Cad Erno Gu Suburbia

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TEMA SUBÚRBIOS E IDENTIDADES Um olhar multidisciplinar sobre a história e a cultura do subúrbio e sua representação na construção do imaginário social brasileiro. Uma reflexão com base na minissérie Suburbia 2

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Artigos que propõem subsidiar um debate sobre as culturas urbanas na construção de uma dramaturgia televisiva.

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  • TEMA

    SUBRBIOS E IDENTIDADESUm olhar multidisciplinar sobre a histria e a cultura do subrbio e sua representao na construo do imaginrio social brasileiro. Uma reflexo com base na minissrie Suburbia

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  • Caderno Globo Universidade, v. 1, n. 2, mar. 2013 Rio de Janeiro, Globo, 2013 Trimestral. ISSN 2316-7432Tema: Subrbios e identidades

    Disponvel na web http://bit.ly/YJubqS

    CoNSElho EdITorIAl

    Alice-Maria Reiniger Globo

    Beatriz Azeredo UFRJ/Globo

    Galeno Amorim Biblioteca Nacional

    Helena Nader SBPC

    Heloisa Buarque de Hollanda UFRJ

    Lucia Arajo Fundao Roberto Marinho

    Luiz Eduardo Soares Uerj

    Maria Adelaide Amaral Globo

    Maria Immacolata Vassallo de Lopes USP/Obitel

    Marialva Barbosa UFRJ/Intercom

    Srgio Besserman PUC-RIO

    Viviane Mos Usina Pensamento/Rdio CBN

    realizao Globo - ComunicaoSrgio Valente, diretordiretoria de responsabilidade SocialBeatriz Azeredo, diretora; Viridiana Bertolini, gerente; Viviane Tanner, supervisoraEquipeAlvaro Marques, Fatima Gonalves, Gisele Gomes, Julia Fernandes, Luisa Caf, Mariana Israel e Renata Minamidiretoria de Produo EditorialAndrea Doti, diretora; Ariadne Guimares, supervisora redao, pesquisa e edio finalGraziella BetingrevisoRicardo Jensen de OliveiraProjeto grfico e editoraoRefinaria DesignFotografia (seminrios)Renato Velasco e Studio S3XPesquisa iconogrficaThaisi LimaCapa e desenhosPedro Franz

    As opinies expressas nos artigos assinados so de inteira responsabilidade de seus autores. Todo material includo nesta revista tem a autorizao dos autores ou de seus representantes legais. Nenhuma parte dos artigos da revista pode ser reproduzida sem a autorizao prvia do Globo Universidade, dos autores ou seus representantes legais.

    Sobre o Globo Universidade

    Esta publicao uma iniciativa do Globo Universidade, rea da Globo dedicada ao relacionamento com o meio acadmico.

    Criado em 1999, o Globo Universidade tem como misso compartilhar experincias para somar conhecimento. Para isso, estabelece parcerias com universidades do Brasil e do exterior, promove debates e seminrios, edita publicaes e d apoio a pesquisas, contribuindo para a produo e divulgao cientfica, alm da formao de futuros profissionais.

    A proposta do Caderno Globo Universidade disseminar informao e ampliar o alcance dos encontros presenciais da rea, sistematizando e difundindo o conhecimento gerado. Com isso, os encontros ganham uma verso perene para atingir mais leitores e transformar-se em um documento de consulta em bibliotecas, universidades e centros de pesquisa.

  • sumrioNesta edio ............................................................................................................................................................................................................................6

    Artigos.............................................................................................................................................................................................................................................. 8Antropologia Regina Celia Reyes Novaes, da USP qUATRO JOVENS, qUATRO TRAJETRIAS ............................................................................................................................................. 10

    Geografia Mrcio Pion de Oliveira, da UFF SOLUES E ESPERANA NAS FRONTEIRAS DA CIDADE .......................................................................................................18

    Histria Joo Felipe Pereira Brito, da UFRJ TRANSFORMAES E PERMANNCIAS SUBURBANAS: O CASO DO BAIRRO BANGU ..............................26

    Teatro Marina Henriques Coutinho, da Unirio O PALCO COMO ESPAO PARA A EXPRESSO DE UM NOVO DISCURSO ..............................................................34

    Linguagem Luiz Eduardo Soares, da Uerj SUBURBIA E A TRANSCRIAO DO SUBRBIO CARIOCA ......................................................................................................40

    Audiovisual Renato Luiz Pucci Jr., da Universidade Anhembi Morumbi UMA NOVA EXPERIMENTAO NA TV BRASILEIRA ......................................................................................................................46

    Roteiro Paulo Lins, escritor CULTURA COMO ARMA DE RESISTNCIA ...............................................................................................................................................54

    Museu Karen Worcman, do Museu da Pessoa HISTRIA ORAL E A RIqUEZA DOS RELATOS .....................................................................................................................................58

    Pesquisa Maria Immacolata Vassallo de Lopes, da USP TELEDRAMATURGIA COMO OBJETO DE ESTUDO ..........................................................................................................................64

    Debate ..........................................................................................................................................................................................................................................68

    Entrevistas .................................................................................................................................................................................................................................76LUIZ FERNANDO CARVALHO ................................................................................................................................................................................78HELOISA BUARqUE DE HOLLANDA ..............................................................................................................................................................84

    Depoimentos Museu da Pessoa ....................................................................................................................................................................90ERIKA JANUZA Da escola em Contagem para a Conceio .....................................................................................................................92 FABRCIO BOLIVEIRA O menino atrs de um eu .....................................................................................................................................94 ROSA MARYA COLIN Estrada das Lgrimas, nmero 13 .......................................................................................................................96 HAROLDO COSTA Da poca em que no havia negro no teatro .........................................................................................................98 DANI ORNELLAS Baixada Fluminense, da violncia e da poesia ...................................................................................................100 CRIDEMAR AqUINO A gente fazia teatro sem saber ................................................................................................................................102 ANA PROLA Gari de dia, danarina noite ................................................................................................................................................104

    Making of .............................................................................................................................................................................................................................106

  • Uma histria de amor e drama social que se passa na Zona Norte do Rio de Janeiro em meados dos anos 1990. O seriado Suburbia, idealizado pelo diretor Luiz Fernando Carvalho e assinado por ele em coautoria com o escritor Paulo Lins, envolve aspectos econmicos, geogrficos, histricos, socio- lgicos, filosficos e literrios do subrbio.

    Com o objetivo de ampliar o debate acadmico e a reflexo multidisciplinar sobre esses temas, oGlobo Universidaderealizou o seminrio Suburbia: O indivduo na construo do imaginrio social. Foram duas sesses, uma no Rio de Janeiro, mediada pela jornalista Bianca Ramoneda, na Pontifcia Universidade Catlica (PUC-RJ), no dia 6 de novembro de 2012, e outra em So Paulo, mediada pelo professor Adilson Citelli, na Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo (ECA-USP), no dia 13 do mesmo ms. A minissrie, exibida pela Globo em oito episdios, foi ao ar entre 1 de novembro e 20 de dezembro de 2012.

    Os debates reuniram professores de diversas universidades e reas do conhecimento. Suas apresentaes esto reproduzidas neste segundo nmero do Caderno Globo Universidade, que amplia a discusso sobre os temas abordados e as questes sugeridas pela minissrie.

    Os seminrios tiveram dois eixos principais: por um lado, as questes ligadas ao subrbio, sua histria, seu legado cultural, econmico e social e o papel disso na constituio das identidades individuais, coletivas e a prpria identidade das cidades; por outro, a criao da srie, sua linguagem dramatrgica, que mistura fico e realidade, a representao dos negros e o espao das periferias na produo cultural brasileira. Alm dos temas apresentados nos seminrios, esta edio traz reflexes complementares e entrevistas exclusivas.

    Suburbia narra a trajetria de Conceio, uma menina pobre e analfabeta que deixa o interior de Minas Gerais em busca de uma vida nova, longe dos fornos de carvo onde passou a infncia. Vai para o Rio de Janeiro e comea a trabalhar como empregada

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  • domstica, at ser acolhida por uma famlia da Zona Norte. Ali ela se apaixona, faz amigos, vira estrela dos bailes funk e rainha de bateria de escola de samba.

    A srie uma obra de fico, porm apresentada com linguagem quase documental, com o objetivo de criar um retrato do subrbio mais prximo da realidade. Minas Gerais e vrios bairros suburbanos do Rio de Janeiro serviram de cenrio para a histria, cujas cenas foram realizadas inteiramente em locaes externas, evitando-se os estdios e as representaes cenogrficas.

    Com o intuito de enfatizar ainda mais essa relao entre fico e realidade, foi estabelecida uma parceria com o Museu da Pessoa, que registrou depoimentos dos atores do elenco de Suburbia. Profissionais e no profissionais, e em sua maioria negros, os atores foram selecionados por terem histrias de vida parecidas com as dos personagens que encarnariam na trama. Os depoimentos trazem esses relatos pessoais e foram gravados em vdeo e transcritos pela equipe do Museu da Pessoa um museu virtual e colaborativo que tem como misso compartilhar histrias de vida e transform-las em fonte de conhecimento. Este caderno reproduz esses depoimentos (acesse os links dos vdeos no site do museu).

    Alm disso, o caderno traz tambm uma sesso de fotos de making of de Suburbia. As cenas foram registradas por fotgrafos da agncia do programa Imagens do Povo, do Complexo da Mar, que acompanharam a gravao do seriado. Criado pelo Observatrio das Favelas, o programa um centro de documentao, pesquisa, formao e insero de fotgrafos de comunidades populares no mercado de trabalho.

    Boa leitura

    Crianas brincam em quintal de casa no subrbio do Rio de Janeiro, em cena da minissrie

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    Nesta edio // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

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  • rua do subrbio em cena da minissrie

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    artigo

    UMA NOVA JUVENTUDE PARA ALM DAS ESTATSTICAS

    Iniciativas governamentais e no governamentais surgidas nos anos 1990 ampliaram o campo de possibilidades para jovens negros moradores das periferias brasileiras

    O que significa ser jovem, negro e viver em uma periferia, subrbio ou favela nas diferentes cidades brasileiras hoje? Quais so as dificuldades enfrentadas e as novas possibilidades que se abrem para essa gerao?

    A antroploga Regina Celia Reyes Novaes relata, no artigo a seguir, a histria de quatro jovens negros de Salvador. Baseada em entrevistas feitas para a realizao de um videodocumentrio, a professora traa o perfil dessa gerao que, a despeito de precon-ceitos e desigualdades, chegou universidade, luta pelo emprego qualificado e tem acesso tecnologia e a um tipo de formao que seus pais no tiveram.

  • qUATRO JOVENS, qUATRO TRAJETRIASregina Celia reyes Novaes, da USP

    Desde que me convidaram a participar desta discusso, fiquei pensando no que significa hoje a palavra subrbio. Favela e/ou comunidade? Periferia e/ou subrbio? A antropologia nos ensina a prestar ateno nas palavras. As palavras tm vida, vo mudando de significados no decorrer do tempo e em diferentes espaos. Nas dinmicas sociais os significados de dicionrio vo se transformando.

    Houve um tempo em que se discutiu muito sobre o uso das palavras favela e comunidade. Ouvindo moradores, conclu que essas palavras no deveriam ser vistas como nomeaes excludentes. As duas palavras vieram de fora. Foram usadas para estigmatizar (favela) ou para minorar estigmas (comunidade foi introduzida pela Igreja Catlica e, posteriormente, por projetos governamentais). Mas elas foram sendo reapropriadas por moradores dessas reas, por diferentes pessoas e por diferentes geraes.

    Em pesquisa no Rio de Janeiro, entrevistei jovens que diziam: Eu falo favela para certas coisas, e comunidade para outras. Esses entrevistados deram vrios exemplos do uso que faziam dessas designaes, de maneira bastante criativa, de acordo com diferentes interlocutores e demandas que levavam a governantes, mdia ou a mediadores de ONGs.

    Ao mesmo tempo, projetos e iniciativas como Favela tem Memria, Museu da Pessoa ou Central nica das Favelas (Cufa) foram nascendo e trazendo novos contedos, novas formas de apropriao para a oposio favela-asfalto. Nesse contexto, de reafirmao de pertencimento, favela, que era estigma, virou sinal positivo. Virou bandeira, emblema, servindo para denunciar desigualdades e afirmar potencialidades. De estigma a emblema, a palavra favela se faz presente nas letras de rap, em poemas e contos produzidos nesses espaos. O que no quer dizer que a palavra comunidade tenha sido banida do vocabulrio. Apenas quer dizer que seu uso serve para ocultar ou recobrir totalmente o significado da designao favela.

    Com efeito, para diferentes geraes modificam-se usos e percepes de palavras e espaos. No livro da Alba Zaluar A mquina e a revolta,1 h algumas pginas em que ela conta como chegou a Cidade de Deus, nos anos 1980. Recomendei a leitura a meus alunos que estavam comeando a estudar Antropologia na UFRJ. Quando chegou a hora da discusso,

    1 ZALUAR, Alba. A mquina e a revolta: as organizaes populares e o significado da pobreza. So Paulo: Brasiliense, 1985.

    regina Celia reyes Novaes doutora em Antropologia Social pela Universidade de So Paulo (USP) e professora aposentada do programa de ps-graduao em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Cincias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ). Foi secretria-adjunta da Secretaria Nacional de Juventude, presidente do Conselho Nacional de Juventude, consultora do Instituto Brasileiro de Anlises Socioeconmicas (Ibase), alm de ter atuado como consultora snior do Pnud/Naes Unidas para a realizao do Informe Juventude e Desenvolvimento Humano nos pases do Mercosul

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    Regina Celia Reyes Novaes // Artigo // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

    ANTroPoloGIA

  • vi que a turma no teve, por aquele captulo introdutrio, a mesma deferncia antropolgica que eu tinha. A descrio das cuidadosas estratgias da antroploga para bem entrar no seu campo de estudo causou certo estranhamento, e at certa irritao, em uma parte dos alunos. Mas, como? Precisou parar o carro no sei onde? Precisou andar de determinada forma?. Percebi, ento, que na minha sala de aula havia uma parcela significativa de jovens que tinham vivido ou ainda viviam em favelas. Aqueles aprendizes de antroplogo que transitavam pelos dois lugares, pela favela e pelo asfalto, havia chegado universidade. Eles demonstraram como no s as palavras, mas tambm certas estratgias de pesquisa so datadas. Transitando com familiaridade por diferentes espaos, certamente seus estranhamentos sero outros.

    E como fica a palavra periferia? O termo era pouco usado no Rio de Janeiro antes de o grupo de rap de So Paulo Racionais MCs cunharem a inspirada frase Periferia periferia (em qualquer lugar) [nome de uma das faixas do lbum Sobrevivendo no inferno, de 1997]. A disseminao da palavra periferia se evidencia de maneira muito forte no filme O rap do Pequeno Prncipe contra as almas sebosas.2 No filme, h uma cena que marca esse primeiro momento em que se comea a falar em juventude brasileira da periferia: os protagonistas esto sentados em uma laje (creio) e comeam a chamar: Mangueira, Rocinha, Capo, Retinga etc., nomeando favelas do Brasil inteiro. Nesse contexto, periferia torna-se um amlgama para identificar determinadas parcelas das juventudes brasileiras.

    A palavra periferia ganhou vida, se transformou. Seu sinal negativo marcava oposio ao centro, onde se concentram recursos materiais e simblicos de poder. Com o tempo, tornou-se no s a afirmao de pertencimento territorial, mas, tambm, de uma nova vertente de produo artstica e cultural. Na mdia, temos notcias de cooperativas de produo, de literatura e grupos de skate que usam a palavra periferia como emblema identificador. Fala-se em esttica da periferia.

    2 Documentrio de Paulo Caldas e Marcelo Luna, 2000.

    Cena do filme O rap do Pequeno Prncipe contra as almas sebosas, que retrata

    periferias brasileiras

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  • E, finalmente, o que dizer da palavra subrbio? O termo vem do latim suburbium, que, literalmente, significa subcidade. Escutando Chico Buarque, temos uma apropriao carioca. Em sua letra Subrbio, em contraposio cidade bem estabelecida, so citados bairros bem diferentes entre si, mas que se homogenezam: pela cara a tapa, pela chapa quente, por no ter turista, por no sair nas revistas. No entanto, no Rio de Janeiro, a designao subrbio tambm usada com sinal positivo, com certa nostalgia amorosa, com uma dose de idealizao buclica. Ou seja, a palavra subrbio no traz consigo uma oposio/tenso social similar quela encontrada desde sempre na palavra favela e, mais recentemente, na palavra periferia.

    Porm, recentemente, em Fortaleza, ouvi um rap em que o jovem autor usava a palavra subrbio. Nesse caso, a palavra subrbio apareceu como um sinnimo das outras (favela, comunidade e periferia) usadas para descrever a cartografia social que hierarquiza locais de moradia. No tenho informaes para afirmar que seu uso esteja crescendo e se modificando no vocabulrio dos raps. Ou se o uso de subrbio revela uma corrente, uma tendncia no interior do diversificado movimento hip hop. Mas pode-se refletir sobre essas e outras possibilidades.

    Nesse sentido, acho que interessante a minissrie Suburbia evocar essa palavra. Em sua ambivalncia potica, Suburbia poderia encontrar um caminho particular para (re)apresentar trajetrias de jovens negros do Brasil de hoje.

    Trajetrias de jovens de projetoA desigualdade e o racismo persistem no Brasil, a situao de violncia entre jovens

    alarmante. Mas, nesses ltimos tempos, desde os anos 1990, surgiram novas mediaes que contriburam para um reposicionamento de jovens negros em termos de construo de identidade e trajetrias de vida. Esses jovens expressam uma parcela da juventude que no logra estar representada estatisticamente, a quem chamo jovem de projeto.

    Para exemplificar, retomo aqui informaes sobre as trajetrias de vida de quatro jovens negros baianos, que pude entrevistar para a edio de um videodocumentrio intitulado Uma arvore bonita.3 Carla Akotirene, Elder Santos, Mia Lopes e Diego Alcantara comearam a trabalhar cedo e combinaram estudo e trabalho. Suas histrias mostram o quanto a ideia corrente de que h uma grande parcela da juventude que no trabalha e no estuda pode estar referida apenas a um retrato esttico de um momento da vida dos jovens de hoje. Esse diagnstico no apreende os movimentos das mltiplas entradas e sadas na escola e no mercado de trabalho pelas quais passa esta gerao. Com muito esforo, hoje os quatro esto na universidade. Para chegar l, contaram com o apoio de ONGs e de programas governamentais. O que mais esses jovens tm em comum?

    Em todas as quatro histrias, o lugar da me muito destacado. A me o que fixa, enraza. Os pais so os que passam ou se mantm mais distantes... Enquanto os especialistas falam sobre famlias desestruturadas, o que vemos uma me forte, um porto seguro, em torno da qual h vrios modelos de famlias.

    3 Uma rvore bonita (Brasil, 2012). Direo de Beto Novaes. Realizao: Unirio e Secretaria Nacional de Juventude.

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    Regina Celia Reyes Novaes // Artigo // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

  • Outro ponto em comum: ao falarem sobre a escola pblica, evidenciam sentimentos contraditrios de crtica e de reconhecimento, de repulso e de atrao. Todos tm uma histria ruim para contar sobre a escola pblica onde estudaram: falam sobre o currculo distante da realidade, professores desinteressados, baixos salrios, falta de infraestrutura etc.

    Mas da memria escolar tambm resgatam momentos de aprendizado, experincias com teatro, lembram de alguns professores interessantes e interessados que os ajudaram a se expressar, se valorizar... Falam sobre o direito a uma escola de qualidade e, enquanto essa escola no se faz realidade, valorizam os certificados escolares como um passaporte para chegar ao mundo do trabalho.

    O mundo do trabalho um manancial de incertezas. Esses jovens fazem parte de uma gerao a primeira no Brasil em que os jovens se empregam abaixo do nvel de escolaridade atingido. Assim como tambm fazem parte da primeira gerao em que os filhos ensinam os pais, mesmo quando os pais tm mais escolaridade que eles. Isso porque as novas tecnologias de informao e comunicao fazem parte de sua socializao.

    O conhecimento se d na escola, mas ela no mais a nica fonte de saber. Pode-se estudar e no conseguir trabalhar; trabalhar e depois estudar, ou participar de um projeto social e estudar a partir dessa motivao. Assim, abrem-se espaos para trajetrias incomuns, no lineares, no previsveis.

    Tambm como ponto comum entre os jovens entrevistados esto as experincias com os preconceitos. Em suas narrativas, os quatro contam situaes em que foram alvo de discriminao racial. Relatam situaes constrangedoras de medo e suspeio baseadas na cor da pele, mesmo sendo Salvador uma cidade com um nmero to significativo de negros. A tomada de conscincia da raa, da ancestralidade como gostam de dizer, sempre citada como incio de um compromisso social. Porm como contam Mia e Diego , alm de enfrentarem o preconceito pela cor da pele, esses jovens ainda tm de enfrentar outros, advindos de padres de beleza, orientao sexual, pertencimento religioso etc. Vejamos um pouco de suas histrias.

    Mia nasceu e foi, pequena, para a comunidade (bairro distante, periferia) onde mora. Seu bero poltico foi um projeto social da ONG Cip Comunicao Interativa. Nessa convivncia, foi se livrando de preconceitos de gnero, raa, padro de beleza... Estuda Comunicao em uma faculdade particular, com bolsa de estudos. Hoje ela se define como comunicadora. Ela faz locuo em um programa de rdio e coordena um site que divulga produtos feitos por mulheres empreendedoras.

    Carla j viveu em vrias comunidades (bairro distante/favela). Conta que tinha bem interiorizados os preconceitos de classe, gnero e raa at fazer cursinho pr- -vestibular na Fundao Steve Biko. Passou no vestibular, fez graduao em Servio Social na Universidade Catlica e hoje faz mestrado na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Sua dissertao sobre a situao de jovens no sistema presidirio. Participa de um programa de extenso universitria com mulheres marisqueiras que vivem em comunidades tradicionais.

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    CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Mar. 2013 // Artigo // Regina Celia Reyes Novaes

    ESSES JOVENS FAZEM PARTE DE

    UMA GERAO A PRIMEIRA NO

    BRASIL EM QUE OS JOVENS SE

    EMPREGAM ABAIxO DO NVEL DE

    ESCOLARIDADE ATINGIDO

  • Elder, ainda adolescente, participou de um programa social do municpio (Fundao Casa-Me), que tinha sede em sua comu-nidade (bairro pobre/favela/periferia). Conta que, adolescente, foi educado pelo movimento hip hop. Letras do grupo Faco Cen-tral foram sua cartilha poltica. Participou tambm de um movi-mento de estudantes do ensino mdio contra o preo do transporte urbano. Hoje, participa do Frum Nacional de Segurana Pblica. estudante de Direito, quer ser advogado porque acha que os jo-vens negros precisam de advogados.

    Diego nasceu em uma favela/comunidade considerada das mais violentas de Salvador. Diz que percebia que a comunidade estava devorando a si mesma, mas encontrou ali mesmo um projeto social e um mestre de capoeira. Na escola, sofreu preconceitos: negro, veado, gosta de teatro. Depois, no entorno, ingressou em um Ponto de Cultura (projeto do Ministrio da Cultura). Hoje estuda Artes Cnicas na UFBA. Est envolvido em um projeto de extenso universitria que se dedica a levar autores clssicos, como Shakespeare, para as comunidades.

    Trajetrias excepcionais? Os jovens citados acima experimentam uma ampliao do campo de possibilidades nas reas onde moram, que, como vimos acima, so designadas por eles ora como favelas, ora como periferias, ou bairro distante. Tornaram-se jovens de projeto e, nesse contexto, falam em comunidade. Como eles mesmos compreendem suas trajetrias de sucesso em comparao a outros jovens que com eles cresceram?

    Eles sabem que fogem regra. Mas tambm no querem ser vistos como vencedores premiados pelo esforo pessoal. Esses jovens no operam com a lgica do self-made man. Enumeram as oportunidades que tiveram e hoje se sentem responsveis por encontrar formas para chegar at outros jovens, para deter o genocdio da juventude negra no Brasil, nas palavras de Elder.

    Para as Cincias Sociais sempre surge a pergunta: por que uns e no outros? Certa vez Pierre Bourdieu, conhecido socilogo francs, comparou as trajetrias individuais com os diferentes caminhos que podem ser feitos no interior de uma grande rede de um metr urbano. Os usurios podem partir de uma mesma estao e fazer transferncias diferentes para pegar os trens para as diversas estaes. Mas, o limite das escolhas individuais est na matriz que conforma a rede, fazendo-a histrica e socialmente determinada.

    Certamente, essa matriz (produto histrico) no imutvel. Movimentos sociais, disputas de poder, mutaes em padres culturais, intervenes de projetos e programas sociais podem ampliar essa matriz estabelecendo outro contorno, com outros limites que sero explorados pelos usurios. Nessa perspectiva, as trajetrias de Carla, Mia, Elder e Diego so, a um s tempo, individuais e coletivas. So trajetrias possveis, entre outras, no tempo histrico presente.

    Ou seja, generalizar a partir de trajetrias individuais, numericamente pouco representativas, parece ser o equvoco mais bvio, pois oculta a situao da maioria dos

    Capa do DVD do filme Uma rvore bonita

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  • jovens. Por outro lado, desconsider-las, por serem singulares e pouco representativas, amputar uma parte da realidade presente que se quer conhecer.

    Entre os equvocos mais comuns est usar histrias exemplares para enaltecer os projetos culturais. O que, geralmente, tem um subtexto: a arte salva. Como se sabe, desde os anos 1990, h uma tendncia de recomendar atividades culturais como frmula para a preveno da violncia. Cabea vazia, oficina do diabo. Nessa abordagem, a arte e a cultura no so vistas como canais de expresso e criatividade e sim, apenas, como um mecanismo de conteno.

    Equvocos parte, em tempos de inocncia perdida, as trajetrias aqui apresentadas podem servir de alerta para a necessidade de compreender melhor como os projetos governamentais e no governamentais interferiram no uso das palavras, afetaram trajetrias de jovens negros no Brasil, introduziram maior diversidade nesses espaos vistos de fora como homogneos.

    Ao analisarmos as trajetrias de Mia, Carla, Elder e Diego, podemos pensar que eles podem ser considerados mediadores de dentro, pois esto se apropriando de conhecimentos, produzindo imagens, construindo narrativas sobre os espaos onde vivem. Assim como meus alunos de Cincias Sociais, leitores de Alba Zaluar, seus estranhamentos so outros, compatveis com as experincias que vivenciam.

    Nos anos 1970, na Antropologia, surgiu a famosa provocao de Eunice Durham:4 observao participante ou participao observante? Evitando essa confuso de papis, alguns abriam mo da neutralidade cientfica e j se declaravam intelectuais orgnicos, educadores populares, a servio dos movimentos. Todos falavam em devolver o conhe-cimento aos interessados.

    4 DURHAM, Eunice Ribeiro. A reconstituio da realidade. So Paulo: tica, 1978.

    Jovens danam em baile funk em cena da

    minissrie Suburbia

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  • De l para c, o que mudou? As identificaes continuam. Mas hoje ningum mais enfatiza a necessidade de devolver resultados de pesquisa. As apropriaes so simultneas. J faz muitos anos que os Racionais MCs usaram os dados do IBGE para fazer um rap de sucesso. Ningum precisa levar informaes. Grupos juvenis sabem se apropriar dos textos acadmicos que esto disposio na grande rede.

    Certamente, no se trata de inviabilizar pesquisas ou de declarar o fim da mediao externa. Mas preciso inovar, fazer outras perguntas para poder ampliar o conhecimento a ser disponibilizado, apropriado.

    Jovens negros: novas imagensLembro quando as imagens da periferia chegaram MTV. Transcrevo aqui a reao de

    uma jovem antroploga sobre as primeiras imagens do hip hop na MTV. Foi inicialmente como consumidora que presenciei, nas palavras do grupo Pavilho 9,

    a tomada, por assalto, do cenrio nacional do movimento hip hop. Como consumidora estranhei o deslocamento das imagens e notcias sobre a periferia (desabamento na favela, as filas para vagas no setor de sade ou de educao, as rebelies em penitencirias, as chacinas, as ruas sem esgoto, as casas inacabadas...) dos telejornais para as revistas, canais de televiso e programas especiais que giram em torno do mundo pop. Foi estranho ver na MTV, entre dois clipes onde predominavam as coloridas roupas da moda fashion, os cabelos coloridos, os ambientes hiper-reais, ao lado de cenas de alguma favela, negros encapuzados, armas, 111 presos mortos, corredores do Carandiru. A dcada de 1990 foi invadida pela presena da periferia para alm do lugar onde at ento ela estava. O rap, o grafite e o break invadiram o universo urbano, veiculando-se pelo universo pop.

    Por diferentes razes que no podemos analisar aqui, a MTV teve de incorporar aquelas imagens que at ento no faziam parte do chamado universo pop. Passados 20 anos, clipes similares circulam na internet, nos blogs, nos sites, nas redes sociais. Imagens da periferia so captadas e reproduzidas nos celulares dos moradores locais.

    Ou seja, outro o cenrio no qual, em 2012, Suburbia estreou na Globo. As primeiras imagens, muito negras e poticas, foram impactantes em um pas que apesar dos avanos ainda se enxerga como branco. E a histria tem um cenrio conhecido. Depois de algumas aventuras e muitas desventuras, em uma comunidade que a bela herona Suburbia se instala. l que ela acolhida por uma famlia multirreligiosa; se apaixona; convive com a violncia do trfico de drogas; volta a estudar; trabalha na rea de cultura... se identifica, se singulariza.

    Pode-se at perguntar por que a TV aberta incorporou esse projeto. Qual seria seu pblico potencial? Mesmo sem poder responder a essas indagaes, possvel prever que a minissrie ser um marco importante na dramaturgia televisiva brasileira.

    Contudo, mesmo sem cobrar realidade da criao da fico, o universo de Suburbia que comea nos anos 1990 parece no dar conta de retratar os territrios onde vivem hoje jovens com perfis semelhantes. O desafio parece ser encontrar caminhos para reconhecer diferentes trajetrias juvenis nesses territrios, enriquecendo-os, dificultando a mera reproduo de percursos previsveis e de veredictos simplificadores. Afinal, nada ser como antes.

    Para saber mais:

    Favela Tem Memria: http://bit.ly/Zg6a11

    CUFA: http://bit.ly/VnjmjH

    Cip Comunicao Interativa: http://bit.ly/12MzR6l

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    Regina Celia Reyes Novaes // Artigo // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

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    artigo

    SUBRBIO CARIOCA, NEM SEMPRE NA PERIFERIA

    Bairros localizados nos arredores das metrpoles constituem os limites da zona urbana. No caso do Rio de Janeiro, foram ultrapassados pela prpria cidade

    O conceito de subrbio adquiriu um significado prprio na cidade do Rio de Janeiro. Ele ultrapassa a etimologia da palavra e o sentido geogrfico do termo e no se refere, necessariamente, a um bairro localizado longe do centro, nos arrabaldes da cidade. Caracteriza muito mais uma identidade, uma cultura e uma vida em busca de possibilidades de mudana. No artigo a seguir, o gegrafo Mrcio Pion de Oliveira discute o conceito de subrbio no Rio de Janeiro e em outras metrpoles do mundo.

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    Mrcio Pion de Oliveira // Artigo // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

    Mrcio Pion de oliveira doutor em Geografia pela Universidade de So Paulo (USP), com ps-doutorado na cole des Hautes tudes en Sciences Sociales (EHESS, Frana). professor do programa de ps-graduao em Geografia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e coordenador do Ncleo de Estudos e Pesquisas Urbanas (Neurb-UFF)

    GEoGrAFIA

    SOLUES E ESPERANA NAS FRONTEIRAS DA CIDADEMrcio Pion de oliveira, da UFF

    Neste artigo, abordarei um tema que muito caro para mim: a pesquisa relacionada histria e evoluo urbana da cidade do Rio de Janeiro. Vivo mergulhado na geografia urbana e tenho a cidade do Rio de Janeiro como objeto de pesquisa. Apesar disso, no fcil tratar desse tema, por causa do meu envolvimento pessoal com a histria da cidade e do subrbio.

    Sou nascido e criado na Penha, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro, marcado em sua paisagem pela Igreja de Nossa Senhora da Penha, no alto da colina, e pela fbrica de couro do Curtume Carioca, hoje desativada. Vivi at os 8 anos de idade do lado da avenida Brasil; dos 8 aos 16 anos, morei no loteamento chamado Bairro Dourado, do lado da Igreja da Penha e a caminho da Vila Cruzeiro, favela que, nos dias atuais, juntamente com outras, faz parte de um imenso complexo onde habitam mais de 200 mil pessoas, o Complexo da Vila Cruzeiro, limtrofe ao outro complexo, o do morro do Alemo.1

    Os subrbios ferrovirios da cidade do Rio de Janeiro foram cortados, desde a segunda metade do sculo xIx, por trs grandes eixos ferrovirios.2 O principal, e mais conhecido deles, o da Central do Brasil (antiga E. F. Dom Pedro II), que veio a dar origem aos bairros do Engenho Novo, Mier, Engenho de Dentro, Cascadura, Madureira, entre outros. O segundo eixo o da Ferrovia Leopoldina (antiga E. F. do Norte), que originou os chamados bairros da Leopoldina, como Bonsucesso, Ramos, Olaria, Penha e Brs de Pina. O terceiro o eixo da Linha Auxiliar (E. F. Central do Brasil), que gerou os bairros de Jacarezinho, Del Castilho, Pilares, Rocha Miranda e Barros Filho.

    Desse modo, os subrbios ferrovirios no Rio foram sempre divididos em dois lados,

    1 Essa rea da cidade ganhou a cena no episdio do assassinato do jornalista investigativo Tim Lopes que, em 2 de junho de 2002, foi favela da Vila Cruzeiro gravar imagens de um baile funk promovido por traficantes de drogas, aps ter recebido denncia dos moradores da favela de que no baile acontecia explorao sexual de adolescentes e venda de drogas. A forma cruel de sua morte no apenas chocou os cariocas como recebeu destaque da imprensa brasileira e internacional.

    2 Cf. ABREU, Maurcio de Almeida. A evoluo urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1987.

  • Plataforma da estao Madureira, Rio de Janeiro

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    CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Mar. 2013 // Artigo // Mrcio Pion de Oliveira

    de acordo com a linha do trem,3 exceo de Madureira onde se passa a minissrie Suburbia , que tem trs lados, por ser cortado por duas redes ferrovirias: a Central do Brasil e a Linha Auxiliar. Observando-se o mapa do municpio do Rio de Janeiro, Madureira fica relativamente no centro geogrfico da chamada Zona Norte da cidade, tanto no eixo norte- sul, como entre o leste e o oeste.

    importante pensar nessa dimenso geogrfica da cidade e na centralidade do bairro de Madureira. No sei se os autores de Suburbia pensaram nisso quando escolheram o lugar no qual se desenvolveria a trama. A propsito, em Madureira que a

    protagonista Conceio ser acolhida por uma famlia amiga. E esta uma das caractersticas do subrbio, o acolhimento. O subrbio no cosmopolita, ao contrrio do que afirma em texto clssico o socilogo alemo Georg Simmel, que ressalta a atitude blas do cosmopolita da metrpole.4 Eu diria: Graas a Deus, o subrbio no cosmopolita, no blas, porque ele no indiferente, no impessoal. Dificilmente se anda pelas ruas do subrbio sem que as pessoas se olhem, se cumprimentem, se reconheam, mesmo sem conhecer. O subrbio realmente acolhedor e nada urbano no sentido de Simmel.

    Mas esse subrbio a que estamos nos referindo aquele que os cariocas insistem ainda em denominar de subrbio, fazendo aluso aos bairros cortados pelas estradas de ferro na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro. Entretanto, isso no quer dizer que esses bairros sejam, de fato, subrbios, se assim tomado o conceito na literatura acadmica que trata do assunto.5

    Na realidade, j faz muito tempo que o subrbio passou por Madureira, por exemplo. Hoje, Madureira, assim como os demais bairros ferrovirios a que nos referimos, est longe de ser subrbio, tal como conceituado na literatura acadmica, isto , esse lugar mais distante da rea central da cidade, de habitat disperso, na franja da malha urbana, sub-urbano ou quase urbano; transio espacial entre o rural e o urbano, de paisagem em permanente transformao e movimento, acompanhando a expanso da cidade e sua urbanizao.

    3 Cf. LINS, Antonio Jos Pedral Sampaio. Ferrovia e segregao espacial no subrbio: Quintino Bocaiva, Rio de Janeiro. In: OLIVEIRA, Mrcio Pion de; FERNANDES, Nelson da Nbrega (Org.) 150 anos de subrbio carioca. Rio de Janeiro: Lamparina; Niteri: EdUFF, p. 138-160.

    4 SIMMEL, Georg. A metrpole e a vida mental. In: VELHO, Otvio G. (Org.). O fenmeno urbano. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.

    5 Cf. MUMFORD, Lewis. O subrbio e depois. In: ______. A cidade na histria. Belo Horizonte: Itatiaia, 1965.

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  • Rua do morro do Castelo, que foi demolido para projeto de reforma urbana do centro do Rio de Janeiro, em foto de 1922

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    Mrcio Pion de Oliveira // Artigo // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

    Nesse sentido, se tomarmos historicamente o subrbio no Rio de Janeiro, este j foi logo ali, nas cercanias ou arrabaldes da cidade Catumbi, So Cristvo, Tijuca, Botafo-go ou Gvea foram um dia chamados assim.6

    Mas no Rio de Janeiro h um conceito especfico de subrbio, o conceito carioca de subrbio, como indicado desde 1960, pelos trabalhos da gegrafa Maria Therezinha de Segadas Soares, sobre a cidade do Rio de Janeiro.7 O subrbio a que ela se refere, na verdade, j estava em Nova Iguau, em Duque de Caxias, em Santa Cruz, muito para alm daquilo que identificamos hoje como subrbio. Estamos falando de subrbio como categoria geogrfica. importante esclarecer e desmistificar o termo, pois, na identificao do que subrbio hoje no Rio de Janeiro, h uma roupagem prpria, um esteretipo, e um peso ideolgico muito forte.

    Como ressaltamos, na literatura, o subrbio aquele lugar mais distante da rea central, longnquo, que apresenta aquele aspecto de descontinuidade das construes e de menos gente ocupando mais terra.8 No exatamente a periferia, porque periferia j nos remete a um outro conceito de forte matiz social, que muito utilizado em So Paulo, por exemplo, para identificar aqueles espaos de loteamentos perifricos de baixa renda.9 Mas, no caso de So Paulo, a periferia geogrfica, da distncia geogrfica em relao ao centro, coincide com a periferia social. No Rio de Janeiro, no necessariamente. Pode-se dizer que tanto Mier quanto Madureira ou outros bairros, do dito subrbio carioca hoje, reproduzem muito a estrutura de classe da prpria cidade do Rio de Janeiro em seu conjunto, no sendo espaos homogneos. No so, portanto, necessariamente, a periferia social da cidade. Ao contrrio do que se possa supor, esses bairros tambm tm as suas periferias sociais, que se espraiam para os morros/favelas e antigos conjuntos habitacionais que tambm neles tomam lugar.

    6 EL-KAREH, Almir Chaiban. Quando os subrbios eram arrabaldes: um passeio pelo Rio de Janeiro e seus arredores no sculo xIx. In: OLIVEIRA, Mrcio Pion de; FERNANDES, Nelson da Nbrega (Org.). 150 anos de subrbio carioca. Rio de Janeiro: Lamparina; Rio de Janeiro: EdUFF. p. 19-56.

    7 SOARES, Maria Therezinha de Segadas. Divises principais e limites externos do Grande Rio de Janeiro. Anais da AGB, v. xII (1958-1959), So Paulo, 1960.

    8 Idem.

    9 Cf. BONDUKI, Nabil; ROLNIK, Raquel. Periferia de So Paulo: reproduo do espao como expediente de reproduo da fora de trabalho. In: MARICATO, Ermnia. A produo capitalista da casa e da cidade no Brasil industrial. So Paulo: Alfa-Omega, 1979.

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  • Vista area de subrbio rico em San Diego,

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    CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Mar. 2013 // Artigo // Mrcio Pion de Oliveira

    muito fcil ver a cidade do Rio de Janeiro como a cidade partida entre Zona Sul e Zona Norte, e ver o subrbio como parte constitutiva da chamada Zona Norte e projetar para ele boa parte da tenso vivida no cotidiano da metrpole. Historicamente vivemos um paradoxo. No passado, o subrbio romntico, como na letra da cano Gente humilde, de Garoto, Chico Buarque e Vinicius de Moraes, de casas simples, com cadeiras na calada/ e na fachada escrito em cima que um lar.10 Nos dias de hoje, espaos fragmentados, de forte contedo sociocultural,11 identificados como parte da representao da cidade, mas revestidos pela roupagem da violncia e insegurana. Mas isso no fez sempre parte dessa realidade. O racismo, sim, sempre esteve l como se v no romance de Lima Barreto, Clara dos Anjos, datado do ano da sua morte, 1922, em que o escritor assume um posicionamento de crtica social muito forte em relao ao racismo.12

    A construo da imagem do subrbio como lugar de pessoas simplrias, trabalhadores pobres, no modernos, precarizados e imersos na violncia da cidade, tal como aparece na minissrie Suburbia, muito recente na nossa histria urbana. Vem da dcada de 1980, a chamada dcada perdida, e perdura at os dias de hoje. , portanto, nessa passagem dos ltimos 30 anos que h a formao daquilo que passamos a identificar como um subrbio violento e refm da ilegalidade no Rio de Janeiro.

    Em outras metrpoles, os subrbios no so necessariamente pobres ou constitudos de lugares precrios para abrigar os pobres. Na Amrica do Norte, sobretudo, os subrbios foram ocupados

    por uma classe burguesa e mais abastada e que ali foi morar onde geralmente o custo de vida mais elevado, por causa da distncia e do preo dos meios de transporte para ter outras compensaes e amenidades em relao rea central, adensada, com a tenso do dia a dia, a poluio etc. Outro tipo de subrbio aquele que abriga a grande empresa, a indstria que no cabe mais na zona urbana das cidades e que foi denominado de company town.

    10 Gente humilde, composio de Garoto (Anbal Augusto Sardinha), Vinicius de Moraes e Chico Buarque de Holanda, 1969.

    11 Ver letra da msica Subrbio, composio de: Chico Buarque. Com certeza, retrata outro momento da cidade e de outro subrbio, bem distinto daquele de Gente Humilde.

    12 LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. Clara dos Anjos. Rio de Janeiro: Garnier, 1991 [1 ed. 1924]. Disponvel tambm em: http://bit.ly/15Gavu5.

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  • Obras na rua da Carioca, em 1905. Reformas foraram populaes a buscar refgio nos subrbios

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    Mrcio Pion de Oliveira // Artigo // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

    Na Frana, por exemplo, encontramos tanto o subrbio pobre quanto o rico, as denominadas banlieues. Essa colagem entre classe social e subrbio, identificando o subrbio como um lugar no moderno em oposio quilo que seria a rea central, ou a Zona Sul da cidade moderna, ou o que seria o chique e o no chique, algo muito particular da cidade do Rio de Janeiro. No ocorre exatamente assim em muitas outras metrpoles.

    Enfim, gostaria de deixar, ento, trs pontos para a reflexo sobre o papel historicamente desempenhado pelos subrbios em nossas cidades.

    O primeiro ponto diz respeito ao que entendemos como subrbio e o que ele representa na cidade. Referimo-nos ao subrbio como um lugar de fronteira, como ponto mdio, considerando que h sempre um dentro e um fora da cidade, tanto geograficamente quanto do ponto de vista social. H um dentro e um fora em relao a determinadas representaes sociais projetadas para a cidade e que tendem a se fazer hegemnicas com referncia ao que aceito ou no, ao que se considera como razovel para ser respeitado naquela sociedade. Nesse sentido, o subrbio tem, ento, o papel de ser um lugar de fronteira, de ser um dentro e fora na cidade, um quase, mas, ao mesmo tempo, um espao-limite e limtrofe da ordem espacial e das relaes sociais. Limite geogrfico e limite social; limite entre o legal e o ilegal; entre o que est dentro das normas, das posturas, das convenes, e o que no as transgride.

    Em um segundo ponto, o subrbio aparece nas cidades e, neste caso, o Rio de Janeiro no uma exceo como um lugar para onde estas caminham na expanso urbana. Ento, se realizada uma reforma urbana no centro da cidade, isso significa dizer que essa cidade ao se modernizar vai encontrar outras formas e funes para sua rea central, e a populao que ali habitava at ento, por exemplo, assim como inmeras atividades, vai encontrar lugar, quase compulsoriamente, no subrbio. Foi isso o que ocorreu no Rio de Janeiro com a reforma de Pereira Passos, entre 1902 e 1906; ou com a remoo das favelas da Zona Sul, nos anos 1960 e 1970, para lugares perifricos da cidade e que eram, at ento, subrbios a exemplo dos conjuntos habitacionais da Cidade de Deus, em Jacarepagu; da Vila Kennedy, em Bangu; e da Cidade Alta, em Cordovil.

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  • Diviso do municpio do Rio de Janeiro em reas de Planejamento. AP3 abriga

    o que se convencionou chamar de subrbio carioca

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    CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Mar. 2013 // Artigo // Mrcio Pion de Oliveira

    Nesse sentido, o subrbio tanto vai abrigar, paradoxalmente, os problemas da cidade, que sero empurrados para ele, como ser, tambm, soluo para as novas indstrias e empresas que, por no encontrarem mais terrenos na rea central, instalam-se no subrbio, em lugares disponveis e em terrenos mais baratos. Se no h mais possibilidade ou condies de convivncia, ou quando se impe um processo de segregao socioespacial cidade pela valorizao do espao e pela elevao do preo dos terrenos como o que aconteceu com a remoo das favelas na rea da Zona Sul carioca, j assinalada , o lugar que essas populaes vo encontrar exatamente o subrbio. Ento, o subrbio o local que acolhe os problemas e, simultaneamente, abriga as suas solues. Temos muitos exemplos disso ao longo da histria do Rio de Janeiro. O subrbio um lugar de projetos, um lugar de esperanas, que acompanhou e conformou a segregao socioespacial da metrpole carioca.

    Por fim, um terceiro ponto. J falamos do conceito de subrbio como um lugar de fronteira, um lugar para onde caminha a cidade; portanto um lugar que abriga tanto os problemas como os projetos e solues, um lugar de esperana; e agora vamos tratar do conceito de subrbio como um lugar plstico, em permanente mudana. Isso porque, historicamente, o subrbio muda de lugar. Cristalizou-se, no Rio de Janeiro, o subrbio carioca como a AP3, a rea de Planejamento n 3, que abriga 13 regies administrativas e 80 bairros e ocupa o polgono que vai da altura de So Cristvo at Iraj, Madureira e toda essa regio que compe os bairros da chamada Zona Norte. Mas o subrbio um lugar de permanente transformao e mudana, tanto de mudana territorial como tambm na sua paisagem, nas suas formas e nas relaes.

    O subrbio est em permanente construo. Basta voltar a um subrbio depois de certo tempo sem visit-lo e observar: pode-se notar que novas casas subiram at

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    Mrcio Pion de Oliveira // Artigo // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

    mesmo nas reas de favelas v-se sempre um novo puxado, um anexo, uma nova laje. O lugar cresce, muda-se a fachada, surgem construes que no existiam antes. Em relao a determinadas reas da cidade, os subrbios esto em permanente construo, em movimento espacial, social e culturalmente. Porque o movimento de moradores do subrbio dentro da cidade aquele que a faz conhecer mais pessoas e lugares, por terem de se deslocar para a rea central e outras regies onde h servios, lazer, centros culturais, teatro. Nesse sentido, quem vive no subrbio conhece muito mais, geograficamente, a cidade, porque tem uma experincia de espao e tempo bem diferenciada.

    Como lugar plstico, de mudana e de transformao permanente da paisagem, o subrbio vai aparecer tambm como lugar mltiplo, como lugar de criao e de tenso. pelos projetos pessoais de esperana, de ascenso social e de desejo de crescimento, quanto de reconhecimento da sociedade, que h um movimento em busca de mudana. Portanto, mesmo aqueles que ali se criaram saem, mas ficam sempre com o p no subrbio, ou vo procurar outro subrbio. Podemos tomar o exemplo do compositor Zeca Pagodinho, que viveu em Iraj, tentou morar na Barra da Tijuca, mas acabou em xerm. Por qu? Ele foi em busca daquilo que um dia Iraj j foi, algo entre rural e urbano, meio buclico, meio urbano.

    Para finalizar, gostaria de dizer que, em qualquer outra cidade imaginemos uma metrpole norte-americana , bairros como a Barra da Tijuca e o Recreio dos Bandeirantes seriam considerados subrbio, assim como Campo Grande e Santa Cruz. Mas, na realidade carioca e na forma como se deram a modelagem e a apropriao da categoria subrbio na cidade do Rio de Janeiro, ficamos restritos e encaixados na representao de um subrbio como lugar de moradia de trabalhadores pobres, de certa precariedade e ausncia de infraestrutura e da relao com o trem. Segundo Nelson Fernandes, ficamos condenados ao que ele denominou, a partir de uma expresso do socilogo francs Henri Lefebvre, de rapto ideolgico da categoria subrbio na cidade do Rio de Janeiro,13 uma vez que, no Rio, o termo suburbano acaba assumindo um carter pejorativo, indicando falta de cultura e sofisticao.

    Ento, o subrbio passou; no se encontra mais, hoje, do ponto de vista geogrfico, da anlise do espao da cidade do Rio de Janeiro, nos lugares a ele atribudo classicamente, poderamos dizer que ele estaria hoje em Seropdica, Sepetiba, ou para alm disso , mas continuamos com a representao de subrbio que me parece estar incorporada tambm na obra Suburbia, a do conceito carioca de subrbio. Assim, a minissrie trata desse subrbio que j muito mais a representao carioca de subrbio, estereotipada e pejorativa, do que o subrbio geogrfico propriamente dito na sua origem. Com certeza, Madureira no um lugar to distante hoje, e nem tem muita coisa de buclico ou de habitat disperso.

    13 Cf. FERNANDES, Nelson da Nbrega. O rapto ideolgico da categoria subrbio. Rio de Janeiro: 1858 1945. Rio de Janeiro: Apicuri, 2011.

    Para saber mais:

    MARICATO, Ermnia. A produo capitalista da casa e da cidade no Brasil industrial. So Paulo: Alfa-Omega, 1979

    OLIVEIRA, Mrcio Pion de;FERNANDES, Nelson da Nbrega(Org.). 150 anos de subrbio carioca. Rio de Janeiro: Lamparina; Niteri: EdUFF, 2010

    COMO LUGAR PLSTICO, DE

    MUDANA E DE TRANSFORMAO

    PERMANENTE DA PAISAGEM, O

    SUBRBIO APARECE TAMBM

    COMO LUGAR MLTIPLO, DE

    CRIAO E DE TENSO

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    [email protected]

    [email protected]

  • Chegada de fbrica marcou incio da

    ocupao da regio. Instalaes foram transformadas em

    shopping

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    artigo

    DA DEGRADAO AO ESTIGMA E RENOVAO

    Bangu nasceu com o crescimento da zona urbana e das linhas frreas, viveu sua expanso e seu declnio ao longo do ltimo sculo e hoje passa por nova fase

    Tudo comeou com uma linha de trem no sculo xIx. Depois veio uma grande fbrica, a primeira fora da zona urbana da cidade. Em seguida, as modificaes do entorno, o surgimento de associaes, escolas de samba e time de futebol. At que a chegada de uma penitenciria e o declnio econmico da indstria mudaram radicalmente o perfil do bairro, que hoje luta para recuperar sua identidade. Bangu, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, um exemplo de trajetria, surgimento e transformao dos subrbios.

    O pesquisador Joo Felipe Pereira Brito apresenta no artigo a seguir essa histria, propondo uma reflexo sobre alguns padres da dinmica socioeconmica dos subrbios.

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  • TRANSFORMAES E PERMANNCIAS SUBURBANAS: O CASO DO BAIRRO BANGUJoo Felipe Pereira Brito, da UFRJ

    Nos debates promovidos pelo Globo Universidade que antecederam esta edio do Caderno Globo Universidade, o gegrafo Mrcio Pion de Oliveira fez a seguinte afirmao: o subrbio um lugar de permanente transformao onde se abrigam os problemas e as solues da cidade. leia mais nas pginas 18 a 25. Seguindo a reflexo de Oliveira, sugiro que a especificidade das mudanas ocorridas nos subrbios das cidades com altos nveis de desigualdade socioeconmica, como o Rio de Janeiro (pois h que se considerar que h mudanas em qualquer lugar e em qualquer tempo, mas sob diferentes perspectivas), refere-se ao fato de que esses lugares se transformam quando a cidade demanda grandes reas para sua expanso econmica ou para a reformulao de sua infraestrutura produtiva e de servios urbanos (indstrias, eixos de transportes, conjuntos habitacionais, centros de saneamento de gua, aterros sanitrios, penitencirias etc.) ou, ainda, quando a cidade precisa distribuir territorialmente suas mazelas em momentos de crise. Contudo, neste ltimo caso, penso que os processos de mudana so menos abruptos, ainda que desestruturem relaes e desvalorizem os lugares. A proposta, aqui, pensar o subrbio carioca a partir de transformaes no bairro de Bangu e em seu entorno, atravs dos resultados de uma recente pesquisa que realizei.1

    Na segunda metade do sculo xIx, com a abertura da estrada de ferro D. Pedro II, inicia-se um novo processo de expanso urbana do Rio de Janeiro, tomando grandes reas da sua ento zona rural. Os trens tornam-se, assim, a conexo mais importante entre essa cidade expandida e o centro. Em Bangu, bairro da atual Zona Oeste da cidade, o processo

    1 Ver BRITO, Joo Felipe Pereira. Terras quentes reinventadas: a criao do bairro Gericin como parte de transformaes urbanas do bairro Bangu. 2012. 138 p. Dissertao (Mestrado em Sociologia e Antropologia) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002. Ainda sobre Bangu, recomendo a leitura de SILVA, Gracilda Alves de Azevedo. Bangu 100 anos: a fbrica e o bairro. Rio de Janeiro: Sabi Produes Artsticas, 1989; e OLIVEIRA, Mrcio Pion de. A trajetria de um subrbio industrial chamado Bangu. In: OLIVEIRA, Mrcio Pion de; FERNANDES, Nelson da Nbrega (Org.). 150 anos de subrbio carioca. Rio de Janeiro: Lamparina, Faperj; Niteri: EdUFF, 2010.

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    Joo Felipe Pereira Brito // Artigo // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

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    Joo Felipe Pereira Brito mestre em Sociologia e Antropologia pelo Programa de Ps-Graduao em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA-UFRJ) e doutorando em Sociologia, com nfase em Teoria Sociolgica e Sociologia Urbana, tambm pelo PPGSA- -UFRJ

  • Vila operria construda pela CPIB para abrigar

    trabalhadores da fbrica, em foto de 1958

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    foi semelhante e se deu a partir do surgimento da Companhia Progresso Industrial do Brasil (CPIB), que, aproveitando-se da fartura de terras e mananciais a preos baixos ao lado da linha frrea, a 31 km do centro, construiu sua fbrica de tecidos, a primeira fora da zona urbana da cidade. Uma estao ferroviria foi erguida ao lado da fbrica em construo, alm de uma vila operria com 95 casas. Nascia, ento, a vila proletria com extensas reas verdes no entorno que, futuramente, se transformaria num novo bairro da cidade, descrito pelo jornalista e pesquisador Roberto Assaf como bairro operrio, estao do futebol e do samba.2

    O bairro de Bangu foi vinculado, durante quase todo o sculo xx, sua fbrica e a seus operrios, que fundaram o famoso clube de futebol do lugar e outras tantas instituies associativas. Por seus tecidos de alta qualidade, exportados para diversos pases, pelos milhares de empregos diretos e indiretos ali gerados, por sua precoce e exemplar urbanizao, seus edifcios e casas de tijolos vermelhos em estilo manchesteriano, o bairro e a CPIB tiveram a honra de receber sete presidentes da Repblica do Brasil e um presidente da Repblica francesa. Durante dcadas, a marca de tecidos Bangu era exposta em desfiles de moda realizados no Copacabana Palace, o mais requintado hotel da cidade. Nos gramados, o Bangu Athletic Club venceu campeonatos, cedeu jogadores seleo brasileira e considerado o primeiro clube de futebol do pas a escalar para uma partida um jogador negro, o tecelo Francisco Carregal, em 1905.

    Acrescenta-se s mais significativas referncias sobre histria local a ascenso, nos anos 1970, da Escola de Samba Mocidade Independente de Padre Miguel, bairro vizinho a Bangu, que se tornou uma das grandes escolas de samba da cidade. A Mocidade Independente foi cinco vezes campe do Carnaval do Rio de Janeiro (1979, 1985, 1990, 1991 e 1996), e naqueles anos era comum os ensaios tcnicos da escola ocorrerem nas ruas e praas desses

    2 Ver ASSAF, Roberto. Bangu: bairro operrio, estao do futebol e do samba. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 2004.

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    CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Mar. 2013 // Artigo // Joo Felipe Pereira Brito

  • Regio de Bangu antes da ocupao do bairro

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    bairros e tambm no gramado do Estdio Proletrio Guilherme da Silveira, chamado de Moa Bonita e pertencente ao Bangu Athletic Club. Desde os anos 1960, o clube de futebol e a escola de samba tinham o mesmo patrono e financiador, o bicheiro Castor de Andrade, contraventor que assumiu o posto de mecenas esportivo e cultural do bairro aps o afastamento gradativo da CPIB dessas funes.

    Todos esses elementos scio-histricos, avulsos ou combinados, foram apropriados e transmitidos pelos moradores do bairro nas interaes por toda a metrpole, por meio de smbolos e histrias contadas, caracterizando e disseminando a identidade que os banguenses tm de si e de seu bairro. A eles, pode-se acrescentar tambm o ttulo, recebido em fins do sculo passado, de bairro mais quente do Rio de Janeiro.

    No por coincidncia, na poca em que a CPIB se aproximava do seu centenrio, celebrado em 1989, e revelava uma decadncia incontornvel, o bairro recebia a primeira penitenciria de segurana mxima do Brasil: Larcio da Costa Pellegrino, que ficou popularmente conhecida no Rio de Janeiro e no pas como Bangu 1. A partir de ento, o nome do bairro constantemente apareceria em manchetes sobre a violncia e a criminalidade da cidade. Bangu 1 foi chamada de escritrio central do crime organizado.3 O estigma derivado da associao do nome do bairro com a deteno de criminosos fica mais evidente nos anos 1990, quando novas penitencirias de segurana mxima so instaladas nos arredores de Bangu 1, dando origem a Bangu 2, Bangu 3 e Bangu 4.

    Quando, em 1990, a CPIB vendida pelos herdeiros da famlia Silveira, cuja histria est intimamente vinculada ao apogeu da fbrica e ao desenvolvimento do bairro, o centro de Bangu, parte mais antiga do bairro, encontrava-se extremamente degradado. O patrimnio histrico, incluindo a fbrica, estava em estado de deteriorao, o trnsito era catico e tornava o calor to caracterstico ainda mais extenuante, sua avenida principal transformava-se em uma mal conservada via comercial de pedestres (o Calado), o desemprego era alto e, nas periferias do bairro, ocupadas a partir dos anos 1960 pela venda, pela CPIB, de suas terras agrcolas, viam-se conjuntos habitacionais, loteamentos e favelas sem infraestrutura adequada, com poucas oportunidades de renda e aumento constante da violncia em decorrncia do trfico de drogas instalado nessas reas.

    A interpretao que proponho que, ao perder sua zeladora, que o fundou, urbanizou

    3 Ver CALDEIRA, Csar. A poltica do crcere duro: Bangu 1. So Paulo em perspectiva. So Paulo, v. 18n. 1,jan./mar.2004. Disponvel em: http://bit.ly/xNbu5l.

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  • e desenvolveu, a Fbrica Bangu, o bairro no encontrou de imediato nem no Estado nem em outro interventor qualquer os investimentos necessrios para a retomada de seus empregos, para proteger seu espao urbano, seus recursos naturais, seu patrimnio e para reerguer sua autoestima identitria. Dessa forma, os moradores do lugar experimentaram o que o socilogo Anthony Giddens chama de desencaixe,4 um descolamento do tempo e do espao sociais e uma perda de confiana nas instituies. Essa ruptura geralmente dramtica e, no campo das sociabilidades, promove disputas que tendem a gerar, num momento posterior, um novo ordenamento social ou reencaixe. A sada da famlia Silveira do comando da CPIB pode ser tomada como o pice desse processo. Contudo, foi preciso esperar uma dcada a mais para que se vislumbrasse uma espcie de retomada dos nimos coletivos em Bangu.

    No ano de 2004, um projeto de lei oriundo do Poder Executivo, mas reivindicado por vereadores cujas bases eleitorais esto no bairro de Bangu e no seu entorno, prope uma soluo original para a questo dos estigmas do bairro e de seus moradores: a criao de um novo bairro a partir do desmembramento do territrio de Bangu, de maneira que o complexo penitencirio e outras instituies que ali se localizavam (aterro sanitrio e rea de treinamento militar) e desvalorizavam a identidade e a propriedade dos banguenses fossem retirados dos limites oficiais do tradicional bairro suburbano. O novo bairro, nico no Brasil a possuir esse conjunto de

    instituies estigmatizantes, recebeu o nome da serra que lhe vizinha: Gericin.5

    Apesar de instaladas dentro das delimitaes oficiais do bairro de Bangu, em terras historicamente vinculadas CPIB, as penitencirias se situavam em rea distante de seu centro histrico e comercial, num percurso que, em automvel, dura em torno de 15 minutos. Esse fato explica por que grande parte dos banguenses que vivem no centro do bairro, nos quarteires ordenados pela CPIB, nem sequer tinha conhecimento sobre a localizao das penitencirias, mas ainda assim as rejeitava pela associao constante que lhes era feita nas interaes com pessoas de bairros distantes ou de outras cidades.

    4 Ver GIDDENS, Anthony. As consequncias da modernidade. So Paulo: Unesp, 1991.

    5 De acordo com o Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), Bangu tem uma populao de 243.125 pessoas, e Gericin, de 15.167 pessoas. Destas ltimas, aproximadamente 12.000 so detentos do complexo penitencirio. Ainda no h dados sobre o IDH desses bairros baseados no Censo 2010. Estima-se, porm, que Gericin ter, em razo da populao carcerria, o pior IDH por bairros da capital. Ao contrrio, a tendncia que Bangu melhore sua posio no ranking de IDH dos bairros cariocas (atualmente est em 96o lugar pelo Censo de 2000).

    Casas de operrios da fbrica Bangu em registro

    da dcada de 1950

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  • Vista parcial da fbrica Bangu, 1958

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    Mas por que a ideia de criar este novo bairro justamente naquele momento? E quais eram as expectativas dos formuladores desse projeto de lei? De acordo com minha pesquisa, foi um processo de renovao urbana que motivou a criao de Gericin, especialmente a iniciativa de transformao da antiga e abandonada fbrica em shopping center. Aps o perodo de estagnao provocado pelo declnio e pela interrupo da produo txtil, o bairro de Bangu passa a ser orientado pela fora crescente de seu comrcio, cuja associao representativa Associao Comercial e Empresarial da Regio de Bangu (Acerb) ajudou a eleger um de seus mais conhecidos membros ao cargo de subprefeito da regio de Bangu, vereador, deputado estadual e secretrio municipal de governo. Esse importante agente local, como vereador, foi um dos que discursaram na Cmara Municipal em prol da criao de Gericin.

    Utilizando a demanda da populao local por melhorias e ainda as suas queixas quanto aos estigmas provenientes da localizao do complexo penitencirio, as novas lideranas econmicas e polticas do perodo ps-fabril trocaram o apoio poltico gesto municipal daquele perodo por um novo ordenamento do territrio do bairro, de modo que este favorecesse novos investimentos privados que pudessem impulsionar ainda mais os setores comercial, de servios e imobilirio. Assim, instalada no bairro uma subprefeitura (em 1997, por iniciativa direta da Acerb); so aprovadas leis para o tombamento da Fbrica Bangu e para sua transformao em centro comercial (2000 e 2003); implantado no bairro o programa de melhorias urbanas Rio-Cidade II (2002); cria-se o bairro de Gericin (2004); inaugura-se o shopping center (2007) e sua rea, acompanhando a rea do Calado e de suas ruas de entorno, inserida no programa Polos do Rio, sob o nome de Polo Quadriltero Comercial de Bangu, um modelo de parceria pblico-privada elaborado pela prefeitura com o objetivo de articular, em certos bairros, a oferta de servios pblicos a determinados investimentos privados semelhantes e associados.

    Toda essa histria do surgimento e desenvolvimento de Bangu e, consequentemente, da

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  • criao de Gericin, revela certas dinmicas sociais que podem ser encontradas em muitos bairros do subrbio carioca. Proponho aqui, ento, algumas reflexes acerca de trs pontos que considero sugestivos na busca de alguns padres suburbanos de sociabilidade.

    Em primeiro lugar, pode-se chamar a ateno para a dicotomia centro/periferia, que, ainda que parea simplista e merea, sempre que for evocada, qualificaes de ordem emprica, prevalece em grande parte do subrbio carioca, mas com maior nfase nos bairros da Zona Oeste, mais extensos e populosos, como Bangu, Campo Grande e Santa Cruz. Esses bairros reproduzem em seus territrios modelos de desigualdade e segregao que estruturam a organizao socioespacial da metrpole. Pode-se afirmar, por exemplo, que Bangu esteve historicamente para o Rio de Janeiro assim como Gericin est para Bangu: um lugar cujo distanciamento socioespacial necessrio para que se evitem estigmas ou desorganizao de um arranjo econmico tradicional.

    Desenvolvendo-se a partir da estao ferroviria, muitos bairros suburbanos concentraram em seus centros suas principais instituies pblicas e privadas e, portanto, ao longo de sua histria, foram essas as reas que melhor mantiveram certas tradies e a memria local e que mais receberam proteo estatal. Foi nesses quarteires ao redor das estaes de trem que se ergueram as primeiras igrejas e parquias, as primeiras linhas de lotao e de bondes, os principais mercados e feiras, os clubes sociais e esportivos, as escolas de samba e blocos carnavalescos, cinemas, universidades e faculdades, e, mais recentemente, as unidades de administrao municipal, subprefeituras e, por que no, shopping centers.

    Um segundo ponto de concordncia entre os bairros suburbanos a existncia neles de diversos limites internos segregadores, que reduzem a circulao, as trocas, o alcance visual da cidade e desvalorizam ruas e imveis.6 O principal limite ou barreira socioespacial do

    6 Por limites entendo as interrupes lineares na continuidade, podendo ser tambm barreiras mais ou menos penetrveis que mantm uma regio isolada das outras. LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. Lisboa: Edies 70, 1999 [1960], p. 58.

    Runas de antiga fbrica foram recuperadas e

    transformadas em centro comercial

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  • subrbio carioca so os extensos e altos muros que acompanham as linhas frreas, separando diversos bairros em dois lados. Em alguns bairros, como Bangu, um dos lados, o ncleo de povoamento original, tem a primazia de investimentos pblicos e concentra historicamente a elite local. Ainda em Bangu, um pedao da linha frrea foi retirado em trecho diante do shopping, possibilitando aos que descem na estao de trem um acesso visual ao antigo prdio, s luzes e movimentao das reas externas do shopping. Se estendida, a medida maximizaria a visibilidade sobre as pessoas e sobre o conjunto urbano do entorno, aumentando a segurana e o bem-estar dos transeuntes.

    Essa forma de segregao territorial acompanhada por outros tipos de limites, dentre os quais se destacam, para os pedestres, as vias atravessadas pelos inmeros viadutos que cruzam as linhas frreas da regio, que so, em geral, vazias, escuras e perigosas. Tambm possvel citar como limites nos bairros suburbanos as fbricas abandonadas, depsitos de lixo, os muros da Linha 2 do metr e reas de uso militar.

    Por fim, pode-se sublinhar entre os suburbanos uma forte e ativa identidade de bairro, utilizada estrategicamente para ampliar o prestgio e a associao a estilos de vida e a instituies de grande valor simblico, como clubes, escolas de samba e festas religiosas.

    Esse apego identidade de bairro que propicia tipos especficos de vida urbana, em que a localidade de extrema importncia para a apreenso do mundo, no restrito ao subrbio carioca, evidentemente.7 Contudo, especificamente nessa regio da cidade, pode-se observar uma luta constante dos atores locais por manuteno e reinveno dessas identidades de bairro, seja pelo receio da estigmatizao (de uma identidade de bairro especfica ou da prpria identidade suburbana), seja pela chegada de novos elementos que acompanham as intervenes pblicas e privadas impostas regio. Em Bangu, a chegada do shopping center dinamizou as relaes sociais e acelerou a histria do bairro de tal forma que h quem acredite na aposta do antigo prefeito, de que, no futuro, chamaro as penitencirias de Geri 1, Geri 2, Geri 3... livrando o bairro, definitivamente, da desvalorizao identitria causada, ironicamente, pelos servios prestados cidade durante toda a sua histria de grandes intervenes e grandes transformaes.

    7 Para uma melhor compreenso da problemtica sobre as identidades de bairro, ver o profcuo estudo de Antnio Firmino da Costa sobre o bairro de Alfama, em Lisboa. COSTA, Antnio Firmino da. Sociedade de bairro: dinmicas sociais da identidade cultural. Oeiras, Portugal: Celta, 1999.

    Vista area do aterro de Gericin, rea que foi desmembrada de Bangu

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    artigo

    UM ELENCO COM AS MAIS DIVERSAS ESTRELAS

    A minissrie Suburbia composta por atores no profissionais ou estreantes pouco conhecidos na televiso. A escolha foi proposital, para trazer mais realidade fico

    Os atores no so conhecidos da mdia. Foram escalados em testes de seleo, realizados em Minas Gerais e no Rio de Janeiro, entre mais de 2 mil candidatos. O diretor Luiz Fernando Carvalho buscou pessoas cuja trajetria de vida se aproximasse do universo dos personagens da trama. O elenco traz tambm artistas de grupos que atuam como agentes de incluso e transformao social. So grupos como Ns do Morro, AfroReggae, Companhia dos Comuns, T na Rua, Teatro Independente, Mulher de Palavra e projetos como Negro Olhar. A importncia de dar voz a esses artistas comentada, no artigo a seguir, pela professora Marina Henriques Coutinho, que desenvolve pesquisas sobre o teatro nas comunidades e favelas.

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    Marina Henriques Coutinho // Artigo // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

    O PALCO COMO ESPAO PARA A EXPRESSO DE UM NOVO DISCURSOMarina henriques Coutinho, da Unirio

    Vou iniciar a minha contribuio saudando as palavras de um grande brasileiro, Augusto Boal. Disse o Boal em um de seus ltimos discursos, quando foi nomeado embaixador mundial do teatro pela Unesco: Temos a obrigao de inventar outro mundo porque sabemos que outro mundo possvel. Mas cabe a ns constru-lo com nossas mos entrando em cena na vida e no palco. O Boal defendeu em seus escritos tericos, a comear pelo clssico Teatro do Oprimido, a democratizao do teatro, o alcance do teatro aos mais diversos espaos e grupos sociais, defendeu a ideia de que todos podem fazer teatro, de que todos podem estar no palco, que este no seria um privilgio apenas de atores formados, e sobretudo, seguindo a linha do pensamento do alemo Bertolt Brecht, defendeu a noo do teatro como um espao para a conscientizao, para a formulao de uma crtica sobre a realidade em busca da transformao. Por isso entrar em cena no palco no suficiente; preciso ir alm disso, preciso estender vida a motivao para transformar.

    Nos meus anos de prtica e pesquisa teatral eu tenho me interessado muito em fazer e tambm investigar aes teatrais que estejam imbudas por esses aspectos defendidos pelo Boal. Pelos eventos artsticos que procuram estar sensveis necessidade de abrir brechas, ou encontrar alternativas, para que a voz de grupos silenciosos ou silenciados possa ser ouvida, possa ser proferida. Proferida por eles prprios, com a sua verso, sua voz, seu corpo, histrias contadas a partir de uma perspectiva de dentro para fora, que dispensa mediao.

    A pesquisa me permitiu tambm, e continua permitindo, constatar que, apesar de ns estarmos vivendo em tempos de globalizao perversa, como afirma o gegrafo brasileiro Milton Santos, e, tambm, como disse o socilogo polons Zygmunt Bauman, tempos implacveis, tempos de desengajamento, competio e de desprezo pelos mais fracos,1

    ainda assim a teimosia de muitas aes criativas, corajosas, pe em xeque uma ideologia fatalista e imobilizante, que tenta nos convencer todos os dias de que nada podemos fazer sobre a realidade perversa em que vivemos.

    Esse o tipo de teatro que tem me interessado, que acontece em inmeros cantos do pas,

    1 BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurana no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

    Marina henriques Coutinho professora e chefe do Departamento de Ensino do Teatro da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), doutora em Artes Cnicas pela Unirio, na rea de Teatro, Educao e Cultura, atriz e jornalista

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    CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Mar. 2013 // Artigo // Marina Henriques Coutinho

    na ao de grupos de teatro independentes, de grupos nas periferias, nas favelas, no subrbio, incluindo a participao de pessoas comuns, no atores, mas atores tambm, em espaos fora dos refletores das salas tradicionais, sem subveno, mas muito inspirado pela cultura da mudana.

    Considerando tudo isso, quando me convidaram para participar desta discusso e eu comecei a ler os materiais sobre a minissrie Suburbia, senti uma grata surpresa de constatar o interesse da televiso em se aproximar do universo das camadas populares da nossa sociedade a partir de uma perspectiva que se empenha em no fazer uma leitura de fora para dentro, mas promover um canal por meio do qual a voz dessas pessoas possa ser expressa com legitimidade. Est no release: A minissrie busca retratar a realidade a partir de um olhar documental, mais prximo do real.

    Agora eu vou fazer um parntese para entrar em algumas reflexes que eu desenvolvi na minha tese de doutorado e que talvez possam iluminar essa discusso e estabelecer links com o assunto da minissrie.

    importante esclarecer que, no caso da minha pesquisa, ela est assumidamente localizada no territrio da favela, mas temas como migrao, amor, religiosidade, funk, msica, festa, negritude, superao so comuns ao universo do subrbio e da favela. A minha histria com o teatro e com os jovens da periferia comeou no incio dos anos 1990, quando eu, bem jovem, recm-formada em Teatro e em Comunicao, imbuda da sede de mudar o mundo, criei um projeto de teatro no Complexo da Mar. Essa experincia de dois anos na Mar foi

    definitiva, descobri um novo sentido para a minha vida no teatro. Depois dela, ao longo de dez anos, participei de outras iniciativas, em diferentes espaos do Rio de Janeiro, todas nesse campo que se convencionou chamar de projetos sociais envolvendo a arte (promovidos pelas organizaes no governamentais, fazendo teatro com jovens).

    No precisou muito tempo para que, alm do entusiasmo e afeto que eu dediquei a todas essas experincias e a todas as pessoas que eu encontrei nesse caminho, eu comeasse tambm a formular algumas perguntas que, mais tarde, nortearam a pesquisa na universidade: qual seria o meu papel ou contribuio ali, inserida naquela realidade, to diferente da minha? Haveria uma maneira especial de pessoas como eu, artista de fora (filha da classe mdia carioca, moradora do Leblon), se relacionar com as comunidades? Que fatores teriam contribudo para a construo de uma imagem que v a favela como um territrio parte da cidade, nicho da desordem, da carncia, da violncia? Imagem to diferente da que eu enxergava no convvio com aquele espao e com as pessoas de l? Quais estratgias desenvolveram essas comunidades para sobreviver aos problemas estruturais provocados pela negligncia do Estado em garantir s suas populaes os bens pblicos bsicos, como educao, sade, segurana? Quis saber por que o contexto da dcada de 1990 favorecia um verdadeiro boom do chamado terceiro setor e dos projetos promovidos pelas ONGs, dos quais eu mesma fazia parte; por que o discurso da responsabilidade social ganhou tanta fora nas propagandas das grandes empresas etc. Mas, sobretudo, me indaguei, muitas vezes, sobre qual deveria ser o papel do teatro ali, qual poderia ser a sua maior contribuio; que teatro fazer, que teatro colocar em cena?

    A ExPERINCIA NO COMPLExO

    DA MAR FOI DEFINITIVA, DESCOBRI

    UM NOVO SENTIDO PARA MINHA

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    Marina Henriques Coutinho // Artigo // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

    Em 2002, aps alguns anos de prtica, quando ingressei no mestrado da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), o grupo Ns do Morro j era uma referncia entre as prticas artsticas provenientes das comunidades populares da cidade. Na poca, o grupo, que nasceu do resultado do dilogo entre alguns artistas de teatro e jovens moradores da favela do Vidigal, estava perto de completar 20 anos em plena atividade, a maior parte desse tempo sem contar com um apoio financeiro estvel. O fato de o grupo ter surgido espontaneamente dentro da comunidade e tambm de ter sobrevivido durante muito tempo contando apenas com o apoio comunitrio eram aspectos que me chamavam ateno. A histria do grupo me atraa talvez por representar um contraponto a algumas experincias que eu havia vivido nos projetos implementados de cima para baixo ou de fora para dentro.

    Encontrei l um grupo que criou cena e dramaturgia prprias, para falar sua comunidade, transformou os temas do cotidiano da favela em matria artstica, brincou com situaes fantsticas do imaginrio vidigalense, reverenciou no palco a sua comunidade-me. A cena do Ns do Morro, seja a que revelou o Vidigal como sua personagem protagonista, ou a que explorou universos distantes, como os de William Shakespeare, trouxe impregnada, no corpo e na voz dos atores, a alma vidigalense. Os processos de criao desenvolvidos pelo Ns do Morro favoreceram a emerso de uma cena prpria do Vidigal, parida do dilogo estabelecido entre os artistas e a comunidade. Constatei no Vidigal a expresso de um teatro criado pela comunidade. Naquele momento, o encontro representou para mim a satisfao de descobrir uma iniciativa que respondia dinmica de que eu estava procura: a da comunidade-sujeito. (Alm do Ns do Morro, eu investiguei tambm a prtica de outros dois grupos, que surgiram com as mesmas caractersticas e que na poca eu considerei que vibravam de acordo com essa dinmica da comunidade-sujeito: a Cia. Marginal e um grupo da Baixada Fluminense, de Japeri, chamado Cdigo.)

    Com isso eu levantei questes centrais para minha tese, que so: quais circunstncias favorecem a comunidade/favela para exercer o seu papel como autora dos processos criativos ou a sua autonomia dentro de um projeto; ou que tipo de poltica estabelecida entre agentes externos e comunidades capaz de criar uma relao que garanta comunidade o seu verdadeiro direito de voz ou, o seu direito de, por meio do teatro, nomear o mundo?

    neste ponto que eu percebo que podemos estabelecer relaes mais ntidas entre esta pesquisa e o assunto da minissrie Suburbia.

    Quando eu falo sobre o direito de por meio do teatro, nomear o mundo, estou me referindo a uma premissa da pedagogia freireana. Para Paulo Freire, a colaborao, a unio, a organizao e a sntese cultural so elementos que constituem a teoria da ao

    Arthur Bispo, Ramon Francisco, Donatha Augusto e Wallace Costa, do grupo Ns do Morro

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    cultural dialgica, garantem o encontro de sujeitos para a pronncia do mundo, para a sua transformao. Pronunciar o mundo, ou nomear o mundo, significa devolver ao homem a sua responsabilidade histrica o homem como sujeito que elabora o mundo, que emerge do lugar de mero objeto para assumir o papel de autor crtico e consciente da histria.

    Ora, o palco pode ser um espao onde o teatro, por meio da fora da narrativa dramtica, estabelece um processo no qual os atores das comunidades se tornam sujeitos de seu prprio desenvolvimento. O palco como um lugar que favorece a reinveno da vida na cena, em que a realidade se transforma em objeto de reflexo e criatividade, um espao para a expresso de um novo discurso, de uma outra palavra.

    E por que a emerso dessa outra palavra urgente? Porque urgente descolar da imagem da periferia/favela/subrbio o espectro da anomalia

    social ou de problema; porque urgente combater o senso comum que j h longa data aprisionou a imagem da periferia a um contexto de desordem e ideia da carncia, do caos, como nos fala o socilogo Jailson de Souza; porque urgente afirmar que os mais de cem anos de histria das favelas cariocas so anos de conquistas; em que a capacidade de luta, a solidariedade, a criatividade dos moradores renderam solues, melhorias na urbanizao, moradias, saneamento... e mostrar, sobretudo, que no espao da favela/do subrbio/periferia sempre se produziu, como afirma Alba Zaluar: O que de mais original se criou culturalmente nesta cidade: o samba, a escola de samba, o bloco de

    carnaval, o pagode do fundo de quintal. [...] Onde se escreveram livros, onde se compem versos belssimos ainda no musicados, onde se montam peas de teatro.2

    O fenmeno teatral que eu persegui, que me interessava como pesquisadora, foi aquele que, representava, expressava, as classes populares por elas mesmas. Grupos que contribuam para a construo de um outro imaginrio social sobre esses espaos.

    Na internet h um vdeo da escritora africana Chimamanda Adichie chamado O perigo da histria nica,3 que est circulando bastante pelo meio universitrio, no qual a autora, em um discurso brilhante, conta como, quando ela comeou a escrever, bem cedo, retratou as personagens conforme havia lido nos livros de histria da literatura ocidental: brancos e de olhos azuis que brincavam na neve e comiam ma, muito longe da realidade da Nigria, mostrando como somos vulnerveis s histrias contadas, especialmente as crianas. E, quando ela descobriu os livros africanos, percebeu que

    2 ALVITO, Marcos; ZALUAR, Alba. Um sculo de favela. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.

    3 Link para o vdeo na internet: http://bit.ly/VZFc7s.

    Alice Coelho, Jennifer Loiola, Mariana Alves e

    Alice Morena interpretam, respectivamente, Maria

    Rosa, Vilma, Regina e Dbora

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    Marina Henriques Coutinho // Artigo // Mar. 2013 // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

    pessoas como ela tambm poderiam existir na literatura. Anos mais tarde, quando ela estava na universidade, nos Estados Unidos, ela percebeu, no discurso de uma colega e de um professor, que eles sofriam do mal que ela chamou de perigo da histria nica: eles assimilaram uma histria nica sobre a frica, a frica como o lugar de lindos animais, paisagens, pessoas incompreensveis, guerras, gente morrendo de pobreza e aids, incapazes de falar por eles mesmos, e esperando serem salvos por um estrangeiro branco e gentil a histria nica que a literatura ocidental difundiu.

    Ento eu pergunto: e sobre a periferia, o subrbio e as favelas do Rio de Janeiro, ser que tambm no assimilamos uma histria nica? E como ela disseminada? Que canais nos fazem crer nela?

    Quando eu leio os depoimentos no Museu da Pessoa sobre as etapas de criao do Suburbia, sobre o desejo de oferecer ao espectador a sensao de estar diante de histrias reais, sobre a incluso dos negros (90% elenco, salve!), sobre a aproximao da histria de vida dos atores (no atores, alis) com a histria das personagens, a vontade de criar a sensao de verdade, ou quando a Tatiana Tibrcio afirma que a minissrie d a oportunidade de a gente se representar como e como queremos ser representados, (Ver Debate, pg. 74) eu penso que essa obra est fortemente imbuda pelo desejo de, por meio da teledramaturgia (assim como nos grupos que pesquisei no teatro), garantir a expresso dessas vozes, deixar emergir uma outra palavra, ou uma outra histria.

    Mas o que no podemos perder de vista, ao que devemos estar atentos, que, ao produzir ou colaborar ou participar da produo de obras (estejam elas no teatro, na dana, na msica, no cinema ou na televiso); que, se existe a possibilidade da comunidade/periferia/subrbio como sujeito (aquele que profere o seu prprio discurso, que conta a sua prpria histria), pode existir tambm o risco de a comunidade/periferia/subrbio como objeto (aquele que parece proferir seu discurso que na verdade no o seu; trata-se de uma voz simulada). E que, ao contrrio de contribuir para uma mudana de percepo sobre esses espaos, acaba reforando os esteretipos ou o estigma.

    preciso assumir a atitude investigativa, perguntadora, de que nos fala Bertolt Brecht: quem vai contar a histria, por qu, como e com que intenes?

    De minha parte, estive e continuo interessada nas aes que incidem sobre a estrutura social no como forma de mant-la como est, mas no sentido de modific-la. Em produes artsticas que permitam que os canais da palavra, da imagem e do som