Caderno1
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caderno 1fevereiro de 2014
Caderno 1
Editores:José Pedro Moreira
Paulo Rodrigues FerreiraTatiana Faia
Capa:João Alves dos Reis
© Os Autores
ISBN: 978-989-691-226-0Depósito Legal: 371423/14
2014
Enfermaria 6
Fyodor BooksCalçada Nova de São Francisco,
n° 6, loja 3, Chiado, 1200-301 Lisboa
www.enfermaria6.com
ÍNDICE
Tatiana FaiaBruno AlvesCarlos Alberto Machado
Catarina BarrosCatarina Costa
Fernando GuerreiroHelena BentoHugo Milhanas Machado
Luís EneMargarida Vale de Gato
Maria SousaPaulo KellermanPaulo Rodrigues Ferreira
Pedro Bernardo Costa
Ricardo DomeneckSamuel Filipe
Tatiana FaiaSamuel Beckett / Hugo
Pinto Santos (trad.)Victor Gonçalves
DescoordenaçãoPaul Thomas AndersonHoje um amigo reencontrou-
-me, tropeçou em mimA moral certaAcordávamos e estava tudo
brancoA persistência das imagensÍris negraFibra do anjoA terra do meu regressoPaixãoAmanhece em janeiro a manhã
na ponte Vasco da GamaSaudações RomanasQuando a casa se calaAlienaçãoO dilúvio achega-seNasci para ser crenteCatarina, mulher sem línguaDava de comer aos gatos no
quintas às escondidas…Sistema judicial no patriarcadoFalar a mesma línguaJerusalém celesteIndisciplina moralQuatro poemas traduzidos do
francês pelo autorPara uma ética da leitura
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DESCOORDENAÇÃO
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Vão cobrir-se de neve as escadas e o dia durar tão pouco que ao sair vais ter sido enganado e estar à espera que ainda haja luz. Em parte isto é um truque que tem a ver com as luzes dentro do edifício. Enquanto o dia dura, é demasiado claro. Gelado, tão húmido que há sempre nevoeiro mesmo sobre o que são só campos de erva e é possível sentir a rigidez do ar na cara. Os dias são muito curtos e a cidade é muito mal iluminada. Uma iluminação dos anos quarenta, do tempo da guerra, a servir o efeito de poupar energia e diminuir a visibilidade para evitar que a cidade fosse bombardeada, uma iluminação que nunca foi substituída.
De noite, alguns grupos remam ao longo do canal e às extremidades dos remos chamam lâminas. É agora que o rio sobe até às casas, que as correntes são mais fortes e barcos com nomes de mulheres são abandonados para apodrecer nas reentrâncias mais pequenas junto a pontes minúsculas, onde há menos água ou a água são poças cheias de líquenes, tão espessa que é quase lama.
Todos os dias peço que seja limpa a língua que uso, que seja clara. Alguma claridade para que não me desenten-dam completamente. Um pouco de paciência. Pode ser que chegue. Que assim escape. Tenho observado que toda e qual-quer conversa sustentável entretida por pessoas responsáveis é baseada num mito que implica falsa reciprocidade: o do ouvinte interessado e disponível. É por isso que estatísticas comprovam que 74,3% das conversas mantidas por pessoas na faixa etária dos 26 aos 68 anos de idade em contextos à partida impessoais comportam por princípio algum grau de hipocrisia.
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Se num ano inteiro não tiveste nenhuma conversa em que te sentiste completamente morto por uma palavra, esma-gado como um insecto sob o peso inteiro dela – observações demonstram que a articulação de dois ou três sons por vezes basta para surtir este efeito –, ou se não te encontraste com uma palavra perfeitamente adequada, tão súbita que logo a seguir tivesses a vontade de escrever por baixo «sangue», se nada disto se verificou sabes que continuar vivo é o que tens feito e assim fecho a boca, deixo cair a caneta e continuo a remar.
Outro ângulo. O som límpido de uma coisa como quando corre. Mesmo que não dure, forte que chegue para correr. Isto não é uma finalidade, não é sobre hábito, uso, consumo. A força que este movimento gera não é sobre chegar ao fim, não é sobre acabar. É repetida até à exaustão, eléctrica na sua natu-reza mais nuclear. O seu trabalho e tráfico são a beleza deitada fora. Não é um ofício porque é sobre sincronia e ritmo, em negativo, descoordenação e arritmia, isto é, como uma arte pode ser começada. Não sabes se isto bate certo. A única coisa que te explicaram logo no início é que para viver todos os dias uma só desculpa chega.
*
Trago comigo a máquina. Não foi longe daqui e não foi há muitos meses. Éramos quatro sentados na mesa e abri a lente. A conversa foi cortada pelo som mecânico, pequeno animal a deslocar-se rápido. Antes de carregar no botão viraste-me as costas para que nada se soubesse do teu rosto. Eu ia disparar e sei que acreditavas que uma só imagem chegava para te fazer cair morto.
Mas agora já não é completamente mentira que tenha muitas fotografias tuas.
Se é verdade que há aquela idade em que uma rapariga consegue perceber todo o poder que tem contra o rapazola
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que se encosta ao muro atemorizado, também ainda nenhum deles tinha passado para o lado de entender completamente o que isso significa e tudo o que existiu nesse antes é do domí-nio da competição. Ninguém pode dizer o que aconteceu depois. Talvez nenhum deles tivesse como saber antes.
É por causa disto que nenhuma desculpa chega. Nenhuma desculpa vai chegar nunca. Nenhuma. Nunca. Esta é a única coisa a saber ao certo. E o pior de tudo é pensares que uma desculpa pode e deve ser encontrada.
Vês como o tronco se dobra e vês o contorno desses músculos, das costelas. A mão curva-se em concha para a água e pensas que este corpo é uma coisa tão frágil que pode ser partida. Ou sozinho partir-se ao meio. Não existirá depois deste segundo. Depois deste segundo este corpo não vai exis-tir nunca mais. A preto e branco no espelho a cara lavada. De tudo o que tenhas esta é a única coisa verdadeiramente tua. A única que conquistaste. A única coisa acertada.
Reclamar isto. Qualquer coisa de jeito que possas apren-der (enquanto tinha tempo tentou aprender esta música, mas ninguém percebeu para quê) tem sempre de vir um pouco tarde, sem que possas saber se vai dar certo. Este riozito a dar para o inverno e de noite. Pés em desacerto na lama. Nada. Tu a conteres-te porque não queres que acabe nunca.