Caderno de Leituras - Chão da Feirachaodafeira.com/wp-content/uploads/2017/06/cad-67.pdf ·...

Click here to load reader

Transcript of Caderno de Leituras - Chão da Feirachaodafeira.com/wp-content/uploads/2017/06/cad-67.pdf ·...

A aventura da preciso:Caderno de Leituras em debate

textos

alice bicalho e andr brasil

Caderno de Leituras n.67

A AVENTURA DA PRECISOCaderno de Leitur as n .67 2

A aventura da preciso:Caderno de Leituras em debate

No dia 25 de abril de 2017, as Edies Cho da Feira realizaram um debate sobre a coleo de ensaios Caderno de Leituras. O evento aconteceu no SESC Palladium, em Belo Horizonte, com a participao de Alice Bicalho e Andr Brasil, professores da Universidade Federal de Minas Gerais, de Maria Carolina Fenati, editora da coleo, e de Jlia de Carvalho Hansen, editora de poesia da Cho da Feira e me-diadora da conversa.

Foi com a coleo Caderno de Leituras que a Cho da Feira comeou, em dezem-bro de 2011, e desde ento publicamos mensalmente um ensaio no site da editora. O acesso aos textos gratuito e a temtica muito variada: da teoria literria biogra-fia, da poltica ao pensamento vegetal, da filosofia ao testemunho. O que os rene o desejo de fazer da escrita e do pensamento experincias de risco, de incerteza, de diversidade e, ao mesmo tempo, de preciso. Nestes textos, o pensamento um faro, um instinto que busca na vida o entusiasmo, a surpresa, o imprevisto: com coragem e respeito, a escrita cruza abismos atenta erva que cresce nos vales, e salta entre picos muito altos, a escutar nuvens. Confiando no que escreveu Le Clzio um dia veremos que no h arte, to s medicina , este exerccio tambm busca de sade.

No dia 25 de abril de 2017, aniversrio da Revoluo dos Cravos, editores e lei-tores se reuniram para conversar sobre a coleo Caderno de Leituras, sobre suas propostas e alguns textos; e tambm sobre o ensaio, o pensamento ensastico (na literatura, no cinema) e as relaes entre escrita e experincia comum. Reunimos neste nmero os textos de Alice Bicalho e de Andr Brasil, a quem gostaramos de agradecer vivamente, assim como reiteramos aqui o nosso agradecimento aos mui-tos autores que desde o incio aceitaram publicar conosco. Aos leitores, dedicamos estas e todas as linhas que ainda esto por vir.

A AVENTURA DA PRECISOCaderno de Leitur as n .67 3

Plantas rasteiras: edio ensastica e a Cho da Feiraalice bicalho

Abriram a boca e uivaram ou saam-lhe mximas que, no seu estado bruto,

mais no so que fragmentos.

Dilogos com Lull

maria gabriela llansol

Caderno de Leituras n.43

[...] retirar do esquecimento aquelas obras que a prpria orientao da histria

vai deixando soterradas sob as runas do progresso.

Literatura, Defesa do Atrito

silvina rodrigues lopes

Experimento um ensaio sobre edio a partir do fazer da Cho da Feira e sua coleo Caderno de Leituras.

Estipulo um mtodo: traar um dilogo terico com textos publicados pela editora. Entro no primeiro deles ao acaso, ou melhor, seguindo o interesse mais sincero e despre-

tensioso. Escolho o ttulo que mais me atrai e l estou em O que diriam os animais se... Comeo essa leitura hoje, poucos dias depois de receber o convite para esta mesa. Estipulo

uma meta de leitura. Falho. Retomo de outra forma. Comeo a pensar nos textos no mais em suas propostas individuais. Comeo a v-los como parte de uma biblioteca infinita.

A cada leitura o pensamento sobre coleo se recoloca. Caderno de Leituras. No busco compreender quais seriam os critrios que levaram os editores a escolherem

A AVENTURA DA PRECISOCaderno de Leitur as n .67 4

aqueles textos, no por no imaginar quo interessante seria esse processo, mas pelo fato de que a origem inalcanvel para este texto que escrevo, o da minha leitura. Procuro, por-tanto, olhar adiante dos textos, olh-los como so: autnomos s escolhas individuais que os antecederam, pblicos.

Nessa busca de olhar, vejo uma trilha e sobre ela levanto uma hiptese: os cadernos compem uma linha (editorial) como um fio em metamorfose, cuja conduo da mudana parece se dar por vizinhana. Imagino esta linha no como uma predefinio de ideias, uma diretriz prvia que busque um certo pensamento-em-texto ou um certo texto-em-e-conomia. No.

Linha no reta, antes, um macram mvel de pontos largos e arejados que se refazem em diferentes desenhos a cada nova sequncia de vizinhanas que se configura.

Retorno em algum lugar. No ser possvel agora, mas seria em outro momento, seguir a trilha cronolgica das edies, ler todos os cadernos e buscar um desenho, um traado de leitura. Fao um exerccio menor, semelhante, mas menor. Parto do Caderno 43.

E a imagem do Eremita se coloca fortemente para mim como condutor de uma reflexo sobre o editor e o mundo. Esta imagem se mobiliza novamente no trapeiro.

Claro, seria mais corrente associar essas figuras quem escreve, e portanto, aos prprios autores dos cadernos. Partir dali para uma anlise intrnseca aos textos. Mas no. Os textos me fazem pensar em quem os edita. No que move essas mos e seus pensamentos. Esses que utilizam suas prprias vidas como o lugar, por excelncia, da interrogao humana.1 Esses homens isolados que usam as paixes de sua especfica vitalidade, o sensvel que os [liga] a terra para, na linguagem, trilhar tendencialmente o seu trilho.2

Ento procuro uma outra imagem, uma que nos permita desviar o ngulo e jogar um certo, ainda que no definido nem em forma nem tom nem cor, olhar sobre a edio. Uma imagem com a qual nosso mundo produtivo reflita sobre suas mos inventivas, seus pensa-mentos fugazes, suas direes intuitivas; que revele aquilo que delas provoca movncias e que por vezes fica esquecido sobre o peso cotidiano do trabalho e dos prazos. Ser capaz de, lembrando ainda o texto de Maria Gabriela Llansol, apresentar experimentalmente, sequ-ncias de gestos eficazes que a viso ntima indica. (Llansol, Llul)

No rastro do pensamento vegetal da filosofia, a imagem de duas rvores editoriais se apresenta (e j defino: so as duas rvores que posso ver, mas no as nicas que existem nesse campo). A primeira delas se auto define como aquela que nasce em terra rida e a fertiliza. So

1 Maria Gabriela Llansol. Dilogos com Lull. Caderno de Leituras, n. 43, p.3.

2 Maria Gabriela Llansol. Dilogos com Lull. Caderno de Leituras, n. 43, p.3.

A AVENTURA DA PRECISOCaderno de Leitur as n .67 5

os editores que ceifam um solo oral, buscando imprimir as sementes do saber escrito, seus valores e hierarquias. imbuda de orgulho e desejo do ureo. Um dos galhos mais frondosos dessa rvore busca estabelecer a sombra bibliogrfica sobre a qual se construir uma nao.

A segunda rvore um dos frutos legtimos da Histria. Metalizada e blica, veloz, mer-cantil e progressista. Tomando a leitura como um valor universal em si mesmo e, observemos sem inocncia, este valor sobretudo comercial , engrandece esse ato como o fazem os galhos da outra rvore, mas se estes buscam promover uma certa viso textual do mundo e sonham com a propagao (ao menos no campo do nacional, do Pas) de seu prprio universo de leitura, a segunda dissimula na simples atitude da decodificao uma ao capaz de promover o ser humano a experincias mais elevadas do que as possveis em um cotidiano iletrado. No se preocupa com seus frutos, produz em enorme e variada quantidade, de tal modo que o solo ao seu redor est tomado por camadas de desperdcios em decomposio.

Na primeira rvore h um galho que se ope diretamente rvore de devoradoras en-grenagens hiperprodutivas. Ele prima pela tcnica, virtuosista. A rvore metlica a este galho se ope com bandeiras populistas, antielitistas. E ele responde, munido de bom gosto, conservador, nessa guerra de mundos, deixando exposto o desejo de seu inimigo lucrar a qualquer custo, lucrar atravs da baixa qualidade das frutas abundantes.

O que vemos como duas rvores opostas so caules de uma mesma raz: o Homem bem-intencionado.

A magnitude desta viso no me permite vislumbrar qualquer razo para um elogio ou ode a edio. Pois seja imprimindo um ou outro valor, as rvores da tradio deveriam ser vistas menos pelo que tornam pblico que pelo que optaram por no publicar, ou seja, pelo que calaram.

Fao uma crtica severa demais, desconsiderando assim os limites intrnsecos de qualquer boa iniciativa? Afinal toda atividade ligada ao texto no pressupe o limite? Escrever (para co-mear) no deixar de fora tudo que no se escreveu? Editar no , necessariamente, selecionar?

No h uma resposta dicotmica. Mas h outras prticas, vegetais, rasteiras, do cho... horizontais, rizomticas.

Diverso do mundo do todo das rvores, o mundo das plantas rasteiras, dos lquens e de outras formas de associaes vitais pode ser capaz de gerar certo silncio no rudo da grande produo para que alguns textos outros com sua voz potente e leve possam ser ouvidos. Como e quais textos?

Quanto a isso no h certezas. Quando a exigncia de unidade que caracteriza qualquer gnero de discurso abalada, no faz sentido considerar que h uma forma prpria desse

A AVENTURA DA PRECISOCaderno de Leitur as n .67 6

abalo, de essa ruptura se dar.3 Para olharmos as experincias que vem desta outra perspec-tiva, preciso mudar as questes encontrar outras histrias e criar outros laos.4

Deixar a imagem das rvores descansar. Sair do campo amplo da Edio e nos aproxi-marmos um pouco de experimentaes outras. Uma de cada vez. Ver suas diferenas.

Vamos, ento Ao cho Cho da Feira.

3 Silvina Rodrigues Lopes. A ironia das teorias. Caderno de Leituras, n.48, p. 5.

4 Vinciane Despret. O que diriam os animais se... . Caderno de Leituras, n.45, p. 3.

Captura de telado site das EdiesCho da Feira em junho de 2017.

A AVENTURA DA PRECISOCaderno de Leitur as n .67 7

Como se do os laos entre esses Cadernos?Antes que se pense em critrios, em nomes e temas, antes que pretensamente se volte a

colocar um Pai para o que se faz ali (no no lugar do autor, mas do editor), gostaria de pensar que esses cadernos provocam e desestabilizam a prpria maquinaria tradicional de seleo.

O que vejo, no horizonte de leitura que ali se apresenta a consolidao de uma prtica coletiva de leitura, o desenho de uma trilha mltipla, cujo gesto individual dos leitores e colaboradores define momentaneamente um caminho a seguir, para em seguida outro o recompor...

Desdobro portanto a imagem da vizinhana (mesmo porque nem toda vizinhana feliz). Associando-a afinidade, s questes que se avizinham:

Eremitas, trapeiros, lobos, abutres, carneiros, seivas e vegetais Ocupam posies no espao do pensamento que os Cadernos permitem construir. Saem

das classificaes e abrem terreno a montagens. A linha no reta no se encerra, mesmo que em algum momento proponham encerrar seus nmeros. Ela se planifica como um plat.

Assim que entre aqueles textos no se estabelece um cnone. Diferente do procedimento editorial que vem tona em Dilogos com Lull, acerca da no publicao da mstica rabe:

Claro que aos Ocidentais mais letrados se dava a entender que inimigo que possua tambm textos destes no poderia, decerto, considerar-se brbaro e to intrinseca-mente mau como opinava a psicologia propagandista da Cruzada. [] O rabe com-batia-se no porque fosse atrasado, mas porque tinha que ser. Possua outro Livro. Controlava rotas. Ameaava fronteiras.5

Procedimento que faz do livro arma e da seleo editorial eliminao de inimigos. Experimentaes como a da coleo Caderno de Leituras deixam ver um modo possvel em que escolher no pressupe a excluso nem o silenciamento do que no est ali, naquela

srie sem seriao. Na sua forma aberta, nas questes que cada texto coloca e nos dilogos que estabelecem,

os cadernos se parecem mais com um grupo de estudos, uma conversa infinita, na qual o que no est poderia um dia estar ou, em outra direo, coloca a prpria sequncia de textos no campo da escolha ou, como os textos da editora indicam, da preciso; mas no da pretenso.

Edio no blica. Oposta ao Todo.No se trata de completude.

5 Maria Gabriela Llansol. Dilogos com Lull. Caderno de Leituras, n. 43, p.3.

A AVENTURA DA PRECISOCaderno de Leitur as n .67 8

Portanto preciso que se fale em cadernos e no em livros.E no apenas por no se tratar de cdice, no sentido da forma e do poder prprio a este

dispositivo, mas por uma certa reconfigurao do fazer, que tentarei pincelar.Observo que a coleo Caderno de Leituras no parece ter uma numerao sequencial

completa. Observo ento que esta coleo e as sries Rama e Intempestiva se entrelaam. E que, portanto, a numerao contnua, mas no as linhas editoriais que a preenchem. H, portanto, um enlace entre as sries que toma uma forma planificada no site, mas que parece repetir certo movimento presente nos dilogos entre os textos de cada srie: o macram de pontos largos, ou algo entre banda de Moebius e a montagem (de Didi-Hubermann). Mas se retomo esta imagem agora, no para dizer das vizinhanas entre os textos, mas entre sries de textos porque este entrelaamento fruto de um procedimento editorial. Aqui o estabe-lecimento de uma numerao geral (e no dividida pelas sries) que permite criar esse outro desenho da sequncia. Ele cria janelas em cada srie pelas quais as outras vem atravessar, por exemplo entre os nmeros 55 e 59 (uma janela na linha da coleo) ou entre a 58 e a 56 uma janela na srie intempestiva, ou ainda uma janela de bandas diferentes entre o 49 e o 51 permite o atravessamento da srie Rama.

A sequncia numrica de tal forma desierarquizada pelo neutro da sequncia cres-cente ou seja, pelo esvaziamento de significados numa sequncia crescente de nmeros

que no podemos dizer se h uma linha principal. E, no havendo, o desenho que se cria de uma instabilidade do dentro e do fora de cada uma destas linhas de conduo dos textos. Quais colees conduziriam? No desenho que vejo, no h direo principal; entre as linhas, com as linhas, uma rede criada.

Imagino quo complexo e tridimensional seria um desenho do entrelaamento das afini-dades textuais entre as sries, os ns e as mudanas de direo dos traados de cada uma pelo encontro com o que a outra prope. Desenhos inumerveis seriam possveis, nenhum capaz de unificar essa diversidade, e desenha-los, buscar com preciso definir estas formas, o indi-cativo de que editar e pesquisar edio so da potncia da criao e da crtica.

* * *

Penso agora na coleo Caderno de Leituras como um livro no livro. Um livro aberto, sem centro. Os textos so colocados lado a lado na pgina. Cada um deles apresentado por uma imagem que faz referncia composio grfica de uma capa de livro, mas lembram tambm cartazes e destes, facilmente podemos recorrer, novamente, mas com outro sentido, s janelas. Os arquivos, em pdf, mantm a fixidez da pgina impressa (o

A AVENTURA DA PRECISOCaderno de Leitur as n .67 9

que aparentemente seria um trao molar, faz parte, como se ver, de um projeto editorial molecular). A escolha das fontes, da pgina branca e dos recursos de paginao so deli-cados, limpos. Os arquivos, v-se em nota de rodap puxada pelo ttulo ou no colofo ao final de cada texto, so autorizados para a publicao pelos seus autores. A publicao on-line e o download gratuito.

Todos esses so elementos de um projeto editorial. So o desenho da maquinaria da Cho da Feira. Mas poderiam ser tambm elementos em vizinhana afim, como eremitas, trapei-ros, lobos, abutres, carneiros, seivas e vegetais. Colocados aqui, lado a lado, alimentam pela vizinhana, pela afinidade e desenho que formam, um modo generoso de editar. Ampliam o lugar de circulao dos textos comumente enclausurados nos universos acadmicos, como se no tivessem qualquer valia para a vida lanando-os para fora (ou seja, de fato: publicando-os). Criam ao mesmo tempo uma dimenso esttico-afetiva prpria, fora da linearidade, do status e da institucionalizao, e ao mesmo tempo mantm elementos pro-venientes do cdice no que dele efetivamente parece ser tecnologia bem-sucedida por dar ao livro a chance de se tornar um objeto de pesquisa: paginao definida (que dentre outras funes permite a impresso caseira, portanto mais acessvel, pelos leitores em folha A4 sem perda do projeto grfico e visual da coleo 6), mecanismos de indexao, possibilidade de seleo (para possveis recortes e cpias) de trechos especficos... E, finalmente, permitem o compartilhamento gratuito e amplo. E neste ponto recorro a uma conversa com a Carolina e a Lusa em 2016, sobre edio, em sala de aula na UFMG, na qual a Carolina contou um pouco sobre o movimento inicial dessas publicaes, ela disse algo como: havia um texto que queria que outras pessoas lessem. Achei que era importante que outras pessoas pudessem dividir essa leitura comigo. Assim comecei a publicar.

E assim que vejo a continuidade dessas publicaes, pois o modo de edita-los permite que este movimento no seja fixado no editor, mas em qualquer leitor de hoje e do futuro.

Edies sem centroEdies de pesquisadorEdies ensasticas.

Editar pode ser prtica arbrea e sobre esta h modos e modelos a seguir e um caminho do bem-sucedido a buscar. possvel ensinar, e ensinar nesse caso uma repetio.

6 Agradeo Clarice G. Lacerda, uma das designers que elaborou tal projeto, por esclarecer e me alertar para este detalhe.

A AVENTURA DA PRECISOCaderno de Leitur as n .67 1 0

Alguns caminhos, que vem do rasteiro, do cho, so de experimentao, o que se ensina correr um risco, sendo a natureza deste risco prprio ao modo como cada um buscar inventivamente criar seus laos. Sobre eles, tal como disse Merton sobre o amor carnal: Foi muito bom para mim (ns) passar pela tormenta, era o nico meio de aprender uma verdade que de outro modo seria inacessvel.7

7 Thomas Merton. In: Leonardo Fres. Os dirios e os combates de um trapista rebelde, Caderno de Leituras n. 44, p. 7.

A AVENTURA DA PRECISOCaderno de Leitur as n .67 1 1

Imagens que visitam, imagens que acolhem: Pasolini entre os Tikmn 1andr brasil

i Canto da Andorinha

Em 2015, os professores e cineastas Isael e Sueli Maxakali foram convidados a dar aulas para a Graduao na UFMG, como parte do Programa de Formao Transversal em Saberes Tradicionais.2 Eles nos apresentaram seus filmes, cantos e narrativas, entrelaando experi-ncia histrica e experincia mtica e trazendo outra temporalidade para a cena sensvel da aula. Diante do silncio inicial dos estudantes, cantaram o Canto de Xamoka (canto da andorinha), que usualmente entoado pelos Tikmn (tambm conhecidos por Maxakali) at o amanhecer em sesses de cura. No canto, a repetio evoca as andorinhas, uma, duas, trs, quatro, inmeras que voam rasante resvalando seus corpos levemente na gua.

1 Este texto fruto de duas apresentaes que fiz sobre o tema: uma no Seminrio Pasolini no. 2: inativaes, intermi-tncias. Outra no encontro A aventura da preciso: Cadernos de Leitura em debate. Agradeo a Davi Pessoa, Manoel Ricardo de Lima e a todos que compartilharam as intensas conversas durante o Seminrio Pasolini. Agradeo tam-bm a Maria Carolina Fenati, Jlia de Carvalho Hansen e Alice Bicalho, com quem pude dividir essas formulaes ainda em curso. No poderia deixar de mencionar tambm o Grupo de Pesquisa Poticas da Experincia, de onde surgem boa parte destas inquietaes.

2 A partir de uma parceria com o INCTI Incluso Social no Ensino e na Pesquisa da UNB, o Programa de Formao Transversal em Saberes Tradicionais convida mestres das culturas tradicionais e populares (indgenas ou afro-descendentes) para ministrar aulas para alunos de Graduao na UFMG.

A AVENTURA DA PRECISOCaderno de Leitur as n .67 1 2

ii Imagens em sonho

Tendo ouvido essas narrativas, cantos e imagens, tocado por sua capacidade de agir e alterar a experincia sensvel, Csar Guimares nos pergunta: pode uma imagem vir como um sonho vem? Poderia uma imagem vir em sonho e agir no real, sem permanecer apenas como um resduo do imaginrio, mantido e cultivado parte, ou uma fantasia encerrada na interioridade de algum, como o seu pequeno segredo? 3

3 GUIMARES, Csar. A esttica que vem. Texto apresentado junto ao GT Comunicao e Experincia Esttica do Encontro da Comps Associao Nacional dos Programas de Ps-Graduao em Comunicao, So Paulo, 2017.

A AVENTURA DA PRECISOCaderno de Leitur as n .67 1 3

De um modo inaudito, essa pergunta faz vizinhana a uma formulao distante, por Pier Paolo Pasolini, quando define os traos do que seria um cinema de poesia: esse cinema implica uma elaborao estilstica articulada, liberando as possibilidades expressivas sufo-cadas pela tradicional conveno narrativa, at encontrar nos meios tcnicos do cinema, as suas qualidades onricas, brbaras, irregulares, agressivas e visionrias.4

iiiPasolini entre os Tikmn

Guardando, por ora, essas proposies, que por caminhos diferentes ligam as imagens do cinema quelas do sonho e do mito, gostaria de repensar a aposta que fez Pasolini lan-ar-se em direo s realidades dos pases do chamado Terceiro Mundo. Como rever hoje a reivindicao em suas Notas para uma Orstia africana, a de uma transfigurao das Ernias em Eumnides, das divindades irascveis e furiosas em deusas da poesia?

A ampla tarefa da resposta ganha aqui a escala de um filme, ou de uma srie de filmes produzidos pelos Tikmn. Comecemos por imaginar uma outra visita de Pasolini, agora, s aldeias maxakali dispersas em uma desolada regio do Nordeste de Minas. Imaginemos o que pensaria diante deste outro cinema, ou deste cinema do outro (no sentido de que seria capaz de assumir corpos e perspectivas das alteridades com as quais se relaciona): cinema-morcego, cinema-gavio, cinema-lagarta, cinema-lontra, cinema-mandioca. E a questo passa a ser: como repensar a aposta pasoliniana diante destas imagens que parecem vindas do sonho, vindas em sonho, nascidas do interior do mito?

ivfrica, minha extrema alternativa

O verso do poema publicado em 1961 ecoa naquelas Notas para uma Orstia africana (Appunt per unOrestiade africana, 1970) que Pasolini far em viagem a Tanznia e a Uganda. Este filme faz parte de uma srie de documentrios 5 que o diretor realizou entre 1965 e 1970, exerccios que permitiriam a Pasolini aproximar-se destas realidades outras: esboos de

4 PASOLINI, Pier Paolo. O cinema de poesia. In: Pasolini. Empirismo Herege. Lisboa: Assrio e Alvim, p. 146.

5 Alm de Notas para uma Orstia, entre estes documentrios/ensaios esto: Pesquisa na Palestina para o Evangelho segundo Mateus (Sopraluoghi in Palestina per il vangelo secondo Matteo, 1965), e Notas para um filme sobre a ndia (Appunti per un film sullIndia, 1968).

A AVENTURA DA PRECISOCaderno de Leitur as n .67 1 4

filmes por vir, anotaes de viagem e pesquisas de atores e cenografias; ensaios, portanto, que se encontram na periferia da cinematografia pasoliniana e que, por isso, preservam uma espcie de reserva menor, relativamente intocada, de questes ainda por se formular.

Em Notas para uma Orstia africana, Pasolini rel a tragdia de squilo em busca de explicar a situao de uma frica ps-colonial, hiptese que ser deslocada e contrariada, seja pelas imagens (a mltipla fenomenologia dos rostos, dos corpos, dos objetos dispersos pelo cho de terra, do cotidiano dos vilarejos remotos e das grandes cidades), seja pelas pa-lavras (a conversa aberta com os estudantes negros da Universidade de Roma). De um lado, a realidade revela-se mais exuberante, tumultuada, precria, contraditria, sempre aqum ou alm dos termos genricos e formais da democracia, tal como enunciados por Pasolini. De outro, como explicita textualmente um dos estudantes, soa arriscado falar em democracia: para muitos africanos, a Europa no nos trouxe democracia. Ou como resume outro estu-dante, o projeto um tanto imaginativo. Para tirar realidade da, vai ser um pouco difcil.

[ Notas para uma Orstia africana ]

A AVENTURA DA PRECISOCaderno de Leitur as n .67 1 5

De todo modo, essa inadequao entre a deliberada produo de um anacronismo fil-mar a Orstia de squilo na contemporaneidade de um pas africano e o desejo enunciado pelo diretor de que o filme fosse profundamente realista e popular me parece menos um problema do documentrio do que um problema para o documentrio (como ensaio que se prope): isto que o move enquanto busca, investigao, enquanto aposta e suspeita, enquanto promessa e frustrao frente a essa alternativa outra (uma frica que Pasolini livremente inventa, uma frica futura). Afinal, o documentrio mesmo que, em suas es-tratgias, provoca e sustenta essa inadequao: ao buscar os personagens de seu filme por vir nos vilarejos e grandes cidades, filmando corpos e rostos singulares, homens e mulheres que jogam com a cmera, a conduzem, se esquivam dela, interpelam, sorriem, devolvem olhares hospitaleiros ou desconfiados; ao propor retirar o coro grego do lugar separado onde costuma se situar, para dispers-lo pelos vilarejos pobres, pelos mercados, pelas por-tas das fbricas; novamente, ao estabelecer um dilogo franco com estudantes africanos da Universidade de Roma, ouvindo, sem condescendncia, as crticas que se endeream a seu projeto, Pasolini encontrar uma frica que, como sugere um dos estudantes, recusa-se a ser tomada em abstrato e cujo universo mtico coabita com a histria, continua a informar o presente e guarda sua prpria poesia.

Ao final, trata-se menos de transformar Ernias (o mtico e o arcaico) em Eumnides, do que reivindicar uma coexistncia, para cujos termos, cujas medidas, no h soluo que possa ser apressada: as divindades primordiais, as frias que no filme sero belamente figuradas por animais e rvores que compem o silncio terrvel e monstruoso da floresta e que perseguem Orestes com sua cabeleira tumultuada pela ventania reexistem, coexistem, sem soluo de continuidade entre arcaico e moderno. Concluso a que o filme parece chegar e que ser cifrada, talvez inconscientemente, j em seu incio, por esse plano que funde o

[ Notas para uma Orstia africana ]

A AVENTURA DA PRECISOCaderno de Leitur as n .67 1 6

reflexo do cineasta s construes e vitrines da cidade moderna, trazendo, no canto superior do quadro, quem sabe, a sombra ou o assombro de uma Ernia. Por meio de um sutil movi-mento de cmera, a rvore vir frondosa ao centro do enquadramento.

vBreves viagens ao pas do povo

To distintas entre si, as notas documentrias feitas por Pasolini na frica, na ndia e na Palestina guardam certa afinidade com estas que Jacques Rancire chamou de breves viagens ao pas do povo. Na literatura ou no cinema, elas nos oferecem o inesperado es-petculo de outra humanidade, em suas vrias figuras: o retorno s origens, a descida ao submundo, a chegada terra prometida.6 Por meio delas podemos observar os modos como o olhar torna a realidade exemplar de uma idia e como um pensamento encarna-se em uma paisagem ou em uma cena viva, para tornar presente um conceito. Mas, como vimos, ser justamente o desacerto entre realidade e idia, entre paisagem ou cena viva e conceito o que move os filmes.

A hiptese destas breves viagens j fora to precisamente aventada por Mateus Arajo Silva, em sua comparao entre os cinemas de Straub e Huillet e Glauber Rocha. Se houve quem falasse em viagens ao pas do povo a propsito das cenas deste rapaz [o jovem entre-vistador de Lies de Histria, dos Straub] percorrendo de carro bairros modestos de Roma, a viagem vai mais longe e mais fundo [em Claro, 1975] na visita estridente dos pedestres

6 Traduo livre minha. No original: We are offered the unexpected spetacle of another humanity in its many fi-gures: the return to origins, the descent to the netherworld, the arrival in the promise land. RANCIRE, Jacques. Short voyages to the land of the people. Stanford: Stanford University Press, 2012, p. 1.

[ Claro (1975) ]

A AVENTURA DA PRECISOCaderno de Leitur as n .67 1 7

Glauber e Juliet a uma favela romana, uma borgata digna de Pasolini, para falar diretamente a seus habitantes pobres e desconcertados, que a policia estava ameaando de expulso. 7

viHabitar o mito

Se uns e outros so exilados, estrangeiros que visitam lugares distantes, perifricos, na srie dos Tatakox, formada por estes breves e desconcertantes filmes feitos por coletivos Tikmn, a cena parece ter-se invertido. No se trata agora de uma visita do cineasta a uma comunidade outra, sua presena estrangeira a provocar discreta ou intensa perturbao. Ao contrrio, os cineastas Tikmn acompanham, ou mesmo trazem consigo os visitantes po-vos-espritos que chegam aldeia: no raro, a cmera os aguardar ali, na regio limtrofe onde, da floresta aldeia, o invisvel precipita-se no visvel. Ou ao contrrio, os acompanhar em sua despedida e ns os perderemos de vista ao desaparecerem na mata.

Se em Notas para uma Orstia africana Pasolini vai de encontro ao mito para refletir sobre os modos de sua atualizao histrica, aqui, o cinema traz os povos-espritos para a aldeia, possibilitando assim o ritual. As imagens, nesse caso, instauram e passam a habitar a cena mtica, como uma de suas agncias.

[ Notas para uma Orstia africana ]

7 ARAJO SILVA, Mateus. Glauber Rocha e os Straub: dilogo de exilados. In: Catlogo Straub e Huillet. Ed. Ernersto Gougain et al. So Paulo: CCBB, 2012, p. 262.

A AVENTURA DA PRECISOCaderno de Leitur as n .67 1 8

[ Tatakox Aldeia Verde ]

viiOs tatakox

Os filmes tikmn so opacos, cerrados: eles no permitem que o visvel avance fluen-temente sobre o invisvel. Constituem-se por planos longos que acompanham os eventos em uma visada interna na qual o cineasta oscila entre participar da experincia, intervir em seu curso e dela se distanciar para apreend-la com a cmera. Realizado por Isael Maxakali junto comunidade da Aldeia Verde, o primeiro Tatakox acompanha o ritual de iniciao das crianas por meio de longos planos comentados aqui e ali pelo cineasta. A cmera de Isael acompanha, mas tambm parece conduzir os povos-esprito ymyxop que chegam aldeia com as crianas ao colo. Os ymyxop so povos-esprito ou animais-humanos com os quais os Tikmn estabelecem relao de aliana e mtua adoo: sua presena nas aldeias tanto pode solicitar grandes prestaes de cantoria, danas e banquetes, quanto pode passar despercebida ao olhar do etngrafo, limitando-se visita de algumas casas ou a pequenos gestos que precedem uma caa ou uma sesso de cura.8 Tatakox os espritos da lagarta responsveis por levar e trazer as crianas atravessam desordenadamente o quadro, en-quanto tocam seus aerofones: um som agudo e intermitente e outro grave, spero e contnuo modulam todo o percurso. Ao fundo do ptio, as mulheres esperam os meninos trazidos pelos ymyxop; ao toc-los, elas choraro. Outro grupo de crianas ser ento levado para o perodo de iniciao e aprendizado na kuxex, a casa dos cantos. O grupo abriga-se na ku-xex, mas as imagens no nos daro acesso ao que acontece ali dentro. A cmera filma agora

8 TUGNY, Rosngela. Filhos-imagens: cinema e ritual entre os Tikmn. In: Revista Devires Cinema e Humanidades, Belo Horizonte, UFMG, v.11, n.2, jul./dez.2014, p.160.

A AVENTURA DA PRECISOCaderno de Leitur as n .67 1 9

a aldeia vazia, novamente mergulhada no silncio (ouve-se baixinho, ao longe, o som das flautas). Uma panormica mostra que, pouco a pouco, as pessoas retomam suas atividades cotidianas. O plano retorna ento kuxex e dura um pouco mais a enquadrar a mata vazia ao fundo: l longe, apenas entrevemos os tatakox, at finalmente perd-los de vista.

Dois anos mais tarde, no totalmente satisfeitos com o filme-ritual produzido na Aldeia Verde, a comunidade Vila Nova do Pradinho decide fazer sua verso. Este um filme ainda mais inquietante e enigmtico que o anterior: diferentemente do primeiro Tatakox, em que Isael diminui levemente o passo para filmar o ritual, comentando certa distncia, mas de modo implicado, os eventos, agora, aqui e ali a enunciao ser assumida pelos pajs, inter-namente cena: eles se dividem entre dirigir o ritual ou coment-lo para o filme.

Em ambos os trabalhos (e mais fortemente no segundo Tatakox), o enquadramento ser tomado pela intensidade do ritual: desestabilizado por uma fora centrfuga, o quadro parece incapaz de conter, em seus limites, os sujeitos e eventos que filma. O olhar da cmera submetido a variaes bruscas do plano aberto ao plano fechado, da distncia extrema proximidade. Atrado pela emergncia do evento, por sua configurao ao mesmo tempo intensa e difusa, o ponto de vista transita, flutua de um a outro corpo.

viiiDo encontro, seu movimento

Seria necessrio melhor definir o que significa essa visada interna que aqui se rei-vindica para os filmes. Como mostra to precisamente Rosngela de Tugny, na esttica Maxakali, tudo o que delimita um espao a pele, a casa, a casa dos cantos, a aldeia, o territrio, as guas, o cu sempre nada mais que um delicado trao. Algo que possa testemunhar do encontro o seu movimento: sua proximidade e sua distncia. sobretudo necessrio que os limites sejam permeveis. Sejam apenas contornos. 9 Se h ento algo como uma visada interna, ela se constitui por suas relaes com o fora, relaes que a casa dos cantos (kuxex) cifra em sua precria arquitetura: a frente fechada ao centro da aldeia, seu fundo aberto, voltado mata.10 No caso dos filmes tikmn, uma analogia poderia

9 TUGNY, Rosngela. Um fio para o nmx: aproximaes de uma esttica maxakali. Colquio de Etnomusicologia da Unespar/FAP: Etnomusicologia, Universidade e Polticas do Comum. Anais, 2013, p. 65.

10 A relao entre a arquitetura da casa dos cantos e as manifestaes estticas dos Tikmn j foi apontada por outros autores: ALVARES, Myrian. Ymiy, os espritos do canto: a construo da pessoa na sociedade maxakali. (Tese, Unicamp, 1992); TUGNY, Rosngela. Um fio para o nmx; BELISRIO, Bernard. As hipermulheres: cinema e ritual entre mulheres, homens e espritos. (Dissertao, UFMG, 2015); GUIMARES, Cesar. A esttica por vir.

A AVENTURA DA PRECISOCaderno de Leitur as n .67 2 0

se desdobrar para dizer do plano cinematogrfico: tal como a kuxex, sua parte visvel (sua fachada) cerrada, sendo a parte invisvel (o fundo, o extracampo) aberta, voltada para fora, exposta aos animais e espritos que, vindos da floresta, visitam a aldeia.

[ kuxex ]

ixPaisagens cantadas

Arrisco dizer que tambm os cantos Tikmn dispositivos que sustentam e atualizam a relao da aldeia com a virtualidade da floresta, com os inumerveis povos-esprito que l habitam emprestam parcialmente seu desenho aos filmes: um fundo constante vai-se modulando pelos eventos sonoros, em uma srie de diferenas intensivas, muitas vezes, de escala nfima. Como nos mostra ainda Rosngela de Tugny, os cantos so blocos sensveis

A AVENTURA DA PRECISOCaderno de Leitur as n .67 2 1

que se modulam por coagulao, adensamento e diluio.11 Esse mesmo movimento per-cebe-se no espao flmico que passa por sbitos processos de povoamento e esvaziamento: repetidamente a cena abriga o encontro de corpos e sons, vive seu adensamento e posterior disperso, at que o plano se esvazie.

[Coagulao, adensamento, diluio: Tatakox Aldeia Verde]

[Coagulao, adensamento, diluio: Tatakox Vila Nova]

Diria, por fim, que tanto nos cantos quanto nos filmes, o percurso dos corpos pelo terri-trio enfatizado. Como escreve Roberto Romero, as histrias tikmn so como vestgios dos constantes deslocamentos desse povo: em uma espcie de paisagem cantada, de cada passagem, de cada percurso, de cada lugar, eles extraem um canto, uma descrio em plano detalhe dos eventos ou dos seus personagens, como imagens em movimento ou aes em si fazendo.12

11 TUGNY, Rosngela (org.); narradores, escritores e ilustradores tikmn da Terra Indgena do Pradinho. Cantos e Histrias do Morcego-Esprito e do Hemex/ Ymyxop Xnm yg Kutex xi gtux xi Hemex yg Kutex. Rio de Janeiro: Beco do Azougue Editorial, 2009.

12 ROMERO, R. A Errtica tikmn_maxakali: imagens da Guerra contra o Estado. (Dissertao, Museu Nacional, 2015), p. 97.

A AVENTURA DA PRECISOCaderno de Leitur as n .67 2 2

Os cantos xamnicos, assim como as imagens, so dispositivos relacionais, que produ-zem passagens entre mundos contguos geograficamente a aldeia e a floresta mas des-contnuos ontologicamente; permitem a coexistncia e oscilao entre perspectivas dspares e incomensurveis.

xHappenings

Feito esse percurso pelos filmes Tikmn, voltemos quelas viagens ao pas do povo que, de algum modo, marcam uma inflexo comum a certos filmes (ou ensaios flmicos) modernos.

No cabe aqui uma anlise da mencionada sequncia final de Claro, na qual o cineasta visita uma favela romana. Queria apenas marcar, ainda com Arajo Silva, sua configurao instvel, que confere cena a forma de um happening, instaurado pelas presenas pertur-badoras de Glauber e Juliet. O happening glauberiano estilisticamente acirrado: sua visita intempestiva ao pequeno povoado, a perturbao que produz, a sobreposio experimental dos planos e a trilha sonora adicionada sequncia, tudo isso produz um de acirramento esttico a enfatizar o desconcerto da cena, seu carter disruptivo.

Notas para uma Orstia africana tambm produz seus happenings. Mas a visita do cine-asta aos vilarejos menos disruptiva do que talvez reflexiva. Ainda que a hiptese proposta seja enftica, a presena do cineasta ser mais discreta, seja por meio do olhar atento de uma cmera que observa, busca, pesquisa e que, vez ou outra, atende ao convite dos perso-nagens para segui-los pelos mercados populares; seja por meio dos constantes comentrios poticos em voz over ou das conversas com os estudantes, nas quais Pasolini se posiciona explicitamente em cena.

H mais marcadamente uma espcie de happening, fortemente induzido pelo filme, quando trechos da Orstia so entoados por Archie Savage e Yvonne Murray, sob o som do free jazz de Gato Barbieri. Se, em 1970, momento em que Pasolini realiza as notas documen-trias, j se insinua a catstrofe espiritual provocada pela traumtica passagem a uma frica precariamente neocapitalista13, Pasolini arrisca ento, nestas Notas para uma Orstia, outro gesto de montagem, que liga essa espcie de pulso mtica, presente nas imagens, experin-cia dos 20 milhes de sub-proletrios negros da Amrica, aqueles que, para o diretor, devem

13 LAHUD, Michel. A vida clara: linguagens e realidade segundo Pasolini. Campinas: Unicamp/Cia. das Letras, 1993.

A AVENTURA DA PRECISOCaderno de Leitur as n .67 2 3

estar frente de qualquer movimento revolucionrio do Terceiro Mundo. A montagem liga as tumultuosas Ernias improvisao furiosa do jazz; religa o mito ao devir histrico e re-volucionrio. Nesse caso, a montagem que produz ento o happening, um acontecimento propriamente flmico.

[ Notas para uma Orstia africana ]

Em alguma medida, a cena-ritual dos Tikmn assemelha-se a um happening, dado seu carter intenso e errtico. Mas, talvez de modo mais marcado, a formalizao do filme inseparvel da configurao esttica do prprio evento filmado: a msica no ser adicio-nada a posteriori, sendo a spera modulao dos aerofones matria esttica definidora do ritual; e o enquadramento centrfugo, atrado pelas bordas, no interior do qual se sobrepem os corpos, tambm parece derivar da cena ritualstica mesma, que tem, como vimos, suas margens esgaradas. No caso dos filmes tikmn, no se trata de encontrar uma formali-zao esttica, capaz de atualizar criticamente a experincia mtica, tal como em Glauber e

A AVENTURA DA PRECISOCaderno de Leitur as n .67 2 4

em Pasolini. Talvez ali trate-se menos de convocar, observar, olhar o mito (para reivindicar sua transfigurao em forma esttica e poltica) do que de olhar por meio do mito, atravs de suas formas sensveis.

xiCosmopoltica tikmn

Participando fortemente da cena mtica e ritualstica, o cinema Tikmn constitui-se como dispositivo cosmopoltico. Para alm do humano, participa de um espao intensivo, que abriga plantas e animais (tornados raros devido devastao ambiental), povos-espri-tos ou espritos-animais. Nesse espao da aliana e da vizinhana com o fora, cada sujeito so povos e cada povo, multiplicidade. Ali, homens, mulheres e crianas falam uns pelos outros e os espritos cantam pela boca dos homens. Talvez por isso o poderoso conjunto de dispositivos e formas estticas que criam e cultivam se marque por essa constante troca de lugar, por esse permanente intercmbio de perspectivas14, em uma espcie de discurso indireto livre tornado forma de socialidade. O cinema chamado a participar, como agncia, desse modo de socialidade, integrando um xamanismo mltiplo.

Vez ou outra, a cmera precisa diminuir o passo, recuar levemente, para filmar e comen-tar a cena; atravess-la pelo presente da experincia histrica (a expropriao e devastao das terras); enderear as imagens a outros povos, estes que, tantas vezes, trabalharam pelo desaparecimento dos Tikmn.

Recurso a um s tempo estilstico, esttico e tico, a subjetiva indireta livre, o desdobra-mento em seu cinema de poesia, no teria requerido essas incurses estrangeiras de Pasolini, por meio das notas documentrias? como se essas viagens incertas e arriscadas com o ci-nema fossem uma estratgia relacional, que provoca e abre o discurso para que ele acolha e se altere pelo pensamento, a perspectiva e a potica desses outros com os quais encontra. Mas, nesse caso, preciso que o que se encontre seja nada daquilo que se foi ali para reconhecer.15

14 TUGNY, Rosngela. Filhos-imagens: cinema e ritual entre os Tikmn. In: Revista Devires Cinema e Humanidades, Belo Horizonte, UFMG, v.11, n.2, jul./dez.2014, p.174-175.

15 Em um texto escrito aps outra viagem, agora ao Marrocos, o prprio Pasolini comenta: Naturalmente, quando partimos para visitar um novo pas, j temos alguns projetos de interpretao. E toda descoberta uma luta con-tra tais projetos, que aos poucos caem e so substitudos por outros, mais reais. Por isso, descobrir sempre muito cansativo, de algum modo desgostoso. (...) Pois bem, nesse complexo (e belssimo) quadro de realidade visual, no reconheci, repito, nada daquilo que fui at ali para reconhecer. (Publicado em VieNuove, em 22 de abril de 1965, depois includo no livro Le belle bandiere. A traduo desta passagem de Davi Pessoa).

A AVENTURA DA PRECISOCaderno de Leitur as n .67 2 5

Talvez, o que Pasolini encontraria aqui, caso visitasse alguns dos inmeros povos ame-rndios, to diversos entre si, seriam manifestaes em que o discurso indireto livre se mostrasse o modo mesmo de constituio das formas de vida. O mito tal como vivido por alguns povos amerndios no seria esse espao de um discurso indireto livre generalizado? No seria o xamanismo o dispositivo em que o discurso indireto livre se atualiza nos cor-pos, torna-se sonho e viagem? E o cinema atrado para dentro da cena ritual, diminuindo levemente o passo para coment-la no seria, novamente, um modo de fazer atravessar o mito pela histria, a histria pelo mito?

xiiImagens que visitam, imagens que acolhem

H, me parece, inquietante e necessria complementariedade (talvez vizinhana, afini-dade) entre estas imagens: imagens que viajam em busca do mito, que trabalham por sua transfigurao potica e poltica; e imagens que nos olham do interior do mito, nos interpe-lam por meio de suas prprias formas sensveis; imagens daqueles que viajam, exilados, es-trangeiros em busca de uma outra humanidade (que possa transformar o prprio imaginrio do que uma humanidade) e imagens daqueles que acolhem humanidades, dentre outras.

Diria, enfim, que a complementariedade e vizinhana entre esse duplo movimento da imagem no se d sob o modo do campo e contracampo: umas e outras no se contrapem; nem so, por isso, contguas, pertencentes a um mesmo mundo. De umas a outras das imagens que visitam s imagens que acolhem a relao equvoca.16

16 O equvoco como o que se ope, no verdade, mas ao unvoco. No aquilo impede uma relao, mas o que a constitui e a impele. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Perspectival Anthropology and the Method of Controlled Equivocation. In: Tipiti: Journal of the Society for the Anthropology of Lowland South America, 2004.

A AVENTURA DA PRECISOCaderno de Leitur as n .67 2 6

Este o Caderno de Leituras n.67, publicado em junho de 2017 e composto nas fontes Gotham e Minion Pro

por Lusa Rabello para as Edies Cho da Feira.

[chaodafeira.com]

1069/2014

este caderno de leituras foi realizado com recursos da lei Municipal

de incentivo cultura de belo horizonte. Fundao Municipal de cultura. Patrocnio Una.

Patrocnio