Caderno SM3 Os Desafios Da Formacao

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    Caderno Sade Mental 3Sade Mental:

    Os desaos da formao

    Belo Horizonte, 2010

    Escola de Sade Pblica do Estado de Minas Gerais

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    O Caderno Sade Mental n 3 da ESP-MG rene os trabalhos apresentados noSEMINRIO NACIONAL SADE MENTAL: OS DESAFIOS DA FORMAO, realizado

    nos dias 27, 28 e 29 de maio de 2009, em Belo Horizonte, pela Escola de SadePblica do Estado de Minas Gerais, com o apoio do Conselho Federal de Psicologia.

    Tammy Angelina Mendona Claret MonteiroDiretora Geral da Escola de Sade Pblica do Estado de Minas Gerais

    Thiago Augusto Campos HortaSuperintendente de Educao

    Marilene Barros de MeloSuperintendente de Pesquisa

    Tnia Mara Borges BoaventuraSuperintendente de Planejamento, Gesto e Finanas

    Fabiane Marns RochaAssessor de Comunicao Social

    Audrey Silveira BastaAssessor Juridco

    Nina de Melo DvelAuditora geral

    Organizao: Ana Marta Lobosque

    Reviso:Brbara Maia - ASCOM/ESP-MG

    Editora: Fabiane Marns Rocha

    Arte:baseada no cartaz do Seminrio

    Diagramao:Leonardo Lucas - ASCOM/ESP-MG

    Impresso: Editora Autnca

    Caderno Sade Mental / Ana Marta Lobosque (Organizadora)Seminrio Sade Mental: Os Desaos da Formao, Belo Horizonte:ESP-MG. 2010. v. 3

    ISSN: 1984-5359

    1. Sade Mental 2. Escola de Sade Pblica do Estado de Minas GeraisI. LOBOSQUE, Ana Marta II. Ttulo

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    Caderno Sade Mental 3Sade Mental:

    Os desaos da formao

    Organizao:Ana Marta Lobosque

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    SeminrioSade Mental: os desaos da formao

    Comisso Organizadora:Ana Marta LobosqueGrupo de Produo Temca em Sade Mental - ESP-MG

    Denize ArmondGrupo de Produo Temca em Sade Mental - ESP-MG

    Fabiane MarnsAssessora de Comunicao Social - ESP-MG

    Humberto Verona

    Grupo de Produo Temca em Sade Mental - ESP-MGIsabela MacedoGrupo de Produo Temca em Sade Mental - ESP-MG

    Leonardo LucasDesigner - Assessoria de Comunicao Social - ESP-MG

    Marcelo Arinos Drummond JrGrupo de Produo Temca em Sade Mental - ESP-MG

    Wagner Viana

    Grupo de Produo Temca em Sade Mental - ESP-MG

    Realizao:Escola de Sade Pblica do Estado de Minas Gerais - ESP-MG

    Apoio:Conselho Federal de Psicologia-CFP

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    SUMRIO

    APRESENTAO ............................................................................ 07PREFCIO ...................................................................................... 09INTRODUO ................................................................................ 13PRODUO DE SABERES E POLTICAS DE VERDADE ..................... 17

    MESAS

    A FORMAO EM SADE MENTAL: ASPECTOS BSICOS .............................. 19

    EMENTA ................................................................................................................... 21DESAFIOS DE DESAPRENDIZAGENS NO TRABALHO EM SADE: EM BUSCA DEANMALOS

    Emerson Merhy....................................................................................................... 23A INSTITUIO DO NOVO: PREPARANDO O TRABALHO COM A COISA MENTAL

    Marcus Vincius de Oliveira..................................................................................... 37TUDO QUE EXISTE MERECE PERECERSilvia Maria Ferreira................................................................................................ 47

    A FORMAO EM SADE MENTAL: QUESTES PERMANENTES.................... 49

    EMENTA ................................................................................................................... 51A INVENO COLETIVA DA SADE MENTALCirlene Ornelas........................................................................................................ 53A HOSPITALIDADE E A REDE DE SADE MENTAL

    Fernanda Otoni de Barros....................................................................................... 57A EDUCAO PERMANENTE EM SADE E AS QUESTES PERMANENTES FORMAO EM SADE MENTAL

    Ricardo Burg Ceccim................................................................................................ 67

    A FORMAO EM SADE MENTAL: OUSANDO AVANAR ............................ 91

    EMENTA ................................................................................................................... 93ALGUMAS OBSERVAES CRTICAS SOBRE A FORMAO EM SADE MENTALPaulo Amarante....................................................................................................... 95

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    A FORMAO EM SADE MENTAL: OUSEMOS AVANARAna Marta Lobosque............................................................................................. 107A FORMAO COMO COMBATEAntonio Lance.................................................................................................... 115

    OFICINAS

    EIXO TEMTICO: ASPECTOS BSICOS DA FORMAO EM SADE MENTAL . 125

    O ENSINO DAS DISCIPLINAS EM SADE MENTAL: OS DESAFIOS DE FORMAR NOVOSTRABALHADORESRenato Diniz Silveira e Paula Cambraia de Mendona Vianna.............................. 127FORMAO EM SADE MENTAL DAS EQUIPES DE SADE DA FAMLIA

    Marta Elizabeth de Souza...................................................................................... 133CONTROLE SOCIAL E SADE MENTAL: CAPACITANDO OS CONSELHEIROSMUNICIPAIS DE SADE EM MINAS GERAISElvira Ldia Pessoa e Joo Carlos Vale.................................................................... 137ESTGIOS E ATIVIDADES AFINS: NOVOS CAMPOS DE PRTICAS EM SADE MENTALCludia Maria Generoso, Isabela Melo, Jarbas Vieira,

    Lorena Melo, Ramon Vieira........................................................................... 143

    EIXO TEMTICO : A FORMAO PERMANENTE EM SADE MENTAL .......... 149

    FORMAO POLTICA DOS USURIOS E FAMILIARES DA SADE MENTALJaciara Siqueira e Paulo Braga.............................................................................. 151A SUPERVISO CLNICO-INSTITUCIONAL: DOS RISCOS E DAS POSSIBILIDADESTnia Ferreira e Francisco Goyat......................................................................... 157EDUCAO PERMANENTE DE GESTORES: ORGANIZAO DA REDE DE ATENO SADE MENTAL

    Lourdes Machado e Thiago Horta......................................................................... 165

    EIXO TEMTICO: AVANANDO NA FORMAO EM SADE MENTAL .......... 171

    A UNIVERSIDADE E SEUS PRODUTOS: OUSANDO AVANAR EM SADE MENTALMaria Stella Goulart............................................................................................. 173PUBLICAES EM SADE MENTALFuad Kyrillos Neto................................................................................................. 185CURSOS DE ESPECIALIZAO E RESIDNCIAS MULTIPROFISSIONAIS EM SADEMENTAL

    Jairo de Almeida Gama e Elisa Zanerato............................................................... 187PESQUISAR EM SADE MENTAL: REFLEXESAline Aguiar Mendes e Marcelo Arinos Drummond Jnior.................................... 197

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    APRESENTAO

    O vento experimenta o que ir fazer com sua liberdadeGuimares Rosa

    A Escola de Sade Pblica do Estado de Minas Gerais publica com alegria oterceiro nmero do seu Caderno Sade Mental, alicerando o compromisso comas permanentes publicaes relavas ao campo da Sade Mental.

    Este Caderno traz novas contribuies, seguindo a linha dos nmeros ante-riores, qual seja: uma frl interlocuo entre professores, gestores, trabalha-dores, estudantes, usurios e familiares, visando o avano da Reforma Psiqui-trica brasileira.

    A proposta editorial destes Cadernos consiste justamente em promover edivulgar o dilogo entre estes diferentes segmentos. Apoiando ou promovendoseminrios, ocinas e outros espaos de encontro dos quais parcipam todoseles, a Escola empreende, a seguir, a publicao dos trabalhos ali apresentados.Dessa forma, evitamos restringir o debate das questes da Sade Mental aombito estritamente tcnico no qual angas determinaes sociais e histricasprocuram mant-lo,trazendo-o ao mbito vivo da cidadania, sem prejuzo dorigor terico e da clareza conceitual.

    Por conseguinte, este Caderno, como aqueles que o antecederam, traz

    contribuies de professores da Filosoa, da Psicanlise, da Sade Coleva,da Sade Mental, de alta qualicao acadmica e destacada avidade nocampo do ensino e das publicaes; de trabalhadores e gestores que convivemcodianamente com os desaos e os avanos da ateno Sade, deles possuindoo inquieto conhecimento que apenas atravs da experincia se adquire; deestudantes que se empenham em trazer para a sua formao as urgentes questesadvindas da ateno psicossocial em redes de servios abertos; de usurios queatravessam a dicil vivncia do sofrimento mental sustentando seus direitos decidados, de familiares que os apoiam nesta dicil conquista.

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    Esta mescla singular possibilita-nos oferecer aos leitores os felizes produtosde uma reexo que rompe muros; sejam aqueles, mais visveis e bvios, do

    hospital psiquitrico, sejam aqueles, mais sus, que impedem a circulao e aao da palavra no espao da cidade. Certos de aportar-lhes assim um convitesingular, desejamos a todos, carinhosamente, boas vindas!

    Tammy Claret MonteiroDiretora Geral da Escola de Sade Pblica do Estado de Minas Gerais

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    PREFCIO

    No prefcio do Caderno de Sade Mental n2, lanado em maio de 2009,apresentamos o Grupo de Produo Temca em Sade Mental, que busca

    efevar a concepo de educao permanente sustentada pela Escola de SadePblica, atravs do trip pesquisa-ensino-servio

    Agora, prefaciando o Caderno Sade Mental n3 - Sade Mental: os desaosda formao, este Grupo tem a contar felizes realizaes no ano de 2010, eimportantes projetos para 2011.

    Uma signicava realizao consiste no seminrio que d o nome a esteCaderno, ofertando as contribuies que o compem. Nos dias 27, 28 e 29 demaio de 2009, o evento reuniu, entre expositores e parcipantes, um pblicoavo e atento, movimentando alegremente salas e corredores da Escola. Da

    produo ento ocorrida, do testemunho os valiosos textos aqui divulgados.

    Uma nova criao, o Espao Sade Mental, veio luz no dia 11 de agostodo mesmo ano. Essa comunidade virtual que d acesso s aulas e publicaesdo Grupo, e promove fruns de discusso sobre temas variados em nossarea, representa nossa primeira incurso na Educao Distncia, abrindopossibilidades vrias a explorar. No momento em que escrevemos este prefcio,o Espao Sade Mental est sendo remodelado, para tornar-se mais bonito dese ver e mais fcil de acessar.

    Sem demora, passamos a outra publicao, a Carlha Sade Mental em letrasmineiras, lanada em 14 de de dezembro de 2009, que nos merece especial carin-ho. Elaborada em parceria com os usurios, e desnada a eles, a Carlha temsido divulgada por trabalhadores do GPT-SM e membros da Associao Mi neirados Usurios dos Servios de Sade Mental de Minas Gerais -ASUSSAM, em rodasde conversa realizadas com usurios de vrios municpios mineiros. J esvemosem Barbacena, Bem, Nova Era, Nova Serrana, Poos de Calda, Monlevade,So Domingos do Prata, So Joaquim de Bicas, Esmeraldas,Ribeiro das Neves,entre vrios outros - e programamos muitas viagens ainda, levando estas letrasmineiras a muitos olhos e muitas mos.

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    Seguiu-se uma das nossas mais importantes conquistas: a Residncia Mulpro-ssional em Sade Mental. Elaborado em parceria com a Secretaria Municipal de

    Bem, o projeto foi aceito, em fevereiro deste ano, pelos Ministrios de Sadee Educao; aps um concorrido processo selevo, as avidades se iniciaramno dia 10 de agosto. Parlhamos orgulhosamente esta conquista com todos oscompanheiros da Reforma Psiquitrica do Brasil e de Minas - assim contribuindo,estamos certos, para faz-la avanar.

    Importa ressaltar: trata-se da primeira Residncia Mulprossional em SadeMental que oferece aos residentes passagem por todas as linhas de cuidadona rede de ateno em Sade Mental CAPS (Centros de Ateno Psicossocial)pos III, II e I, CAPSi, ateno bsica, centro de convivncia, moradias protegidas

    - prescindindo inteiramente do recurso ao hospital psiquitrico como cenriode ensino. Faculta-nos tal superao a parceria com o municpio de Bem,cuja rede de Sade Mental construo histrica da Reforma Brasileira. Asquatro residentes - uma assistente social, uma enfermeira, uma psicloga euma terapeuta ocupacional - desempenham suas avidades prcas na redebenense, sob a superviso de preceptores que ali atuam, e com o apoio dasequipes locais. Alm disso, todas as quintas-feiras, a Escola recebe alegrementeresidentes, preceptores e trabalhadores do municpio, para os seminriostericos, supervises e reunies clnico-instucionais. Nessas avidades,vimos discundo, de forma viva e parcipava, tanto os aspectos tericos daconstruo das redes, das prcas que a se realizam, dos aspectos histricose antropolgicos do sofrimento mental, quanto os casos clnicos e as situaesconcretas que nos permitem melhor compreender as questes da rede local,ajudando a buscar respostas e sadas face s suas diculdades.

    Uma outra novidade encontra-se nas ocinas cujo tema a ateno aoscidados que fazem uso prejudicial de lcool e outras drogas - tema relevantee pouco trabalhado, cujo desao decidimos enfrentar. So 6 ocinas mensais,da qual parcipam componentes da rede de Sade Mental de 18 municpios

    mineiros de pequeno, mdio e grande porte, visando garanr e aprimorar oatendimento a estes usurios nas redes do Sistema nico de Sade.

    Nem s de novas invenes, porm, se vive: demos prosseguimento a ini-ciavas anteriores, que prezamos igualmente. Dentre elas, destacam-se asOcinas para Gesto em Sade Mental, que subsidiam 120 parcipantes, entrecoordenadores de servios e referncias tcnicas da rea, contemplando as 13macrorregies de todo Estado na construo de redes locais e regionais de SadeMental. Complementam esta ao educacional as Ocinas de Produo de ArgosCiencos sobre o mesmo tema, cuja produo esperamos em breve divulgar.

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    Atentos arculao polca necessria ao nosso trabalho, temos parcipadodas diversas instncias representavas do controle social em nosso Estado:

    presentes nas Comisses Estadual e Municipal de Reforma Psiquitrica,parcipamos tambm da Comisso Organizadora da IV Conferncia Estadual deSade Mental. Realizou-se na ESP-MG, como construo conjunta de numerososcolegas de outras instuies, a Primeira Plenria do Colevo de Docentes eDiscentes de Sade Mental do Estado, realizada nos dias 14 e 15 de abril desteano, cujo produto foi levado s Conferncias Estadual e Nacional de SadeMental. Apoiamos a realizao do Seminrio Sade Mental: Marcos Conceituais,Campos de Prca, promovido pelo mesmo colevo que deu impulso Plenria.

    Balano feito das avidades de 2010, h que apresentar nossas ideias e

    expectavas para 2011. Os numerosos e variados projetos reetem nossocompromisso, sempre rme, com a formao em Sade Mental.

    Um ponto de grande importncia estratgica a connuidade, avano eampliao na formao de residentes. Pretendemos e j empreendemosgestes neste sendo - dar connuidade Residncia Mulprossional, earcul-la com uma Residncia de Psiquiatria, constuindo a realizao inditade Residncias Integradas em Sade Mental no mbito das redes substuvas aohospital psiquitrico. Sabemos bem que uma tal proposta um grande desaopolco e conceitual, que no se viabiliza sem grandes oposies ou diculdades;

    reiteramos, contudo, nossa disposio em enfrent-lo decididamente.Um outro ponto importante consiste no prosseguimento e ampliao das

    nossas Ocinas. Aps a concluso, em maro, da primeira srie das Ocinas deGesto, planejamos a realizao de uma nova srie, cuja qualidade certamenteh de aprimorar-se a parr da primeira experincia; o mesmo vale para aquelasque abordam o tema lcool e Outras Drogas. Encontra-se j em andamentoa elaborao do projeto de Ocinas de Ateno Criana e Adolescente, querequer, certamente, especial ateno. Pretendemos ainda retomar as Ocinas deModelagem de Rede em Sade Mental iniciadas em 2008, em Uberlndia: elas

    devem agora envolver toda a microrregio na qual se localiza o municpio-polo.Pretendemos tambm dar connuidade parcipao nas Comisses de

    Reforma Psiquitrica Municipal e Estadual; s rodas de conversa que divulgam acarlha dos usurios da Sade Mental; desejamos empreender novas parceriascom usurios, conselheiros, estudantes, militantes da Sade, apoiando sempreo exerccio democrco do controle social. Ainda, a realizao de mais umseminrio e a publicao dos Cadernos Sade Mental 4 e 5so tambm partepreciosa dos planos para 2011, visando envolver sempre novos atores no debateda Sade Mental, e divulgar amplamente suas produes.

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    Naturalmente, a efevao de tantos projetos passa por fatores alheios nossa vontade. A mudana da gesto em Minas e no pas, produto do jogo

    democrco, traz uma nova conjuntura que nos cabe aguardar com serenidade.Estamos cientes de que a connuidade dos projetos hoje existentes e aimplementao dos demais aqui elencados no esto dadas de antemo. Nuncao estariam, de qualquer maneira; no apenas mudam os governos, mas tambm,ainda quando no mudam, variam as correlaes de fora que os sustentam,e as alianas com as quais se compem. Sejam estas quais forem, eis aquilode que estamos certos: permaneceremos ao lado da fora crescente e viva dosmovimentos sociais - e, nomeadamente, do movimento anmanicomial.

    Se no podemos pois, assegurar estes ou aqueles propostas e projetos para o

    ano vindouro, cabe-nos todavia sustentar com rmeza os princpios que regemnosso trabalho: o empenho num novo e frl modelo de formao, e a parceriacom os trabalhadores, estudantes, usurios e familiares que nos ajudam aconceb-lo e torn-lo real.

    O leitor saber supor as diculdades enfrentadas e o grande esforo reque-rido para sustentar as avidades aqui descritas, e, mais ainda, para dar-lhesseguimento e ampliao. Contudo, diculdades e esforos tm sido gene ro sa-mente validados pela intensa produo que deram luz. Agradecemos o apoioda Direo e da Superintendncia de Educao desta casa, nas pessoas deTammy Claret Monteiro e Thiago Horta, respecvamente; e as contribuies doscolegas de diferentes setores da ESP-MG, sem o qual no seria possvel o nossotrabalho. Manifestamos ainda nossa grado pelos laos de companheirismo esolidariedade que nos renem, a ns, parcipantes do GPT-SM, em tantos e toqueridos empreendimentos.

    Agora, cabe comemorar: lanamos, com prazer, o Caderno Sade Mental n 3.Mais um ano, mais um seminrio, mais um caderno - mais histrias entre tantas,diceis de escrever, certamente, porm ainda mais diceis de apagar, uma vez

    escritas. A todos os que delas desejam parcipar: sejam bem vindos!

    Ana Marta Lobosque

    Grupo de Produo Temca em Sade Mental da Escola de Sade Pblica doEstado de Minas Gerais

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    CADERNO SAUDE MENTAL 3 - SADE MENTAL: OS DESAFIOS DA FORMAO

    No campo da formao, encontram-se hoje alguns dos maiores desaos

    colocados para a Reforma Psiquitrica. Por tal razo, a Escola de Sade Pblicado Estado de Minas Gerais - ESP-MG, atravs de seu Grupo de Produo Temcaem Sade Mental, realiza este Seminrio.

    A formao no acompanhou as signicavas transformaes ocorridasnas lmas trs dcadas no panorama da Sade Mental: desconsidera aindaas prcas de cuidado e convvio que hoje oferecem suporte grande maioriados brasileiros portadores de sofrimento mental. Quais as razes dessedescompasso?

    Algumas delas se podem encontrar na forma mesma pela qual nasceram etomaram corpo as prcas anmanicomiais. Por um lado, a segregao e os maustratos nos hospitais psiquitricos no foram denunciados atravs de proposiesciencas, e sim pela coragem e determinao daqueles que os conheceram deperto. Por outro lado, a criao de redes substuvas ao hospital psiquitricotampouco se pde fazer a parr de referenciais tericos: como uliz-los, se asimprevistas questes do cuidar em liberdade no encontravam neles formulaoou registro? Ainda, a luta polca foi constuva de todo esse processo, pelaorganizao de um forte movimento social.

    As transformaes propostas por esse movimento, portanto, no se limitam racionalizao ou aplicao criteriosa de recursos, modernizao das tcnicas, humanizao dos cuidados. Trata-se sobretudo da ruptura com todo um ideriode normazao e controle, buscando dar s singulares experincias da loucuradireito pleno de cidadania.

    Nesse processo, torna-se necessrio pensar o lugar da cincia no mundocontemporneo. Ora, indagaes de tal gnero no se podem fazer nos termosda cincia mesma: partem das produes da cultura, em que afetos e desejos,

    Introduo ao Seminrio

    SADE MENTAL:

    OS DESAFIOS DA FORMAO

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    ideias e imagens, ces e fantasias tecem laos com a arte e a criao. Taisprodues no se autorizam por regras instucionalmente denidas, e sim por

    seus prprios efeitos vitais no espao social onde veram origem.Os saberes assim nascidos teriam ento um carter basicamente emprico e

    intuivo, sem relao com o mbito do conceito? No nos parece. Nessa trajetria,o estudo, a leitura, a reexo tm sido de grande importncia: a percepo dafragilidade dos discursos pretensamente ciencos sobre a doena mental inseparvel da busca de referncias tericas mais complexas e frteis para a suaabordagem.

    O aprendizado junto aos chamados loucos certamente busca entrar em

    relaes com o campo conceitual, em supervises, seminrios, pesquisas,publicaes e avidades ans. Contudo, os traos que conferem originalidadea esses novos conhecimentos so os mesmos que dicultam seu trnsito nasinstuies de formao: a indispensvel ancoragem na experincia, a legimaopelo exerccio codiano, a recusa das pretenses tecnicistas, o reconhecimentodos usurios como atores polcos e sociais.

    Da os desaos que se colocam para o avano, a formulao e a transmissode tais saberes. Caso se submetam docilmente aos cnones da produocienca formal, perdem a contundncia crca e a potncia invenva que os

    singulariza. Entretanto, se permanecem isolados, em cmoda sasfao com aprpria marginalidade, acabam por empobrecer-se, comprometendo o futuroda audaciosa empresa que os gerou.

    Em Minas, a abordagem dos desaos no campo da formao deu umimportante passo atravs do Seminrio Reforma Psiquitrica e Universidade:interrogando a distncia. Organizado por estudantes universitrios da rea daSade, o evento efetuou com rigor a interrogao a que se propunha. Seusprodutos, compondo o Caderno Sade Mental n 2 da ESP-MG, oferecem umvalioso subsdio para o nosso trabalho.

    O debate aqui proposto no pode consisr em denncias de lacunas, faltase falhas: deve fazer-se proposivo, de forma tal que a anlise dos desaos emcausa nos conduza de fato ao seu enfrentamento.

    preciso intervir nas bases da formao, propiciando a alunos e professoresdo curso mdio e da graduao, a gestores, usurios, familiares, conselheirosde Sade e outros interessados o acesso a noes minimamente necessrias sua atuao. A educao permanente requer ateno, oferecendo a todos ossegmentos j envolvidos no trabalho em Sade Mental condies necessrias

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    CADERNO SAUDE MENTAL 3 - SADE MENTAL: OS DESAFIOS DA FORMAO

    para pens-lo avamente. A promoo de pesquisas, publicaes, dissertaes,teses, que respeitem e problemazem as experincias em curso visando ao seu

    avano, um terceiro aspecto, at hoje pouco discudo.Esses trs aspectos da formao sero tratados nas trs mesas-redondas,

    desdobrando-se nas ocinas que as sucedem. A considerao das peculiaridadesdos saberes no instudos, a anlise dos regimes de produo de verdade emnossa sociedade, o exame das polcas pblicas de educao e sade, temasinicialmente abordados na conferncia, constuem o pano de fundo que nosdeve acompanhar ao longo de todo o seminrio.

    A Escola de Sade Pblica de Minas Gerais, rearmando seu compromissocom a Reforma Psiquitrica, d as boas-vindas a todos vocs.

    Comisso Organizadora do Seminrio

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    PRODUO DE SABERES

    E POLTICAS DE VERDADE

    O exame das questes prprias formao em Sade Mental deve fazer-se

    a parr de uma perspecva mais ampla: aquela das polcas de verdade queregem a produo e a transmisso dos saberes numa sociedade dada. f numaneutralidade do conhecimento cienco, produzindo evidncias supostamenteirrefutveis, h que contrapor uma interpelao crca daquilo que se julgaevidente, levando em conta a quem convm e em quais relaes de foras seinscreve. Se a verdade pode entender-se como objeto a ser buscado l ondeestaria desde sempre, atravs de seu progressivo desvelamento pelo saber,cumpre pens-la como produo de um jogo bem mais complexo, no qual asperguntas feitas parcipam da determinao das respostas encontradas.

    Nessa ca, cumpre avaliar as polcas pblicas de educao, cincias,tecnologia. Tais polcas asseguram aos cidados uma escolaridade bsica dequalidade? Propiciam equidade no acesso formao superior? Denem rease temas de pesquisa segundo os interesses da populao? So recepvas aocontrole social ao denir e implantar suas metas? Democrazam o acesso sinformaes e aos recursos tecnolgicos que as disponibilizam? Tais perguntas,elementares, so necessrias face a um cenrio no qual frequentemente aescolarizao reduzida a rudimentos precrios, a formao universitriabanalizada pela proliferao sem controle das instuies de ensino, as pesquisas

    e publicaes determinadas por interesses privados e corporavos.

    A determinao de critrios universalmente denidos para o reconhecimentoda produo cienca, certamente necessria, enfrenta sempre o risco deempobrecer seus objetos, ao unicar a linguagem pela qual os aborda. Na reada Sade Mental, esse problema se manifesta, por exemplo, nos novos cdigosinternacionais de doena e compndios psiquitricos que os acompanham. Umoutro exemplo diz respeito ao pouco espao encontrado para a transmisso dedisciplinas de contedo discursivo mais denso, como o caso da psicanlise.

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    Contudo, no preciso restringirmo-nos a uma determinada rea de saber, ounem mesmo ao campo cienco: a simplicao excessiva da linguagem um

    fenmeno contemporneo, que, visando facilitar a comunicao e as trocas,acaba por empobrecer tanto a apreenso do mundo quanto a subjevidade queo percebe. Nesse enquadre, o avano tecnolgico das comunicaes, preciosoinstrumento para o intercmbio de informaes, nocias, conhecimentos, artes,arrisca-se tambm a servir um ulitarismo banal.

    Como promover uma produo de conhecimentos que no sirva a nsexclusivamente pragmcos, e sim enriquea o mundo humano? Como pracaruma avidade intelectual que exercite e desae o pensamento, sem limitar-se sua aplicao meramente instrumental? Como associar clareza e preciso,

    sem excluir o singular e o complexo? Como democrazar o acesso aos saberesciencos em parcular e s produes da cultura em geral, sem denegar o que dicil, problemco e ambguo em sua constuio?

    Questes como essas - diceis, certamente, porm claramente formuladas -guiam-nos no trabalho deste Seminrio.

    Grupo de Produo Temca em Sade Mental

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    Mesa redonda

    A FORMAO EM SADE MENTAL:ASPECTOS BSICOS

    Desaos de desaprendizagens no trabalho

    em Sade: em busca de anmalosEmerson Elias Merhy

    A instuio do novo: preparando o trabalho com acoisa mentalMarcus Vincius de Oliveira

    Tudo que existe merece perecerSlvia Maria Ferreira

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    CADERNO SAUDE MENTAL 3 - SADE MENTAL: OS DESAFIOS DA FORMAO

    Ementa

    Quando da abertura dos novos servios de Sade Mental substuvos aohospital psiquitrico, a alegria e o empenho de trabalhadores, usurios e familiares,aliados ao respaldo de um movimento anmanicomial organizado, propiciarama experimentao de prcas inovadoras na abordagem do sofrimento mental.Num momento cultural e polco bem diverso do que vivemos hoje, todos osenvolvidos nesse trabalho lanavam-se, sem temor ou cansao, s surpresas deum movimentado dia a dia: encontravam para as situaes diceis ou inusitadasda loucura novas sadas, que as portas fechadas dos hospitais psiquitricos atento lhes proibiam pensar.

    Ao longo desse percurso, os trabalhadores adquiriram experincia e matu-ridade; os usurios encontraram melhores maneiras de enfrentar seu prpriosofrimento; as famlias passaram a compreender e valorizar as propostas dotratamento em liberdade; as cidades aprenderam a conviver de forma maissolidria com esses singulares cidados.

    Ora, construdo todo esse importante aprendizado, encontram-se, todavia,grandes entraves sua transmisso.

    Os estudantes connuam a obter na escola, seja no nvel tcnico ou

    universitrio, apenas os conhecimentos constudos no enquadre do angomodelo: uma psicopatologia baseada na discuvel apresentao de enfermos,uma psicofarmacologia que se cr autossuciente, uma clnica ordenada emtorno da consulta e dos consultrios. Por outro lado, o ensino e a discusso daspolcas pblicas de Sade e Sade Mental so pracamente omidos, quandoas escolas preparam seus alunos para atender a uma determinada classe social,e no a todos os cidados do seu pas. Tudo se passa como se essa perspecvafosse a nica existente e possvel, elidindo tantas outras que se desenham noBrasil e no mundo.

    No apenas os estudantes se ressentem dos efeitos desse silncio. Tambmseus professores, quando alunos, os sofreram; como poderiam agora transmiruma experincia que no os tocou? Perpetua-se, pois, um crculo vicioso,resultando na chegada rede de trabalhadores despreparados para a tarefa queos espera.

    Ainda, cumpre examinar os aspectos bsicos da formao, considerandotambm outros atores. Os usurios e seus familiares, que outrora se faziampresentes sobretudo pela via da denncia e do depoimento pessoal, queremagora formular crcas mais precisas sobre as polcas pblicas, legislaes,

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    redes de ateno. Os conselheiros de Sade muitas vezes no tm acesso anoes elementares nessa rea, necessrias ao exerccio do controle social.

    A formao dos gestores, insuciente sob vrios aspectos, precria no quediz respeito Sade Mental. Novas estratgias do trabalho em Sade, comoos Programas de Sade da Famlia, levam a repensar a formao bsica dosgeneralistas, enfermeiros, auxiliares de Enfermagem, agentes comunitriosde Sade. Deve-se tambm considerar a demanda de outros prossionaiscrescentemente solicitados pela Sade Mental, como o caso dos prossionaisdo Direito. Finalmente, preciso levar informaes e debates sociedade civil,interessando-a em questes que tambm lhe dizem respeito.

    J no se pode admir que o ensino bsico sobre a Sade Mental, seja

    qual for o pblico ao qual se desne, desconsidere realizaes que hoje seoferecem generosamente maioria da populao brasileira. Uma anlise crcadessa situao e a busca de formas de super-la o que se espera desta mesaredonda.

    Comisso Organizadora do Seminrio

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    CADERNO SAUDE MENTAL 3 - SADE MENTAL: OS DESAFIOS DA FORMAO

    DESAFIOS DE DESAPRENDIZAGENS NO

    TRABALHO EM SADE: EM BUSCA DEANMALOS

    Emerson Elias Merhy1

    Aprender a desaprender para apreender, em interseoque viver uma perspiccia na produo da diferena

    no interior das repees

    Introduo

    O material que se segue produto da juno de um texto que prepareiantecipadamente para o evento junto Escola de Sade Pblica de Minas Geraise minha fala em ato na mesa que parcipei. Fiz uma edio de incorporao.Esta primeira parte baseada na minha fala, e depois vem o texto que produzi.

    Minha fala paru da constatao de que iria me remeter a diferentes posde experincias que vivi dentro da universidade, mas sem deixar de lado minhalonga insero, que se mantm at hoje, junto s redes de cuidado em Sade enos servios de diferentes ordens, inclusive incluindo algumas experincias emSade Mental.

    Desses lugares, a primeira coisa que eu gostaria de pautar, e que j faz partede algumas produes minhas, o reconhecimento de que no h nenhumpo de privilgio no campo da universidade, ou nos reconhecidos territriosformais de formao, em relao questo da produo de conhecimento ou questo da construo de situaes nos processos de educao e formao,quanto ao mundo do trabalho no codiano das redes de cuidado. Quero dizer

    1 - Coordenador da linha de pesquisa Micropolca do trabalho e o cuidado em Sade da UFRJ.

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    com isso que j temos discudo e defendido claramente a ideia de que a riquezaque existe a parr da construo daquele mundo nas vrias redes de cuidado

    absolutamente impondervel. Ns no temos noo nem do tamanho nem daquandade de coisas que so produzidas efevamente ali. O que ns sabemos que a publicidade, no sendo de tornar pblico, do que se faz muito pequena.

    Ento, se voc capaz de fazer um levantamento do registro formal deconhecimento produzido, quase chega concluso de que a Fiocruz, porexemplo, um dos templos da maior produo de conhecimento desse pas,ou mesmo que quase no h experincias nessa direo no mundo do trabalhonas redes de cuidado. Aponto isso como um processo paradoxal que deve noschamar a ateno, e no para analisar a Fiocruz em si, pois a ulizo somente

    como elemento analisador exemplar.

    Entretanto, s procurar nas vrias instuies que formalizam os lugaresde produo de conhecimento e voc ter esses mesmos indicadores reais. Eaparece para todos ns que a que se produzem os conhecimentos vlidos,consolidando uma imagem de que esses lugares so aqueles onde o conhecimentoefevamente conduzido e consolidado.

    Queria marcar isso como uma primeira questo chave.

    Porm, ledo engano esse nosso, na medida em que efevamente, no Brasilem parcular isso muito forte, as redes de servios so fontes inesgotveisde produo sistemca de novos conhecimentos. Novos conhecimentos eprcas.

    Ns precisamos pensar nisso, problemazar isso. Precisamos pensar signica-vamente nessa diculdade que temos de dar visibilidade a esse mundo. Comodizem alguns pensadores: no dar a visibilidade do que j existe de baixo dotapete, ou seja, s desocultar. Mas trata-se de dar visibilidade produzindo umnovo visvel, resultado de uma nova forma de olhar. Ou seja, ns temos que

    tomar isso como uma grande questo. No que esse conhecimento j estejaconsolidado e formalizado para ser publicizado, no sendo de que j est debaixodo tapete e basta desocult-lo. No: na realidade, h que se fazer um esforogigantesco de produo em relao consolidao daquilo que, no codiano,sistemacamente, os colevos de trabalho operam em termos de construo denovos conhecimentos e prcas, orden-los, para publiciz-los.

    A segunda grande questo que me interessa traduziria com a seguinteimagem: h que agir no campo da produo das anomalias ou dos anmalos nocampo da formao; e rapidamente entendero por que eu falo isso. Acho que

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    algo imensamente desaante, para o qual no temos do boas respostas. Voume explicar. Ao que temos assisdo formalmente no campo da formao? Vou

    pautar dois grandes analisadores.Ns temos assisdo a uma aposta profunda, e no Brasil isso muito relevante,

    no campo das prosses. Isso vai num crescente interesse de observar, masolhando para um dos seus efeitos fundamentais, pois vem se consolidando pari-passo com uma intensa fragmentao dos ncleos de saber, de uma intensafragmentao nos processos de disciplinarizao e numa intensa fragmentaona prpria construo das prcas nas redes de cuidado. Essa aposta gigantescano campo das prosses deixa marcas interessantes e importantes diante doque eu estou nominando como a necessidade de produo de anmalos.

    O outro analisador que me interessa destacar uma outra grande aposta, nocampo da formao, na construo de trabalhadores de Sade, em parcular noensino universitrio, que se pautam no mundo da rede de cuidados, pela ideiade um forte centramento nas suas prprias lgicas de saberes, tomando o outroque chega ao mundo do cuidado, o usurio, como seu objeto de ao. E issotem construdo uma forte imagem de processos subjevantes na construode trabalhadores, nas prcas formais de formao, que se julgam verdadeiroscienstas a manipular seus objetos, alm de portadores de discursos ciencistas

    do saber no campo da Sade e de proprietrios exclusivos sobre esse saber dealguns em relao aos outros.

    Dentro dessas lgicas, apontadas pelos dois analisadores, o mundo docuidado tem sido visto como sendo o lugar da aplicao dessa ciencidadepelos considerados prossionais de Sade, no qual, alguns trabalhadores deposse dessa cincia adquirem legimamente, no plano social, o direito deintervir sobre os outros, despossudos.

    Esses componentes so chaves naquilo que coloco como a produo do an-

    malo, cuja imagem nos remete aos que saem, fogem das normas. E por issoque estou brincando com essa ideia da produo do anmalo. Porque, quan dons vivenciamos as nossas expectavas e as nossas experincias nas redes quese propem a desinstucionalizar as prcas predominantes de Sade, atravsde novas experincias de cuidado, procuramos incorporar trabalhadores quefugiram s regras ociais, instudas, de modos hegemnicas, da formao.Procuramos os anmalos, os que fogem s abordagens fragmentadas e sobreos outros.

    Pois no fundo ns apostamos nessas experincias, na conformao de

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    trabalhadores que deveriam, primeiro, se submeter presena do outro, ouseja, trabalhadores que deveriam se posicionar no mundo do cuidado para

    serem afetados. Afetados pela presena do outro e, atravs desse efeito dapresena do outro, poder operar nesse encontro a construo de qualquercoisa que pudssemos chamar de prca de um cuidado. Essa perspecva deter um trabalhador que se posicione para ser afetado pela presena do outro uma anomalia em relao a estratgias de formao que eu apontei antes. Porqu? Porque essas estratgias tomam como territrios instudos exatamente aconstruo dos ncleos prossionais e dos saberes e cincias como algo que nodeve ser exposto ao afetamento, ou ao efeito da presena do outro, na medidaem que o outro, perante esses ncleos prossionais e perante esses saberes,

    deve ser um mero objeto. E objeto, nessa concepo, no afeta. Ao contrrio,ele deve ser manejado, ele deve ser manipulado.

    Ento, h algo nessa expectava, quando olhamos as apostas na construodas prcas que nos interessam, que o desejo de uma anomalia. O seja, odesejo de que, no interior dos processos instucionalizados, onde construmosgrandes invesmentos sociais para a formao desses trabalhadores para queeles deem certo, a formao d errado.

    Essa expectava o que eu estou chamando de produo do anmalo. Ouseja, temos algo a conversar sobre essa questo. Como que nos interessaconduzir a construo de anmalos? Por qu? Porque no nos interessa aquelesque so formatados - a palavra formatar muito adequada, a isso tudo. Foramformatados pelas estratgias de formao prossional e pela conduo dosaberes ciencos que pouco tm permido conduzir as relaes no mundo docuidado. Isso, para mim, chave para podermos pautar uma reexo do que euchamaria de aspectos bsicos da formao em qualquer rea do campo Sade eque constuam apostas de construo de anomalias prossionais.

    Estou colocando que estamos diante da necessidade de conduo desses

    analisadores como possibilidade de disposivos de interveno no territrio domundo onde o processo de formao ocorre. Ou seja, como que podemospensar a construo de disposivos produtores de anmalos? E esse processode conduo de disposivos de produo de anmalo deveria ambicionar todosos territrios de formao, inclusive aqueles legimados como acadmicos.

    Sabemos das diculdades desse po de processo, e sabemos das diculdadesque temos vivido quando construmos uma aposta to ampla, como, porexemplo, na Reforma Psiquitrica, na luta anmanicomial de uma maneira geral,independente das vrias estratgias ou das vrias correntes que a habitam. E

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    sabemos como dicil para todos ns operar a construo do codiano semcontar com a produo de mecanismos que eu estou chamando de produo

    de anomalias.Temos do srias diculdades na medida em que certos ncleos prossionais

    tm conseguido conduzir terapeucamente grandes controles sobre a produodas suas anomalias. Eu nominaria que, hoje, o territrio de formao psiquitrica um territrio muito forte. Parece que eles desenvolveram, e faamos jus a isso,com a ajuda de alguns medicamentos, a possibilidade de controlar a prpriaformao psiquitrica, porque o nmero de psiquiatras anmalos tem sidoprecrio. Ento, parece que eles esto conduzindo muito bem as suas estratgiasde controles de anomalias no seu territrio prossional. isso tem que nos chamar

    a ateno; anal, no faremos aprofundamentos no campo que nos interessa,o da Reforma, sem conduzirmos no s uma estratgia societria ampla dederrotar o que se produziu em torno da loucura nesses sculos, mas tambmde conduzir de uma forma ampla a derrota dessas estratgias de consolidaoque o saber cienco e os lucros prossionais tm conduzido de uma maneiraabsolutamente exitosa. E, no campo dessas lutas, temos que ordenar no sa construo de novos equipamentos do ponto de vista das perspecvas decuidado, de novas redes, mas tambm ordenar para o interior dessas redes apossibilidade de que elas sejam profundamente invasoras.

    Para isso, procuro adiante trazer um conjunto de elementos sobre o mundo dotrabalho no cuidado em Sade que possam dar concretude s apostas desse po.

    Atrs de elementos produtores de anmalos

    Parto da ideia de que o mundo do trabalho um territrio em produohabitado por mulplicidades, repees e diferenas, e, como tal, deve serpensado atravs de imagens e no por representaes. Ou seja, no h a

    possibilidade de ser captado em sua totalidade, pois no se constui como tal;e, assim, s pode ser visado angulosamente, por pedaos e por momentos.Pedaos construdos como espaos recortados, intencionalmente interessantespara quem os realiza; momentos que podem registrar um dos muitos temposque o habitam.

    Nessa direo, irei tratar do mundo do trabalho nas redes de cuidado emSade atravs de algumas imagens que possam trazer para a cena elementos dacomplexidade desse mundo, sem tentar dar conta de um arcabouo que se sintaplenamente sasfeito com o que for feito. Mas s como uma certa oferta de

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    possibilidades de chegada nesse lugar como um de seus habitantes, que quer sever ali nas suas implicaes, naquele lugar em que no h como separar o joio

    do trigo, em que no mais possvel no se ver como constuinte e constudonesse mundo.

    Essa oferta feita com a inteno de ajudar a abrir para cada um de seushabitantes um olhar de si como mlplos, repedos e diferentes, considerandoa impossibilidade de s se agir sobre, pois est atado a uma exigncia: que aja come nesse mundo, junto com todos os habitantes que ali encontrar, que ocupam,tambm, como mlplos, repedos e diferentes as mesmas possibilidades depotncia de produo desse mundo na sua repeo e diferenciao. Desaoque, visto do lugar da educao, pode pautar a possibilidade de entend-la

    tambm como desaprendizagem.

    As imagens que ulizo para avanar e esclarecer essas intricadas questes so:

    O mundo do trabalho lugar de captura

    No surpreende ningum constatar que nas avidades produvas de qualquerpo - cozinhando, fazendo mveis, uma consulta mdica, uma ao burocrca,escrevendo um livro, entre outras - o trabalhador est submedo a uma certa

    normavidade que se antepe a ele no momento do ato produvo. Sem certosinstrumentos de trabalho, sem certas matrias primas, sem uma certa forma defazer, por a vai, no se chega no nal do ato produvo; e, de alguma maneira,sem uma certa anteviso da prpria avidade tambm no. Saber o que sequer produzir dado no ato.

    No mnimo, por isso que se diz que o mundo do trabalho um lugarde captura de aes produvas do trabalhador, pois ele est inserido nessesvrios dados a prioripara fazer sua avidade produva; e, sem dvida, caratento s innitas situaes possveis no mundo humano permite ver muito

    mais possibilidades de construes de capturas a que se est submedo comotrabalhadores, e pode-se mapear o quanto de repeo tem entre todos queesto no interior dele. Ser essa a nica e deniva marca desse mundo?

    O mundo do trabalho lugar de liberdade

    Tambm no se tem muita diculdade em perceber que em todo ato produvoexiste um certo jeinho de quem est trabalhando na hora da avidade produva.Mesmo em processos produvos muito normazados, como aqueles em que o

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    produto nico e dene o rumo dos atos produvos, olhando bem de perto,percebe-se que h variaes no modo de agir na hora da avidade produva

    dependendo de quem o trabalhador que est realizando aquela avidade.No so poucas as evidncias de que, mesmo em fbricas bem normazadas,

    a liberdade de agir do trabalhador, como que um certo escape dessa excessivanormazao, muita vezes o que possibilita a chegada do processo produvo abom termo. O que obriga a um reconhecimento de que, mesmo em situaes muitofechadas, pelo menos o clculo humano e a construo de caminhos estratgicos,como avidades mentais em ato para a ao, so sempre elementos-chaves.

    Isso bem mais forte em processos produvos mais abertos, nos quais se temdiculdade em ter um nico formato para o produto nal, como, por exemplo,em processos produvos da rea de servio que se realizam atravs do encontrode indivduos nos quais o produto nal depende claramente de quem compeo encontro, mesmo que tenha a presena evidente de muitas normas a seremseguidas.

    Os campos de prcas da Sade e da educao so bons exemplos da evidnciae da importncia dessa ssura de liberdade que h no mundo capturante dosprocessos produvos. Como ser que essa tenso entre captura e liberdadeopera ou abre desaos para quem se debrua sobre os processos produvos?

    Talvez chegar um pouco mais de perto na dinmica do trabalho possa ajudar.

    O mundo do trabalho habitado pela tenso entre otrabalho morto e o trabalho vivo

    Quando se est na realizao de um processo produvo, h a presena decomponentes de natureza bem disntas, entre os quais vale destacar aquelesque entram nesse processo como produtos de um trabalho anterior. Esse ocaso de uma mquina, de um conhecimento que o trabalhador j tem e usa

    para o seu trabalho, das regras que h na organizao desse trabalho, queso produzidos por processos produvos anteriores e se apresentam agora jcomo produtos. Esses produtos que esto em um processo produvo como umelemento meio para serem ulizados nele so denominados de componentetrabalho morto (TM) desse processo. Isso disngue-os do componente quecompe o ato ao vivo dos trabalhadores o componente trabalho vivo (TV) doprocesso produvo - que est nesse processo e sem o qual o outro no temsendo nenhum, no age produvamente.

    Todo conjunto de atos produvos carrega em si uma tenso constuva entre

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    os componentes TM e TV, pois as possibilidades de uso do componente TM solimitadas (uma mquina que fabrica uma certa pea no consegue produzir

    outra) e as do componente TV so mais abertas, pois os trabalhadores, na formaem ato de ulizar o TM, podem dar outro sendo para esse componente. Isso mais evidente quanto menos material for esse componente TM, como ocaso do conhecimento como elemento meio de um processo produvo, quepode ser manejado pelo TV em ato do trabalhador de modos muito abertos.

    Assim, tambm vale a pena disnguir elementos materiais mais duros (asmquinas, as estruturas sicas) dos materiais mais leves (conhecimentos tecno-lgicos) e outros mais leves ainda (os que s se apresentam para o processoproduvo no ato do TV). Olhar e mapear os processos produvos pela composio

    e arranjos desses componentes e elementos, e as formas como se arculam parafuncionarem produvamente, permite-nos ver tenses e disputas operandono codiano dos processos produvos e dos jogos de captura e liberdade que oshabitam; alm de abrir uma certa noo de que h processos produvos maispermeveis presena do TV em ato do que outros. esse o caso dos trabalhosna Sade, produtores de cuidado, e, na educao, produtores de formao.

    O mundo do trabalho polifnico e polissmico

    Perceber a presena de muitas vozes ali no codiano do trabalho algo queno parece muito dicil se carmos bem atentos quandade de rudos queso produzidos em qualquer processo produvo. Considerando o rudo comouma expresso de desencontros na busca de processos comunicavos entreos que compem uma organizao produva, h vrios exemplos que podemexemplicar como essa produo de rudos presena permanente de qualquerambiente organizacional, na base do qual agem tensamente TV e TM e muitosatores / sujeitos da ao.

    Um dos mais evidentes so os rudos produzidos pelos agentes organizacionaisnas formas de ocupao e ao dos espaos formais e informais que existem;alis, esses rudos so mais do que isso, ao se ver que os espaos informaisso abertamente produzidos pelos agentes, com seus trabalhos vivos em ato,como que fundando permanentemente aes de governos paralelos em relaoquelas que se realizam nos espaos formais de uma organizao.

    Mapear a existncia e a inveno de espaos informais e os sendos que soproduzidos neles uma boa forma de enxergar o quanto polifnico e polissmico o mundo do trabalho. E o que isso nos indica? No mnimo que esse mundo

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    tem elementos em aberto, no capturados, trabalho vivo em ato dependente,e que se expressam como tenses e disputas pelo seu sendo. Somado esse

    mapeamento ao anterior, pode-se aproximar da noo de quanto o mundo dotrabalho cartogrco, dependente dos modos e maneiras de agir do trabalhovivo em ato de cada um e de todos nos seus encontros; e, como tal, construtortanto de espaos de liberdade onde h captura, quanto de novos sendos ondeh foras com ambies unicistas.

    O mundo do trabalho habitado por disputas micropolcase tecnolgicas

    Quando est acontecendo o ato produvo, h produo de encontros demuitas ordens, muitos dos quais so inclusive imprevisveis, criando desaospara o agir em ato operado pelo trabalho vivo. H tambm muitos encontrosprevisveis e obrigatrios para que certas intenes dos atos produvos serealizem. Por exemplo, no mundo da produo do cuidado, h que se realizaressa intencionalidade portada a priori tanto pelo trabalhador quanto pelousurio do seu trabalho; bem como, nesse encontro entre trabalhador e usurioou entre trabalhador e trabalhador para operar essa produo, - previsvel e qued sendo para esse po de trabalho - h a produo de situaes em ato nos

    encontros, com jogos de relaes de poder entre todos que abrem o agir paraimprevisibilidades, que no podem ser manejadas a no ser em ato, e, portanto,pelo trabalho vivo em ato de cada um e de todos ao mesmo tempo, como umgrande acontecer.

    A mulplicidade habita esses encontros e convive com a previsibilidade.Nessa cartograa dos encontros, nas suas tenses entre o que tem que ser eo que pode ser, o mundo do trabalho torna-se lugar produzido e em produo.Nesse movimento, aponta-se como elemento importante a ser mirado a tenso

    entre um agir tecnolgico, no qual est dada a inteno nal do ato, e as aesproduvas que devem seguir um sendo dado para a produo, e um outro agirque s se dene no imediato do acontecimento do encontro e no qual no hsaber apriori- ou seja, no h TM j dado em geral - que consiga determin-loou mesmo denir uma chegada dada apriori, como no anterior.

    Como consequncia disso, no h mundo do trabalho que no seja umadisputa permanente entre lgicas produvas e, mais, no h mundo do trabalhoem que essa disputa possa ser anulada, o que exige sempre o manejo de muitopoder por parte de quem quer impor uma nica lgica para o mundo produvo.

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    E, ainda, quanto mais habitado por muitos e disntos pos de operadoresproduvos, mais aberto a tenses e disputas esse mundo se encontra. Por isso,

    os mundos da produo do cuidado e da formao so sempre or da pele.Deve-se car atento tambm ao que acrescentam nesse po de mundo as

    disputas que os usurios podem operar. Quando os usurios se relacionamdiretamente com os atos produvos, no havendo separao entre produo econsumo, em relao ao usurio nal, o nvel de tenso e disputa ampliado,pois esse novo territrio de subjevao - os usurios - passa a tambm comporos sendos dos atos produvos em si. Veja que em um mundo do trabalhono qual o usurio virtual, pois s se relaciona com o consumo do produtonalizado, essa tenso e disputa esto bem mediazadas e so mais manejveis

    a parr do mundo produvo.

    Nesse amplo jogo, chamo a ateno para uma outra questo que esta embuda: no h separao entre gesto e atos produvos, ou seja, nomundo do trabalho, todo mundo governa,e no s os governantes formais,como se costuma imaginar; alis isso j poderia ter sido percebido quando faleianteriormente de governos paralelos nas organizaes, que so construdos econduzidos pela produo dos espaos instucionais informais.

    O mundo do trabalho em Sade, que promete a produo docuidado, uma cartograa do trabalho vivo em ato

    No encontro entre uma equipe de trabalhadores de Sade e os usurios, ha promessa, socialmente construda, de que ali ser processada a produo docuidado, seja o que isso possa expressar para cada um que esteja nesse encontro.

    No so poucas as diferentes formas de referenciar, para disntos compo-nentes de uma sociedade, o que seja Sade e cuidado; entretanto, para qualqueruma delas, h sempre uma certa forma de se desejar com isso um certo

    modo de andar a vida. Modo esse que varia amplamente em sendo conformesubjevaes que se operam nesses disntos componentes. H aqueles para osquais andar na vida ir e voltar de uma jornada de trabalho; para outros, fazerconexes com outros viventes - e ponto.

    Nesse ponto dos encontros entre a equipe e os usurios, j operam emaberto muitas possibilidades produvas, pois a prpria nalidade do encontroencontra-se em disputa. No bastasse isso para mostrar o quanto esse mundodo trabalho trabalho vivo em ato, h ainda as vrias alternavas tecnolgicasde dar sendo a algumas das possibilidades produvas desse mundo. Ou seja,

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    construir caminhos tecnolgicos que permitem apostar em certa produode vida e no em outra. E, a, entram em jogo as muitas possveis tecnologias

    no duras que conduzem essa produo, como: os saberes tecnolgicos quecompem o campo da clnica e os modos de conduzir em ato os encontros comorelaes de poder entre e sobre a vida dos que ali esto, sejam usurios, sejamtrabalhadores.

    Nessa direo, que aponto a seguinte ideia que elaborei em uma conversacom Flvia Freire, em uma discusso sobre o que h de muito peculiar no mundoda produo do cuidado em termos de capturas e liberdades, no campo dosagires, tecnolgicos ou no:

    O raciocnio que, em um encontro no qual se promete

    a produo do cuidado, o que marca como referente sim-blico o campo da Sade, h transversalizaes de muitosplats de produo de vida que no podem ser tomadoscomo objeto desse campo; e outros que podem, ao seremcapturados pelas aes que aquela promessa procura operarnesse encontro, atravs de aes produvas conduzidastecnologicamente. Nesse processo de produo do cuidado,ento, h uma tenso entre a possibilidade tecnolgica ea no tecnolgica do encontro realizar certas promessascomo a produo de uma ao terapuca; pois esse en-

    contro abre-se para produes intencionais cujo efeito aterapuca como nalidade, mas tambm para produesque tm efeito terapuco, mesmo que no seja intencional,na medida em que o encontro no mundo da produo docuidado tem todas as transversalizaes operando sobre oprocesso autopoico de produo de vida, que mlploe no obrigatoriamente capturado por agires tecnolgicos.

    Por isso, Castoriadis disse que, em um processo analco,nem toda a teoria do mundo permite dar conta dos acon-

    tecimentos que a operam. Nessa medida que falo queuma residncia como moradia tem efeito terapuco noprevisto.

    Se essa cartograa da produo do cuidado ca clara,pode-se colocar nela o lugar e a promessa que a clnica faz,bem como qualquer outra lgica de biopoder como podersobre a vida e da vida, que o que a clnica , enm. Ela nopode escapar disso, por mais ampliada que seja. E isso noquer dizer que ela no seja um elemento do agir tecnolgico,leve-duro, fundamental, pois o modo como ela opera abre

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    ou fecha, como um pulsar, as outras transversalizaes

    conectadas com a autopoiese da vida.

    Por isso, importa, sim, perguntar que clnica fazemos ouqueremos? Por isso, possvel entender a clnica tambm

    como disposivo agenciador de subjevaes.

    Neste sendo, importante fazer perguntas para qualquer po de incor-

    porao de saberes tecnolgicos que se est realizando no ato da produodo cuidado e coloc-lo em anlise co-polca interrogando em que po de

    produo de vida se est apostando, com quem e como. S desse modo pode-se

    compreender por que h fracasso terapuco em lugares em que s se esperasucesso e o contrrio, onde imagina-se fracasso.

    Veja que no evidente, pelas teorias mais predominantes do trabalho em

    Sade, que valoram o lugar determinante dos saberes e das tecnologias duras,pracamente desconhecendo as tecnologias leves, produes do trabalho

    vivo em ato produzidas, o porqu h tanto fracasso terapuco no cuidado aotuberculoso, se tudo sobre a doena e sobre os cuidados medicamentosos

    muito conhecido. Pode-se fazer bem os diagnscos, alm de haver arsenais

    anbacterianos potentes. No entanto, o fracasso inquesonvel. Mas, ao seolhar como os processos relacionais so produzidos nesses processos de cuidado

    entre as equipes de trabalhadores da Sade e os doentes-tuberculosos, d paraimaginar que no h muito o que duvidar, se o chamado doente abandonar

    o tratamento. A no produo de acolhimento, vnculo e responsabilizao,

    dentre vrias outras possibilidades de produes do trabalho vivo em atorealizadas, leva a um conjunto de aes do usurio do trabalho em Sade que

    opera a construo do resultado: fracasso terapuco. Por outro lado, no seconsegue explicar por que tantos hipertensos, mesmo sem frequentar redes de

    cuidado ociais, so conduzidos e se conduzem rumo a sucessos terapucos.

    H perspiccias no viver que tm sido pouco compreendidas nos modelos atuaisde conduo do trabalho em Sade, centrado nas tecnologias dura e leve-dura.

    Para alargar e autointerrogar o que efevamente se est fazendo com as aes

    tecnolgicas e ampliar a possibilidade de compreender os efeitos terapucos dosencontros dos trabalhadores com os usurios no mundo do trabalho em Sade,

    para alm das possibilidades do universo das aes tecnolgicas, a incorporao

    de uma viso cartogrca da produo do cuidado, como territrio do trabalhovivo em ato, abre a construo de processos colevos de autointerrogaes dos

    que ali esto constuindo-a e ali esto sendo constudos.

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    CADERNO SAUDE MENTAL 3 - SADE MENTAL: OS DESAFIOS DA FORMAO

    O mundo do trabalho na Sade pede a desaprendizagempara poder apreender novas lgicas produzidas pela

    perspiccia do viver

    Criar situaes individuais e colevas de autointerrogar o prprio sendo dofazer no mundo do trabalho - colocando como sua base a pergunta sobre o que fazcom o trabalho vivo em ato, para onde ele apontado em termos co-polcos(produz mais vida ou no) - traz tambm novas perguntas, como, por exemplo, oque se faz com o que j se sabe fazer e com o que se acha que se deve fazer sobreou junto com os outros, com quem se encontra no mundo do trabalho.

    Perguntas que podem implicar em trazer esse outro para uma composioconjunta de um modo de realizar os atos produvos, que no mais comportamo que j se tem de formatado para esse outro, mas sim o que se pode realizarem ato junto com ou mesmo para uma abertura que permita ver esse outro jem movimento de produo de um viver, e assim ressignicando o que j sesabe, de forma que uma certa doutrina a ser seguida passa a ser posicionadacomo ferramenta para compor uma ao de interseo, ou seja, que se constuino encontro com o outro, e s com esse outro, em encontro, existe. Signicaabandonar o impulso de seguir uma ordem e dar ordens no fazer a produo

    do cuidado.Com isso, talvez se seja levado a interrogar como construir, em interseo

    com esse outro em ns e vice-versa, a desaprendizagem e, assim, colocar aspossibilidades de ocupar esse vazio produzido com novos sendos e lgicasconstrudas ali em ato nesses encontros-acontecimentos, nos quais est imersonos trabalhos, intensamente, o trabalho vivo em ato, como o o da Sade etambm o da educao.

    Isso implica colocar entre parnteses, parafraseando Basaglia, o sabido a

    priori que h nesses campos de prcas, para deixar vazar em cada um e nosoutros a nova constuvidade que se tem ao se construir com o outro novaspossibilidades para os modos de andar a vida, tomando como base os processosde viver que, de modos perspicazes, so construdos de maneira efeva porcada um e por qualquer um. Isso permite ser afetado por essas perspiccias e seautointerrogar, inclusive como colevo que se .

    A chance de que se venha a conectar novos processos de produoautopoicos de vida alta, mas nunca uma garana e uma obrigao. O operarem alteridade com o outro na produo do viver implica sempre um disputar,

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    sempre uma tenso. Mas o que interessa aqui a possibilidade da sua expressoem ato no prprio processo de conduo dos modos de viver e as interrogaes

    parlhadas que isso pode provocar pela prpria perspiccia do viver em colevos.Viver uma sabedoria que amplia suas oportunidades nos encontros com osoutros em ato, que tambm vivem.

    Talvez essa seja a plataforma bsica que os trabalhos no campo da Sade e daeducao devam ter como seu fundante e a estaquear suas bases co-polcaspara a ao.

    Agir com o outro na interseo dos encontros que ali operam, produzindomodos de viver, talvez seja o sendo mais interessante desses trabalhos. Colocaros saberes tecnolgicos a servio disso no interior dos atos produvos talvezseja a grande apreenso possvel para quem procurar desaprender os modospredominantes desses campos de prcas, se realizarem, hoje, quando a vidavirou um objeto de manejo e no uma conexo autopoica no mundo, comoproduo coleva.

    Guaari, no seu 3 Ecologia, j alertava, a todos, e de forma intensa, sobreessa busca de um novo paradigma co-estco para ser-estar no mundo, hoje,ao pautar a necessidade de uma construo ancapitalsca no modo de ser;ao enfazar a aposta radical na produo da vida em escala planetria e no na

    morte, em cada conexo que se zer.

    Desao nal

    De posse dessas imagens analisadoras, pode-se olhar de modo mais vibrlo mundo do trabalho onde se est e no qual se chega. Obriga-se a mirar o queso os outros em cada um de ns e para ns, levando cada um a se ver nooutro de modo implicado atravs dessas imagens-disposivos e se desconstruir- construindo novos sendos para estar ali e agir ali como seu constuinte. Pode-

    se assim fazer escolhas de vozes, de capturas e liberdades, pode-se escolheralguns territrios de implicaes, pode-se, entre tantas possibilidades, escolheralgumas que nos encarnam: apostar na produo da vida de modo solidrio ousolitrio. Viver e morrer de modo prudente, sem conduzir produo de morteno outro. Por m, convoco cada um a construir suas imagens-disposivos parase ver e andar pelas perspiccias que cada um constui no mundo do trabalhoda educao e da sade, lugar centralmente operado pelo trabalho vivo em atoe s existente na interseo do encontro com o outro.

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    CADERNO SAUDE MENTAL 3 - SADE MENTAL: OS DESAFIOS DA FORMAO

    A INSTITUIO DO NOVO:

    PREPARANDO O TRABALHOCOM A COISA MENTAL

    Marcus Vincius de Oliveira

    Bom dia a todos e a todas. Quero dizer que uma sasfao muito grandeestar aqui nesta Escola, agradecer a Ana Marta, bem como equipe da Escola peloconvite, sempre genl, sempre laborioso, para trabalhar, para fazer coisas, paracolocar o pensamento em movimento. Considerando o tempo curto, vou fazerao modo do Emerson: lanar algumas teses relavas ao modo como os aspec tosbsicos da formao chegaram ao meu recenseamento, destacando o que nopoderia deixar de ser dito quando se trata de selecionar aspectos bsi cos.

    Uma primeira questo que sempre me preocupa: aqueles que militam nocampo do instuinte, que militam no campo da produo de uma alternavaao que est j estabelecido como sendo a realidade, buscando instuir ossaberes e prcas que so candidatos realidade, aqueles saberes e prcasutpicos necessrios para darmos um nome para essas coisas que produzimos,concorrem em condies muito desiguais com os saberes e prcas j estabe-lecidos e hegemnicos. A mera invocao de uma pretensa superioridade dassuas racionalidades ou da sua ca, ainda que seja bom argumento, no lhes

    garante passagem. Portanto, sobre esses saberes e prcas que so candidatos realidade recai todo o nus da viabilizao daquelas condies polcas vitaispara sua autoexpresso. Mais do que a fora da sua racionalidade, ser suacompetncia estratgica que permir o seu estabelecimento.

    Estou querendo dizer que o nosso negcio esse. instuir um real que noexiste. E ns no podemos reclamar das diculdades ou reivindicar passagem sporque ns temos um real que achamos que muito mais interessante para seinstalar, um devir muito mais interessante para oferecer para a humanidade.

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    Quem tem um devir muito mais interessante que o demonstre: isso implicaque ns sejamos estratgicos. A competncia polca, portanto, deve ser um

    dos recursos fundamentais para que ns possamos estabelecer esses saberesinstuintes na condio de instuio. E, depois que eles se instuem, precisotomar muito cuidado.

    Vejam, por exemplo, como uma noo to interessante, que a noo deCAPS, quando ela efevamente vai se consolidando, se instuindo, vai tambmse burocrazando, se cristalizando. Ento, esse processo instuinte-instudo um processo ao qual ns temos de estar permanentemente atentos, sabendoque isso depende de uma grande competncia polca e de uma permanenteatude de crca.

    Uma outra questo que eu queria trazer uma interrogao acerca dessesignicante Sade mental, at porque o seminrio chama-se Sade Mental:os desaos da formao. Quero dizer que, embora muitas vezes ulizados demodo indisnto, os campos da Sade Mental, da Reforma Psiquitrica e da lutaanmanicomial, apesar de se sobreporem em algumas esferas, porque tm emcomum, em graus disntos, a problemca relava existncia do manicmioe suas consequncias, no se confundem. Por isso preciso sempre frisar queeles so campos que tm origens disntas, escopos diferentes e so formados

    por saberes que no se equivalem.

    Estou querendo dizer que muitas vezes ns usamos indisntamente ostermos Reforma Psiquitrica, Sade Mental, luta anmanicomial como sefossem absolutamente orgnicos e fossem apenas uma derivao semnca damesma coisa. Eu quero pensar que ns temos que apurar um pouco quais soas questes que esto por detrs dos projetos da Sade Mental, da ReformaPsiquitrica e da luta anmanicomial. Para assim disnguir, bvio, aquelespontos que so convergentes, aqueles pontos que so comuns, mas tambm

    para sinalizar e localizar aquilo que no transfervel ou aproveitvel de umcampo para outro.

    Ainda outra ideia. Embora os fenmenos relacionados loucura e aioencontrem-se fortemente inscritos no campo sanitrio desde o sculo XVIII -sobretudo a parr da Lei dos Loucos que, em 1838, na Frana, deu Medicina ahegemonia e o domnio legal sobre a loucura - por mais que se amplie o conceitode Sade, haver sempre algo de inadequado nessa inscrio. Estou querendodizer para vocs que eu penso que a inscrio da problemca da loucura e daaio no campo da Sade tem sido e ser sempre uma inscrio problemca.

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    CADERNO SAUDE MENTAL 3 - SADE MENTAL: OS DESAFIOS DA FORMAO

    H, no conceito de Sade, uma dimenso que se enreda com a produode ordem, que ineliminvel. Mesmo que consideremos, como Canguilhem

    ou como o nosso Emerson Merhy, a ideia da anomalia ou a ideia da produoda autorregulao como uma das caracterscas da Sade, mesmo queconsideremos conceitos avanados de Sade, h algo no conceito de Sadeque torna este espao, o campo sanitrio, como um campo problemco para omanejo do tema da loucura, da aio, da desorganizao.

    Estou querendo rearmar uma ideia, que sempre trago, de que esses temasesto ligados com a temca da cultura, e bvio que a Sade faz parte dotema da cultura, mas, radicalmente, ns estamos falando de mudana etransformao cultural. E a os recursos interpretavos do campo sanitrio tm

    sempre um limite; mesmo que tenhamos uma antropologia mdica, mesmoque tenhamos uma etno-psiquiatria, sempre h um limite na transferncia dasquestes que so do campo sanitrio para o campo da cultura.

    A Sade uma forma de estruturao dentro do campo da cultura. E, comotal, talvez ela no seja um campo to favorvel ao desenvolvimento de conceitosque pensam o tema do transbordamento, da desorganizao paroxsca, comocoloca o tema da loucura. Ou seja, a tendncia da Sade vai ser sempre produziruma certa constrio para a loucura. O tema da cultura tambm produo deconstrio para a loucura, mas, no campo da Sade e de seus compromissos coma ordem, essa constrio recebe formas especcas; eu tenho a impresso deque o Merhy tocava nisso quando disse que a preeminncia desse segmento queaposta e investe nessa dimenso a preeminncia de um segmento nidamenteligado s prcas de controle.

    Quero ento trazer uma outra ideia: a de que os saberes mdicos e psicolgicosque foram produzidos historicamente em torno da loucura e da aio devemtodos ser colocados em suspeio a parr de seus efeitos histricos prcos. Querdizer: ns temos pouqussimas coisas instudas de saber mdico-psicolgico

    que meream ser levadas a srio quando se trata da desinstucionalizao daloucura. Haja visto que durante a sua instuio, por mais de duzentos e tantosanos, esses saberes produziram o que produziram: a excluso da loucura, o seumanejo manicomial, converda em desvio e doena.

    Ento, se queremos produzir outra coisa, como fazemos agora, sua produopressupe uma coragem para negar esses saberes como sendo capazes e ade-quados para lidar com o nosso campo de problemas. Isso no novidade. Quemfez isso com brilhansmo e nos ensinou assim foi Franco Basaglia, que armavaser fundamental negar o saber estabelecido, porque ele at agora estabeleceu o

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    que estabeleceu. Se a Psiquiatria colocou o homem entre parnteses em nomeda doena, preciso colocar entre parnteses esse saber em nome do homem.

    Ento, isso traz a questo de que vamos operar neste campo novo quequer se instuir, neste projeto utpico - que para mim o projeto da lutaanmanicomial, j que acredito que ns podemos ter reformas psiquitricasmuito compaveis com a ordem das Sades mentais; no entanto, o que achodicil de ser compavel com a ordem essa tal luta anmanicomial.

    A luta anmanicomial o espao dentro dessa geograa que problemaza ainscrio da desorganizao no mbito da cultura. E s ns fazemos isso de caraaberta, de peito aberto. S ns dizemos claramente para a cultura: no, o sujeitono precisa remir todos os sintomas para ter direito assistncia plena comocidado no mbito da comunidade. S ns dizemos: no, ns temos que aceitarque a sua dimenso desorganizada, mesmo se inconforme com as prcas e oscostumes, possa ter lugar. E s ns pedimos, exigimos da cultura, que ela abraespao para que a loucura possa ter cabimento.

    Queria marcar que disngo isso como algo que , digamos, o que ns temosde diferencial enquanto luta anmanicomial. Esse um dos nossos diferenciaisem relao a esse campo da Sade, a esse campo da Reforma Psiquitrica ea esse campo da Sade Mental. Sade mental muito problemco. Muito

    problemco! O conceito de Sade mental um conceito que ns manejamos,porque, de alguma forma, l que esto inscritas as verbas do Ministrio daSade, a pesquisa do CNPq e os comits todos - mas Sade mental uma ideiamuito problemca.

    A maior parte das coisas que se produzem na Sade Mental so ideias muitoproblemcas. So sempre de grande conformidade com a ordem instuda.So ideias da produo de estados disciplinados, de estados ordenados dentrode certas dinmicas sociais muito lineares, caretas, e s vezes muito chatas.Instrumentais e perigosas no sendo da sua inteno de produzir o bem para

    as pessoas. Estar com a Sade Mental no me parece s vezes muito legal.

    Bem, a vem ento mais outra dimenso, dentre as coisas a se ensinar e a seaprender no preparo para o trabalho com a coisa mental. E essa expresso,quero registrar, aprendi com a nossa querida Ana Marta Lobosque, e gostomuito dela por ach-la precisa na denio das tarefas denominadas como asde formao dos prossionais. verdade que no tenho ouvido muitas pessoasusando essa expresso, mas eu connuo achando que a melhor forma de dizerdo problema que ns estamos tratando aqui. Como que se prepara algumpara o trabalho com a coisa mental?

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    CADERNO SAUDE MENTAL 3 - SADE MENTAL: OS DESAFIOS DA FORMAO

    Coisa mental uma expresso muito boa, porque consegue car se esguei-rando da inscrio nos campos disciplinares da psicologia, da psiquiatria, da

    psicanlise. Consegue manter esse fenmeno, de alguma forma, num jogo deesquiva com a tentava de captura desses saberes. Pelo menos, assim eu tenhome denido: estou me dedicando atualmente a invesgar, a contribuir com osprocessos de preparo para o trabalho com a coisa mental.

    Estou tomando essa questo do preparo para o trabalho com a coisamental como uma tarefa de inveno, j que os saberes que esto a so muitoimprestveis, a maior parte dos saberes tradicionais produzidos no campomdico e psicolgico muito pouco l para fazer o que ns precisamos fazer.

    Ento, ns precisamos buscar outras fontes.

    Primeiro, ns inventamos um bando de coisas. Estamos aqui diante deum inventor de um monte de coisas, estou me referindo ao Emerson Merhy.Todo dia ele inventa uma palavrinha nova; eu parcularmente gosto muitodas palavrinhas que ele inventou, como as tecnologias leves. um grandeachado, uma ideia interessanssima para falar de uma inveno, do que quens fazemos. Vejam s: tecnologias leves so fundamentais para o preparopara o trabalho com a coisa mental. Vejam que fantsco! Olha que frase queningum enquadra em lugar nenhum: tecnologias leves para o preparo para o

    trabalho com a coisa mental.Acho que esse o desao. Esse o desao de produzir teorizao.

    achar formas de dizer que no sejam capturveis nos discursos que j estoestabelecidos, e que eu acho que h muito pouco neles que sirva para aquilo queprecisamos fazer, para as necessidades que temos. Um dos temas desse preparopara o trabalho com a coisa mental que tem me chamado a ateno aqueladimenso que pressupe uma habilidade, uma competncia, uma capacidadedos tcnicos, dos operadores, que eu tenho chamado de tecnologias relacionaisbaseadas nos manejos vinculares.

    Ento, tecnologias relacionais baseadas nos manejos vinculares: se vocsforem ver, boa parte do que precisamos para o trabalho com a coisa mentalest relacionada com tecnologias relacionais. Tecnologias em que se usa relaopara manejar, a parr do vnculo, interesses e direes os mais variados.

    Elas so a condio para aquilo que o Merhy nos trazia, de colocar o outrocomo outro, de ser afetado pelo outro. S nessa ideia de tecnologias relacionaisbaseadas em manejos vinculares, eu permito que o outro esteja diante de mim,como outro, ou pelo menos que eu me coloque na obrigao de estar como outro

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    diante do sujeito. Ento, essa noo da produo de alteridade na relao comoum dos fundamentos bsicos - pois ns estamos falando de coisas bsicas - parece

    simples, mas, na hora em que vamos preparar algum para estar na con diode alteridade diante dos seus assisdos e, portanto, oferecer aos seus assisdospara alm do melhor de si, vemos que se trata de uma coisa muito dicil.

    Ser autoridade fcil. Autoridade, todo mundo sabe, sabe dizer: Eu tenhoum diploma de mdico, de psiclogo, de assistente social, e dizer: Faa issoe aquilo, eu sou tcnico neste assunto. Carteirao todo mundo sabe produzir,todos ns sabemos fazer. Agora, colocar-se no lugar de alteridade, colocar-se nolugar onde o outro efevamente produz em mim uma afetao, um pouco maiscomplexo, e eu acho que talvez seja uma das questes. Tenho me perguntado

    como que preparamos as pessoas para essa funo, para esse lugar, para esseexerccio. Como preparar, nessa dimenso que envolve deslocamentos subjevosimportantes como uma qualicao fundamental dos trabalhadores? E vejoque, sem isso, ns no operamos naquele mbito que ns tradicionalmentechamamos de clnica.

    No operamos uma clnica capaz de fazer a gesto dessa loucura em outrasbases. Porque a sociedade, eu j disse uma vez, no sei se foi nesta Escola mesmo,no quer nem saber se manicmio ou se CAPS. Alis, eu digo, ela prefereeste, sim. Ela prefere que seja CAPS. Ela prefere, porque, como Freud disse: nsgostamos de pensar, como humanidade, que ns somos melhores do que nssomos. Quando ela prefere CAPS, adere a uma ideia liberal, e ns gostamosdas ideias liberais. As ideias liberais chegam muito mais tranquilamente. Nsgostamos de pensar que ns somos liberais. Ento, ns gostamos dessa ideia.Tudo que for light, so, ns gostamos. melhor do que as coisas que so duras,repressivas. Ento, ns temos a uma direo, no sendo de que a sociedadeprefere CAPS, mas, no nal das contas, a sociedade no faz dessa sua prefernciauma questo muito importante.

    O que ela quer que ns faamos uma gesto do transtorno, das ressonnciassociais derivadas da produo da loucura. E como que vocs, os tcnicos, vofazer isso, no um problema para a sociedade, j que, diante da desorganizaoda loucura, ela quer saber mesmo dos efeitos das nossas intervenes:

    Vocs faam a! O que espero de vocs, que tm um mandato social comotcnicos de serem gestores das dissonncias sociais produzidas pela loucura, que vocs mantenham esse sujeito na ordem. Como vocs vo fazer problemade vocs. Prero que vocs faam de uma forma so; se no ver disponvelou no for efevo, lancem mo das camisas de fora, da cela, lancem mo do

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    que for. Mas eu no quero o doido perturbando a famlia, perturbando acomunidade.

    Ento, eu considero que podemos exercer essa nossa competncia para fazeruma gesto das ressonncias sociais provocadas pela presena transbordanteda loucura de uma forma mais pesada ou de uma forma mais leve. Assim,penso que ns devemos assumir, sim, essa conscincia de que algo em nossotrabalho estar sempre compromedo com certa gesto da ordem, porqueseno as pessoas na sociedade vo dizer: se vocs no so capazes de dar contade fazer essa gerncia social da presena dos loucos na comunidade com suasmetodologias e tecnologias democrcas e inclusivas, ento vocs no precisamexisr e vamos lanar mo das velhas e ecientes solues segregavas.

    Ento, preciso registrar que o nosso desao o de produzir um po deinterveno, que se ocupe conscientemente e estrategicamente de uma reexoe prca acerca deste lugar contraditrio dos agentes tcnicos do trabalho coma coisa mental, e que, creio, nos encaminharia para um campo de tomadas deposio referidas numa eslsca da existncia.

    Opes que muitas vezes situam-se entre ser o menos constringente e o maislibertrio possvel, mesmo quando a tarefa, quando a expectava social forte, nosremete a um papel inevitavelmente inscrito em algum projeto de normalizao

    e ordem. Faz toda a diferena se voc um mero servidor da ordem, ou se voc,sabendo que o lugar em que voc est inscrito um lugar de servidor da ordem,exercita ao mximo as contradies com a ordem.

    E, se, neste mandato de produo de ordem, voc organiza um po de cuidadomovido pela crca, voc exercita o aspecto contraditrio do seu mandato social,de produo de ordem, para produzir outras coisas: vida, liberdade, expansodos sonhos, criavidade, arte, cultura, teso, o que for. Voc recria e cria novaspossibilidades e espaos para esse fazer; e, ao estar no lugar em que a sociedade

    espera que voc esteja, voc est de uma forma diferenciada.Existe uma grande variao possvel de desempenhos no mbito da esfera

    de deciso pessoal e intransfervel dos agentes tcnicos, num espao onde asua autoridade social lhe confere um poder de escolhas, s vezes bem objevas,s vezes bem sus, e existe um gradiente a ser explorado nessa liberdade deproduzir coisas diferentes. Produzir o diferente num espao de limites, porquens tambm vamos ter que produzir com os sujeitos dos quais cuidamos certasinscries que os tornem tolerveis socialmente. Ou convencemos a sociedadea ampliar a sua tolerncia, e com isso ns permimos que o sujeito tenha um

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    espao de liberdade um pouco maior, ou exercitamos a tolerncia zero e vamosser agentes acrcos da ordem e da tolerncia zero.

    Fico pensando como essas questes remetem muito a uma dimenso deuma ca polca. Fico tambm ansioso em torno dessa tarefa de prepararpessoas para esse trabalho, em produzir uma forma de transmisso organizada,o mais autonmica possvel, sem fazer doutrinao, sem dizer que assim ouassado, sem frmulas prontas, sem criar uma seita, ou uma nova religio terica.Como vamos produzir a transmisso dessa ca, dessa postura polca, dessaaprendizagem que lana os sujeitos num gosto pela inveno, pelo sul, peloinstvel, como uma das caracterscas da clnica ou do cuidado?

    Minha experincia diz que as pessoas se apaixonam quando elas descobremque elas podem fazer coisas novas, que armam que a vida vai se transformar,que isso encanta, e que esse o combusvel que acaba ensinando para aspessoas que ns podemos, sim, ter um outro modo de lidar com os loucos. E queesse outro modo muito mais legal, interessante, curioso, criavo, feliz. E quens at connuamos ganhando pouco, trabalhando muito, mas nos diverndobastante... nos gracando, porque estamos fazendo uma coisa bacana.

    Ento, imagino que esse ponto um ponto de ancoragem importante e queele de natureza ca e polca. E a ns temos que pensar como que os

    diversos espaos onde esse preparo poderia se dar seriam capazes de trabalharcom essas questes. Como que isso pode entrar na tal da formao, j queformao sempre algo de colocar na forma, mas tambm, na maioria dasvezes, na frma? Como que criamos oportunidades para que as pessoasvivenciem isso?

    E ento eu ainda vou falar uma lma coisa. Ns temos um problema com asteorizaes. No estou defendendo aqui um mundo a-terico, de um empirismobruto, em que tudo feito na pura experimentao. Deve haver um lugar degrande importncia para a teoria. Ento, talvez a questo seja: de que po de

    teoria ns precisamos? Eis a questo! Que po de teorizao ns precisamos?Qual a nossa priorizao com as relaes concretas e com a realidade emprica?Qual o lugar que a teoria ocupa, no a priori, no a posteriori, ou durante o ato?Qual seria, enm, o lugar da teoria?

    Penso que - e mais uma vez vou citar o Emerson Merhy, que, mais do queum companheiro que est aqui presente, tem para mim o status de refernciabibliogrca, e sempre dicil citar as referncias bibliogrcas quando elasesto de corpo presente, e, portanto, mais cuidadosamente eu vou dizer - osconceitos so da ordem das tecnologias leves. Ento, no qualquer coisa. Ter

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    uma ideia sobre acolhimento, por exemplo, ou ter a noo de transferncia,faz toda diferena nas tecnologias relacionais que manejam os vnculos. Faz toda

    diferena que essas ideias estejam disposio das pessoas. Agora, ns temosque saber em que momento e como elas esto disposio das pessoas. Isso meparece ser um problema.

    Porque, se verdade que sem teoria no d para construir uma boa prca,pois ela ser sempre uma prca que no sabe sobre si mesma, situando-senum plano pr-reexivo, Basaglia, ao convocar-nos para uma certa negao dossaberes instudos no campo mdico-psicolgico, coloca uma imensa tarefa denatureza terica, ao dizer que muito pouco do que precisamos para o cuidadodestas existncias sofrimento est j produzido.

    Os saberes e as prcas devem ser avaliados historicamente pelos seusefeitos. Eles tm a oportunidade de dar-se a conhecer como ideias e comovida concreta. E Basaglia diz que muito pouco do que se produziu nesse campomdico e psicolgico em relao loucura serve para alguma coisa que noseja normalizao e segregao. Mas esses so os saberes que se encontramposivados, divulgados, difundidos, ociais, em sua manifestao como cinciae contedo da formao.

    Do nosso lado, temos produzido um conhecimento crco muito importante,

    mas que tem essa condio negava, seja pelo seu carter de saber sul,uido, seja pela sua condio de saber fundado na contestao. Ento, comoarregimentarmos um saber que tem essa qualidade negava? teoria, mas a teoria que tem uma qualidade negava. Negava por qu? Porque ela nose impe como um guia imperavo, mas est posta num lugar de orientaoda ao. Onde o sujeito se orienta pela ao e, ao mesmo tempo, ele colocaem questo essa ao e a orientao oferecida a ela. Quer dizer, crca eautocrca reexiva.

    Basaglia tambm insisa muito em que a forma de fazer essas invenes inventando e reendo sobre a prca. A anlise no tem que ser sobre oqu tal fulano, por mais importante que ele possa ser, disse sobre isso que euestou fazendo. A anlise deve ser daquilo que eu estou fazendo, e quais efeitos,quais consequncias, quais implicaes extraio enquanto eu estou fazendo.Da, como colocar a minha experincia em dilogo com o que j est escritosobre o assunto?

    O Emerson nos ensina o conceito de trabalho em ato e talvez possamospensar tambm em uma teoria em ato. Uma teoria que se produz como ato, e

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    no como estoque de ideias prvias: Meu pai me d 36, e eu calo 37, como diza msica do Raul Seixas. Quer dizer, o fenmeno tem que caber dentro da teoria;

    azar do fenmeno, ele que se encolha para caber. Se Fulano de Tal falou que assim, ento tem que ser assim. Portanto, esse modo de relao da teoria com aprca um tema basagliano por excelncia que seria importante para ns. Oomismo da prca versus o pessimismo da razo foi o que ele enunciou comolinha, e isso me parece muito justo.

    Essas so algumas ideias bsicas, como foi solicitado no tulo da mesa, econsidero que elas angem tanto a questo da formao daqueles que estoj na universidade, deformados ou formatados como o Merhy trouxe, comoa questo dos que saem da universidade e esto nos servios, muitas vezes

    perdidos, senndo-se ignorantes e sem saber o que fazer, fazendo