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    Vol. 17, n 3, setembro-dezembro 2015ISSN 1518-2487

    Luz, cmera, (concentr)ao!: as polticas pblicas e osmercados cinematogrfcos no Brasil e na Argentina dos anos1990

    Luz, cmara, concentr(accin)!: las polticas pblicas y los mercadoscinematogrfcos en Brasil y en Argentina en los 1990

    Lights, camera, (concentr)action!: public policies and movie marketsin Brazil and Argentina in the 1990s

    Ana Julia Cury de Brito CabralAna Julia Cabral doutora em Comunicao pela ECO--UFRJ, membro do grupo de pesquisa PEIC (Polticas eEconomia da Informao e da Comunicao), da Esco-la de Comunicao da Universidade Federal do Rio deJaneiro. coordenadora de Programas Internacionaisde Cooperao e Intercmbio, na Assessoria Interna-cional da Agncia Nacional do Cinema, onde servi-dora desde julho de 2010.

    Contato: [email protected]

    Artigo recebido em: 15/07/2015 e aprovado em30/08/2015

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    ResumoEste artigo prope uma re exo sobre as mudanas ocorridas nas polticaspblicas e nos mercados cinematogr cos do Brasil e da Argentina a partirde incio dos anos 1990, no contexto de ascenso de governos de orientaoneoliberal em ambos os pases. No caso brasileiro, inaugurou-se o chamadomodelo de incentivo scal, com base nas Leis Rouanet (1991) e do Audiovi-sual (1993). Na Argentina, a Ley de Cine (1994) foi considerada um avanopara o setor. Buscou-se compreender em que medida essas novas polticaspblicas re etiram o iderio neoliberal em voga e se, em alguma medida,representaram um contraponto efetivo ao processo de concentrao obser-

    vado no mercado cinematogr co global no perodo delimitado. Para tanto,adotou-se como metodologia a reviso bibliogr ca, a anlise da legislaopertinente e o levantamento de dados estruturais do setor.Palavras-Chave: 1. Cinema. 2. Economia poltica 3. Neoliberalismo. 4. Brasil. 5. Argentina.

    Resmen

    Este artculo propone una re exin acerca de los cambios ocurridos en laspolticas pblicas y los mercados cinematogr cos de Brasil y Argentina alprincipio de los 1990, en un contexto de ascensin de gobiernos de orientaci-n neoliberal en los dos pases. En el caso brasileo, el modelo de incentivo

    scal ha sido inaugurado con las leyes Rouanet (1991) y Audiovisual (1993).En Argentina, la Ley de Cine (1994) fue considerada un avanzo para el sec-tor. La propuesta es comprender si las nuevas polticas pblicas para el cinebrasileo y el argentino re ejaran el ideario neoliberal y si, en alguna me-dida, representaran un contrapunto efectivo al proceso de concentracin ob-servado en el mercado cinematogr co global en el perodo. Como mtodo,adoptaran-se la revisin bibliogr ca, el anlisis de la legislacin pertinente yel levantamiento de datos estructurales del sector.Palavras Clave: 1. Cine. 2. Economa poltica 3. Neoliberalismo. 4. Brasil. 5. Argentina.

    abstract

    This paper proposes a debate on the changes that took place in public policiesand movie markets in Brazil and Argentina at the beginning of the 1990s, inthe context of neoliberal governments then recently elected in both countries.In Brazil, the tax bene t paradigm was founded with laws Rouanet (1991) and

    Audiovisual (1993). In Argentina, Ley de Cine (1994) was considered a trium-ph for national cinema. This research intends to identify if these new publicpolicies for local cinema in both countries re ected neoliberal ideology andif, to some extent, they represented an effective counterpoint to the process ofconcentration observed in global market during that decade. The developmentof this work was based on an analysis of the relevant bibliography, legislative

    documents and structural data from the last decade of the twentieth century.Keywords: 1. Cinema. 2. Political economy 3. Neoliberalism. 4. Brazil. 5. Argentina.

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    Este artigo1

    prope uma reflexo sobre as transformaes das polticas pblicase dos mercados cinematogrficos do Brasil e da Argentina no contexto de as-censo, a partir dos anos 1990, de governos de orientao neoliberal em ambosos pases. Naquele momento histrico, houve mudanas importantes nas polti-cas pblicas para o cinema, tanto no Brasil de Collor/Itamar quanto na Argenti-na de Menem. Buscou-se compreender em que medida as diretrizes neoliberaishegemnicas inspiraram essas polticas e quais grupos de interesse influen-ciaram, em cada pas, a sua conformao. Alm disso, procurou-se debater seessas novas polticas constituram um contraponto concentrao econmicaobservada no mercado cinematogrfico global na dcada de 1990.

    Por um lado, a opo por realizar um estudo comparado com a Argentina (eno com o Mxico, por exemplo) se deu pela proximidade geogrfica, poltica,econmica e cultural estas ltimas incentivadas pelo processo de integraoregional via MERCOSUL , que facilitou o acesso a dados e pesquisas sobre ocinema argentino. A segunda razo consistiu no fato de que a cadeia produtivado cinema argentino, ao contrrio de pases menores da regio, 2 como Uruguaie Paraguai, tem uma trajetria similar brasileira porque j viveu perodos derelativo desenvolvimento e autonomia com relao Hollywood, como mos-tram estudos de pesquisadores l e c (Autran, 2004; Getino, 2003).

    A hegemonia do filme de Hollywood nos mercados dos pases latino-america-

    nos um fato histrico, que ao longo do sculo XX gerou debates tericosdiversos. A historiografia do cinema brasileiro, por exemplo, refletiu sobre acondio de subdesenvolvimento (GOMES, 1996) do cinema nacional em re-lao ao filme hollywoodiano, mas os estudos dedicados a investigar a relaoentre economia, poltica e cinema no Brasil ainda so coadjuvantes num cen-rio acadmico em que prevalecem abordagens de ordem esttica ou anlisesde contedo. Assim, tomando como referncia estudos desenvolvidos desde osanos 1960 (MATTELART, 1999), a escolha da Economia Poltica da Comunicaocomo olhar terico balizador deste trabalho deu-se pela perspectiva historicistado campo e sua contextualizao do universo da comunicao e da cultura aossistemas poltico-econmicos hegemnicos.

    Os estudos sobre a hegemonia de Hollywood em mercados estrangeiros tmmostrado como a indstria estadunidense representou (e ainda representa) umobstculo s possibilidades de desenvolvimento de outras cinematografias aoredor do mundo (AKSOY e ROBINS, 1992; GUBACK, 1969; PENDAKUR, 1990;WASKO, 1982, 1994, 2003). Dados reunidos por pesquisadores latino-america-nos ao longo das ltimas dcadas revelaram um aumento do desequilbrio nastrocas entre os cinemas nacionais e Hollywood a partir dos anos 1990. Embora ahistria do cinema latino-americano mostre que, em pocas distintas, algumascinematografias nacionais se destacaram por exemplo, a argentina nos anos1930 e a brasileira na dcada de 1940 , no se constituiu no continente umaindstria cinematogrfica estabilizada. No incio do sculo XXI, a situao dos

    1- Este artigo apresen-ta um resumo do debatedesenvolvido em tese dedoutorado de mesmo t-tulo, defendida e aprova-da em 2014, na Escola deComunicao da Univer-sidade Federal do Rio deJaneiro

    2 -Como explica Getino(2003), a maior capacida-de produtiva no campodas indstrias culturais eda comunicao do Mer-cosul se concentra, comose sucede com as outrasindstrias em geral, noBrasil e na Argentina, ospases que representam amaior dimenso territoriale populacional e os ndicesmais elevados de produ-o e consumo dos meiosde comunicao e dos

    bens e servios culturais.

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    intercmbios regionais era de desequilbrio flagrante: em 2002, enquanto emqualquer pas da Amrica Latina a proporo de filmes hollywoodianos oscilavaentre 70% e quase 100%, apenas 6,1% dos filmes em cartaz nos EUA vinhamde fora (4,6% da Europa e 1,5% do resto do mundo) (BOLAO, SANTOS eDOMINGUEZ, 2006; RUIZ, 2006).

    Ao mesmo tempo em que marcada pelo domnio de Hollywood, a histria docinema no Brasil e na Argentina revela tambm a centralidade do papel doEstado nacional. No incio dos anos 1990, a disputa de grupos de interesse pelaformulao das polticas do setor mais uma vez se organizou em torno do poderfederal. Do Estado, tanto o brasileiro quanto o argentino, dependeram e parti-

    ram as adaptaes legislativas e os novos regulamentos criados a fim de estabe-lecer um paradigma para o fomento da produo cinematogrfica no contextode ascenso de governos neoliberais em ambos os pases a partir do incio dosanos 1990. Ou seja, as polticas pblicas dos Estados brasileiro e argentino (ou aausncia delas) determinaram, ao menos em parte, a forma de insero da cine-matografia desses pases na nova ordem neoliberal (Getino, 2005; SIMIS, 2008).

    No incio dos anos 1990, o contexto histrico em que se instituram as novaspolticas pblicas cinematogrficas do Brasil e da Argentina foi marcado pelofim do mundo bipolar e pela expanso da globalizao neoliberal capitalista.A chegada da era neoliberal 3 pressups a disseminao de uma srie de diretri-

    zes polticas e econmicas da nova ordem mundial, conhecida como Consensode Washington. Dentre elas, a de um Estado mnimo, que interviesse apenas oindispensvel na economia, e cuja regulao deveria ser feita segundo a lgicados prprios mercados. Desregulamentaes e privatizaes ratificaram a entra-da de ambos os pases num novo mundo globalizado, simbolizado pelas infoviase novas tecnologias da comunicao (HARVEY, 2008; SANTOS, 2004).

    Em 15 de maro de 1990, Fernando Collor de Mello assumiu oficialmente o car-go de presidente da Repblica Federativa do Brasil ao vencer a primeira eleiodireta realizada no pas aps vinte e cinco anos de regime de exceo. Em seudiscurso de posse, dirigido aos congressistas, Collor relembrou os grandes temas

    de seu programa de governo, dentre os quais o combate inflao, a urgnciade realizar a reforma do Estado e a modernizao econmica do pas, e a pre-ocupao com a posio do Brasil no mundo contemporneo. Sobre o ltimoponto, ele afirmou:

    Antes de tudo, preciso registrar impressionante mudana no ce-nrio internacional. O perfil de uma nova Europa Oriental faz vercomo encerrada uma fase na histria das relaes internacionais,dominada pelo confronto ideolgico Leste-Oeste. Fica definitiva-mente sepultada a guerra fria. Repensam-se alianas. Cancelam-sealinhamentos. Enquanto isso, novas reas se preparam para adotar

    as leis da economia de mercado, com democracia, respeito pelos

    3 - Alguns tericos apon-tam as origens do neoli-beralismo na virada dosanos 1970-1980; contudo,a importncia da segundavirada, entre 1989 e 1991,com a queda do Muro deBerlim e o fim da UnioSovitica, notvel econstitui o marco histricode interesse deste traba-lho (Harvey, 2008).

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    direitos humanos e cultura da liberdade, que so hoje tendnciasuniversais.4

    No exato dia da posse, Collor deu incio prometida reforma do Estado e psfim, dentre outras, poltica cultural vigente, extinguindo a Lei Sarney e edi-tando a Medida Provisria 151/90, em seguida convertida na Lei 8.029/90, quedispunha sobre a extino e a dissoluo de diversas entidades da administraopblica federal. A nova lei extinguiu autarquias, fundaes e empresas pblicasfederais como a FCB (Fundao do Cinema Brasileiro), a Embrafilme (Distribui-dora de Filmes S.A.) e o Concine (Conselho Nacional do Cinema), alm de terautorizado a privatizao de outras entidades.

    Naquele momento, Collor tambm extinguiu o prprio Ministrio da Cultura,transformando-o em Secretaria e, alm de pr fim aos rgos pblicos de apoioao cinema, promoveu a desregulamentao da atividade, eliminando a normaque estabelecia a cota de tela para o cinema nacional e abrindo as fronteirasde forma irrestrita para as importaes, tanto de insumos tcnicos quanto, in-clusive, do prprio filme estrangeiro. Essa srie de medidas, tomada num curtoespao de tempo, resultou num colapso do cinema brasileiro, que dependiadiretamente da poltica pblica de fomento.

    Por outro lado, a Embrafilme e seu modelo de financiamento do cinema na-cional j vinham sofrendo um desgaste crescente, que assumiu ao longo dosanos 1980 a forma de um questionamento social difundido sobre a utilizaode recursos pblicos na produo cinematogrfica. Nmeros insatisfatrios dedesempenho comercial dos filmes nacionais, privilgios de um grupo seleto decineastas que se beneficiava das polticas estatais e at acusaes de desvios derecursos pblicos eram combustvel que inflamava o discurso contrrio atua-o do Estado como fomentador da produo cultural nacional, ao menos na-quele modelo vigente. Desde 1986, o crescimento da hegemonia de Hollywoodse notava com clareza no mercado brasileiro de salas de exibio, com exceodo filme pornogrfico e dos infantis de Xuxa e dos Trapalhes, que seguravamparte do pblico do cinema nacional (AMANCIO, 2000; AUTRAN, 2009).

    A crise enfrentada pelo filme brasileiro a partir de meados da dcada de 1980tinha tambm relao com uma srie de outros fatores, como a chegada dovideocassete ao mercado audiovisual nacional, a penetrao definitiva da tele-viso na totalidade do territrio continental do pas e o aumento generalizadodo preo mdio do ingresso de cinema, que, segundo dados do Ministrio daCultura, passou de U$S 0,50 em 1979 a U$S 2,62 em meados dos anos 1980. 5 Essaconjuntura contribuiu, certamente, para agravar a crise do modelo de apoiopromovido pela Embrafilme. Assim, quando em 1990 foi anunciada a extinoda empresa, o setor no chegou a se espantar com a notcia. O susto veio, noentanto, pela ausncia de uma contraproposta que fosse imediatamente colo-

    4- O discurso de posse deCollor pode ser acessadoem http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/ex-pre-sidentes/fernando-collor/ discurso-de-posse/posse--collor.pdf/view (Acessoem 22 de abril de 2014).

    5-Dados obtidos em Cine-ma Brasileiro: Um Balanodos 5 Anos da Retomadado Cinema Nacional. Bra-slia: SAV/MinC, 1999, p.253-255.

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    cada em vigor pelo governo:

    (...) depois de quase cinco anos de crise, o meio cinematogrficoaceitou, sem maiores discusses, a extino da Embrafilme, da re-serva do mercado e o fim do nacionalismo protecionista. Collor noinventou nada; o ulico paraibano s atendeu aquilo que HectorBabenco, Silvio Back, Carlos Reichenbach, Chico Botelho, Carlos Au-gusto Calil, Roberto Farias, Nelson Pereira dos Santos e a crtica naimprensa liberal pediram. Depois de cinco anos de crise todos carim-baram seu passaporte para o mercado neoliberal, e sem bilhete devolta. S houve frustrao quando o avio decolou. A, todos per-ceberam que tinham ido pro espao, literalmente. De Deus, Collorpassou a ser o Diabo na Terra do Sol (SOUZA apud MARSON, 2006,p. 23).

    A adeso da corporao cinematogrfica ao discurso liberal segundo o quala cultura deveria ser tratada como um problema de mercado conformedefendia o ento Secretrio da Cultura de Collor, o cineasta Ipojuca Pontes esteve relacionada ao quadro de crise terminal da Embrafilme. Por outro lado,a prpria histria de disputa entre o cinemo e o cineminha 6 j revelava aciso da corporao cinematogrfica perante o Estado e a sociedade de modo

    geral. Ou seja, a dissoluo da Embrafilme, da cota de tela e de toda a regu-lamentao do setor contou com o aval de parte do grupo que apoiara a suacriao. A opo pela abertura do mercado se consolidou com a criao daLei 8.313 de 1991, conhecida como Lei Rouanet, que previa a captao de in-vestimentos no setor privado para a promoo da cultura nacional, por meiode renncia fiscal. O modelo de incentivos fiscais foi reforado dois anos depoiscom a Lei 8.685/93 (Lei do Audiovisual), destinada a estimular o financiamentoda produo de longas-metragens (Amancio, 2000; Marson, 2006).

    Ainda que no pudesse ser caracterizado propriamente como neoliberal, o mo-delo de incentivo fiscal esteve mais prximo de uma concepo privatista de

    defesa do livre mercado do que a Ley de Cine argentina. Primeiramente, algica da renncia fiscal foi a de transferir s empresas e seus respectivos depar-tamentos de marketing a deciso sobre em quais filmes investir os recursos ad-vindos da deduo de imposto de renda. Instaurou-se, na expresso de Autran(2009, p. 122), um modo privado de gerir os recursos pblicos, justificado pelatentativa de aproximar a iniciativa privada dos cineastas a fim de convenc-la deque investir em cinema brasileiro era um bom negcio.

    Ao longo dos anos 1990, alteraes na Lei do Audiovisual, como a incluso doartigo 3, foram promovidas a fim de atrair a televiso aberta e as majors ainvestirem tambm no cinema nacional com a garantia do abatimento do

    imposto de renda devido, fosse sobre suas atividades regulares ou o envio de re-

    6-Embora a Embrafilmefosse a maior produtorae distribuidora do cinemabrasileiro durante seu per-odo de existncia, ela noera a nica. Paralelamente Embrafilme havia tam-bm os produtores inde-pendentes, isto , os quefaziam seus filmes sem ofinanciamento do Estado.As pornochanchadas nadcada de 1970 e depoisos filmes pornogrficosnos anos 1980, produzidosno Rio de Janeiro e princi-palmente na Boca do Lixo,em So Paulo, so exem-plos dessa produo queexistiu margem da Em-brafilme, graas a um me-canismo prprio de produ-o, distribuio e exibi-o desenvolvido por seusrealizadores. Como explicaMarson (2006, p. 16): Decerta forma, o cinema daBoca conseguiu realizar ato sonhada integraovertical no cinema brasilei-ro, aliando produo, dis-tribuio e exibio. Essamodalidade de produocinematogrfica ficou co-nhecida como cineminha,em contraposio ao cine-mo, herdeiro da tradiodo Cinema Novo, mais cul-to e financiado atravs daEmbrafilme.

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    messas para o exterior. As disputas entre esses trs grupos de interesse (a corpo-rao cinematogrfica, a televiso aberta e as majors) marcaram as negociaesem torno do modelo de incentivo fiscal ao longo da dcada, culminando nacriao da Ancine (Agncia Nacional do Cinema) em 2001. Dentro do paradig-ma das agncias reguladoras autnomas, caractersticas do Estado neoliberal,a Ancine encerrou o ciclo da Retomada, com a reinstitucionalizao da polticapblica voltada ao setor.

    Um elemento crucial do cenrio audiovisual brasileiro tem sido a centralidadeda TV aberta no setor, que constituiu historicamente um obstculo para a inte-grao do cinema com a televiso. Embora a corporao cinematogrfica tenha

    reivindicado a regulamentao dessa integrao em momentos de crise, comono fim dos anos 1990 por ocasio do III Congresso Brasileiro de Cinema, a TVconseguiu manter-se absoluta no cenrio audiovisual do pas. Essencial manu-teno de uma elite poltica oligrquica no pas, proprietria das concesses derdio e TV, a radiodifuso permanece regulada pelo Cdigo Brasileiro de Tele-viso de 1962 e no sofreu mudanas derivadas diretamente da ascenso de umgoverno de orientao neoliberal nos anos 1990.

    Em 1998, a criao da Globo Filmes, brao cinematogrfico das OrganizaesGlobo, constituiu um exemplo ilustrativo e didtico dessa lgica: a empresa logoadquiriu o primeiro lugar dentre as produtoras dos sucessos de bilheteria do ci-

    clo da Retomada, respaldada por vantagens competitivas que lhe garantiramassociaes com as produtoras independentes mais bem-sucedidas comercial-mente, por um lado, e com grandes distribuidoras estrangeiras por outro. Re-produzindo a lgica geral de concentrao, a Globo Filmes reforou o domnioda TV Globo no setor audiovisual brasileiro. O resultado foi uma configuraoespecfica, em que a empresa se associou s majors estrangeiras, por meio demecanismos da Lei do Audiovisual, para garantir a distribuio de blockbustersnacionais.

    Dessa forma, interessante notar que a suposta contradio da poltica pblicacinematogrfica iniciada em 1991 talvez seja mais uma sntese dos conflitos en-

    tre os grupos de interesse constitudos. Apesar do discurso liberal e hegemnicoda poca tratar o cinema eminentemente como produto de mercado, o fato deno se ter garantido naquele momento a circulao do filme brasileiro atravsdo estmulo sua distribuio e exibio comercial, ou atravs da integraocom a televiso, um pseudo-paradoxo, visto que, na verdade, foi a soluoencontrada para contemplar as reivindicaes da corporao cinematogrficasem perturbar os privilgios das emissoras de televiso aberta (em especial daTV Globo), por um lado, e das majors no outro extremo.

    Na Argentina, diferentemente do contexto de Collor, ao ser eleito presidenteMenem encontrou um cenrio promissor no setor do cinema. A corporao ci-

    nematogrfica estava fortalecida, em grande parte pelo bem-sucedido desem-

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    penho dos filmes argentinos de fins dos anos 1980, que angariaram prmios nosmaiores festivais do mundo, impulsionados pelas polticas promovidas pelo INC(Instituto Nacional de Cinematografa) sob a direo de Manuel Antn. Tambmo crescimento do nmero de estudantes, faculdades e publicaes especializa-das em cinema nos anos 1980 resultara que, em princpio da dcada de 1990,havia um grupo ampliado e bem articulado de interessados em pressionar onovo governo por polticas protecionistas de apoio ao cinema nacional.

    Em seu discurso de campanha, Menem garantira promover melhoras para ossetores populares, tais como um aumento salarial significativo batizado de sa-lariazo ou revolucin productiva, a fim de reativar o consumo. Sua agenda

    preconizava, de certa forma, uma iluso de retorno ao Estado de bem-estar,ou pelo menos a algumas de suas principais diretrizes, que naquele momentohistrico perdiam fora em todo o mundo. Ao assumir a presidncia, porm,suas primeiras medidas tornaram evidente que as promessas de campanha noseriam cumpridas, uma vez que a sada apontada para a crise cujo ncleo aser combatido era a inflao, assim como no caso brasileiro baseava-se nosdois pilares do choque institucional neoliberal: a abertura comercial ampla paraatrair os capitais estrangeiros e o desmonte do Estado para enxugar os custos damquina pblica (MARINO, 2012).

    A mudana estrutural comeou em agosto de 1989, com a edio da Lei n

    23.696 de Reforma do Estado, conhecida como Lei Dromi, sobrenome de seumentor, que era poca ministro de Obras e Servios Pblicos. Logo em seguida,foi aprovada a Lei de Emergncia Econmica, sob a tutela do ento ministro daEconomia, Domingo Cavallo, que permitiu ao governo promover a privatizaode toda empresa pblica deficitria e estabeleceu alteraes na lei 22.285/80para redefinir as caractersticas das companhias que manteriam o direito sobreas licenas dos canais de TV aberta, os primeiros a serem privatizados.

    A despeito de suas promessas de campanha, Menem executou polticas deorientao neoliberal em praticamente todos os setores da economia argenti-na, inclusive na televiso por assinatura. O cinema, pelo prestgio que angariara

    nos anos 1980, e talvez tambm por uma preferncia pessoal do presidente afinal, as idiossincrasias fazem parte da histria quando se trata de lideranaspolticas personalistas , constituiu-se na exceo das polticas pblicas do go-verno Menem. Enquanto a indstria nacional declinava, no incio dos anos 1990,o conjunto das entidades do cinema pressionou o governo para a aprovao deuma legislao que se constituiu na mais protecionista da Amrica Latina, a Leyde Fomento y Regulacin de la Actividad Cinematogrfica , sancionada em 1994(GETINO, 2003).

    O conceito de Espacio Audiovisual Nacional foi incorporado Constituio Na-cional de 1994 e o INC foi transformado em Instituto Nacional de Cine y Artes

    Audiovisuales (INCAA) rgo responsvel por convocar concursos para a ou-

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    torga de prmios para novos realizadores, filmes do interior do pas, telefilmese curtas-metragens, cuja ao ampliou o nmero de ttulos argentinos produzi-dos nos anos 1990. A Ley de Cine aumentou o oramento do INCAA, distribuiumais recursos para a produo por meio de crditos e subsdios e regulamentounovamente a cota de tela, instaurando tambm o mecanismo conhecido comomdia de continuidade, que garantiu aos filmes argentinos o direito de per-manecerem sendo exibidos conforme seu desempenho de bilheteria nas primei-ras semanas em cartaz (MARINO, 2012; MASTRINI, 2005).

    Outra diferena fundamental entre os dois processos foi que, ao contrrio doBrasil, a legislao argentina conquistou um grau de integrao mnimo entre o

    cinema e a televiso, ao garantir que se destinasse ao Fundo de Fomento Cine-matogrfico o total de 25% da taxa j arrecadada pelo Comit Federal de Ra-diodifuso (COMFER) sobre a renda das emissoras. Com esses recursos, a nova leicriou um sistema de crditos e subsdios para o fomento produo cinemato-grfica. Cada mecanismo funciona de uma forma: os crditos so emprstimosconcedidos a taxas mais baixas que as de mercado, outorgados ao produtor quedeseja realizar um filme nacional de longa-metragem e que j possui um pro- jeto concreto da obra. O montante do emprstimo definido de acordo com ooramento total do filme e no pode exceder o Custo Mdio (CM), um valor re-ferencial estabelecido anualmente pelo INCAA com base nas previses de custoapresentadas pelos produtores em seus projetos (PERELMAN e SEIVACH, 2003).

    J os subsdios so aportes no retornveis, aos quais tm direito de acesso todofilme, com ou sem crdito do INCAA na composio de suas fontes de financia-mento. O objetivo do subsdio permitir ao produtor recuperar parte do inves-timento feito no filme, impulsionando desse modo, ao menos em tese, a conti-nuidade da indstria. O mecanismo do subsdio destinado aos filmes que seassim julgar o INCAA contribuam para o desenvolvimento cinematogrficonacional nos mbitos cultural, artstico, tcnico e industrial. Conforme explicaMarino (2012), o subsdio pode ser entendido como uma tentativa de compen-sar a competio desleal e desigual com as majors no mercado argentino, umavez que a comercializao das grandes produes estadunidenses no pas temefeitos similares ao dumping, a princpio proibido em acordos transnacionaisaos quais subscrevem os Estados Unidos, como os da Organizao Mundial doComrcio (OMC).

    Do ponto de vista do cinema argentino e das polticas pblicas para o seu fi-nanciamento, a dcada de 1990 foi, portanto, composta por um cenrio de ex-ceo: um protecionismo que contrastou com a orientao neoliberal aplicadaem outros setores da economia, mas que, por outro lado, no foi suficiente paragerar consenso entre a corporao cinematogrfica a respeito do seu sucesso. Osculo XXI comeou, na Argentina, com reivindicaes pela real autonomia doINCAA e pelo cumprimento integral da Ley de Cine e, por outro lado, pelamobilizao de parte da corporao cinematogrfica em torno de demandas

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    histricas de uma maior interveno estatal em benefcio do cinema no comer-cial e no vinculado ao capital concentrado internacional e nacional.

    A anlise comparada permitiu concluir, portanto, que o modelo de incentivofiscal produzido no Brasil a partir de 1991 foi diferente daquele promovido pelaLey de Cine argentina em 1994 e essa diferena derivou, em parte, da formacomo a corporao cinematogrfica local se posicionou em meio ao processode consolidao de governos de orientao neoliberal em cada um dos pases.No Brasil, a eleio de Collor para a presidncia em 1989 foi seguida por amplareforma liberal do Estado, que extinguiu uma srie de rgos pblicos, dentreeles a Embrafilme. O processo de desgaste da empresa pblica responsvel pelo

    apoio ao cinema desde meados dos anos 1980 derivou num discurso crtico ede oposio ao seu modelo de funcionamento centralizador. Com o apoio departe relevante do ncleo da corporao cinematogrfica brasileira, o governoCollor/Itamar desenhou o novo modelo do incentivo fiscal, aderente ao ideriodo livre-mercado, dominante naquele momento histrico, e que prometia pro-mover a autossustentabilidade da indstria de cinema no Brasil atraindo osetor privado para o fomento produo.

    Na Argentina, a reao da corporao cinematogrfica chegada ao governode Carlos Menem, naquele mesmo ano de 1989, foi diferente. Diante do choquede medidas neoliberais executadas pelo novo presidente, contrariamente ao

    que fora previsto em seu programa poltico, os profissionais do setor argentinose mobilizaram em busca de garantir atividade uma legislao protecionista,que contrariava a cartilha amplamente aplicada para a economia nacional. For-talecida em parte pelo sucesso internacional do cinema argentino ao longo dasegunda metade dos anos 1980, a corporao cinematogrfica foi capaz de semobilizar para reivindicar o que veio a ser a Ley de Cine de 1994, uma legislaoatipicamente protecionista em meio conjuntura poltico-econmica da Argen-tina na poca.

    Embora diferentes em termos de orientao ideolgica, as polticas pblicaspara o cinema no Brasil e na Argentina dos anos 1990 tiveram em comum o

    fato de que no se constituram num contraponto efetivo ao processo global deconcentrao da cadeia produtiva do setor. Ainda que com perfis bem distintos,essas polticas se concentraram no elo da produo, fomentando a realizaode longas-metragens. Contudo, ao institurem, por exemplo, uma cota de telatmida para o filme nacional, essas polticas no confrontaram os interesses dasmajors, ou seja, dos grandes conglomerados de mdia transnacionais, que man-tiveram o domnio da distribuio nos mercados cinematogrficos de ambos ospases.

    No mbito do parque exibidor, que passou por um processo de estrangeiri-zao, a concentrao se tornou evidente, tanto no plano geogrfico quanto

    noeconmico. As salas de cinema restringiram-se cada vez mais aos principais

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    centros urbanos, seguindo o formato multiplex. Na Argentina, de 2.000 salasde cinema nos anos 1950, a cifra reduziu-se a menos de 500 no incio dos 1990,como mostra o grfico a seguir. Ao longo da dcada houve uma retomada daabertura de salas e em 1999 j eram 956. Contudo, a entrada das multinacionaisno setor de exibio modificou drasticamente as relaes de propriedade nocontrole das salas de programao, que anteriormente pertenciam em 70% scompanhias locais.

    Grfico 1. Evoluo do nmero de salas na Argentina (1989-2001)

    Fonte: Elaborado por Marino (2012) com base em dados do INC, do INCAA, ConsultoraNielsen e Secretaria de Cultura da Nao.

    Assim como no Brasil, as salas argentinas se concentraram nos sho- pping centers e nas grandes cidades, ou seja, a recuperao do n-mero de salas do pas ocorreu de forma concentrada em termosgeogrficos e econmicos. Conforme esclarecem Perelman e Sei-vach (2004, p. 134, traduo livre):

    (...) os grandes shoppings e os complexos multicine (multiplex) con-centraram quase todo o crescimento em detrimento das salas tradi-cionais, em geral familiares. Na lgica das grandes majors, era maisatrativa a ideia de se unir ao elo da exibio, porque dessa manei-ra garantiam a colocao do seu prprio material e a participaonum mercado cujo tamanho deveria se multiplicar, e que tinha na-quele momento um dos ingressos em dlares mais caros do mundo.Por sua vez, muitos dos cinemas tradicionais subdividiram suas salas,na tentativa de sobreviver a esse processo de concentrao, o quetambm resultou num aumento do nmero de telas, agora em salasmenores.

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    Os complexos multissalas foram os verdadeiros responsveis pelo crescimentoabsoluto do nmero de salas no pas, concentradas na rea metropolitana deBuenos Aires. A maior parte dos multiplex abriu em shopping centers circunscri-tos capital e a reas especficas, como a zona norte da cidade, limitando assimo acesso da populao do resto do pas ao cinema. O argumento de Julio Mar-biz, presidente do INCAA que assumiu logo aps a Ley de Cine, ao se vangloriardo fato de que em 1995 havia 350 salas e, ao fim de sua gesto, esse nmeropassara a cerca de 1.000, ignorava ento esse aspecto problemtico da retoma-da do parque exibidor argentino (MARINO, 2012, p. 325).

    O mesmo fenmeno ocorreu no mercado exibidor brasileiro. No fim dos anos1970, o pas possua cerca de 3.000 salas, contra 1.075 existentes em 1997. Aqueda foi to brusca que o nmero de salas s voltou a crescer aps a entradado primeiro grupo multinacional no pas. A partir de 1997, o grupo Cinemarkliderou a abertura de novas salas no Brasil, chegando a 257 unidades distribu-das em 28 complexos multiplex em 2001, quando o total de salas do parqueexibidor brasileiro alcanou a marca de 1.620. O nmero de salas localizadasem shopping centers quadruplicou entre 1995 e 2001, quando ultrapassaramo total de 800 salas, conforme se pode ver no grfico a seguir (ALMEIDA E BU-TCHER, 2003).

    Grfico 2. Evoluo dos cinemas em shoppings no Brasil (1997-2001)

    Fonte: ALMEIDA; BUTCHER, 2003.

    Tambm na distribuio, o fenmeno da concentrao foi flagrante. No Brasil,dos 10 filmes que fizeram mais de um milho de espectadores no perodo, ape-

    nas 3 no foram distribudos por majors: Carlota Joaquina , O quatrilho e Cetra-

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    do Brasil ou seja, 70% dos filmes mais vistos da Retomada estiveram nas mosdas distribuidoras estrangeiras, associadas muitas vezes Globo Filmes. Essestrs filmes foram fenmenos especficos e configuraram excees regra geral,que se consolidou ao longo do sculo XXI sob o modelo de incentivo fiscal, con-forme mostra o grfico a seguir. Nessa tendncia, as obras que mais renderambilheteria, ultrapassando a barreira de um milho de espectadores no perodo,foram todas distribudas por majors, ou por empresas nacionais em parceriacom aquelas, e lanadas com mais de 150 cpias (CABRAL, 2014).

    Grfico 3. O mercado de distribuio de filmes nacionais no Brasil (1995-2001)

    Fonte: Elaborao prpria com base em dados da ANCINE e do Filme B.

    Tambm o mercado da distribuio de filmes na Argentina esteve fortementeconcentrado e estrangeirizado em fins da dcada de 1990. Apenas cinco em-presas controlavam mais de metade da oferta, sendo que somente uma delasera de origem nacional (Primer Plano) e se dedicava comercializao de filmesargentinos. As outras quatro maiores distribuidoras (20 th Century Fox, Walt Dis-ney, Warner Bros e Sony) so multinacionais que se dedicam a comercializarmajoritariamente os filmes dos grandes estdios de Hollywood, detentores dasmaiores bilheterias. Apesar de algumas iniciativas individuais, como as das dis-tribuidoras Artistas Argentinos Asociados e Filmarte, que se especializaram emcomercializar filmes nacionais, a dominao do mercado pelas majors no foiameaada. Isto porque o nvel de concentrao e estrangeirizao na ponta dacadeia de valor, ou seja, na exibio, permitiu s majors p lanejarem um crono-grama anual de lanamentos de seus filmes no mercado argentino (PERELMANE SEIVACH, 2004).

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    A dificuldade de ocupar as salas comerciais tambm foi um desafio para o ci-nema brasileiro. Embora o golpe do fim da Embrafilme tenha tido um impactodramtico na produo cinematogrfica no Brasil, com apenas 3 filmes lanadosem 1992, a recuperao foi relativamente rpida e 31 obras foram lanadas emcircuito comercial no ano de 1999. O market share do filme nacional, contudo,no chegou nem perto dos nmeros da poca urea da Embrafilme, quandoatingiu o pico de 36% em 1976. Pelo contrrio, em 1992, a ocupao de merca-do do filme brasileiro foi de 0,05%; ao longo de toda a dcada, no ultrapassouos 10%, obtendo 8,6% do mercado em 1999 (CABRAL, 2014).

    De acordo com Marino (2012), o crescimento significativo da quantidade de fil-

    mes produzidos na Argentina a partir da edio da Ley de Cine um indicadordo xito da poltica pblica aplicada ao setor. No incio dos 1990, a oferta escas-sa de filmes argentinos, que no passavam de uma dezena de estreias por ano,era uma caracterstica central de um mercado em transformao e dominadopelas produes estadunidenses. A situao era to crtica que assim comono caso brasileiro o ano de 1992 tornou-se o pior da histria do cinema local,com apenas uma dezena de filmes nacionais e pouco mais de um total de 14milhes de espectadores ao longo dos doze meses.

    Para Getino (2005), a ao do Estado criou as condies necessrias para a pos-sibilidade de um projeto cinematogrfico e audiovisual argentino ao longo dos

    anos 1990. Tanto a quantidade de filmes nacionais produzidos como a de fil-mes lanados cresceu de modo considervel aps a Ley de Cine e esse teriasido o primeiro passo para desafiar a concentrao oligoplica das majors e suahegemonia, em escala internacional, na produo, na oferta e no consumo defilmes em salas comerciais de exibio de cinema. Contudo, assim como o Brasil,a Argentina no foi capaz de reproduzir esse incremento na produo quandose tratou da arrecadao de bilheteria dos filmes nacionais e da conquista dopblico embora tenha garantido market share em torno de 20% na segundametade dos anos 1990, ou seja, o dobro do Brasil no mesmo perodo.

    Os dados estruturais do setor mostram, portanto, que a poltica pblica mais

    protecionista da Argentina resultou numa ocupao de mercado pelo filme na-cional um pouco mais robusta do que no caso brasileiro. No Brasil, o modelode incentivo fiscal baseado no pressuposto de que a atrao da iniciativaprivada resultaria, no mdio prazo, num desenvolvimento dinmico e autossus-tentvel da indstria cinematogrfica brasileira no atingiu seus objetivos. certo, por um lado, que o aumento do consumo cultural local no dependeexclusivamente das polticas pblicas. Ao mesmo tempo, evidente tambmque as polticas de fomento produo de filmes brasileiros e argentinos noconstituram um contraponto efetivo ao domnio do filme de Hollywood nosmercados locais.

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    Pelo contrrio, o que se pde notar foi uma concentrao significativa em vriosnveis: na distribuio da maior parte dos recursos pblicos disponveis para pou-cas empresas produtoras locais; no acmulo da renda de bilheteria dos filmesmais vistos (inclusive os nacionais) nas mos das majors ; na localizao geogr-fica das salas comerciais de exibio e na propriedade dos complexos multiplexde exibio. Assim, em consonncia com o sentido histrico do neoliberalismo edos governos de orientao neoliberal que ento se instalaram nesses pases, osmercados de cinema brasileiro e argentino passaram por um processo geral deconcentrao ao longo dos anos 1990.

    As novas polticas pblicas de fomento produo trataram de atender s de-

    mandas das corporaes cinematogrficas brasileira e argentina, cada uma aseu modo, mas no perturbaram o domnio de mercado das multinacionais. Aofinal dos anos 1990, o filme de Hollywood reinava absoluto nos mercados decinema brasileiro e argentino. Que esses dois pases, scios principais do MER-COSUL, tenham atravessado processos globais similares (a ascenso de gover-nos neoliberais), com a implementao de polticas pblicas de cinema distintas(incentivo fiscal versus protecionismo estatal), e que, apesar dessa diferena,nenhum deles tenha conseguido frear a concentrao econmica do setor odado relevante que se obteve a partir da comparao dos dois casos.

    Isto se deu porque, em ambos os pases, as polticas pblicas foram resultado

    das demandas urgentes das corporaes cinematogrficas locais, que enfrenta-vam uma grave crise de produo, ainda que com caractersticas distintas. Porum lado, houve traos especficos em cada pas: a corporao argentina foi ca-paz de conquistar uma lei protecionista apesar da pauta neoliberal do governoMenem. No Brasil, a centralidade da TV aberta foi determinante para os limitesdas polticas voltadas para o cinema, uma vez que os interesses da radiodifusoimpediram que a legislao se integrasse. Apesar dessas diferenas, as polticasbrasileira e argentina tiveram em comum o fato de no incidirem diretamentesobre os elos da distribuio e da exibio. Ou seja, no houve contradio ouimpasse entre o atendimento demanda das corporaes locais pelo fomento produo e a tendncia global de concentrao econmica do setor.

    A importncia de compreender a dinmica da economia poltica das cinema-tografias do Brasil e da Argentina se justifica no s por seu aspecto tangvel(ou seja, o econmico, que se pode medir por nmeros e dados), mas tambm,e principalmente, pelo intangvel e cultural sua capacidade de incidir scioe culturalmente nos imaginrios coletivos e individuais, produzindo e reprodu-zindo valores que atuam na manuteno ou na transformao da ordem social. evidente, portanto, a necessidade de cultivar tanto uma reflexo crtica a res-peito da hegemonia de Hollywood e suas implicaes econmicas, polticas eculturais quanto uma viso autocrtica do papel desempenhado por grupossociais locais no processo de configurao dessa hegemonia.

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