratorio

dos exteriores e se lançam em operações de tradução que lhes permitam es-

tender suas redes para fora do laboratório. O exemplo de Lavillier é particu-

larmente demonstrativo. Ele dá as costas para todas as equivalências que

conduzem da interface eletrodo/eletrólito à política nacional de conversão de

energias passando pelos eletrodos porosos ou monotubulares e pelas célu-

las. Ele se volta para a disciplina prestigiosa que é a física dos sólidos, espe-

cialmente na França, afirmando primeiramente que o estudo da “camada du-

pla” (que regula a cinética das reações e o funcionamento do eletrodo) passa

pela análise da absorção de um átomo de hidrogênio sobre uma estrutura

metálica, observando, num segundo momento, que este problema é o prolon-

gamento natural das questões colocadas pelos físicos dos sólidos. Com efeito

estes dispõem de uma teoria do hidrogênio no interior do metal, mas eles en-

frentam dificuldades ao passar para a situação limite, a fim de dar conta do

comportamento do átomo na superfície. Segundo Lavillier este problema não

pode deixar de interessar aos físicos dos sólidos por pelo menos duas ra-

zões. Por um lado, ele representa uma extensão possível de suas teorias; por

outro lado, uma colaboração com os eletroquímicos não deveria ser coisa que

os aborrecesse, pois, aumentando o campo das técnicas de análise disponí-

veis, ela permitiria resolver certas dificuldades experimentais encontradas por

aqueles que se esforçavam por criar uma física das superfícies. Realizando o

ajuste de um conceito clássico da física dos sólidos — o de nível de energia

— com o seu conceito de “potencial de eletrodo de referência”, os eletroquí-

micos tendem a amarrar uma à outra duas profissões que tudo separava. De-

finindo problemas comuns com os físicos dos sólidos, Lavillier esforça-se em

arrolar uma disciplina prestigiosa que vem acrescer sua “credibilidade”. Ele

estabelece numerosas ligações com o estrangeiro, recebe pesquisadores so-

viéticos e americanos, participa da organização de escolas de verão onde ele

desenvolve e apresenta sua problemática. Sua reputação junto aos físicos

dos sólidos cresce. Enquanto Blondelet é ainda um pesquisador local cujos

principais aliados estão situados fora da comunidade científica, ele, Lavillier,

teceu as primeiras malhas de uma rede que o liga a uma comunidade nacio-

nal e internacional organizada e prestigiosa.

Page 22: CALLON, Michel - A Agonia de Um Laboratorio

Esta nova relação de forças dentro do laboratório se concretiza na criação de

um grupo informal, denominado G1, do qual Lavillier lança a idéia em 1966 e

que vai rapidamente se transformar em máquina de guerra contra o ator-rede

Baccala. Este grupo de trabalho, que considera como vantajosa a instabilida-

de do eletrodo monotubular, reúne todos os “dissidentes”. Os três pesquisa-

dores mencionados acima pertencem a este grupo, no qual entra Lary que é

pesquisador na equipe de Blondelet. Lary é politécnico*. Sua formação, suas

referências o prendem à física do sólido teórica, aquela que é desenvolvida

na França por J. Friedel e seus alunos. Ele acha interessantes e importantes

os problemas que lhe são propostos, mas manifesta rapidamente sua oposi-

ção às estratégias escolhidas por Blondelet. Ele toma assim o caminho aberto

por Lavillier, Casto e Chenin. Ele também investe todos os seus esforços em

uma técnica, a RPE, que lhe permite seguir as trocas eletrônicas na interface.

O grupo G1 se torna rapidamente um lugar de reflexão onde uma pessoa se

familiariza com a mecânica quântica, com os elétrons que giram em torno de

si mesmos e com a sensibilidade das reações químicas aos estados de spin.

Simultaneamente, vários engenheiros trabalhando ao lado destes pesquisa-

dores são substituídos na equipe de Blondelet, com a qual eles eram supos-

tos manter relações de coordenação (cf. supra). Os territórios e as fronteiras

começam a se desenhar.

O reposicionamento estratégico de Blondelet: redefinição de problemas e de aliados

O eletrodo monotubular, assim como o ator-rede que lhe dá forma e consis-

tência, vacila sob as investidas de Lavillier e de seus aliados. Não são os úni-

cos ataques que ele sofre. Como vimos, o ator-rede Baccala faz o desenvol-

vimento industrial das células de combustível depender estreitamente dos es-

Page 23: CALLON, Michel - A Agonia de Um Laboratorio

tudos do eletrodo monotubular. Esta estratégia só faz sentido na condição de

associar os industriais ao empreendimento. Ora, até 1967, a indústria eletro-

química francesa se mostra pouco interessada numa colaboração com a uni-

versidade. A conclusão se impõe: para manter o ator-rede e suprir os indus-

triais, é necessário fazer funcionar uma célula de combustível experimental e

mostrar a validade das equivalências postuladas. Blondelet mobiliza toda a

sua equipe. É 1964. As dificuldades aparecem rapidamente e, segundo o tes-

temunho do próprio Blondelet e de seus colegas, elas são consideráveis: “Os

catodos tem uma configuração mecânica ruim; os anodos perdem rapidamen-

te toda a atividade, esta fraqueza sendo atribuída a um ‘envenenamento’ do

catalizador.” Com o catalizador são igualmente “envenenadas” as operações

de tradução. Aquilo que Blondelet e Baccala haviam ligado se desfaz sem

que seja possível tapar os buracos. Casto e Lavillier não são os únicos vene-

nos nem os mais perniciosos; os que paralisam a catálise e os elétrons, da

maneira que eles são colocados na experiência, contribuem igualmente para

colocar em questão o objeto de pesquisa e seus desdobramentos industriais.

Preso por este torniquete, o ator-rede eletrodo monotubular vai se redefinir

negociando suas relações com a indústria e com Lavillier, estabelecendo du-

as frentes entre as quais ele vai estabilizar seu campo de pesquisa.

Quando um aliado com o qual se conta — neste caso a indústria — falha, é

preciso imaginar uma estratégia que o torne menos indispensável. Foi o que

fez Blondelet introduzindo gradativamente uma separação nítida entre as ati-

vidades de pesquisa que ele conduz e as operações de desenvolvimento que

ele deixa para os industriais. A tradução postulada não é, ele sublinha, uma

redução pura e simples. As equivalências, em nome do arbitrário que as ca-

racteriza, têm como principal propriedade a de poder ser denunciadas inclusi-

ve por aqueles que as postularam.

Nós trabalhamos com um eletrodo pequeno. Damos todas as característi-

cas, parâmetros importantes, condições ótimas. Nós damos os resultados

aos industriais que se viram para fazer um eletrodo tamanho natural.

Page 24: CALLON, Michel - A Agonia de Um Laboratorio

Garantido assim na frente que ele define como tecnológica (não se poderá

mais censurá-lo por suas escolhas de pesquisa sob o pretexto de que elas

não são diretamente eficazes no plano industrial), Blondelet se dedica a se

proteger no seu outro flanco. Ele manda para lá Pelletier, seu colaborador fiel.

A missão que ele lhe confia é clara: reduzir o mais rapidamente, e por todos

os meios possíveis aí incluída a teoria, as instabilidades e as irregularidades

das quais Lavillier e seus aliados se fizeram os porta-vozes. Pelletier se dedi-

ca à missão tirando do estoque de teorias disponíveis aquela que ele é capaz

de dominar e que lhe permitirá abrir um interminável desvio do lado da física

do sólido. A escolha se impõe bastante rapidamente a ele: “A teoria dos orbi-

tais, correntemente utilizada pelos metalurgistas, é um método concreto que

permite previsões.” Ele opõe assim a eficácia a curto prazo desta teoria às

promessas talvez mais excitantes, mas que ele estima menos diretamente

rentáveis, da teoria dita dos “efeitos de tela” desenvolvida pelos físicos do só-

lido e mantida por Lavillier e seus colegas no próprio seio do laboratório de

Beauregard. A operação de estabilização assim realizada é tanto mais hábil

quanto ela organiza vias de passagem: sobre certos pontos, por exemplo, o

problema da absorção, as teorias podem, segundo a opinião do próprio Lavil-

lier, se completar: “Agora as questões estão colocadas e mais ainda, bem co-

locadas. Cabe a nós elaborar as teorias que respondam a elas.”

Para conduzir esta dupla reorientação a bom termo, Blondelet conta sempre

com o apoio de Baccala. Este utiliza seu crédito no seio do comitê da ação

concertada (AC) para obter a recondução de importantes financiamentos fa-

voráveis às pesquisas sobre as células de combustível. Entre 1964 e 1972,

80% dos artigos co-assinados pelo diretor do laboratório são artigos saídos

da equipe células de combustível. Além do que, os efetivos desta equipe são

mantidos no mesmo nível e a importância relativa do número de técnicos não

é modificada.

Blondelet não seria capaz de se contentar com esta transformação-

Page 25: CALLON, Michel - A Agonia de Um Laboratorio

consolidação local de seu objeto de pesquisa. Ele tem diante de si um ator-

rede que se estende cada vez mais longe no exterior do laboratório, se apoi-

ando sobre disciplinas inteiras, seus laboratórios e suas autoridades prestigi-

osas. É certo, por intermédio de Baccala, ele dispõe ainda do apoio de uma

agência governamental, mas este aliado poderoso não tardará a tomar cons-

ciência da re-orientação do programa de Beauregard e a reduzir os créditos

que concede. Então o que Blondelet perde de um lado (o apoio da DGRST),

ele vai poder recuperar se abrindo para novas alianças. Esta abertura será a

conseqüência indireta do reposicionamento estratégico de Blondelet cujos

problemas de pesquisa se situam a partir deste ponto em algum lugar entre o

desenvolvimento industrial e a física fundamental. Nesta reconstituição de

novas alianças, o acontecimento decisivo é o apoio fornecido por EDF que vê

numerosas vantagens na estratégia desenvolvida por Blondelet: constituição

de um saber teórico diretamente assimilável pelos industriais para produzir

baterias mais atraentes que aumentarão o consumo de eletricidade; bom ob-

servatório para acompanhar o progresso dos fundamentalistas e julgar o rea-

lismo dos projetos consagrados às células de combustível; forte competência

em certos campos eletroquímicos que interessam diretamente a EDF (esto-

cagem de energia elétrica). Apoiado e reconhecido, se beneficiando da estra-

tégia da EDF que faz de tudo para devolver o vigor à indústria eletroquímica,

Blondelet se torna um interlocutor privilegiado. Ele obtém muito rapidamente

que lhe confiem alguns postos chaves: participação na comissão DGRST de

especialistas em geradores eletroquímicos, participação no comitê “Economia

do hidrogênio”, presidente da comissão de reflexão do CNRS sobre energia,

participação no comitê ATP sobre eletroquímica. Em todas estas comissões

ele reencontra representantes da EDF. É assim que o novo ator-rede-

Blondelet se estende e desenvolve pseudópodos em todas as direções, con-

solidando ao mesmo tempo seus problemas de pesquisa, suas escolhas teó-

ricas e experimentais e as novas alianças que permitem que ele os imponha.

Os atores-redes estão em posição e atingiram sua maturidade: objetos de

pesquisa, recursos financeiros, teorias, alianças, pesquisadores formam con-

Page 26: CALLON, Michel - A Agonia de Um Laboratorio

juntos coerentes indissociáveis. De um lado o ator-rede Blondelet-Baccala, de

outro, aquele que agrupa os “teóricos”; entre os dois, frágeis passarelas. O

confronto de onde resultará a morte do laboratório se torna pouco a pouco

inelutável entre estas duas forças que procuram cada uma acrescer seus re-

cursos, estender sua influência ou, em outros termos, consolidar os fatos ci-

entíficos que eles produzem e os contextos que os utilizam.

O confronto

O confronto se enceta em torno de um interesse-risco comum, que é o da de-

finição, do futuro e daquilo que alguns chamariam da institucionalização da

eletroquímica.

Tanto para um como para o outro ator-rede, o interesse-risco disciplinar é

com efeito considerável. Isto é claro para Blondelet que, pelo seu reposicio-

namento estratégico, se afastou das aplicações industriais imediatas, mas

também para Casto e os outros que têm que marcar suas diferenças das dis-

ciplinas prestigiosas que eles ladeiam mas com as quais eles não desejam se

fundir. Todos estão à procura de apoios institucionais que lhes assegurem um

reconhecimento oficial assim como os recursos materiais ou humanos neces-

sários a sua sobrevivência ou a sua expansão. Num movimento conjunto eles

delimitaram um novo território entre a indústria e disciplinas fundamentais so-

lidamente estabelecidas. Mas a reformulação dos problemas de pesquisa, tal

como ela é operacionalizada no campo fechado de Beauregard, tem como

principal conseqüência recolocar em questão alianças institucionais anterio-

res. A DGRST não está pronta para sustentar um empreendimento que se

distancie muito das missões que lhe são atribuídas. Conseguir o apoio durá-

vel de organizações que ocupem o espaço abandonado pela DGRST e que

Page 27: CALLON, Michel - A Agonia de Um Laboratorio

estejam prontas para um engajamento de longo prazo se torna então prioritá-

rio. O CNRS é um bom candidato. Os pesquisadores de Beauregard vão se

dedicar a transformar o desinteresse inicial do CNRS (desinteresse que havia

deixado o campo livre para a DGRST) em interesse ativo. Mas se os protago-

nistas estão de acordo quanto a obter este apoio, eles não são movidos pelos

mesmos projetos. Blondelet e Casto militam igualmente pela restauração e

pelo reconhecimento da eletroquímica no seio da instituição científica oficial,

mas não é a mesma eletroquímica que eles defendem. Uns lhe dão uma defi-

nição aplicada e a apoiam sobre recursos teóricos assegurados; outros a vê-

em como uma disciplina fundamental onde serão obtidos conhecimentos de-

cisivos sobre questões tão novas e estratégicas quanto a físico-química de

superfícies. Quem vai ganhar? O desfecho do conflito dependerá, bem en-

tendido, dos aliados que cada um será capaz de mobilizar ao redor de suas

orientações de pesquisa, quer dizer, de sua capacidade de interessar atores

poderosos.

O acontecimento decisivo se dá em 1978. A batalha ardia fazia alguns me-

ses. Sua intensidade culmina no momento da nomeação de um conselheiro

para eletroquímica junto a direção do CNRS. A escolha resulta de lutas. Ela é

essencial porque ela reforça incontestavelmente o prestígio da eletroquímica

(que dispõe a partir daí de um porta-voz junto a um membro influente do

CNRS) e sela seu reconhecimento institucional. A disciplina existe enquanto

tal no seio do CNRS que marca assim sua vontade de sustentá-la. Mas esta

nomeação coloca claramente em desvantagem uma das duas tendências

presentes. Ela traduz a vontade da direção geral do CNRS de privilegiar os

eixos de pesquisa que permitam reforçar as cooperações julgadas muito ra-

ras entre pesquisadores do CNRS e o setor industrial. Blondelet é o grande

ganhador da operação. O responsável científico da EDF que é nomeado para

este cargo desde muito tempo colaborou com ele e sustenta sem reservas

suas orientações de pesquisa e seus objetos de estudo. A aliança feita com o

CNRS não é o apoio acordado por uma instituição a uma disciplina, mas por

uma direção geral a um ator-rede que definiu de uma maneira singular o que

Page 28: CALLON, Michel - A Agonia de Um Laboratorio

são a disciplina e suas orientações.

Lavillier não demora a sofrer as consequências disso:

Lancei a idéia de uma escola de verão. Solicitamos ao CNRS que financias-

se. O diretor científico, depois de consultar seu conselheiro para eletroquí-

mica, disse: prove-nos que isto interessa aos industriais.

Este apoio firme à rede de Blondelet se revela tanto mais eficaz porque este

conselheiro é nomeado no mesmo momento presidente do comitê da ATP do

CNRS intitulado: Energia e Eletroquímica. A isto convém acrescentar a alian-

ça que Blondelet faz com os eletroquímicos organicistas que, se interessando

pouco pela interface e mais pelo eletrólito, estão prontos para resistir à colo-

nização do eletroquímica pelos físicos. Este apoio é tanto mais precioso por-

que, no seio do CNRS, a eletroquímica está ligada ao departamento de quí-

mica.

De um lado, Blondelet e sua rede “francesa”, cujas ramificações penetram a

indústria, as agências governamentais, as empresas públicas, as instituições

científicas. Do outro, Lavillier e sua rede internacional implantada nas univer-

sidades, atravessando especialidades prestigiosas e se aliando a elas. Cada

um destes atores-redes definiu e posicionou seus objetos de pesquisa tor-

nando-os solidários a todas as alianças feitas para os consolidar. Entre os

dois, pontos de encontro, relações de troca, lutas pela definição dos proble-

mas mas também pelo controle de recursos e de posições, pela colocação

hierárquica. O laboratório transborda de todos os lados. As oposições inter-

nas ao laboratório correm ao longo das redes. Elas são apanhadas mais adi-

ante por outros atores que as amplificam. Os choques, sobretudo quando por-

tadores dos aspectos mais estritamente científicos, colocam em briga a EDF,

o CNRS, empresas e comunidades científicas inteiras.

Page 29: CALLON, Michel - A Agonia de Um Laboratorio

O laboratório impossível

No começo dos anos 1980 a existência de Beauregard se torna cada vez

mais problemática. A dinâmica do confronto entre os atores-redes fêz explodir

o laboratório que não é mais capaz de desempenhar os três papeis antes as-

sinalados:

a) Baccala progressivamente perdeu a capacidade de concentrar e mobilizar

os recursos necessários às pesquisas em curso. Ele está situado dentro de

redes que se rasgam ou, pior, que se tornam inúteis, em relação aos novos

objetos de pesquisa de seu laboratório. Blondelet precisa do apoio ativo dos

industriais para obter os contratos e financiar suas pesquisas, do apoio do

CNRS para recrutamento de pessoal e para os equipamentos: construindo

sua própria rede ele soube se colocar em posição de reunir todos estes re-

cursos. Quanto a Casto e os seus, a situação é um pouco menos brilhante:

Baccala lhes é inútil, mas eles só receberam encorajamentos limitados do

CNRS e não podem contar com as empresas; eles já sonham ir para a Uni-

versidade ou se juntar a outros laboratórios melhor colocados.

b) O laboratório não dispõe mais de um porta-voz (seu diretor) mas de diver-

sos porta-vozes que estão longe de falar em uníssono. Beauregard é uma

justaposição de subconjuntos entre os quais nenhuma mobilização comum é

possível. Externamente, Blondelet fala por uma facção que ele representa, tal

como o faz Casto, e não por um conjunto cuja existência não é mais reconhe-

cida por ninguém. Internamente, o peso que lhe é conferido pela EDF e pelos

industriais, e que faz dele um porta-voz poderoso, não excede contudo as

fronteiras de sua equipe.

c) Beauregard se tornou progressivamente o campo fechado de lutas ferozes.

Isto porque sendo Baccala incapaz de tornar o seu laboratório indispensável

nas redes que são as suas, ele também não é capaz de ser indispensável a

seus pesquisadores: ele está à frente de tropas que vão em direções diferen-

Page 30: CALLON, Michel - A Agonia de Um Laboratorio

tes daquelas que conduzem às alianças que ele pacientemente preparou. Ele

se torna pouco a pouco um ponto de passagem não-obrigatório: as redes são

desfeitas; mercados e produtos, ofertas e demandas são desconectadas.

Baccala se vê no entre-lugar, intermediário sem comanditários, tradutor sem

público. Quem quer passar por Beauregard para fazer avançar seus projetos

(industriais ou cientistas) arrisca se perder lá, envolvido pelos confrontos que

paralisam o laboratório. A caixa preta se abriu bruscamente. O laboratório

não é mais do que ruído, furor e discórdia: os problemas correm a todo tempo

o risco de aí serem enterrados, amortalhados nos conflitos. Não é mais um

lugar pelo qual se passe com os olhos fechados, mas um lugar a ser evitado.

Por todas estas razões o laboratório se tornou um obstáculo ao bom funcio-

namento e ao desenvolvimento dos atores-redes que ele abriga.

A crise se instala abertamente quando Baccala se aposenta. Nenhum suces-

sor se apresenta porque ninguém é capaz de reunir o que está desagregado,

de propor e de impor perspectivas teóricas, de redefinir disciplinas inteiras, de

conter e de juntar estas forças cujas ramificações mergulham longe nas insti-

tuições científicas, na administração ou nas empresas. O laboratório se tor-

nou um quadro organizacional vazio, uma forma sem matéria. Os atores-

redes que ele abriga produziram suas próprias regras, seus próprios recur-

sos, suas próprias relações, suas próprias trocas, seus próprios problemas;

eles dominam a circulação dos conhecimentos que eles produzem. Beaure-

gard, suas paredes, seus corredores que comunicam suas salas umas às ou-

tras, suas escadas que interligam os andares dos teóricos àqueles dos pes-

quisadores aplicados, tornam-se um espartilho insuportável que paralisa o

funcionamento dos atores-redes ao invés de consolidá-los. Blondelet saí com

armas e bagagem para se instalar em outro lugar e recriar um laboratório.

Afastando-se, ele fecha um capítulo importante da história movimentada do

laboratório.

Comentários finais

Page 31: CALLON, Michel - A Agonia de Um Laboratorio

Tentamos mostrar neste estudo que a construção dos objetos de pesquisa, a

produção dos conhecimentos assim como a criação dos mercados nos quais

eles circulam são indissociáveis do conjunto das estratégias pelas quais os

atores-redes se edificam, se estendem ou se retraem. Autonomizar saberes,

ligá-los uns aos outros, definir problemas, escolher técnicas experimentais,

recrutar técnicos, obter diplomas, co-assinar um artigo, financiar pesquisado-

res, fazer contratos, controlar uma comissão, tais são algumas das numero-

sas operações que se entrelaçam permanentemente para assegurar o funci-

onamento dos atores-redes.

A construção dos fatos científicos é inseparável da construção dos atores-

redes, simplesmente porque aos pesquisadores se colocam simultaneamente

a questão da fabricação de enunciados e de dispositivos novos e a questão

de sua difusão ou de sua aceitação. O caso apresentado mostra que nós não

seríamos capazes de explicar a construção dos fatos científicos sem seguir

os pesquisadores dentro de seus laboratórios. Além disso coloca em evidên-

cia a necessidade de ligar os laboratórios aos atores-redes que eles gerem e

que algumas vezes os fazem explodir.

A noção de ator-rede sublinha os limites dos estudos que, explícita ou implici-

tamente, se fecham entre as paredes de um (ou de vários) laboratório(s). Ob-

servar, por exemplo, o trabalho dos pesquisadores ao redor de sua labuta,

analisar em detalhe as micronegociações que eles fazem ao redor de seus

espectrômetros sem resituar estas observações no contexto dos atores-redes

e das relações de força que eles cristalizam ou fazem flutuar, é se expor a

não compreender como são definidos os limites do negociável, como são fi-

xadas as posições relativas dos protagonistas, os recursos que eles são ca-

pazes de mobilizar, assim como o peso dos argumentos desenvolvidos, etc.

Quando Lavillier, em 1962, escapa do eletrodo monotubular onde se havia

tentado enfurná-lo, os problemas que ele formula, os objeções que ele levan-

ta e os procedimentos experimentais que ele conserva fazem parte da rela-

Page 32: CALLON, Michel - A Agonia de Um Laboratorio

ção de forças que se instaura entre ele mesmo e o ator-rede Baccala. Não se

compreenderia as escolhas “cognitivas” de Lavillier se se contentasse em ob-

servar os debates internos do laboratório ao invés de ver que o confronto

opõe a poderosa DGRST a um jovem pesquisador, físico de formação. Da

mesma maneira, o reposicionamento de Blondelet, que se concretiza na

transformação de seus objetos de pesquisa, leva em conta tanto o desinte-

resse relativo dos industriais como a contra-ofensiva que ele tem que empre-

ender face aos ataques de um novo ator-rede.

Da mesma maneira, autonomizar as estruturas organizacionais de um labora-

tório ou a divisão de trabalho ali reinante, é desconhecer que as transforma-

ções ou reorganizações das quais elas são o objeto são governadas por jo-

gos estratégicos que se desdobram no seio dos atores-redes. Quando em

1965 é criado o grupo G1, o que acontece é um novo episódio da guerra dis-

farçada a que estão entregues Blondelet e Lavillier. A constituição deste gru-

po se inscreve na longa seqüência de operações que conduzem ao desen-

volvimento da teoria dos orbitais contra a teoria das telas. O mesmo vale para

a “tecnicização” do laboratório cuja significação não pode ser encontrada fora

das estratégias de consolidação internas ao ator-rede Baccala. Em todos os

casos, é preciso seguir os atores-redes que se transformam e se consolidam

estabilizando um objeto de pesquisa, associando novos recrutas ou criando

novas estruturas organizacionais. Então aparecerá que a elaboração de uma

teoria ou o oferecimento de um novo serviço são estratégias alternativas en-

tre as quais os atores escolhem em função das circunstâncias.

Seria igualmente um erro não ver nos laboratórios nada além de puros e sim-

ples centros de produção e difusão de conhecimentos científicos. Antes de

tudo porque uma tal definição apaga a diversidade de seus modos de funcio-

namento reais. Laboratórios-fábricas, laboratórios-estúdios, laboratórios defi-

nindo sua própria política ou ao contrário laboratórios realizando as escolhas

efetuadas por outros, laboratórios de atividades diversificadas e laboratórios

especializados em um só campo: seria muito longa a lista que mostraria a va-

Page 33: CALLON, Michel - A Agonia de Um Laboratorio

riedade de situações conceptíveis, isto é, a variedade de posições dos labora-

tórios no seio dos atores-redes. Mas o essencial é compreender como um la-

boratório delimita, organiza, gere e transforma o ambiente no qual ele difunde

os conhecimentos que ele produz, ambiente este que, em troca, lhe concede

margens de manobra. Nesta perspectiva a noção de ator-rede adquire toda a

sua significação, pois ela permite ligar a produção dos conhecimentos com a

conformação dos sistemas sociais nos quais estes conhecimentos são avali-

ados e utilizados. Os atores-redes elaboram teorias, ajustam técnicas expe-

rimentais e, simultaneamente, adotam ofertas e demandas, definem e hierar-

quizam posições, fixam os interesses e organizam as relações entre as insti-

tuições. Assim Blondelet, escolhendo o tamanho e as características de seu

eletrodo monotubular, definiu os interesses relativos da Universidade e da in-

dústria, a divisão de tarefas entre pesquisa fundamental e pesquisa aplicada

assim como o círculo da concorrência, e este conjunto heterogêneo se reor-

ganiza ao mesmo tempo que ele reformula seus problemas de pesquisa. Vi-

sualizados nesta perspectiva, os laboratórios são as unidades flutuantes que

se deformam com os atores-redes que os atravessam e os estruturam. Para

estes, o controle e a organização do laboratório representam apostas (inte-

resse-risco) de grande porte, como bem mostra a estratégia de Blondelet que

concentrou seus esforços no seio do seu laboratório no primeiro tempo, para

em seguida estender seu império. Inversamente, e a história aqui narrada tes-

temunha isso, a formação e a extensão dos atores-redes e dos fatos que eles

produzem conduzem algumas vezes à destruição ou ao remodelamento de

laboratórios que entravam seu desenvolvimento.

Referências: ver o original em francês.