Caboclos, Ervateiros Coroneis

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UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA CABOCLOS , ERVATEIROS E CORONÉIS: LUTA E RESISTÊNCIA EM PALM EIRA DAS M ISSÕES LURDES GROLLI ARDENGHI Dissertação de Mestrado na á rea de História Regional, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História como requ isito parcial para a obtenção do grau de mestre em História sob a orientação da Profª. Dou tora Loiva Otero Fé lix. Passo Fundo, j aneiro de 2003

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UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

CABOCLOS, ERVATEIROS E CORONÉIS:

LUTA E RESISTÊNCIA EM PALMEIRA DAS MISSÕES

LURDES GROLLI ARDENGHI

Dissertação de Mestrado na área de

História Regional, apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em

História como requisito parcial para

a obtenção do grau de mestre em

História sob a orientação da Profª.

Doutora Loiva Otero Félix.

Passo Fundo, janeiro de 2003

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__________________________________________________________________

A676c Ardenghi, Lurdes GrolliCaboclos, ervateiros e coronéis : luta e resistência em Palmeira das

Missões / Lurdes Grolli Ardenghi. – 2003.210 f.

Dissertação (mestrado)– Universidade de Passo Fundo, 2003.

1. História – Palmeira das Missões 2. História regional 3. Relações de poder 4. Terra 5.

Coronelismo I. Título.

CDU: 981.65

____________________________________________________________________ Catalogação na fonte: Schirlei Teresinha da Silva Vaz CRB 10/1364

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FOLHA DE APROVAÇÃO

BANCA EXAMINADORA

DRª. LOIVA OTERO FÉLIX UPF - Presidente da banca

DR. BENITO BISSO SCHMIDT UFGRS

DRª. ELIANE LÚCIA COLUSSI UPF

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O estudo das feridas da história, de suas

paixões e de suas febres sociais, dos

estigmas que estas deixam, ainda pode nos

ensinar muita coisa sobre a relação

patológica que uma sociedade mantém

consigo mesma. A estranheza perturbadora

que emana dos fenômenos percebidos por

nós (mas também pelos contemporâneos)

como insensatos, revela as perguntas que o

corpo social formula a respeito de sua

própria identidade e os perigos que tenta

exorcizar segundo o registro próprio de sua

época.

Dominique Julia

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AGRADECIMENTOS

Em especial, ao Alfredo e aos meus filhos, Patrícia, Luciana, Daniela e Alfredo Filho,

agradeço o incentivo, o apoio e a compreensão pelas ausências e momentos de convívio

roubados.

À professora Drª. Loiva Otero Félix, um agradecimento especial, pelo estímulo,

amizade e competente orientação. As indicações de leituras, locais de pesquisa, discussões e

sugestões possibilitaram que esse trabalho se concretizasse. Seu exemplo de superação

desafiou-me a vencer as dificuldades.

Aos professores da Universidade de Passo Fundo, em especial à professora Drª. Ana

Luiza Reckziegel, pelas sugestões e apoio. À professora Drª. Eliane Lúcia Colussi, pelas

contribuições na construção da temática. Aos professores Drs. Fernando Camargo, Astor

Diehl e Mário Maestri pelas sugestões na qualificação e defesa do projeto.

Ao Dr. Benito Bisso Schmidt pelas sugestões e avaliação deste trabalho quando da

defesa do mesmo.

A Cristiane e Denise, amigas com as quais partilhei avanços e angústias, obrigada pelo

companheirismo e amizade. Aos demais colegas, obrigada pela convivência enriquecedora.

Às pessoas amigas, que acreditaram e incentivaram a realização do presente trabalho,

obrigada. À direção e colegas do Colégio Pio X e do Instituto de Educação Estadual Borges

do Canto, pelo apoio e compreensão. Em especial, às amigas Dione Lima Ribeiro, pela

colaboração na revisão do texto, Nádia Scariot e Elza Mafalda pelas contribuições.

Às pessoas que concederam entrevistas, agradeço pela disposição e contribuições,

especialmente ao Dr. Mozart Pereira Soares, que pela sua sapiência, contribui para a

construção da história regional. Aos familiares de Leonel Rocha pela atenção e

disponibilidade.

Aos funcionários dos arquivos e instituições de pesquisa, pela disponibilidade e apoio

na coleta de dados.

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7

RESUMO

O passado de lutas, que envolve o município de Palmeira das Missões, se constitui no

tema deste trabalho, buscando investigar as motivações que impulsionavam as facções em

confronto e a permanência de relações conflitantes, manifestadas no jogo político. Através da

pesquisa e análise de correspondências, relatórios, processos judiciais, jornais, entrevistas e

obras produzidas, o presente estudo é uma tentativa de reconstrução histórica das lutas e

resistências que marcaram a sociedade regional no período da República Velha. A freqüência

e a gravidade dos combates que ocorreram na região da Grande Palmeira, fizeram com que o

município fosse identificado com representações que o qualificam como espaço de violência.

A área geográfica nativa, constituída de áreas de campo e mata, deu origem à

construção de um espaço diferenciado e a conseqüente formação de grupos sociais distintos,

em permanente animosidade. De um lado, o poder do campo, constituído pelos coronéis-

latifundiários e, de outro, o poder do mato, constituído pelos caboclos, pequenos

proprietários, posseiros e ervateiros.

A temática remete a questões relacionadas com a posse da terra e às relações de poder,

em que a estrutura do coronelismo se impõe como fator determinante para a análise, buscando

explicar a cristalização dos conflitos, associados a questões socioeconômicas e diferenciados

dos confrontos estaduais. O grupo oposicionista – poder do mato – aliava-se nos confrontos

estaduais, aos fazendeiros da Campanha gaúcha, que apresentavam composição e

características distintas em relação ao grupo local. O estudo procura reconstituir a trajetória de

Leonel Rocha, como representante dos pequenos e médios agricultores, ervateiros e

posseiros, identificado como o caudilho a pé, buscando as razões que mantiveram acesos os

conflitos.

Palavras-chave: Palmeira das Missões, relações de poder, terra, Leonel Rocha,

coronelismo.

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ABSTRACT

The past of fights that involv the city of Palmeira das Missões, set up the subject

of this work, searching for to investigate the causes that push forward the factions in confront

and the permanence of relations ships in conflict, manifested in the politic game.

Across of search and aralysis of corres pondences, reports judicious processes,

news papers interviews and produced works, the present work is a attempt of reconstruct the

history of fights and resistance that marked the regional society in the period of old Republic.

The frequency and the gravity of the combats that happened in the region of big Palmeira

became the city recogniced as na space of violence.

The geografic native area, constituted of areas of fied and wood land, gave origin

for the construction of different space and the consequent formation of different social groups

in permanent conflict. To one side, the power of field, constituted by colonel-big owners and

the other side, the pawer of woodland, constituted by small owners, squatters and extractor of

herb trees.

The subject consigns to questions related with the possession of land and and the

relationbhips of power, which the structure of the colonelism imposes as a decisive factor for

the analysis, searching for to explain the crystallization of conflicts associated to for social

and economics questions and different of the state conflicts. The opposite group – pawer of

woodland – associated, in the state conflicts, with the famers of the west of Rio Grande do

Sul, that presented different composition and characteristies in relation to the local group. The

learning look for to reconstitute the trajectory of Leonel Rocha, as representative of small and

medium agriculturists, owners of herb trees and squatters, identified as the “caudilhist on

foot”, searching for the reasons that maintain lighted the conflicts.

Key-words: Palmeira das Missões, relationships of power, land, Leonel Rocha,

colonelism.

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SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS ........................................................................................................ v

RESUMO............................................................................................................................. vi

ABSTRACT ........................................................................................................................ vii

LISTA DE ABREVIAÇÕES............................................................................................... x

LISTA DE FIGURAS.......................................................................................................... xii

INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 12

CAPÍTULO 1 – PODER DO CAMPO & PODER DO MATO:

Construção do espaço e agentes sociais............................................................................... 28

1.1. A ocupação do espaço e a identidade regional ............................................................. 28

1.1.1. A ocupação da mata ................................................................................................... 38

1.1.2. A ocupação dos campos nativos ................................................................................ 46

1.2. Caboclos, ervateiros e coronéis .................................................................................... 48

CAPÍTULO II – A QUESTÃO DA TERRA E O PODER LOCAL................................... 59

2.1. A ocupação primitiva e a emergência de conflitos ....................................................... 60

2.2. Os ervais do Campo Novo e as disputas pela terra....................................................... 67

2.3. A posse da terra e a legislação. ..................................................................................... 75

2.3.1. O período republicano. .............................................................................................. 76

2.3.2. O positivismo e a questão agrária. ............................................................................. 79

2.3.3. A Lei de Terras de 1899 e seus desdobramentos....................................................... 83

CAPÍTULO III – LUTA E RESISTÊNCIA........................................................................ 94

3.1. Palmeira das Missões: A violência como parte do cotidiano... .................................... 94

3.1.1. ... nos últimos anos do Império. .................................................................................. 97

3.1.2. ... e quando chega a República. ............................................................................... 100

3.2. A violência exteriorizada na Revolução. ...................................................................... 107

3.2.1. A chacina do Boi Preto .............................................................................................. 109

3.3. Os caboclos vão à luta. ................................................................................................. 112

CAPÍTULO IV – O PODER DO MATO: REPRESENTAÇÃO E IMAGINÁRIO........... 116

4.1. Leonel Rocha – “o caudilho a pé”. ............................................................................... 116

4.1.1. O Levante de 1902. .................................................................................................... 123

4.2. Coronéis & coronéis. .................................................................................................... 134

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4.3. Palmeira nas Missões na Revolução de 1923. .............................................................. 140

4.3.1. O olhar do poder. ....................................................................................................... 152

4.3.2. A pacificação. ............................................................................................................ 157

4.3.3. A paz inconclusa. ....................................................................................................... 162

4.4. Caboclos e colonizadores na Fazenda Sarandi. ............................................................ 174

4.5. Por que lutou Leonel Rocha?........................................................................................ 184

4.5.1. O imaginário .............................................................................................................. 190

CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 194

BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................. 199

FONTES .............................................................................................................................. 204

ANEXOS:............................................................................................................................ 206

Nº 1: Abaixo-assinado dos moradores de Campo Novo ao Imperador D. Pedro II ........... 207

Nº 2: Composição apresentada no 3º Carijo da Canção Gaúcha:

Por que lutou Leonel Rocha? .............................................................................................. 209

Nº 3: Oração de Santa Catarina .......................................................................................... 210

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LISTA DE ABREVIAÇÕES

AAM/CPDOC/FGV : Arquivo Antunes Maciel – Centro de Pesquisa e Documentação -

Fundação Getúlio Vargas.

ABM/IHGRS: Arquivo Borges de Medeiros - Instituto Histórico e Geográfico do Rio

Grande do Sul.

AHRS: Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul

AL : Aliança Libertadora

AFC/UFRGS: Arquivo Flores da Cunha – Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

APRS: Arquivo Público do Rio Grande do Sul

AVaD/IHGRS: Arquivo Vazulmiro Dutra – Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande

do Sul.

FUG: Frente Única Gaúcha.

IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

IHGRS: Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul

MCSHJC: Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa

NHP/UPF: Núcleo de História Política – Universidade de Passo Fundo.

PL: Partido Libertador.

PRD: Partido Republicano Democrático.

PRR: Partido Republicano Rio-Grandense.

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INTRODUÇÃO

“... daria para viver muito bem aqui, se não fosse a constante competição partidária, com conseqüentes

intrigas e rixas, de tal modo, que viver em paz é quase impossível. Quem quiser tranqüilidade terá

que tapar os ouvidos, para não escutar, vendar os olhos para não enxergar”.1

Os confrontos armados que ocorreram no Rio Grande do Sul, durante a fase da

República Velha, foram particularmente marcantes no município de Palmeira das Missões,

onde federalistas e republicanos mantiveram um clima de belicosidade que, de certa forma,

explica a formação do imaginário de violência, presente na memória coletiva e na

historiografia. Desvendar a trama de relações que contribuíram para manter acesos os

antagonismos, buscando os motivos que impulsionaram os confrontos, é o objetivo a que nos

propusemos no presente trabalho.

Pretendeu-se investigar, através da reconstituição do passado de lutas, as relações de

poder que se estabeleceram ao longo do processo histórico, e que marcaram o município,

colocando em confronto dois grupos distintos, o poder do campo e o poder do mato2. O foco

se volta, especialmente, sobre o poder do mato, que sustenta uma luta em condições adversas,

liderado pelo “caudilho a pé”, Leonel Rocha, mobilizando a população cabocla das áreas

florestais e conseguindo manter em constante tensão o poder constituído, representado pelos

coronéis- latifundiários, cooptados ao governo castilhista/borgista. Sobretudo, pretendeu

reconstruir a atuação dos sujeitos históricos marginalizados no processo de ocupação e

esquecidos na maior parte da historiografia regional.

O estudo abrange a área primitiva do município de Palmeira das Missões, situado no

Planalto Rio-Grandense e designado historicamente de Grande Palmeira, numa área de

1 Maximiliano Beschoren nas suas impressões sobre a Vilinha da Palmeira, em 1877, numa época em que, segundo ele, havia 400 a 500 habitantes na sede, e cerca de 9.000 em todo o município. Ver: BESCHOREN, Maximiliano. Impressões de viagem na província do Rio Grande do Sul (1875-1887). Porto Alegre: Martins Livreiro, 1989. p. 78.2 FÉLIX, Loiva Otero. Coronelismo, borgismo e cooptação política. 2º edição. Editora da Universidade/UFRGS. Porto Alegre. 1996. p. 95 e 96. Destaca, em sua obra, o confronto entre o “poder do mato (representado pelos ervateiros, lavoureiros e chacareiros, identificados com as forças da oposição política) e o poder do campo (representado pelos estancieiros, identificados com as forças do situacionismo)”.

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15.600 quilômetros quadrados, que se estendia até as margens do rio Uruguai, apresentando

vegetação nativa que entremeava campos e matas. Tal especificidade gerou uma formação

dicotômica, com processos históricos diferenciados e guardando, até hoje, traços

socioeconômicos e culturais que permitem perceber duas nítidas configurações de identidade

regional. Atualmente, este território constitui um grande número de municípios que vieram a

se emancipar numa fase posterior aos fatos a serem investigados.

Partimos da idéia de região como um corte analítico na espacialidade e com

múltiplos fatores interferentes, considerando-se, além dos aspectos físicos, os elementos de

ordem cultural, política, econômica e ideológica, presentes num determinado espaço. Não

pode ser tomada como parte isolada, mas sim como parte de um sistema global do qual foi

recortada, em que múltiplos fatores, que constituem o seu entorno, nela são interferentes. A

região possui identidade própria, porém articulada a um sistema maior. Em suma, a região

deve ser vista como um produto da ação humana, como um espaço vivido e com uma carga de

historicidade própria, que influi na contemporaneidade.3

Assim, o recorte espacial que estabelecemos permite a análise das manifestações do

imaginário social, na região em estudo, que é percebida como um espaço de violência,

envolvendo a intrincada rede das relações de poder, cujas marcas estão presentes muito além

do tempo dos confrontos reais, em manifestações da memória coletiva.

O recorte temporal situa-se, predominantemente, no período da República Velha,

extrapolando esse limite, quando necessário, para a compreensão do contexto histórico que

envolve os acontecimentos. Nesse período, o município foi palco de lutas coronelistas entre

maragatos e chimangos, decorrentes das rivalidades locais associadas aos conflitos na esfera

estadual, dentre elas, a Revolução Federalista de 1893, a Revolução de 1923 e, na esfera

federal, a passagem da Coluna Prestes, em 1924, e a Revolução Constitucionalista de 1932, na

qual Palmeira teve uma participação peculiar com o 3o Corpo Provisório, denominado Pé-no-

Chão. Evidencia-se, também, um levante ocorrido em Palmeira, em 1902, ainda pouco

estudado, o que demonstra que as animosidades foram constantes, manifestando-se de formas

diversas, mesmo quando não havia um confronto declarado.

A temática desenvolvida originou-se da constante referência ao passado de violência

que marca o imaginário coletivo. Os antigos habitantes assistiram a constantes mobilizações

armadas de grupos rivais, que marcaram o cotidiano e o papel geopolítico do município na

esfera estadual. Essa característica se manifesta freqüentemente na historiografia, em

3 Ver RECKZIEGEL, Ana Luiza. “História regional: dimensões teórico conceituais”. In. História:debates e tendências. Passo Fundo, v.1, Ediupf. 1999. p.15-22.

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documentos, jornais da época e, sobretudo, na memória coletiva. Como tema recorrente nas

representações e no imaginário social, constituiu-se em um fator de controvérsias e

indagações, escamoteado às vezes, por trazer à tona questões que, segundo a visão de alguns,

deveriam ser apagadas, mas que a memória teima em fazer ressurgir, pois, conforme Pierre

Nora: “a memória é vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em

permanente evolução aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas

deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, suceptível de longas

latências e de repentinas revitalizações”. 4

A investigação inicial, buscando delimitar o tema, levou-nos ao levantamento das

obras produzidas, em nível local e regional, como também a obras relativas à República Velha

e aos temas a ela relacionados. A revisão bibliográfica conduziu a algumas certezas e a

questionamentos que permitiram estabelecer os pressupostos iniciais da pesquisa. Nesse

sentido, algumas obras tiveram especial relevância, apontando lacunas e possibilidades para

avançar na investigação histórica.

A obra do escritor palmeirense Mozart Pereira Soares, Santo Antônio da Palmeira,5

serve de referência para estudo do município, destacando as linhas gerais da ocupação e

evolução histórica. Apoiada em consistente pesquisa documental e acrescida de registros de

contemporâneos dos fatos, pela sua abrangência, abre possibilidades para novos enfoques e

investigações. Aponta para a polarização de forças entre os grandes proprietários da área de

campo e os habitantes da zona florestal, que veio a se constituir no foco desta pesquisa.

O estudo sobre coronelismo na região, realizado por Loiva Otero Félix, apontou o

rumo da pesquisa, quando ressalta a presença dos pequenos proprietários, representados por

chacareiros e ervateiros, designando-os como poder do mato, em permanente enfrentamento

com o poder do campo, constituído pelos estancieiros. As forças políticas do campo

concentram-se em Vazulmiro Dutra, que lidera a política regional, nas primeiras décadas do

século XX, e que foi objeto de estudo na obra citada, sendo representativo dos coronéis do

Planalto, cooptados ao modelo borgista.

O poder do mato é comandado pelo coronel maragato, Leonel Rocha, que tinha o

apoio de líderes políticos que se opunham ao grupo situacionista. A atuação de Leonel Rocha,

embora de grande relevância nas lutas locais e regionais, carece de estudos mais

4 NORA, Pierre. “Entre memória e história. A problemática dos lugares”. Revista Projeto História . Vol. 10. São Paulo: dez. 1993. p. 9.5 SOARES, Mozart Pereira. Santo Antônio da Palmeira. Editora Bels. Porto Alegre: 1974. A obra se constitui numa referência para o estudo do município, pela sua abrangência, apontando as linhas gerais da ocupação e evolução histórica do município.

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aprofundados, o que é apontado por Félix, quando destaca a falta de um “estudo sobre os

coronéis maragatos, suas bases de apoio e mecanismos de manutenção local numa política

estadual adversa.”6

As obras de Soares e Félix foram de fundamental importância, dando origem aos

primeiros questionamentos referentes às especificidades das lutas que marcaram a região. A

partir desses elementos, foi possível estabelecer alguns dos pressupostos que nortearam a

pesquisa.

Ao examinarmos a produção historiográfica sobre os confrontos armados, constatou-

se que a maioria dos autores situa os acontecimentos no quadro das disputas políticas

relacionadas ao domínio do poder na esfera estadual. Dessa forma, adquirem caráter de lutas

elitistas, nas quais se destaca o enfrentamento dos estancieiros da região da Campanha contra

o poder estadual, representado pelo Partido Republicano Rio-Grandense e sustentado pelos

estancieiros do Planalto Gaúcho.

Nesse sentido, sobressaem as obras de Sandra Pesavento, Celi Regina Pinto e Maria

Antonieta Antonacci7 que, com algumas diferenças quanto às motivações dos grupos

envolvidos, defendem que o enfrentamento ocorria no interior da classe dominante. Essas

abordagens não contemplam as peculiaridades presentes nas lutas da região em estudo, visto

que a liderança local era representada por Leonel Rocha, que tinha sob seu comando um

número significativo de caboclos, que como ele, enfrentavam as dificuldades de sobreviver à

margem dos latifúndios.

A formação econômica do município fornece o suporte estrutural no qual se

estabelece a organização de uma sociedade com a dominação da elite pastoril e a conseqüente

marginalização dos demais setores. A ocupação do município fez-se de maneira distinta nas

áreas de campo e mata, resultando numa formação social diferenciada e, por vezes,

conflitante, constituindo-se em poderes antagônicos, como já foi colocado anteriormente.

Entre esses grupos, situa-se uma massa de caboclos, expropriados de suas terras,

quando houve a privatização dos ervais nativos, que passam a ocupar os “fundos” de campo

como posseiros, meeiros ou como peões das estâncias ou, até mesmo, mão-de-obra temporária

dos proprietários- imigrantes e ervateiros. Esse segmento social aparece de forma quase difusa

na historiografia, porém, as obras de Paulo Afonso Zarth e Aldomar Rückert adquirem

6 FÉLIX, Loiva Otero. Op. cit. p. 29. 7ANTONACCI, Maria Antonieta. RS: As oposições e a Revolução de 1923. Porto Alegre. Mercado Aberto., 1981. PESAVENTO, Sandra J. República Velha gaúcha- charqueadas frigoríficos e criadores. Porto Alegre: Movimento/IEL/RS, 1980 e outras obras relativas ao período e PINTO, Celi Regina. Positivismo: um projeto político alternativo – 1889-1930. L&PM Editores. Porto Alegre: 1986. As obras das autoras tratam com profundidade o período da República Velha, abordando os aspectos econômicos e políticos.

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importância significativa por apontarem os problemas agrários que conduziram à formação

desse grupo marginalizado no processo de ocupação e escassamente citado na historiografia.

De acordo com Paulo Afonso Zarth, “o lavrador caboclo estava estreitamente ligado

ao estancieiro ou comerciante de mate”, que poderiam ser a mesma pessoa. Os caboclos

poderiam ser submetidos a uma sólida dominação política e econômica, sujeitos, inclusive, à

arregimentação militar nos momentos das lutas armadas.8 Em sua obra História agrária do

Planalto gaúcho, realiza importante estudo sobre a formação da propriedade na região, no

período de 1850 a 1920, demonstrando as contradições do processo numa região de vastas

áreas inexploradas na qual emergem os conflitos pela posse da terra.

Para fins deste estudo, temos presente na designação de caboclo, componentes

étnicos, socioeconômicos e culturais. Referimo-nos aos moradores das áreas rurais, que se

dedicavam às atividades extrativistas - especialmente a erva-mate – e/ou relacionadas a

culturas de subsistência, em roçados de pequeno porte. Trata-se de pequenos proprietários,

agregados ou arrendatários, com significativa carga étnica, fruto da mestiçagem do índio,

branco e mesmo do negro, apresentando um modo de vida típico do meio rural. Enfim,

considera-se caboclo o homem da terra com uma cultura própria, vinculada a práticas

coletivas e atividades econômicas relacionadas ao setor primário.

A designação ervateiros pressupõe um grupo diferenciado, que em menor número,

controlava a produção, a comercialização e as áreas onde a erva-mate – Ilex paraguaiensis –

era encontrada em maior quantidade. Distingüiam-se dos coletores ou tarefeiros que

executavam as atividades de corte, coleta e sapeco da erva, destinada posteriormente à fase de

transformação e comercialização.

Os coronéis assumem, na região em estudo, o papel de comando socioeconômico e

político, respaldados no poder do governo do estado e nas suas próprias prerrogativas, que

lhes advêm como detentores de terra, gado e controladores de gente. Os coronéis-

latifundiários, portanto, constituem o grupo dominante, proprietários de grandes áreas de

campo destinadas à pecuária, sendo em geral descendentes dos tropeiros paulistas de

ascendência luso-brasileira, que chegaram ao planalto nos primórdios da ocupação.

Os colonos são entendidos aqui por imigrantes ou descendentes de imigrantes

europeus, que se dedicavam à agricultura em pequenas propriedades. Diferenciam-se dos

caboclos agricultores, por terem ocupado a área de mata, numa fase posterior, como

participantes do processo de colonização em colônias oficiais ou particulares.

8 ZARTH, Paulo Afonso. História agrária do planalto gaúcho - 1859-1920. Ijuí: Ed. UNIJUÍ, 1997. p.175-176.

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A diferenciação socioeconômica põe em confronto grupos distintos, em permanente

enfrentamento, designados, como o poder do campo e o poder do mato. Os coronéis-

latifundiários exercem marcadamente o predomínio político, aliados à cúpula dirigente do

estado, representada pelo castilhismo-borgismo de base positivista. Esses coronéis

representam a base de sustentação do PRR, em nível estadual, visto que emergem como grupo

dominante, a partir da instalação da república positivista.

No estudo das lutas que marcaram a região, sobressai a ação do poder do mato que,

embora em condições desfavoráveis, mantém por um largo período a mobilização contra o

poder estabelecido, o poder do campo. A análise dos grupos nos remete a Norbert Elias,

quando estuda uma pequena comunidade, na qual demonstra uma constante universal,

constituída de estabelecidos e outsiders. O poder do campo constituía o establishment, “grupo

que se auto percebe e que é reconhecido como uma “boa sociedade”, mais poderosa e melhor,

uma identidade social construída a partir de uma combinação singular de tradição, autoridade

e influência”. Esse grupo se completa no outro que lhe dá visibilidade, os outsiders, este

definido como um coletivo, existe sempre no plural, constituindo um conjunto heterogêneo e

difuso, marcado pela estigmatização9.

Os caboclos, que constituem o poder do mato, são os que estão fora da “boa

sociedade” e se autopercebem como tal, sendo marcados com atributos de violência e atraso.

No caso em estudo, os caboclos assumem aos olhos da “boa sociedade” características

depreciativas, associadas à ignorância, às crendices, à delinqüência. Elias destaca que “um

grupo só pode estigmatizar outro com eficácia, quando está bem instalado em posições de

poder das quais o grupo estigmatizado é excluído”. 10 O grau de coesão maior do grupo

estabelecido permite que controlem cargos e posições sociais, preservando, assim, seu

excedente de poder, o que lhe permite manter a exclusão dos demais grupos. A natureza das

fontes de poder pode variar em diferentes contextos, no entanto, a figuração estabelecidos-

outsiders apresenta características comuns e constantes, podendo ser atribuída aos coronéis e

caboclos da região. A luta entre os grupos ocorria pelo grande diferencial de poder, tendo em

vista a manutenção das fontes de poder, no caso, a posse da terra que concedia vantagens

materiais e simbólicas a quem a possuía.

Através da pesquisa em fontes documentais e historiográficas, bem como de relatos

orais, buscamos desvendar os motivos que mobilizaram o poder do mato a lutar contra o

poder estabelecido, em condições adversas e considerando que sua condição de classe era

9 ELIAS, Norbert & SCOTSON, John. Os estabelecidos e os Outsiders. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 2000. p. 7-8.10 Idem. p. 23.

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marcadamente diferente dos fazendeiros da região da Campanha, dos quais eram aliados.

Portanto, os grupos que se confrontavam no estado não apresentavam a mesma figuração,

estabelecidos – outsiders, que ocorria na região.

A partir da análise inicial foi possível estabelecer as hipóteses que norteiam o

presente estudo:

1º - A formação de uma sociedade dicotômica, com a exclusão dos caboclos que viviam

da extração da erva-mate, nas áreas do campo, gerou confrontos relacionados à questão

agrária.

2º- O domínio socioeconômico e político dos coronéis- latifundiários, cooptados ao

governo castilhista/borgista, gerou disputas pelo poder local, com reações típicas do

coronelismo.

3º -As lutas armadas, no município, diferenciavam-se dos confrontos estaduais quanto à

composição do grupo de oposição e, em conseqüência, quanto aos motivos que

impulsionavam as lutas, relacionando-se a questões de terra e exclusão socioeconômica.

4º- A liderança do grupo de oposição se concentrava no “caudilho a pé”, Leonel Rocha,

sobre o qual assentavam-se representações que o identificavam com o segmento despossuído,

e que era reforçado na historiografia com expressões como “roceiro pobre, quase analfabeto,

sem ambições de poder”. A questão Por que lutou Leonel Rocha?, presente no imaginário

social, se impõe como explicação a ser perseguida na busca dos motivos que mobilizaram o

poder do mato, durante o ciclo revolucionário que envolveu a região.

A partir dessas constatações, foi possível estabelecer as linhas gerais da pesquisa,

centrada nas relações de poder entre as facções relacionadas ao mato e ao campo; nas

motivações do poder do mato, que remetiam à questão da terra e, sobretudo, à trajetória de

Leonel Rocha, como fator aglutinador dos dois outros componentes: coronelismo e questão

agrária.

As constatações remeteram a fontes bibliográficas relacionadas com o tema. Para o

estudo da questão agrária recorreu-se à obra de Luiza Kliemann, RS: terra e poder11, que faz

uma detalhada análise da relação entre a posse da terra e o controle do poder no estado do Rio

Grande do Sul. Fez-se necessário situar as lutas dentro do contexto político da República

Velha, relacionado com a esfera estadual e federal. A maioria dos historiadores destaca as

especificidades do estado sulino, quanto à formação histórica, marcado pelas características

de zona fronteiriça, em que a conquista do território se deu às custas da luta armada. O

11 KLIEMANN, Luiza H. Schmitz. RS: terra e poder: história da questão agrária. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1986.

Page 18: Caboclos, Ervateiros Coroneis

19

positivismo e o autoritarismo do governo castilhista/borgista diferenciam o Rio Grande do Sul

do restante do país nas primeiras décadas do período republicano. Esses fatores, associados a

uma economia subsidiária e dependente, estariam na origem dos conflitos.

Sandra Pesavento, ao analisar a economia gaúcha no período, destaca a importância

de “analisar também as formas de articulação e conscientização da classe dominante local,

bem como o desempenho do estado sulino de feição positivista e autoritário”. 12 Pesavento

ressalta a tradição de autoritarismo brasileira, que é acentuada no Rio Grande do Sul, devido

às condições históricas de sua formação, sendo necessário considerar que “as prováveis

disputas pelo poder dão-se ao nível dos grupos dominantes, uma vez que as demais camadas

sociais se fazem ausentes do jogo político”. 13

As especificidades da elite que controlava o poder no estado, representada pelo

partido republicano, são apontadas por Celi Regina Pinto, quando afirma que, na sua maioria,

não pertencia à tradicional elite pecuarista da Campanha gaúcha, mas era proveniente da

região norte do estado.14 Diferentemente, dos demais partidos republicanos brasileiros, o PRR

teve que enfrentar uma oposição organizada, representada pela elite pecuarista do estado que

dominava a rede coronelista da campanha gaúcha. Mesmo considerando esses aspectos e o

fato de se constituírem numa minoria, destaca que o partido dominou o estado durante a

República Velha, tendo inclusive enfrentado duas revoluções sem perder o poder e, ainda,

liderou o processo da Revolução de 30, que pôs fim ao pacto oligárquico.15 Os maragatos

palmeirenses aliaram-se à elite pecuarista da Campanha, mas eram social e economicamente

muito distintos da mesma.

No caso da região da Grande Palmeira, constata-se que o enfrentamento se dá entre

camadas sociais distintas, visto que o poder do mato não faz parte do grupo dominante,

constituindo-se no segmento sobre o qual lançamos nosso olhar, no sentido de investigar a

composição e os motivos que os impulsionavam à luta. As motivações do grupo de oposição

local apresentam-se como indagações a serem investigadas, visto não apresentarem

semelhanças com os federalistas da Campanha, cujos vínculos com a oligarquia dominante no

Império, serviram como motivo para enfrentamento com o grupo que assumiu o poder na

República e, posteriormente, contra um governo que se perpetuou no poder.

12 PESAVENTO, Sandra J. “República Velha gaúcha Gaúcha: Estado autoritário e economia”. In DACANAL, José H. ; GONZAGA, Sérgius (Orgs.) RS: Economia e Política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1979. p. 194. 13 Idem. p. 196.14 PINTO, Celi Regina. Positivismo: Um projeto político alternativo – RS: 1889-1930. L&PM Editores 1986. p. 10-11.15 Idem. p. 11.

Page 19: Caboclos, Ervateiros Coroneis

20

A eficiência política do PRR, apoiada numa máquina administrativa, nos

mecanismos de coerção e violência e no poder econômico, representado pelos coronéis locais

que sustentaram as práticas ditatoriais do governo positivista, está presente na região que é

objeto deste estudo, onde o coronelismo se constituiu em base de sustentação para a política

estadual.

Eliane Colussi, ao estudar o municipalismo gaúcho, destaca a força do coronelismo

no período da República Velha e no Estado Novo, constituindo-se na expressão de uma

sociedade predominantemente rural em que “o poder privado fortalecia-se em conseqüência

do atraso econômico e da falta de comunicação dessas localidades com os centros mais

desenvolvidos”.16 Os coronéis exerceram um papel de intermediação com o poder público,

possibilitando a montagem de uma máquina político-administrativa, através da qual

fortaleciam-se os laços de dominação. Às autoridades estaduais, interessava o fortalecimento

do poder local através dos coronéis, como forma de comprometimento com acordos político-

eleitoreiros.

Os estudos sobre coronelismo no Brasil remetem fatalmente à obras que se tornaram

representativas, pela sua consistência e riqueza de análises, como as de Victor Nunes Leal,

Raimundo Faoro, Maria Isaura Pereira de Queiroz e Edgar Carone, entre outros. Inúmeros

estudos sobre o coronelismo têm enriquecido o tema, considerando peculiaridades regionais.17

Os estudos recentes sobre o coronelismo têm em José Murilo de Carvalho e Antônio Octávio

Cintra os nomes de destaque com análises que privilegiam os vários tipos de coronelismo, que

aparecem na sociedade brasileira e a persistência de manifestações apoiadas no mandonismo e

no clientelismo. Várias obras sobre manifestações locais do coronelismo possibilitaram

análises comparativas. Dentre elas, destacamos Jean Blondel e Luís Palacin que realizaram

estudos sobre os estados da Paraíba e Goiás, respectivamente.

É preciso ter presente que, no Rio Grande do Sul, o coronelismo assume

manifestações diferentes em relação ao restante do Brasil, devido às especificidades da

formação histórica do estado, cuja ocupação foi marcada pelo militarismo e associada à base

econômica, predominantemente pastoril, favorecendo o surgimento de uma sociedade

senhorial em que se estabeleceram relações de dominação dos chefes locais com bandos ou

grupos de parentela.

16 COLUSSI, Eliane Lúcia. Estado Novo e municipalismo gaúcho. Passo Fundo: Ediupf. 1996. p.16.17 As obras dos autores constam da bibliografia e foram utilizadas para o embasamento geral do tema, sendo citadas no decorrer do texto, nos tópicos específicos em que serviram de suporte para as análises.

Page 20: Caboclos, Ervateiros Coroneis

21

Loiva Otero Félix, em sua obra Coronelismo, borgismo e cooptação política

apresenta uma análise do coronelismo gaúcho, abordando suas origens, características e

diferenças entre os coronéis/caudilhos da região da campanha e os coronéis borgistas da

região do Planalto Médio gaúcho.

Com referência às origens do coronelismo gaúcho, aponta as características do ciclo

militar-pastoril como definidoras das relações de poder, destacando como “um fator

altamente significativo na formação do coronelismo gaúcho: a estruturação dos grupos de

parentela onde, em geral, o chefe da mesma era o chefe do bando de guerrilheiros que se

afazendou”. 18 Ao se estabelecer como estancieiro, mantém sob sua dependência um certo

número de pessoas em que os laços de lealdade e submissão contribuem para o

estabelecimento do compromisso coronelista.

Um aspecto que diferencia o coronelismo gaúcho do praticado nos demais estados

brasileiros está relacionado com sua vinculação com o caudilhismo. A autora discute o tema

conforme tem sido abordado pela historiografia e literatura, “identificando o caudilhismo com

o coronelismo do período imperial enquanto poder local com predomínio do sentido militar e

carismático em relação ao papel político, legitimado em sua ação pelo consenso dos grupos

sociais locais”. 19

Dessa forma, o coronelismo no Rio Grande do Sul teve aspecto caudilhesco

acentuado, como também foi impregnado pela ideologia positivista, definindo-se, assim, as

diferenças em relação aos demais estados brasileiros. No período imperial, houve o

predomínio dos coronéis da campanha, com características caudilhescas, e, na República,

cresce a importância dos coronéis serranos, cooptados ao PRR e ideologicamente ligados ao

positivismo.

Os coronéis-militares e os tropeiros descendentes de tradicionais famílias paulistas

constituíram o grupo dominante na fase de ocupação, estendendo-se por todo o período

imperial e início da república. Durante a República Velha, fatores socioeconômicos advindos

das mudanças que se operam nas atividades produtivas, favorecem a emergência do poder do

mato, constituído por ervateiros, chacareiros e pequenos proprietários. Nessa fase, estabelece-

se um clima de permanente enfrentamento com o poder do campo, que até então se constituía

no grupo dominante e controlador das relações políticas locais.20

18 FÉLIX, Loiva Otero. Op. cit. p. 38.19 Idem. p. 46.20 A designação de poder do campo e poder do mato é usada por Loiva Otero Félix, na obra já citada. Também Mozart Pereira Soares, na obra Santo Antônio da Palmeira , destaca as características dos dois grupos de poder, apontando os antagonismos entre os mesmos.

Page 21: Caboclos, Ervateiros Coroneis

22

O poder do mato, tem como líder Leonel Rocha, que apresenta um perfil

diferenciado do coronelismo estudado, pela sua origem e características pessoais. Conforme

Arthur Ferreira Filho, “representou outra categoria social. Era um pequeno agricultor, muito

pobre, que trabalhava de enxada em terras que nem lhe pertenciam. Não se achava integrado,

nem por si, nem por sua ascendência, à aristocracia rural do Rio Grande do Sul”.21 No

entanto, manteve mobilizados significativo número de caboclos, durante grande parte da

República Velha, o que lhe valeu o título de caudilho a pé. Sua presença marca a oposição ao

coronelismo que se manifestou em lutas armadas durante todo período da República Velha.

Nas manifestações do imaginário social, destaca-se a música apresentada no Carijo

da Canção Gaúcha: Por que lutou Leonel Rocha? A simplicidade dos versos reflete a

representação construída e a presença dessa figura no imaginário popular, bem como o

desconhecimento das motivações que o impulsionaram para luta. A aura de herói que cerca o

personagem, que lutou sem ambições de poder e dinheiro, está a merecer um estudo em maior

profundidade. Pela proposta deste trabalho não cabe aqui uma biografia de Leonel Rocha, mas

sim pretendemos estudá- lo (vide cap. 4) inserindo-o na sua “relação com redes sociais e

discursivas mais amplas” e não relatos de sua excepcionalidade nos moldes das construções

historiográficas positivistas do “herói” e do “grande homem” como motor da história e não

parte da engrenagem e do processo da mesma22.

Assim, a pesquisa realizada procurou responder a uma das lacunas mais instigantes

da história local, relacionada ao papel desempenhado por Leonel Rocha, como representante

dos pequenos e médios lavoureiros e ervateiros na condução dos confrontos, bem como

identificar os motivos que inspiravam sua ação, visto que, conforme aponta Arthur Ferreira

Filho, não se assemelhava aos outros caudilhos oposicionistas, que entraram na luta por

ressentimentos ou porque aspiravam a altas posições, caso saíssem vencedores dos

confrontos.23

No desenvolvimento do trabalho, buscamos analisar a intrincada teia de poder que se

estabeleceu entre o governo estadual e a elite latifundiária, via dominação coronelista,

submetendo todos os demais segmentos aos interesses do grupo dominante. A questão

marcante que se apresentava era: Como explicar a dicotomização de forças em nível local e a

atuação do grupo oposicionista nos confrontos estaduais, visto que se constituíam em lutas

ideologicamente distintas, em relação aos interesses locais?

21 FERREIRA FILHO, Artur.Revoluções e caudilhos. 3ª ed. Porto Alegre: Martins Livreiro Ed. 1986. p. 117.22 SCHMIDT, Benito Bisso. “A pós-modernidade e o conhecimento histórico: considerações sobre a volta da biografia”. In. Cadernos de Estudo. Porto Alegre: nº 10, dez. 1994. p.49.23 FERREIRA FILHO, Artur. Op. cit. p. 117-119.

Page 22: Caboclos, Ervateiros Coroneis

23

Maria Antonieta Antonacci analisa a Revolução de 1923 como uma luta político-

partidária entre frações da classe dominante gaúcha, relacionado-a com a crise econômica.

Segundo ela, trata-se de “uma luta intraclasse dominante tendo em vista que a partir do pós-

guerra, o acirramento das condições de mercado e a falta de reformulação do projeto do grupo

no poder, levaram as oposições a trocar as urnas pelas armas”. 24

O elo condutor da pesquisa , portanto, situou-se no estudo das relações de poder que

se estabeleceram ao longo do processo de ocupação e domínio, colocando em confronto o

poder do campo e o poder do mato. Relações essas, relacionadas com a posse da terra, a qual

se constituía em fator de prestígio e garantia de prebendas a quem a possuía.

O estudo proposto situa-se dentro das linhas de pesquisa da nova história política,

que trouxe para o debate novas possibilidades de abordagens com a inclusão de temas

relacionados com representação, imaginário e memória.

O encontro da história política com a história regional se constituiu num caminho

para responder às indagações que se apresentam: a história política, pelo alargamento de seu

campo de investigação, e a história regional, por permitir abordagens com perspectivas de

considerar a historicidade própria de uma região.

As propostas de construção historiográfica, a partir das discussões da chamada Nova

História, possibilitam a inclusão de sujeitos que, até pouco tempo, estavam ausentes do debate

histórico. Conforme Le Goff e Pierre Nora “o domínio da história não encontra limites e sua

expansão se opera segundo linhas ou zonas de penetração que deixam entre elas terrenos já

cansados ou ainda baldios”.25 Verifica-se uma dilatação do campo da história com a inclusão

de estudos das representações, das mentalidades, do cotidiano, enfim, “dos pequenos”, na

ótica da historiografia tradicional.

As discussões trazem para o centro do debate o papel do sujeito. Abre-se espaço para

a percepção de novas dimensões, em que as emoções e a sensibilidade passam a se constituir

em temas para o historiador. A história passa a ter uma preocupação com as questões culturais

adquirindo importância a memória e o imaginário. Uma importante contribuição à história

política nos vem de Michel Foucault ao “deslocar a ênfase da política para o poder,

permitindo com isto, a incorporação de novos objetos”. 26

Maria de Fátima Gouvêa, ao analisar a obra de Foucault, destaca o surgimento de

uma nova concepção acerca da “anatomia do poder”, em que não há um sujeito em específico,

24 ANTONACCI, Maria Antonieta. Op cit. p. 114.25 LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre. História: novos problemas. Rio de Janeiro: F. Alves, 1988. p. 11.26 GOUVÊA, Maria de Fátima da Silva. “O Ressurgimento da história política no campo de história cultural”. Niterói, UFF, 1994. p. 3 e 4.

Page 23: Caboclos, Ervateiros Coroneis

24

que exerça o poder, mas micropoderes dispersos, eliminando, assim, a dicotomia

oprimido/opressor. “Não mais o Estado tão somente, mas os micro-poderes descontínuos e

dispersos no interior da sociedade - micro-poderes esses que nada mais são do que partes

constitutivas dessa mesma sociedade”.27

A contribuição de Foucault à história política como um todo está na percepção do

Estado como um “estado em migalhas”, destacando múltiplas formas de poder em que o

“Estado seria mais uma dentre as várias células de poder”. 28

Nessa mesma perspectiva, Roberto Machado, analisando a obra de Foucault, destaca

que “a mecânica do poder se expande por toda sociedade, assumindo as formas mais regionais

e concretas, (...) penetrando na vida cotidiana, caracterizando-se como micro-poder”.29

Assim, o poder se dissemina por toda a estrutura social, nada está isento de poder.

Para os estudos históricos tornam-se de suma importância essas considerações, visto

que os acontecimentos estão enredados numa teia de relações de poder e, portanto, geram

formas de resistência que se manifestam em pontos móveis e transitórios distribuindo-se por

toda a estrutura social. “Qualquer luta é sempre resistência dentro da própria rede de poder,

teia que se alastra por toda sociedade e a que ninguém pode escapar: ele está sempre presente

e se exerce como uma multiplicidade de relações de força”. 30

A história política, portanto, permite a investigação de novas temáticas, com novos

olhares. A inserção de abordagens relacionadas ao imaginário e à memória alarga o campo da

história e possibilita a realização de estudos, baseados em fontes diversas, entre elas, a história

oral, buscando os sujeitos reais, “desnudados” das representações criadas pelas instâncias de

poder. Não se trata de uma reconstituição histórica das lutas travadas, mas de uma tentativa de

buscar “por detrás dos imaginários os agentes sociais”. 31

No sentido de elucidar a atuação de sujeitos pouco presentes na historiografia e na

documentação oficial, recorreu-se a procedimentos relacionados à história oral, reconhecida

hoje, como importante recurso para o conhecimento histórico, permitindo trazer à tona

informações impensadas, quando do uso exclusivo de fontes escritas. Adquire relevância,

quando se trata de análises de segmentos marginalizados, embora reconhecendo seus limites

devido ao caráter seletivo da memória, que consciente ou inconscientemente, coloca o

silêncio em fatos dolorosos de serem lembrados ou ao temor e à manipulação que limitam as

27 GOUVÊA, Maria de Fátima da S. p. 3.28 Idem. p. 5.29 MACHADO, Roberto. In. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1979. p. 12.30 Idem. p.12. 31 BACZKO, Bronislaw. Imaginação social. Enciclopédia Einaudi. Porto. Imprensa Nacional. Casa da Moeda, 1986. Vol. 5. p. 297.

Page 24: Caboclos, Ervateiros Coroneis

25

falas e dificultam a análise dos fatos. A distância temporal dos acontecimentos torna-se um

fator decisivo no encaminhamento das pesquisas, limitando o uso desse procedimento.

Nesse sentido, as atividades desenvolvidas com fontes orais contribuíram para a

delimitação temática, levantamento de questionamentos e identificação de novas fontes de

pesquisa, como também reforçaram as manifestações da memória social, de como os fatos

foram percebidos pelos contemporâneos.

Na identificação de pessoas fontes, procuramos antigos moradores, buscando

indicações para o encaminhamento da pesquisa. Através da indicação de pessoas consultadas,

chegamos aos descendentes de Leonel Rocha o que contribuiu para o levantamento de dados e

o conhecimento de aspectos pessoais. Também colhemos alguns depoimentos com pessoas

que possuem vínculos com participantes ou espectadores dos fatos, visto que o período

pesquisado, distante no tempo, limitou o uso da história oral.

A pesquisa em fontes documentais oficiais foi elucidativa das questões que buscamos

analisar. Destacamos a documentação encontrada no Arquivo Público do Rio Grande do Sul,

na qual localizamos vários processos judiciais que contribuíram, sobremaneira, para

esclarecer a atuação dos personagens ligados ao poder do mato e ao poder do campo.

Sobretudo, destacamos a possibilidade de encontrar neles as falas do segmento marginalizado.

Da mesma forma, a pesquisa no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul trouxe à

luz documentos preciosos, onde se constatam as disputas pelo poder local e sobre a questão

agrária. Aqui analisamos a documentação da Câmara Municipal, desde a instalação do

município, em 1874, até a implantação da República. Quanto à questão agrária, realizamos

um processo seletivo, considerando localização e nomes que estavam presentes em outras

fontes.

No Instituto Histórico e Geográfico, examinamos o Arquivo Borges de Medeiros e o

Arquivo Vazulmiro Dutra, do qual extraímos a visão do poder e as lutas internas e

dissidências que se davam dentro do PRR.

A pesquisa em jornais trouxe informações significativas. No Museu de Comunicação

Social, tivemos acesso a vários jornais da época em estudo e colhemos dados que tiveram

importância para escla recer fatos e transmitir a visão dos contemporâneos, considerando-se,

no entanto, a posição ideológica defendida pelos mesmos.

Em Palmeira das Missões, buscamos levantar todas as fontes possíveis, incluindo-se

o arquivo da Paróquia Santo Antônio, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – agência

local, Cartórios Civil e Crime, Cartório de Registro de Imóveis, Centro Cultural, Prefeitura

Municipal, Câmara Municipal de Vereadores, além da tentativa de localizar arquivos

Page 25: Caboclos, Ervateiros Coroneis

26

particulares. Devido à ausência de arquivo histórico oficial e a não preservação de

documentos, do período em estudo, dos órgãos executivo e legislativo, os resultados foram

insatisfatórios. A consulta aos Livros Tombo da Paróquia demonstrou como se davam as

relações entre Igreja e o poder público.

O registro dos resultados da pesquisa e análise realizada foi expresso neste texto, em

quatro capítulos. No primeiro capítulo, buscamos contextualizar o espaço construído e as

relações entre os agentes sociais que emergiram do processo. A análise propôs-se a

estabelecer a importância da posse da terra como fator de dominação dos coronéis ou de

exclusão dos caboclos marginalizados no processo. A mercantilização da terra e as

transformações que se processaram no espaço regional geraram conflitos e tensões com a

presença de novos sujeitos: os colonos de origem européia. A exploração da erva-mate, que se

constituía na riqueza primordial da zona da mata, foi acrescida de novas formas de produzir e

explorar a terra. A consolidação dos coronéis-latifundiários como detentores do poder

econômico e, por extensão, do poder político, gera relações conflitantes que contribuíram para

a representação do espaço como locus de violência.

O segundo capítulo busca analisar a formação dos antagonismos que se originaram

nas disputas pela posse da terra e pelo controle do poder local. Através da análise da aplicação

das leis de terras no Império e na República, procura situar a origem dos conflitos. A

expropriação, de que são vítimas os moradores da área da mata, incluindo-se os indígenas, se

constituiu no fator que impulsionou os conflitos, levando os caboclos a se levantar em armas,

contra um governo que é identificado como responsável por suas mazelas. Através da

consulta e análise de fontes documentais e bibliográficas, procurou-se demonstrar a política

agrária do governo positivista e seus efeitos como motivadores das lutas locais.

O terceiro capítulo trata da arregimentação do grupo de oposição, que se manifesta

em lutas armadas, em conflitos políticos e em várias formas de resistência. Através dos relatos

dos enfrentamentos e das atrocidades cometidas, mostra-se a construção das representações

que marcam o espaço regional como terra de violência. Destaca a emergência do poder do

mato e o início da trajetória de Leonel Rocha, como participante das Revoluções de 1893 e

1923 e no Levante de 1902, no município.

Na elaboração do quarto capítulo, buscou-se reconstruir historicamente as formas de

luta do poder do mato, acompanhando a ação de Leonel Rocha. Através do levantamento de

fontes diversas, chegou-se a documentos que mostram a ação do líder revolucionário segundo

a ótica do governo, como também alguns registros do próprio personagem e de seus

contemporâneos. O desvendar da trajetória do caudilho levou a documentos que

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27

comprovaram a característica de luta pela terra, no ano de 1924, através dos ataques às

colônias Sarandi, Xingu e Tesouras, todas pertencentes a companhias de colonização

particular. Finalmente procuramos abordar os acontecimentos que cercaram o final da vida de

lutas do caudilho, em um novo contexto político, em que as facções que se enfretaram viviam

uma fase de aparente acomodação.

Page 27: Caboclos, Ervateiros Coroneis

CAPÍTULO I

PODER DO CAMPO & PODER DO MATO:Construção do espaço e agentes sociais.

1.1. A ocupação do espaço e a identidade regional

Palmeira das Missões constituiu-se, durante uma fase de sua história, em um

município que ocupou vasta área territorial do estado, tendo destacada participação em muitos

acontecimentos que marcaram a vida política do Rio Grande do Sul, apresentando-se nas

representações do imaginário social como espaço de violência. Localizado no Planalto Médio

Rio-Grandense32, sua ocupação inicial está diretamente relacionada à exploração da erva-

mate. Nas palavras de Mozart Pereira Soares, trata-se de um município “síntese do Rio

Grande do Sul. Tudo o que o estado teve de essencial, em Palmeira se manifestou em grau

muito elevado. A primeira riqueza que fez a glória dos jesuítas foi a erva-mate e Palmeira,

nesse sentido, não é só uma área de eleição, mas principalmente uma comuna filha da erva”33.

O povoamento teve início por volta de 1815 através da formação de arranchamentos

de ervateiros, oriundos da sede do município-mãe que era Cruz Alta. A “Vilinha”, como foi

denominada, formou-se no local onde hoje é a Praça Vila Velha, apresentando um lento

crescimento populacional, tendo em vista que o extrativismo ervateiro permitia mobilidade

constante.

Em 05 de agosto de 1834, a Câmara de Cruz Alta dividiu o município em seis

distritos, sendo Palmeira o 5º, com uma área aproximada de 15.000 quilômetros quadrados.

32 A designação Planalto Médio ou Planalto Serrano será utilizada correspondendo aqui não à divisão fisiográfica do estado, mas atendendo critérios sócio-culturais, relacionados aos processos de ocupação. Joseph Love o divide em três áreas: Litoral, Campanha e Cima da Serra . Esta dividida em três sub-regiões: Zona Colonial, o Planalto Central e o Distrito das Missões. Loiva Otero Félix estabelece uma divisão baseada nas relações de poder, dividindo o estado em quatro zonas: Litoral, Campanha, Zona Colonial e Planalto, incluindo nesse as Missões e o Platô Central. Utilizaremos esta divisão por entendermos que, do ponto de vista da ocupação, apresenta características que a diferenciam da zona colonial. A região, também chamada de Planalto Serrano, ou simplesmente Planalto, corresponde às áreas de ocupação dos paulistas que fundaram fazendas em Vacaria, Passo Fundo e Cruz Alta. Além da pecuária, destacava-se na extração de madeira e erva-mate. No final do século XIX e início do século XX acentuam-se as diferenças com relação à campanha devido à ocupação das áreas de mata por colonos europeus ou descendentes de imigrantes europeus.33 Entrevista de Mozart Pereira Soares, concedida à autora em 14/01/2002.

Page 28: Caboclos, Ervateiros Coroneis

29

Até sua emancipação em 06 de maio de 1874, a população cresceu lentamente, sendo que

registros da Câmara de Cruz Alta dão conta da existência de 1476 almas, na “Freguesia de

Palmeira”. 34

Fonte: Assembléia Legislativa – Comissão de Assuntos Municipais. Evolução Municipal

RGS: 1809-1996.

Figura 1 - Divisão do Estado do Rio Grande do Sul – 1874. Criação do Município de

Santo Antônio da Palmeira.

34 SOARES, Mozart Pereira. Op. cit. p. 131.

Passo

Fundo

VacariaCruz

Alta

Santo

Ângelo

São Borja

SãoFranciscode Assis

Itaqui

AlegreteUruguaiana

LivramentoDom

Pedrito

Bagé

São

Gabriel

Caçapava

Cachoeira

Piratini

S J R do Erval

JaguarãoPedrito

Rio GrandeArroioGrande

São José do Norte

Pelotas

Cangussú

Encruzilhada

Camaquâ

Soledade

Rio Pardo

TaquariSanta Maria

Porto Alegre

Page 29: Caboclos, Ervateiros Coroneis

30

Fonte: IBGE – Agência Palmeira das Missões

Figura: 2 – Mapa do município de Palmeira das Missões – Área inicial e emancipações

que ocorreram até 2001.

A área de formação do município, no que se refere ao território inicial, apresentou

um espaço constituído de vegetação nativa alternando campos e matas, o que possibilitou a

formação de duas economias específicas que determinaram os aspectos sócio-culturais,

Palmeira das Missões1874- 2001

Page 30: Caboclos, Ervateiros Coroneis

31

responsáveis em grande parte, pelos rumos que caracterizam o processo de apropriação da

terra.

A ocupação dessa vasta área obedece a motivações próprias do momento histórico e

dos interesses econômicos e políticos de cada época. Mozart Pereira Soares destaca, no

povoamento do município, três fases, tendo por base as atividades econômicas que serviram

de suporte à ocupação.

A inicial se estende por toda a existência das Missões jesuíticas. É a época do reconhecimento de seu território, da descoberta e exploração dos ervais nativos.(...) A segunda pode ser chamada de “ciclo do tropeirismo”. É a hora do bandeirantismo pastoril. (...) Ela obedece a uma motivação econômica, de apropriação da gadaria remanescente da criação jesuítica, e outra estratégica, pela necessidade de defesa do território das Missões, após sua incorporação ao Brasil.

Não nos parece descabido considerar como início da terceira fase do povoamento de nosso município o ano de 1917, quando aqui se estabeleceu a Comissão de Terras e Colonização e veio disciplinar o crescimento demográfico incrementado desde então”.35

A área de mata, na fase inicial, constitui-se em fator de atração para a exploração da

erva-mate nativa, dando origem aos primeiros núcleos de ocupação, onde se instala uma

população cabocla, em grande parte esquecida nos estudos da evolução histórica regional.

Posteriormente, esse espaço foi ocupado por imigrantes/ migrantes de origem européia, que

desenvolveram uma economia diversificada em pequenas propriedades, possibilitando um

crescimento que levou essas áreas, num curto prazo, a se constituírem em municípios

autônomos. Atualmente, alguns deles apresentam índices de desenvolvimento superiores ao

município-mãe.

As áreas de campo, ocupadas pela pecuária extens iva, constituíram-se em espaço

privilegiado dos latifundiários, mantendo uma estrutura conservadora e estática, até a segunda

metade do século XX, quando se inicia a fase de modernização da agricultura. A grande

propriedade é a base da ocupação e, mesmo as transformações modernizantes, mantiveram a

estrutura agrária concentradora como marca desse espaço.

Esses aspectos da ocupação inicial propiciaram a formação de uma sociedade

dicotômica com características diversificadas, gerando relações conflitantes que se

estenderam durante boa parte da história do município, confrontando o poder do campo e o

poder do mato, conforme destaca Loiva Otero Félix, na sua obra Coronelismo, borgismo e

cooptação política, na qual analisa a atuação dos coronéis chimangos, identificados

politicamente com o governo estadual.36

35 SOARES, Op. cit. p. 81.36 FÉLIX, Loiva Otero. Op. cit. p. 95.

Page 31: Caboclos, Ervateiros Coroneis

32

Estabelecendo relações entre “espaço e poder local” no Planalto Médio, Félix aponta

a construção de um espaço marcado pela:

(...) luta entre o poder do mato (representado pelos ervateiros, lavoureiros e chacareiros, identificados com as forças da oposição política) e o poder do campo (representado pelos estancieiros, identificados com as forças do situacionismo). Por outro lado, a mata densa, ao contrário dos pampas da campanha, constituía-se em local de fácil refúgio até para a fuga pelo Rio Uruguai, o que terminou fazendo da região, no Império e na República Velha, sobretudo de Palmeira das Missões, um reduto de grande concentração de indivíduos considerados como bandidos e marginais, responsáveis pelo alto grau de violência que acompanhou a história deste município.37

O passado de lutas do município tem destaque na obra de Mozart Pereira Soares,

Santo Antônio da Palmeira, que relata vários episódios da história local, confirmando a

participação intensa do município nos confrontos que marcaram o estado do Rio Grande do

Sul, durante a República Velha. Numa passagem destaca:

Nosso município representou para o riograndense, durante muito tempo, uma espécie de últimobaluarte da civilização plantado à beira da mata do Rio Uruguai. O domínio deste laboratório político tem cabido sistematicamente aos grandes proprietários do campo que através de suas relações com as cúpulas dirigentes do Estado manejam a engrenagem administrativa do município. A eles se opõem, também com admirável constância ao longo do tempo, os proprietários mais poderosos na zona florestal, ou pelo menos aqueles que aí mantêmgrandes interesses.

Há, pois, uma nítida polarização de poderes entre os homens do campo – fazendeiros, criadores e tropeiros e os da mata – ervateiros, lavoureiros e madeireiros. A estes vêm aderir, no povoado, os proprietários de médias posses, vencidos na escalada do mando que, de quando em quando, acendem as labaredas da oposição nos interioranos”.38

A polarização de forças entre os grandes proprietários da área de campo e os

proprietários ou moradores da zona florestal gerou um clima de belicosidade que se manifesta

em vários momentos da história local e, mais significativamente, no período da República

Velha, associados aos conflitos estaduais, nos quais os coronéis- latifundiários atuavam

cooptados ao governo castilhista-borgista.

Os interesses conflitantes entre os dois grupos que se defrontavam tem origem na

ocupação do espaço, onde os aspectos físicos somam-se a outros componentes na formação da

identidade regional. Não se trata, evidentemente, de considerarmos como determinantes as

condições naturais da região, mas sim de considerar “a carga de historicidade” presente na

construção do espaço, considerando os aspectos econômicos, políticos, sociais e culturais que

interferem na formação de uma identidade própria num recorte espacial determinado39.

37 FÉLIX, Loiva Otero. Op. cit. p. 95 e 96.38 SOARES, Mozart Perreira. Op. cit. p. 250.39 Ver RECKZIEGEL, Ana Luiza. Op. cit. p. 15-22.

Page 32: Caboclos, Ervateiros Coroneis

33

Faz-se necessário discutir o conceito de região considerada a priori como o espaço

produzido pela sociedade numa área territorial, interrelacionada com o espaço global. Ao se

trabalhar com a idéia de região deve-se considerar as “articulações entre espaço regional e o

espaço mais vasto” sem, no entanto, “perder de vista o fato de que o âmbito regional possui

uma história própria, um conjunto de relações sociais delimitadas, um espaço de memória, de

formação de identidade e de práticas políticas específicas”. 40

O conceito de região tem apresentado enfoques variados, relacionados com o

momento histórico e com as concepções vigentes. A história pouco buscou esclarecer a

questão do espaço e a geografia, por muito tempo, definiu o espaço a partir da noção de

espaço natural, tendo por base apenas os componentes físicos. As novas concepções

históricas, a partir da década de 70 do século XX, impulsionadas pelo movimento dos

Annales, favorecem a expansão dos estudos regionais e, em conseqüência, a tentativa de

explicitação do conceito de região.

Segundo Rosa Maria Silveira, a relação entre história e região é a relação entre

temporalidade e espacialidade, destacando que a produção historiográfica não tem dado a

devida atenção “para o conceito de região e de espaço enquanto construção, processo

histórico concreto, portanto, atravessado pela temporalidade e nesta interferente” 41.

A região não pode ser vista como uma parte isolada, mas sim como uma totalidade.

Podem ser tomados vários critérios para o recorte de uma região, podendo-se falar “tanto de

uma região no sistema internacional, como de uma região dentro do estado nacional ou dentro

de uma das unidades de um sistema político federativo. Pode-se falar, igualmente de uma

região cujas fronteiras não coincidam com fronteiras políticas juridicamente definidas”. 42

O estudo da região permite colocar uma temática específica numa visão mais

abrangente, na medida em que o espaço local deve estar em interação com a sociedade global,

levando em conta as articulações entre o particular e o geral, o todo e as partes. De acordo

com Reckziegel

Os estudos históricos com o recorte regional são, assim, manifestações de um tempo que recusa as ditas “concepções hegemônicas”, tentando resgatar as particularidades e especificidades locais como maneira de confirmar ou refutar as grandes sínteses até agora impostas como válidas para todas as realidades históricas.43

40 RECKZIEGEL, Ana Luiza. Op. cit. p. 20. 41 SILVEIRA, Rosa Maria Godoy. “Região e História: questão de método”. In: SILVA, Marcos A. da (coord.) República em migalhas. História regional e local. São Paulo: Marco Zero, 1990, p. 17.42 SILVA, Vera Alice Cardoso. “Regionalismo: o enfoque metodológico e a concepção histórica”. In. SILVA, Marcos A. da (coord.) República em migalhas. História regional e local. São Paulo: Marco Zero, 1990, p.43.43 RECKZIEGEL, Ana Luiza. Op. cit. p. 21.

Page 33: Caboclos, Ervateiros Coroneis

34

Tomando por base as considerações relativas à construção do espaço, podemos

considerar a região designada historicamente de “Grande Palmeira”, como um recorte

espacial envolvendo a área primitiva do município, situada no Planalto Rio-Grandense e

apresentando características específicas nas áreas de campo e de mata. Trata-se de uma

tentativa de enfoque de uma região, politicamente construída, envolvendo relações de poder

coronelístico e áreas de exclusão de segmentos não ligados ao latifúndio.

O recorte espacial da presente análise visa delimitar o espaço, buscando a melhor

compreensão dos acontecimentos que colocaram em confronto os agentes sociais originários

da construção desse espaço e identificados como poder do campo e o poder do mato, sem no

entanto perder de vista as relações com o espaço maior. Não se trata, portanto, de uma

delimitação territorial estanque, pois as relações de poder que se estabeleceram extrapolam os

limites do espaço considerado e, para melhor entendimento dos fatos, exige-se uma constante

análise da parte - a região – relacionada com o todo.

O estudo das relações de poder que se constituíram deixam visível a dicotomização

de forças: de um lado o poder latifundiário, constituído pelos coronéis chimangos, ligados ao

governo estadual e de outro lado o poder do mato, constituído pelos pequenos proprietários,

ervateiros e caboclos despossuídos de terra, que praticavam uma agricultura de subsistência

ou trabalhavam como tarefeiros nos ervais.

As marcas desse enfrentamento, aparentemente constante, permanecem no imaginário

coletivo, muito além do tempo dos confrontos reais e, de certa forma, constitui um dos traços

da identidade regional, uma vez que as disputas políticas são, ainda hoje, bastante acirradas.

As características de zona campesina, semelhante à região da campanha gaúcha,

relacionadas à atividade econômica predominante, ou seja, à pecuária extensiva, moldaram a

formação sociocultural, em que as idéias de regionalismo, identificado com os valores do

tradicionalismo gaúcho, permanecem fortemente arraigados em vários grupos sociais.

Rogério H. da Costa, ao analisar o espaço latifundiário da Campanha gaúcha destaca

a identidade política e cultural, pois os indivíduos que vivem em um determinado “espaço já

se identificam socialmente reconhecendo nele um espaço vivido e que a própria delimitação

política do território forja ou fortalece identidades como os nacionalismos ou

regionalismos”.44 No entanto, esse é apenas um elemento, sendo que a caracterização de

região envolve vários componentes relacionados aos aspectos históricos, econômicos, sociais,

administrativos e até mesmo psicológicos.

44 COSTA, Rogério Haesbaert da.RS: Latifúndio e identidade regional. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988, p. 19.

Page 34: Caboclos, Ervateiros Coroneis

35

É importante destacar que a organização econômica e fundiária estabelece “múltiplas

relações entre a classe monopolista e a sociedade local”. O espaço comportaria, assim, um

“valor simbólico em que o grupo social cria à sua maneira um conjunto de signos e de

representações redefinindo-se um conteúdo ideológico pelos quais a classe hegemônica

justifica sua dominação”. 45

A zona da mata começa receber levas de imigrantes no final do século XIX e no

início do século XX, implantando uma atividade diversificada que transforma rapidamente o

espaço. O desenvolvimento mais acelerado desse espaço reforça “a ideologia difundida, ainda

hoje, de que o colono europeu, agricultor, comerciante ou industrial é empreendedor,

progressista, e o pecuarista, de origem lusa, é retrógrado e conservador”. 46

Essa representação, conforme Costa, marca a sociedade sulista e está presente na

região em estudo, visto que muitos atribuem os motivos da estagnação econômica a uma visão

preconceituosa da predominância lusa na formação étnica da região, nos primórdios da

ocupação.

A região delimitada para estudo, portanto, apresenta as marcas de historicidade,

presentes nas categorias econômicas, sociais e político-administrativas, configurando-se como

um espaço com identidade própria, destacando que, de acordo com Ruben Oliven, identidades

são “construções sociais formuladas a partir de diferenças reais ou inventadas que operam

como sinais diacríticos, isto é, sinais que conferem uma marca de distinção”. 47

A construção da identidade pressupõe a ligação a um território, mas mais que a

localização física, relaciona-se a um conjunto de práticas sociais: hábitos, crenças, valores,

constituindo-se numa identidade cultural. Newton Carneiro refere que essa identidade é

considerada por alguns autores “como uma ideologia habilmente construída”, pois não está

isenta das contradições e das pressões decorrentes dos conflitos sociais. Defende que tal

identidade “não se constitui num processo exclusivamente ideológico, mas sim

essencialmente político-cultural”. 48

Iná Elias de Castro em seu estudo sobre Política e Território, constata que a ligação

espaço – política ocorre de forma vertical através da administração e do sistema político

partidário. Destaca ainda que:

45 COSTA, Rogério Haesbaert. Op cit. p. 22-23.46 Idem. p. 70.47 OLIVEN, Ruben George. A parte e o todo: A diversidade cultural no Brasil-Nação. Petrópolis: Vozes, 1992. p.26.48 CARNEIRO, Newton Luís Garcia. A identidade inacabada: o regionalismo político no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Edipucrs, 2000. p. 332.

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36

A relação entre a base territorial e a prática é indiscutível. A delimitação do território para os diferentes níveis de gestão do governo recorta o espaço físico e social e estabelece os limites das diferentes escalas da administração pública e da atuação do sistema político, no qual se definem alianças, lealdades e competições.49

Assim, o recorte regional que estabelecemos para estudo considera, além das

relações verticais, via administração política, as relações horizontais que se estabelecem entre

os agentes sociais, no território compreendido pela “Grande Palmeira”. São as relações que se

estabelecem que conferem significado ao espaço e que se traduz na identidade construída

historicamente.

Essa concepção do espaço em estudo se enquadra no conceito de região defendido

por Iná E. de Castro. Para a autora, “a região é concreta, observável e delimitável. Como

qualquer segmento do espaço, é dinâmica, historicamente construída, e faz parte da totalidade

social. Portanto, suas características internas são determinadas e determinantes da sua

interação com o todo”. 50

Tendo em vista a especificidade do presente estudo são significativas as observações

de Rosa Maria Viscardi, que destaca o encontro entre a história política e o recorte regional,

ressaltando a importância e as possibilidades que se apresentam, bem como suas limitações. A

região é considerada como um constructo de seus agentes, com fronteiras fluidas, variando

conforme as circunstâncias em que ocorreram. “No estudo de história política, cabe ao

historiador, na definição dos limites do seu recorte regional, se apropriar de uma região

simbolicamente construída no período estudado, capaz de responder aos seus

questionamentos”. 51

Viscardi destaca, prioritariamente, os aspectos políticos, colocando os demais –

econômicos, geográficos e culturais – num plano secundário. Aponta, no entanto, para a

importância de considerar outros critérios, “tendo em vista a reconhecida importância do

imaginário coletivo na pesquisa histórica”. 52

Nesse sentido, torna-se necessário considerar as reflexões de Pierre Bourdieu. Para

ele os critérios para a definição de região levam em conta não só as propriedades ditas

objectivas (como ascendência, o território, a língua, a religião, a actividade económica, etc.), mas também as propriedades ditas subjetivas (como sentimento de pertença, etc.) , que quer

49 CASTRO, Iná Elias de. “Política e território: evidências da prática regionalista no Brasil”. Revista de Ciências

Sociais. Rio de Janeiro: v. 32, n.3, 1989. p. 389. 50 Idem. p. 391.51 VISCARDI, Cláudia M. Ribeiro. “História, Região e Poder: A busca de interfaces metodológicas”. Locus :Revista de História, Juiz de Fora, v. 3, n. 1, p. 96. 52 Idem. p. 96.

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37

dizer, as representações que os agentes sociais têm das divisões da realidade e que contribuem para a realidade das divisões.53

Bourdieu destaca que ocorrem no interior do sistema de regionalização a luta

simbólica pela imposição de uma “identidade dominante”. “O espaço propriamente político

de dominação define-se pela relação que se estabelece entre a distribuição dos poderes e dos

bens no espaço geográfico e a distribuição dos agentes neste espaço, sendo a distância

geográfica em relação aos bens e aos poderes um bom índice de poder”. 54

Nessa linha de análise, a região se constituiu, portanto, segundo Bourdieu, em um

subsistema espacial em que se estabelecem relações subjetivas de poder construídas através

dos processos sociais, constituindo-se numa construção simbólica de representações da

realidade.

Considerando-se, assim, as idéias dos estudiosos do assunto, acima referidos,

podemos concluir que o recorte adotado atende ao conceito de região, não apenas como

espaço físico, mas considerada como fruto de vários componentes, resultando numa

construção histórica e cultural. A região da Grande Palmeira apresenta características que a

qualificam como uma região com identidade própria, cujas marcas estão presentes nas

representações da sociedade atual.

Concluímos, portanto, a partir das idéias citadas que a região constitui-se como parte

de um sistema global do qual foi recortada, possuindo identidade própria, porém articulada a

um sistema maior. Deve ser vista como um produto da ação humana, como um espaço vivido

e com uma carga de historicidade que resulta numa identidade regional em que interferem,

além dos aspectos físicos, componentes culturais, políticos, econômicos e ideológicos,

presentes em um determinado espaço.

Para melhor compreensão da temática abordada, destacamos que a região em estudo

corresponde à área primitiva do município, que se estendia até os limites do rio Uruguai, nas

divisas de Santa Catarina e Argentina. No entanto, os acontecimentos que envolveram o

município não podem ser tratados de forma estanque, pois estão intimamente relacionados

com os municípios vizinhos de Cruz Alta, Passo Fundo, Erechim e Santa Bárbara do Sul, e

com os acontecimentos do estado e do país, impondo-se, assim, a necessidade de estabelecer

uma articulação constante entre o local, o regional e o global.

53 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. p.120.54 Idem. p. 126

Page 37: Caboclos, Ervateiros Coroneis

38

1.1.1. A ocupação da mata

A vasta área de terra ocupada pelo município era recoberta por uma extensa e

fechada mata nativa que oferecia condições para atividades ligadas à extração de madeira, da

qual o município apresentava grande diversidade. Conforme publicação datada de 1922:

Encontra-se, nas mattas virgens de Palmeira, arvores verdadeiramente colossais, tanto no diâmetro como na altura.A riqueza florestal do município é incalculável. Nota-se, alli, entre outras, as seguintesespécies de madeira de construção: cedro, louro, açoita-cavallo, guariapunha, ipé cabrúva, guajuvira, pau-ferro, canelleira, timbaúva, cangerana, peroba, quebracho, salso, tarumam, cambará, pinheiro e muitas outras.55

Ao lado dessa atividade econômica, ainda pouco estudada, desenvolvia-se a extração

da erva-mate nativa que se constituiu na atividade inicial da ocupação do território da antiga

Palmeira, estando relacionada ao período da existência das Missões Jesuíticas.

É a época do reconhecimento de seu território, da descoberta e exploração de seus ervais nativos. Durante esse tempo se estabeleceram seus primeiros caminhos que, partindo dos núcleos principais dos Sete Povos, a princípio de São Miguel e mais tarde de Santo Ângelo e São João Batista, dirigiram-se para o norte e nordeste, à procura das formações mais densas de erva-mate, especialmente entre os Vales do Guarita e do Nhucorá, na região ocidental da antiga Palmeira. Nessa fase não se organizaram núcleos urbanos permanentes, mas arranchamentos transitórios, que se abandonavam depois das safras e se refaziam nas safras seguintes. (...) Se dela não resultam núcleos urbanos propriamente ditos, ficaram seus gérmens, que se irão desenvolver no ciclo seguinte, com base na riqueza vegetal então descoberta”.56

A erva-mate constituía-se numa riqueza muito valorizada na época das Reduções

Jesuíticas, podendo-se constatar a preocupação dos padres em descobrir o processo de

germinação das sementes, ocorrendo, assim, a presença de ervais plantados em algumas

reduções. Largamente usada pelos índios, foi incorporada pelos missionários, que passam a

comercializar o produto na Região Platina. Além da exploração da erva nativa, também

ocorria o plantio desde a segunda metade do século XVII.57 No século seguinte torna-se uma

das principais fontes de recursos das Missões. No século XIX, constitui-se, ao lado da

pecuária em uma das principais fontes de arrecadação das Câmaras Municipais, através do

tributo que incidia sobre a exportação do produto. Conforme Paulo Afonso Zarth, “no

55 COSTA, Alfredo R. da. O Rio Grande do Sul. Vol. II. Ed. Barcellos, Bertaso e Cia. Porto Alegre: 1922. p. 248.56 SOARES, Mozart Pereira. Op. cit. p. 81.57 Idem. p. 84 e 85. SOARES relata o processo de germinação descoberto pelos padres jesuítas. Reporta-se a registros de Temístocles Linhares e Aurélio Porto sobre ervais plantados na região missioneira. Este último refere -se a mapas com ervais novos em Nhucorá, já em território do município de Palmeira. (grifo nosso).

Page 38: Caboclos, Ervateiros Coroneis

39

município de Santo Antônio da Palmeira, a arrecadação total dos anos de 1874 e 1880 indica

um índice de 58% para a participação do mate na receita”. 58

Devido a sua importância, a erva-mate recebia muita atenção dos órgãos municipais

para manter a produção em níveis elevados. Daí a preocupação em manter o controle de corte

do produto, procurando evitar a destruição das árvores, o que poderia ocorrer devido às

queimadas que eram comuns na época.

O Código de Posturas da Câmara Municipal do município de Palmeira, redigido logo

após a instalação (1875) seguia as normas em vigor quando da emancipação. No Capítulo 3º,

que trata da Conservação dos hervaes, campos, mattos, e fabrico da herva matte destacam-se

os artigos:

Art.41 – São considerados como publicos todos os hervaes d’este município, que estiverem descobertos ou possão a se descobrir em terrenos devolutos, onde se poderá colher erva matte em commum.

ART.42 – Ninguem poderá colher, nem fabricar erva matte nestes hervaes, sem ter obtido licença da Camara que lhe será consedida por intermedio do procurador, e seus fiscaes nos destrictos onde estiver o herval, a qual terá vigôr durante o anno que fôr concedida. Esta licença será fornecida em talões assignados pelo procurador da Camara. O Contraventôr incorrerá na multa de 10$000 e pena de oito dias de cadêa.

ART.44 – É prohibido colher a erva matte de brote, sem ter decorrido de uma póda a outra quatro annos.

ART.45 - É prohibido cortar ou por qualquer forma destruir as arvorês da erva matte: o contraventor incorrerá na pena de trinta dias de Cadêa, e 10$000 por cada uma arvore que cortar ou destruir.

ART.46- É prohibido fazer roça contígua a hervaes, ou em mattos onde tenha erva, e queimal-as sem ter feito um acêiro pelo menos de sette metros bem limpos para impedir incendiar-se o herval. Entende-se por lugar contíguo ao herval, dis tante da roça ao menos quinhentosmetros.59

A riqueza de detalhes com que o assunto é tratado demonstra a importância que a

produção de erva-mate representava na economia do município, estabelecendo multas para

todas as situações que causassem danos aos ervais que, como tudo indica, em sua maior

parte, constituia-se de ervais públicos, embora também existissem ervais privados, sobre os

quais era difícil a fiscalização. Esta, embora ineficiente para controlar a qualidade da erva-

mate produzida, pelo menos foi eficiente para controlar o acesso à terra, pois os coletores de

mate60 exerciam a atividade em vários ervais nativos cujas terras eram públicas.

58 ZARTH, Paulo Afonso. Op. cit. p. 56.59 Código de Posturas da Câmara Municipal da Vila de Santo Antônio da Palmeira. Ano: 1875. AHRS . Maço: 97, Caixa 43. Vide também in. ZARTH, Paulo Afonso. Op. cit. p. 58. 60O estudo dos grupos sociais desprovidos de recursos econômicos apresenta-se como tarefa difícil para os estudiosos, devido à escassez de fontes históricas. Daí porque têm sido considerados, com razão, “os esquecidos da história”. A obra de Zarth, pela riqueza com que trata essa questão, torna-se, assim, uma referência, para o estudo dos segmentos que viviam à margem do processo dominante, razão pela qual nos apoiamos com freqüência em sua obra.

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40

Se a condição de terras públicas permitia o acesso dos agricultores pobres ao extrativismo e às roças, por outro lado essa condição era muito instável à medida que a terra estava sujeita a um processo de privatização pelas elites locais, que aos poucos transformaram os ervateiros em proletários sem terras, forçando-os a emigrar para áreas inóspitas e devolutas ou a submeter-seà condição de peões das estâncias em substituição aos escravos.

A privatização dos ervais públicos e das terras de floresta iniciou-se numa fase posterior à apropriação de campos nativos.61

A privatização foi realizada, especialmente, a partir da segunda metade do século

XIX. Até essa época ocorreu de forma pacífica, pois havia abundância de terras florestais.

Com a Lei de Terras, de 1850, as terras devolutas passaram a ser vendidas pelo governo, o

que dificultou o acesso às camadas pobres da população. No entanto, facilita às elites locais a

regularização de suas propriedades e a incorporação de novas áreas, acirrando dessa forma os

conflitos entre extrativistas e latifundiários.

Considerando-se que o controle político e militar dos fazendeiros era inquestionável,

entende-se que o resultado da Lei de Terras foi a concentração da propriedade, “formando-se

uma legião de homens despossuídos em meio à imensidão de terras, numa região de

baixíssima densidade demográfica”.62

A chegada dos colonos à região, a partir do final do século XIX, trouxe um novo

componente aos conflitos de posse de terras na região, visto terem sido direcionados para as

áreas de mata, as quais supostamente se constituíam em áreas desabitadas. Essa atitude

manifesta a insensibilidade das autoridades com os indígenas e caboclos que ocupavam terras

na condição de posseiros. Em relação ao espaço do latifúndio, a vinda de

imigrantes/migrantes não se constituiu em ameaça aos interesses da oligarquia regional, pois

ocuparam as áreas de mata, e sua produção não lhe fazia concorrência, antes a

complementava.

Com a vinda dos colonos, evidencia-se uma nova política em relação à propriedade

da terra e ao aproveitamento do solo. A valorização da pequena propriedade associa-se à

valorização do trabalho imigrante e, em conseqüência, à exclusão das populações nativas.

Segundo Loraine Giron, a concessão de terras a estrangeiros discriminou os brasileiros, pois

“a adoção da nova política de terras, que visava contrapor a pequena propriedade ao

latifúndio, refletia ao mesmo tempo uma nova forma de encarar o trabalho livre e uma

ideologia racista, que iria discriminar o trabalho rural brasileiro”. 63

61 ZARTH, Paulo Afonso. Op. cit. p. 59.62 Idem. p. 69.63 GIRON, Loraine S. “A imigração italiana no RS: fatores determinantes”. In: DACANAL, José H. e GONZAGA, Sergius. RS: Imigração e colonização. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980. p. 54.

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41

Giron, referindo-se à imigração brasileira, destaca que havia uma ideologia

dominante, que pregava a superioridade da população branca, por isso “o império

proporcionou aos europeus aquilo que negou a seus súditos”.64 A população brasileira

constituída de caboclos, mulatos e negros foi deliberadamente excluída para deixar a mão-

de-obra barata e abundante para os latifundiários.

As áreas ocupadas até a época da imigração no Rio Grande do Sul correspondiam às

áreas de campo, tanto na Campanha como no Planalto. Aos imigrantes/migrantes foram

destinadas as áreas de mata, preservando, assim, o latifúndio. O Planalto Gaúcho permaneceu

até o final do século XIX sem constituir colônias, apenas houve tentativas da Câmara de Cruz

Alta para atrair imigrantes europeus “oferecendo gratuitamente 115 lotes aos colonos que

quisessem se estabelecer às margens do Rio Ijuí, afluente do Uruguai”.65

A fundação de colônias no Planalto está associada à construção de alguns trechos da

ferrovia São Paulo – Rio Grande, sendo a primeira colônia fundada em 1890. As colônias

próximas às ferrovias foram as que mais se desenvolveram, destacando-se Ijuí e Erechim. Isto

se deve às facilidades de acesso e de comercialização dos seus produtos, enquanto as demais

colônias enfrentavam dificuldade no escoamento da produção.A necessidade de imigrantes

era justificada pela política de valorização das terras e pelo isolamento da região.

A tentativa do governo de resolver a situação através da fundação de uma colônia

militar, às margens do rio Uruguai, demarcando uma área de treze mil hectares, não

alcançou resultados no sentido de colonização, atendendo apenas ao propósito estratégico.

O diretor da colônia, em 1913, dirigia-se à Diretoria de Terras destacando que o principal

problema que enfrentavam residia na dificuldade de comunicação, devido à inexistência de

estradas em condições de trafegabilidade, o que impedia o contato com as localidades

existentes à época na região do Alto Uruguai. 66

64 GIRON, Loraine S. Op. cit. p. 55.65 ZARTH, Paulo Afonso. Op. cit. p. 78.66 A colônia militar do Alto Uruguai foi fundada pelo governo imperial a 25/12/1879, sendo dividida em 437 lotes, dos quais foram distribuídos apenas 212 (18 urbanos e 194 suburbanos). Em 1912 contava com 1060 habitantes. Pela lei nº. 2738 de 07/01/1913 a colônia foi emancipada pelo governo federal e entregue pelo chefe do Exército Alfredo Augusto Corrêa ao representante do Governo do Estado Lindolfo A. Rodrigues da Silva, que envia à Diretoria de Terras e Colonização um detalhado relato das condições em que se encontra a Colônia, conforme constatou “in loco”. Anexa quadros dos lotes e faz previsão de gastos para melhorar a comunicação, que considera o principal problema. Informa que para ligar com a estrada de ferro, indo por Palmeira a distância é de 185 quilômetros, com estrada em péssimas condições. Um automóvel utilizado para transporte, como experiência, ficou inutilizado. “Não convindo, como já expuz, tratar da comunicação da colônia do Alto Uruguay com Palmeira, procurei vêr como poderia o governo dar algum impulso ao progresso desse município por outra forma”. Passa a referir-se à necessidade de legalização das terras ocupadas por intrusos (grifo nosso). S. A. 219 – Relatório de Lindolfo A. Rodrigues da Silva sobre a Colônia Alto Uruguai de 30/06/1913. AHRS.

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42

A colonização oficial, iniciada em 1890, procurou demarcar lotes de 25 hectares, o

que se convencionou chamar de “colônia”. Essa demarcação não levava em conta os cursos de

água e obedecia a um traçado retangular, criando dificuldade para os colonos devido à

importância da água. Mais tarde, esse padrão foi modificado e os proprietários de grandes

áreas de mata passaram a comercializar terras, com melhor aproveitamento dos cursos

d’água.

A comercialização das terras era feita por companhias colonizadoras, que geralmente

criavam núcleos com certa infra-estrutura. As terras eram compradas dos grandes fazendeiros,

que as haviam monopolizado anteriormente, ou do Estado a preços módicos, e depois

revendidas aos colonos imigrantes.

Os preços das terras dispararam em razão das formas de comercialização, com a

presença de intermediários. Entre esses empresários de terra destaca-se Hermann Meyer,

editor alemão, que, após uma excursão ao Xingu, na Amazônia, passa a dedicar-se ao

comércio de terras.

Hermann Meyer, através de seus sócios passou a investir capital na compra e na colonização de terras. Adquiriu várias áreas de terra virgem nos municípios de Palmeira das Missões e Cruz Alta por seu procurador Carlos Dhein, fundando várias colônias com colonos alemães e teuto-riograndenses. A principal colônia desse empresário foi a “Neu-W ürttemberg”, no município de Cruz Alta (...) Em 1897, Hermann Meyer efetivara sua primeira compra em Palmeira das Missões. Seu procurador comprara a posse de Maria Rita do Espirito Santo, com cerca de 1,8 mil hectares, pela quantia de 15:500$000 réis, ou seja, 8$525 réis por hectare. Nessa área fundou a colônia “Xingu”, a primeira de uma série de outras.67

A presença de imigrantes transformou a região, tanto do ponto de vista da ocupação

do solo como da constituição da população e atividade econômica. Esse aspecto é evidenciado

em toda produção historiográfica existente. Contudo, só recentemente há estudos que se

ocupam do caráter excludente da colonização efetuada neste período. Zarth destaca que “as

terras, quando o colono chegava, não eram tão livres como se poderia imaginar”.68Além dos

indígenas que já tinham sido empurrados para reservas, havia também os caboclos, que antes

se dedicavam ao extrativismo da erva-mate e a pequenas lavouras de subsistência. Estes

passam a constituir mão-de-obra barata nas serrarias, nas empresas encarregadas da infra-

estrutura ou trabalhavam como peões.

Pode-se constatar a existência de população despossuída de terra em vários

registros oficiais do período, em processos judiciais e até mesmo “em relatos de

67 ZARTH, Paulo Afonso. Op. cit. p. 86 e 87.68 Idem. p. 98

Page 42: Caboclos, Ervateiros Coroneis

43

colonizadores que, ironicamente, se autoproclamam de pioneiros”,69 enquanto os

verdadeiros pioneiros são tratados como intrusos.

O relatório oficial da Colônia Alto Uruguai, de 1913, já referido anteriormente,

expõe detalhadamente a situação da colônia, destacando a presença de um número bastante

significativo de intrusos, cerca de duzentas famílias, numa única área. O relatório afirma:

A cinco léguas e a nordeste da villa da Palmeira ha um nucleo colonial de cerca de duzentas famílias, no logar denominado “Fortaleza”, à margem esquerda do rio da Várzea, affluente do Uruguay. São em sua maior parte intrusos ahi estabelecidos durante o ultimo períodorevolucionário. A administração municipal construiu uma estrada que vae da villa a esse núcleo e prolongou-a até cerca de 4 leguas de Nonohay. Regularizada a situação desses intrusos com a divisão dessas terras em lotes coloniaes, é de crer que em pouco tempo e com pequena despeza o governo daria ao município de Palmeira um elemento de vida, de que tanto precisa.

As terras da “Fortaleza” são de superior qualidade. O logar não progride porque a propriedade dos intrusos não está legalizada.70

Como se pode constatar, esse documento remete a alguns aspectos da hipótese que

pretendemos comprovar, o que será demonstrado no próximo capítulo:

1º - Havia terras na região, ocupadas por nacionais que não eram legalizadas e os

ocupantes eram tratados como intrusos.

2º - A região denominada “Fortaleza” ( atual Seberi) era um dos redutos onde se

concentravam os rebeldes, que constituíam o poder do mato.

3º - Os rebeldes ocuparam a área “durante o último período revolucionário”, e isso

nos leva a reforçar a convicção do vínculo entre as lutas revolucionárias e as questões de terra.

4º - O relatório permite inferir a presença de conflitos, gerados pela insegurança : “o

logar não progride porque a propriedade dos intrusos não está legalizada”. De acordo com o

relator, Lindolfo Rodrigues, a legalização das terras poderia trazer para o município condições

para o progresso de que tanto precisava, transparecendo aí as condições de penúria do

município, em parte, devido às dificuldades de comunicação, conforme relata noutro trecho

do documento.

No entanto, o governo opta por uma política que estimula a vinda de

imigrantes/migrantes de origem européia para o município, fruto de uma política oficial,

intensificada por volta de 1914, devido ao interesse do governo na colonização do interior.

Borges de Medeiros determina estudos especiais da Diretoria de Terras relativas à

colonização da área da Fortaleza (atual Seberi) que, segundo Mozart Pereira Soares,

“repercutem no Conselho Municipal que se dirige ao mandatário estadual em termos

69 ZARTH, Paulo Afonso. Op. cit. p. 9970 Relatório de Lindolfo A . R. da Silva . S. A. 219. 30/06/1913 – AHRS.

Page 43: Caboclos, Ervateiros Coroneis

44

entusiásticos, como se lê no ofício que parte daquela corporação a 28 de outubro de 1914” 71,

citado em parte na obra Santo Antônio da Palmeira.

Esse novo surto migratório tem o estímulo do governo no sentido de ocupar os vazios

existentes no Planalto Sul-Riograndense e irradia-se a partir das “Colônias Velhas” em várias

direções. A construção de uma ferrovia, ligando Santa Maria a Cruz Alta, chegando até

Santa Bárbara, favoreceu a implantação de novas colônias em áreas de densas florestas.

Começava o ciclo da colonização do Alto Uruguai, em colônias mistas de imigrantes e

descendentes, em primeira e segunda geração, dos primitivos colonizadores.

O incremento dos núcleos de colonização é estimulado por diversos fatores

conjunturais e efetivado pelas possibilidades de comunicação, transporte e escoamento da

produção abertas pela ferrovia. Os fatores conjunturais estão relacionados à expansão do

capitalismo, que exigem do governo respostas políticas que busquem o progresso. O

crescimento populacional nas Colônias Velhas e a conseqüente dificuldade de aquisição de

novos lotes de terra aproveitável trazem como alternativa a abertura de projetos de

colonização de companhias particulares ou públicas. A região do Planalto surge como

solução, por apresentar extensas áreas inexploradas.

O estabelecimento da Comissão de Terras e Colonização, em 1917, marcou o início

de um grande surto colonizador, que conforme Mozart Pereira Soares estabelece o início de

uma nova fase na evolução do município. Esta fase é marcada pela instalação dos inúmeros

núcleos de povoamento, que hoje se constituem em sedes de importantes municípios da

região: Chapada, Seberi, Frederico Westphalen, Erval Seco e muitos outros

Soares defende que o Estado já tinha experiência na questão imigratória tratando,

pois, de evitar os erros anteriores, isto é , “o surgimento de núcleos com tendências para a

formação de quistos raciais, como aconteceu em outras regiões em que se radicaram

imigrantes europeus”.72 Apóia essa idéia na orientação doutrinária definida pelo Dr. Carlos

Torres Gonçalves, Diretor da Diretoria de Terras, da Secretaria de Obras Públicas,

considerando-a “uma esplêndida obra de integração social”, e citando Parecer de 1925 no

qual o Diretor referindo-se à imigração procurava advertir dos perigos que representam para

os países onde penetram, quando tendem a conservar as características de sua nacionalidade,

sua língua e suas tradições.

Essa cautela em relação aos imigrantes leva-o a criar o Serviço de Proteção aos

Nacionalizados. Na sua exposição de motivos destaca:

71 SOARES, Mozart Pereira. Op. cit. p. 83.72 Idem. 257.

Page 44: Caboclos, Ervateiros Coroneis

45

(...) à installação de cada novo nucleo colonial, seguia-se geralmente a retirada gradual da maioria dos nacionaes moradores das regiões. Uns retiravam-se allegando a falta de proteçãoda administração publica; outros por fazerem bom negócio immediato transferindo as suas terras, ou simplesmente os seus pretendidos “Direitos de Posse”, ao primeiro colono de origem estrangeira que aparecia propondo-se isto. E era crença generalisada, ou mesmo entre as pessoas que manifestavam interesse pelos nacionaes, constituir fatalidade immodificável e impossibilidade de prende-los à terra.73

Os cuidados com relação à distribuição de lotes coloniais e as preocupações com

relação à população naciona l não impediram que os mesmos fossem considerados intrusos e,

em conseqüência, expropriados de suas terras. Em grande parte, isso ocorre devido à atuação

das companhias de colonização, uma vez que o Ato Provincial n0 140, de 1882, autorizava a

venda de terras públicas a particulares ou a sociedades com o objetivo de colonizá- las. As

companhias adquiriam as terras do Estado por baixos preços e, sob a alegação de custos para a

montagem da infra-estrutura, as revendiam aos colonos por altos preços. Os colonos que

ocupavam áreas na condição de posseiros eram desalojados de suas terras e passavam a

constituir mão-de-obra para as companhias de colonização ou até mesmo auxiliavam os

colonos para vencer as dificuldades iniciais.

Muitas propostas do governo positivista com relação à colonização não se efetivam.

Entre elas destaca-se que as terras fossem vendidas diretamente pelo Estado aos colonos. No

entanto, muitas vezes isso não se concretizou e contribuiu para especulação nos preços das

terras. Esse aumento dos preços, evidentemente, também é influenciado pela expansão

demográfica e construção da ferrovia. Contudo, os dados são surpreendentes. Zarth demonstra

que em “Cruz Alta, Passo Fundo e Palmeira das Missões o preço da terra no período de 1851

a 1916 subiu até 1000%”. 74

Enfim, a chegada dos colonos produziu uma série de mudanças, entre elas, um

considerável aumento populacional no município, o qual concentra-se prioritariamente na

zona rural, como se pode constatar do Recenseamento de 1920 em que, de um total de 22.500

habitantes, apenas 1.200 viviam na zona urbana. No entanto, é preciso destacar que a

intensificação da colonização trouxe o acirramento dos conflitos sociais, relacionados com a

terra, visto que boa parte das áreas já eram ocupadas por caboclos que não tinham suas posses

legalizadas.

73 RÜCKERT, Aldomar. A trajetória da terra. Passo Fundo: Ediupf, 1997. p. 102.74 ZARTH, Paulo Afonso. Op. cit. p. 92.

Page 45: Caboclos, Ervateiros Coroneis

46

1.1.2. A ocupação dos campos nativos

As áreas dos chamados campos da Palmeira foram ocupadas a partir do início do

século XIX, onde se instalou a pecuária extensiva, determinando as características marcantes

do município.

Após a conquista definitiva do território das Missões por José Borges do Canto, a

Coroa portuguesa estimula a posse dessas terras devido à necessidade de consolidação da sua

conquista pelas armas e também pelo atrativo econômico sobre as possibilidades que a terra

representava.

Formam-se as estâncias pastoris, marcando o início do latifúndio regional onde as

áreas cobertas com pastagens naturais foram apropriadas, sendo deixadas de lado as áreas

cobertas de mata. Intensificam-se as incursões de paulistas para os campos do Planalto Rio-

Grandense atrás do gado e de recompensas, como a concessão de terras em troca de serviços

militares.

A abertura do caminho para o território, onde posteriormente formou-se o município

de Palmeira das Missões, foi realizada pelo alferes Athanagildo Pinto Martins, em cujo relato

da “exploração da abertura do caminho das Missões”, 75 assim denominada por ele, descreve o

percurso realizado na região, em 1816, realizando uma incursão de cunho militar.

Posteriormente, instala-se em Cruz Alta, onde se tornou grande proprietário de terras, como se

verifica pelo seu testamento.

Os bens de Athanagildo inventariados após a morte de sua viúva Ana Joaquina do Amaral, nos mostram como ele foi, entre os povoadores de nossa região, aquele que seguiu de Cruz Alta para o norte, desde a invernada do Lagoão até as adjacências da atual cidade de Santa Bárbara, na qual é pioneiro no povoamento. Ultrapassando seus limites para o norte, veio ele terpropriedades nas cabeceiras do Palmeirinha, já em pleno Município de Palmeira das Missões”. 76

Iniciava-se, assim, a ocupação do território da futura “Vilinha da Palmeira”, seguido

por outros pioneiros como o paulista Coronel Joaquim Thomaz da Silva Prado e o Major

Antônio Novaes Coutinho, português de nascimento, que, vindos de São Paulo, deram início

ao povoamento das áreas de campo.

Uma questão que se impõe aos estudiosos do processo de ocupação diz respeito à

formação das propriedades. Conforme documentos da Câmara Municipal de Cruz Alta,

75 SOARES, Mozart Pereira. Op. cit. p. 106 – 107. O autor refere-se a documento do próprio Athanagildo P. Martins, datado de 1816, em que faz um relatório do caminho percorrido.76 Idem. p. 110.

Page 46: Caboclos, Ervateiros Coroneis

47

datado de 1850, citado por Zarth, constata-se que a posse das terras ocorreu através da

concessão feita pelas autoridades militares locais, sendo poucas as propriedades obtidas por

sesmarias . As áreas consideradas devolutas foram vendidas, sem distinguir se pertenciam ou

não à comunidade dos índios. Era mais fácil adquirir terras, por baixo preço, das

autoridades locais do que a obtenção de sesmarias. “Dessa forma, militares e tropeiros

conseguiram a preços irrisórios vastas áreas de campo nativo que deram origem às grandes

estâncias das quais restam resquícios”. 77

Considerando-se que, do ponto de vista jurídico, a concessão de sesmarias cessa a

partir de 17 de julho de 1822, com a Resolução Ministerial de autoria de José Bonifácio,

Rückert destaca que: “A obtenção de sesmarias no Norte do Rio Grande do Sul é tema

escassamente tratado à luz de provas documentais. De uma forma geral, pode-se afirmar,

no entanto, que as sesmarias foram poucas e que não consistiram na forma predominante de

obtenção de grandes propriedades”.78 Como a ocupação da área em estudo foi posterior à

referida lei é de se supor que esta não foi a forma usual de obtenção de posse.

O processo de apossamento é, de início, lento por tratar-se de uma área nova para os

luso-brasileiros e pela presença de indígenas caingangues nas florestas que se alternavam com

os campos. Após a destruição dos Sete Povos das Missões, o território missioneiro é

abandonado e os índios embrenham-se nas matas, iniciando um momento de hostilidade

com os novos ocupantes, devido às tentativas de escravização, além da usurpação de suas

terras.

Sem dúvida, os grandes prejudicados, no referido processo de apossamento, foram os

indígenas, embora haja outro segmento, escassamente citado, que é o dos lavradores pobres e

coletores de erva, ou seja, os caboclos que se encontram dispersos pelo território e que são

ignorados, quando da concessão das posses. A Lei de Terras não favoreceu a posse da mesma

aos pequenos proprietários, pela falta de conhecimento da ocupação anterior à lei, ou mesmo

pela ignorância dos posseiros em legitimar suas propriedades.

A área de campo teve como traços marcantes os componentes específicos de

atividade pastoril: grande propriedade, sociedade patriarcal, domínio do estancieiro sobre os

dependentes, constituindo uma organização social baseada em relações de poder

coronelístico. Destaca-se o papel dos coronéis-latifundiários como detentores do poder

político e responsáveis, em grande parte, pelos rumos da economia. À medida que ocorre a

valorização das terras, buscam assegurar o controle da maior parte das áreas, para serem

77 ZARTH, Paulo Afonso. Op. cit. p. 46. 78 RÜCKERt, Aldomar. Op. cit. p. 57.

Page 47: Caboclos, Ervateiros Coroneis

48

utilizadas, não como meio de produção, mas como reserva de valor. Nas áreas de mata não se

opuseram à distribuição de terras aos imigrantes, porque não ameaçava seu predomínio,

ligado à atividade pecuária.

O comportamento conservador da elite econômica e política, constituída pelos grandes

proprietários, contribuiu para manter o espaço latifundiário intocável. Os coronéis-militares e

os tropeiros descendentes de tradicionais famílias paulistas constituíram o grupo dominante na

fase de ocupação, estendendo-se por todo período imperial e início da república. Durante a

República Velha, fatores socioeconômicos advindos das mudanças que se operam nas

atividades produtivas, favorecem a emergência do poder do mato, constituído por ervateiros,

chacareiros, pequenos proprietários. Nessa fase, estabelece-se um clima de permanente

enfrentamento com o poder do campo, que se constituía no grupo dominante e controlador

das relações políticas locais.

A atuação dos coronéis- latifundiários na política local pode ser largamente constatada

em documentação consultada no Arquivo Borges de Medeiros, na historiografia e nos relatos

orais, como veremos nos capítulos seguintes. Nesse momento, interessa-nos uma

conceituação dos agentes históricos e a análise das relações de poder que se estabeleceram

entre os atores sociais presentes no processo.

1.2. Caboclos, ervateiros e coronéis

A forma como o governo tratou a ocupação das áreas de mata leva a crer que eram

tidas como vazias demograficamente, sem considerar a presença dos extrativistas de erva-

mate e cultores de roças com produtos de subsistência ou sobrevivendo dos recursos da

natureza. Constituíam uma população cabocla que, freqüentemente, é ignorada pela

historiografia, assim como foi ignorada pelo governo ao designar essas áreas para

colonização. A vinda de colonos transforma o espaço regional, criando conflitos e

marginalizando os caboclos, cuja presença era desconsiderada pelos poderes públicos.

A presença desses agentes históricos exige uma melhor conceituação, considerando as

representações que se faz desses sujeitos nas diversas regiões e de acordo com as concepções

de quem os denomina. Nas áreas onde há a presença acentuada de colonos a denominação

corresponde aos brasileiros, tratados, de modo geral, depreciativamente, nas áreas de

colonização italiana onde são designados como brasiliani.

Page 48: Caboclos, Ervateiros Coroneis

49

Nos dicionários de língua portuguesa, são indicados como mestiços de branco com

índio, tendo como sinônimos: mameluco, sertanejo, caipira. Nos documentos que tratam da

questão da terra são, freqüentemente, designados como nacionais, distinguindo-os dos

migrantes descendentes de europeus. Zarth aponta uma distinção, no sul do Brasil, entre os

dois tipos de camponeses que constituem os lavradores nacionais, destacando que “colono é o

camponês imigrante ou filho de imigrantes europeus, enquanto caboclo se refere ao lavrador

nacional e ao modo de vida diferenciado, mais próximo do nível de vida original do

indígena”. 79

A literatura, em geral, considera os caboclos os autênticos brasileiros, resultado da

miscigenação do índio com o branco, apresentando muitas vezes um caráter de estigma.

Estudos recentes procuram incluir nessa categoria, além dos critérios étnicos, critérios

culturais e socioeconômicos. Segundo Telmo Marcon:

As pesquisas que estudam os caboclos a partir de questões étnicas, destacam os grupos que participaram da miscigenação, principalmente o indígena (Kaingang, Guaranis e Xokleng), os bandeirantes, os castelhanos (argentinos) e os lusos-brasileiros, provenientes das províncias de São Paulo e do Paraná, mas não mais como bandeirantes. Grande parte das pesquisas acentuam a participação destas etnias na constituição do caboclo, especialmente os índios e luso-brasileiros80.

No entanto, destaca que sua preocupação é pensar o caboclo “para além dos critérios

étnicos”. Comumente, aparece a ascendência indígena como um componente definidor, além

da “idéia de que a denominação caboclo é depreciativa, pois, na medida em que os sujeitos

ascendiam econômica, política e socialmente, deixavam de ser assim denominados”81. Na sua

pesquisa, concluiu que não existe um caboclo único, havendo diferenças entre os diversos

grupos e especificidades no seu modo de viver.

Bloemer, apoiada na conceituação de vários autores, salienta que a despeito de seus

vários significados regionais a designação de caboclo “parece remeter a um determinado

modo de vida ou a uma cultura específica, denominada de cultura cabocla” definindo-a,

assim, como uma categoria sociológica que leva à designação de uma condição social. 82

Estabelece uma diferenciação entre os camponeses que constituem seu objeto de

estudo designado-os de italianos (migrantes) e brasileiros. Prefere utilizar a expressão

79 ZARTH, Paulo Afonso. Os esquecidos da História: Exclusão do lavrador nacional no Rio Grande do Sul. In. Os

caminhos da exclusão social. ZARTH, P. Afonso [et. al.]. Ijuí: Ed. UNIJUÍ, 1998.80 MARCON, Telmo. Memória e cultura: modos de vida dos caboclos do Goio -Em (SC). 1998. Tese ( doutorado em História) . PUC/SP. São Paulo. p. 65.81 Idem. p. 68.82 BLOEMER, Neusa Maria Sens. Brava gente brasileira : migrantes italianos e caboclos nos Campos de Lages, Florianópolis: Cidade Futura, 2000. p. 23

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50

brasileiros porque “o termo caboclo, pelo qual são reconhecidos na região, tem significativa

carga pejorativa”. 83 Destaca que é, invariavelmente, entre os brasileiros categorizados como

produtores fracos, que se encontram os que possuem menos terras, ou vivem na condição de

agregados, arrendatários ou são proprietários das piores terras.84

Essa distinção, fruto das representações construídas pelos colonos sobre os caboclos,

está presente em outros autores, segundo Marcon. No entanto, destaca que entre os sujeitos

que entrevistou “esta distinção não se constitui num problema. Pelo contrário, eles se auto-

identificam caboclos como afirmação positiva de suas práticas e ações”. 85

Sem desconhecer a existência de representações que qualificam o caboclo de

“preguiçoso, desleixado, pouco afeito ao trabalho, desorganizado e pouco higiênico” aponta a

necessidade de avaliar mais profundamente o significado depreciativo do termo, visto que é

utilizado para caracterizar grupos sociais que decaíram socioeconomicamente.86 A partir das

constatações feitas propõe “pensar o caboclo a partir dos modos de ser e de viver, tendo

consciência de que não estão desvinculados de traços étnicos”. 87

A expressão caboclo, de acordo com Zarth, designa o lavrador nacional pobre,

estando “fortemente marcada pelo aspecto cultural, tanto que a expressão foi utilizada para

designar imigrantes alemães que caíram a um nível de vida semelhante ao do lavrador

nacional”. Contudo admite que, embora o conceito não sendo puramente étnico, na grande

maioria, os caboclos são descendentes de índios, portugueses e africanos88.

O que se observa nos textos consultados é que a categoria caboclos não é nada clara,

havendo dificuldades em estabelecer uma definição precisa, pois o termo adquire conotações

e significados diversos conforme a região. Para fins desse estudo, como já referimos na

introdução, serão considerados os moradores das áreas rurais, dedicados ao extrativismo ou ao

cultivo de pequenas lavouras, observando-se, ainda, os aspectos étnicos, socioeconômicos e

culturais.

Destaca-se na região a figura do ervateiro, devido à importância que a erva-mate

adquiria por movimentar capitais, tanto no mercado interno como na exportação para a região

Platina, constituindo-se, assim, em importante fonte de renda. Zarth destaca diferenças entre

os grupos de ervateiros: “alguns trabalhavam em parceria e repartiam o produto do trabalho;

outros trabalhavam como peões assalariados para algum dono de engenho de moer erva-mate,

83 BLOEMER, Neusa Maria Sens.Op. cit. p. 2384 Idem. p. 180.85 MARCON, Telmo. Op. cit. p. 66.86 Idem. p. 7087 Idem. p. 74.88 ZARTH. Paulo Afonso. Op. cit. p. 48.

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51

ou para alguma espécie de empreiteiro, que pagava uma licença junto à administração

municipal ou comprava a erva nos estabelecimentos privados”. 89

Considerando o período em estudo, República Velha, em que a privatização das terras

e dos ervais, em grande parte, já tinha ocorrido, a designação ervateiros será utilizada para o

grupo que detém algum controle sobre a extração, comércio e transformação do produto e

não, simplesmente o que executa a coleta como tarefeiro. Como se constata em documentação

já consultada e que será analisada na exposição dos capítulos seguintes, os ervateiros

constituíram-se num grupo intermediário entre o campo e a mata, gozando de uma posição

socioeconômica que lhes possibilitou, em parte, o controle do poder em áreas e momentos

determinados.

O papel desempenhado pelos coronéis no Rio Grande do Sul, somente nas últimas

décadas, tem sido objeto de estudos, visto que o coronelismo era identificado como uma

prática típica do Nordeste brasileiro, enquanto a historiografia do rio-grandense, por muito

tempo, ignorou o tema, devido à construção mítica da figura do gaúcho e outros valores

presentes na classe dominante. Segundo Loiva Otero Félix, reconhecer o coronelismo “seria

uma forma de nivelamento e igualdade com o processo sociopolítico dos demais estados, o

que feriria os “brios” da classe dominante gaúcha que com o reforço da historiografia

transmitia uma imagem de força, bravura e originalidade”. 90

Recentemente, o tema tem sido abordado com freqüência e está inserido nos estudos

da história rio-grandense, com as peculiaridades próprias da formação do estado, cujas

características de área de fronteira impregnou de fortes marcas militaristas a fase de ocupação,

contribuindo para o domínio dos grandes pecuaristas, não só no aspecto econômico, mas

também no campo da dominação política, social e cultural, como demonstra o culto às

tradições gaúchas.

O termo “coronel” originou-se da Guarda Nacional, criada em 1831, correspondendo

ao comando municipal ou regional, respaldado no prestígio econômico ou social. Segundo

Maria Isaura Pereira de Queiroz, embora o termo seja usado desde a segunda metade do

Império “é na Primeira República que o coronelismo atinge sua plena expansão e a plenitude

de suas características”.91 O tratamento de coronel estendeu-se a todos os chefes políticos

89 ZARTH, Paulo Afonso. Op. cit. p. 6190 Ver FÉLIX, Loiva Otero. Op. cit. p. 22. Em sua obra destaca a atuação dos coronéis no Rio Grande do Sul, especialmente da região do Planalto Médio, como força de sustentação do PRR. Seu estudo abriu novasperspectivas de abordagens sobre o tema, conforme se verifica no prefácio à 2ª edição.91 QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O coronelismo numa interpretação sociológica. In: FAUSTO, Bóris (Org.). História geral da civilização brasileira.. São Paulo: Difel, 1985, v. 8. p. 160.

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52

locais e, mesmo após a extinção da Guarda Nacional, manteve-se arraigado, designando os

líderes locais que detinham o poder político e econômico.

O coronelismo não se apresenta de forma homogênea. Victor Nunes Leal analisa o

coronelismo como um fenômeno complexo, com variações no tempo e particularidades locais.

Destaca que se trata sobretudo, de “um compromisso, uma troca de proventos entre o poder

público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes locais,

notadamente dos senhores de terras”.92 Assim, a estrutura agrária, baseada no latifúndio

fornece a base de sustentação do poder privado. Desse compromisso, resultam características

secundárias do sistema coronelista como “o mandonismo, o filhotismo, o falseamento do

voto, a desorganização dos serviços públicos locais”. 93

Destaca, contudo, que nem sempre o poder municipal é exercido por um coronel-

latifundiário, podendo haver uma estreita ligação com outras lideranças, representadas por

doutores, como advogados e médicos. O coronel entrava com a influência pessoal ou do clã e

o doutor a ele aliado, com o prestígio pessoal, manobrando as campanhas jornalísticas ou a

manipulação dos resultados eleitorais. Em alguns locais, o padre exerce as funções de líder

intelectual, aliado dos coronéis.

A força dos chefes locais advém, principalmente, da sua força eleitoral. Cada coronel

controla um lote considerável de “votos de cabresto”, daí o prestígio político que desfruta,

influindo para que exerça outras atividades como conselheiro, como árbitro em desavenças ou

como intermediário entre o dependente e as autoridades públicas. O coronel é visto como rico,

embora muitas vezes não disponha de capital circulante. É rico em comparação com a miséria

dos agregados e dependentes. Leal aponta a concentração da propriedade como fator de

permanência do domínio dos grandes proprietários.

No entanto, é na questão eleitoral que a dependência se torna marcante. São os chefes

locais que custeiam as despesas do alistamento, transporte e até roupas e refeições nos dias de

eleição. Daí a existência dos votos de cabresto. O eleitor obedece “à orientação de quem tudo

lhe paga, para praticar um ato que lhe é completamente indiferente”. 94

O papel paternalista dos chefes locais, na solução dos mais variados problemas,

estabelece um limite muito confuso entre o legal e o ilícito, explicando muitas vezes a

violência que acaba se instalando nas disputas locais. A desorganização administrativa dos

municípios, fruto do atraso e incultura, gera o que o autor denomina de filhotismo que

92 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo. São Paulo: Alfa-Ômega, 1978. p. 20.93 Idem. p. 20.94 Idem. p. 36.

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53

distribui cargos aos amigos políticos, atraídos para a gamela municipal, dilapidando os bens e

serviços do governo em benefício de quem garante a vitória eleitoral. 95

O sistema coronelista funciona, conforme Leal, apoiado na reciprocidade. De um lado,

os chefes locais controlam o eleitorado; de outro lado, o poder público concede empregos,

favores e apoio da máquina policial. Esses dois aspectos, mutuamente dependentes, garantem

o êxito do coronelismo. “Sem a liderança do coronel – firmada na estrutura agrária do país -, o

governo não se sentiria obrigado a um tratamento de reciprocidade, e sem essa reciprocidade a

liderança do coronel ficaria sensivelmente diminuída”.96 O apoio mútuo entre o poder

político dominante e o coronel da corrente majoritária garantem a eficiência do compromisso

coronelista.

Autores como José Murilo de Carvalho e Eduardo Silva consideram o coronelismo

como “elemento central para a compreensão do sistema político brasileiro”, destacando que

está longe de ser uma questão morta e resolvida, suscitando, ainda, intensos debates.

Consideram a obra de Victor Nunes Leal como a espinha dorsal97 dos estudos sobre o tema.

No entanto, discordam quanto à idéia de decadência dos proprietários rurais, durante a

República Velha, pois afirmam que as mudanças na economia agroexportadora, integrada ao

mercado nacional e internacional, impeliram os coronéis a estabelecer novas relações de

poder. Sustentam que, nesse período, o estabelecimento constitucional do federalismo e da

figura do governador, como intermediário entre o poder local e federal, obriga os coronéis a

estabelecer novas relações de poder.

A obra de Leal apresenta um nível de análise mais geral, voltada para uma visão de

conjunto. “Mandonismo e clientelismo, que para ele eram apenas aspectos secundários do

coronelismo, passam a constituir o próprio eixo de análises posteriores”.98 Obras mais

recentes dão visibilidade a outros aspectos do mandonismo local, enfocando, não apenas

aspectos políticos, mas também econômicos, sociais e até mesmo psicológicos.

Surgem, assim, diferentes “tipos de coronelismo”, cuja base pode estar nas atividades

comerciais, profissões liberais ou no sacerdócio. Estudos regionais têm demonstrado a

existência de outras manifestações do coronelismo. Luís Palacín , em sua obra Coronelismo

no extremo norte de Goiás99, destaca as características de um coronelismo, centrado na figura

95 LEAL, Victor Nunes. Op. cit. p. 39.96 Idem. p. 43.97CARVALHO, José Murilo e SILVA, Eduardo. Entre a enxada e o voto. Revista Acervo, Rio de Janeiro: v. 2, n.1,p. 23-28, jan/jun. 1987. p.2398 Idem. p. 24.99 PALACÍN, Luís G. Coronelismo no extremo norte de Goiás: o padre João e as três revoluções de Boa Vista. São Paulo: Edições Loyola, 1990.

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54

do Padre João, apontando aspectos políticos e sociais que ora o aproximam, ora o diferenciam

do coronelismo presente no resto do Brasil.

Analisando a evolução da política brasileira, Antônio Octávio Cintra destaca que

coube aos coronéis um papel de mediação entre “o centro e a periferia, isto é , entre o Estado,

ou, mais geralmente, as instituições políticas centrais e a população interiorana”. Devido à

vastidão territorial do Brasil, é natural que o poder privado preenchesse os vazios da

autoridade pública. No início da República, com a maior importância do voto, cresce o papel

dos líderes locais, que procuravam garantir, através da vitória eleitoral, o controle político,

contribuindo para a “institucionalização do fenômeno do coronelismo”. Esse arranjo

coronelista, conforme Cintra, tem a finalidade de manter a ordem interna e o apoio eleitoral,

favorecendo o poder público e os chefes do interior.100

Os líderes locais que, mais freqüentemente, passam a exercer esse poder são os donos

de terra visto que esta, distribuída de modo desigual, constituía a principal fonte de poder,

porque a maior parte da população dela dependia. A capacidade de mobilização de milícias

particulares constituía-se no fator complementar para garantir a manutenção do poder e o

cumprimento de suas ordens. No entanto, é importante destacar que o poder lhe advém de

uma delegação superior, conforme Raymundo Faoro:

(...) o coronel não manda porque tem riqueza, mas manda porque se lhe reconhece esse poder, num pacto não escrito. Ele recebe – recebe ou conquista – uma fluida delegação, de origem central no Império, de fonte estadual na República. (...) O vínculo que lhe outorga poderes públicos virá, essencialmente, do aliciamento e do preparo das eleições.101

O papel dos coronéis cresce, na passagem do regime imperial para o republicano, com

as atribuições que lhes cabem nos pleitos eleitorais, quando atuam desde a qualificação de

eleitores até o transporte para os locais de votação. Os políticos reconhecem que o voto

precisa ser recolhido pelo líder local. Daí o papel de intermediário do coronel, que busca o

apoio do governo para a manutenção de seu poder pessoal.

O atraso econômico, o isolamento e a falta de comunicação das localidades

interioranas com os centros mais desenvolvidos contribuíam, de acordo com Eliane Lúcia

Colussi, para o fortalecimento do poder privado, visto que “o único contato das populações

com o aparelho de Estado dava-se em períodos de eleições, quando o voto significava a

100Ver CINTRA, Antônio Octávio. A política tradicional brasileira: uma interpretação das relações entre o centro e a periferia. Cadernos do Departamento de Ciência Política. Belo Horizonte, n.1, março de 1974. p. 59-107.101 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 11ª. Ed. São Paulo: Globo, 1995. 2º. V. p. 622.

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55

possibilidade de obtenção de favores ou de alguma melhoria material”. 102 Associa a questão

da autonomia municipal ao coronelismo, destacando que não interessava às autoridades

estaduais municípios fortes, mas um poder local fortalecido na pessoa do coronel

comprometido com acordos políticos eleitoreiros.103

Estudos que se voltam para períodos posteriores à República Velha demonstram o

quanto o sistema eleitoral conserva a herança e a forte influência do sistema coronelista. Jean

Blondel, estudando a vida política do estado da Paraíba, na década de 50, destaca a

permanência do poder dos coronéis como chefes políticos, devido ao atraso em que têm sido

mantidas as populações rurais, com altas taxas de analfabetismo e dificuldades de

comunicação. O camponês desconhece a significação política do seu voto, deixando-se levar

pelos cabos-eleitorais, que são o elemento de ligação entre o coronel e os eleitores. Aponta

algumas inovações na forma de agir dos chefes tradicionais, a fim de enfrentar a competição

de políticos novos que podem ser representados pelo médico, advogado ou o padre. Os

coronéis procuram adequar-se às novas condições, sem mudanças significativas. Patrocinam

novos personagens, estabelecem alianças com as novas forças políticas e sociais que lhe

sejam dedicadas .104

Cintra destaca que a mobilização dos votos pode gerar disputas entre os chefes locais,

que em muitos casos levam à violência. Por isso, nem sempre a mobilização excessiva da

população no processo eleitoral é bem vista pelos que detêm o poder constituído. Temem,

sobretudo, a violência das camadas baixas que pode assumir características de luta de classe.

“Quando isso seja iminente, a reação vem não apenas de um ou outro coronel, senão que se

mobilizam recursos maiores do sistema político: a repressão aos movimentos messiânicos,

como o de Canudos ou o do Contestado, indica o temor, o pânico mesmo, das elites políticas

diante da ameaça aí contida”. 105

Nesse aspecto, cabe analisar o contexto das lutas coronelistas no município de

Palmeira das Missões, onde as forças em confronto apresentavam diferenças que vão além de

simples luta político- ideológica. O coronel que reunia as características até aqui apontadas é

representado na figura de Vazulmiro Dutra, que controlava o poder local, com apoio do

governo do estado.

102 COLUSSI, Eliane Lúcia. Op. cit. p. 16103 Idem. p. 17-18.104 BLONDEL, Jean. As condições da vida política no estado da Paraíba.. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1957. 105 CINTRA, Antônio Octávio. Op. cit. p. 85.

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As forças de enfrentamento ao poder constituído eram chefiadas por Leonel Rocha,

que mantinha mobilizado grande número de caboclos, despossuídos de bens, como ele

próprio. “Talvez, mesmo sem o saber, já lutasse como instrumento de seus próprios adeptos,

por uma vaga transformação que viesse melhorar a sorte dos roceiros e trabalhadores da

enxada”. 106

Mesmo sem a clara consciência de luta social, esse fator provavelmente explique a

violência dos embates ocorridos no município, pela ameaça que representava aos

latifundiários a mobilização armada da massa camponesa.

Os mais fracos , onde quer que estejam, devem abrigar-se à sombra dos mais fortes, reforçando o sistema de dependência, que liga a população camponesa aos proprietários e os proprietáriosmenores e mais fracos aos maiores, nucleando-se toda população ao redor de pontos fortes, em sistemas piramidais de poder, entre os quais, mas não dentro dos quais, dão-se as lutas.107

Cintra destaca que a parcialidade policial e a proteção da situação dominante

contribuem para a manutenção do esquema de dominação. “O importante é que a violência

das camadas baixas, cooptada pelo arranjo coronelista, não fuja do controle, tornando-se

autônoma e assumindo conotações de luta de classe”. 108

As lutas que ocorrem na região nos mostram o funcionamento desse sistema

piramidal, em que os coronéis maiores controlavam os menores, incluindo outros setores da

população, como comerciantes e profissionais liberais que mantinham vínculos com grupos

da situação ou oposição, procurando, tanto um grupo como o outro, manter sob o controle

todos os segmentos sociais.

Por outro lado, para melhor entendermos as lutas armadas e os confrontos políticos na

região, temos que levar em conta as características do coronelismo no Rio Grande do Sul, que

assume manifestações diferentes em relação ao restante do Brasil, devido às especificidades

da formação histórica do estado. O caráter militar da ocupação associado à base econômica,

predominantemente pastoril, favoreceu o surgimento de uma sociedade senhorial em que se

estabeleceram relações de dominação dos chefes locais sobre os grupos de parentela e bandos

guerrilheiros.

Durante o período imperial, os coronéis da Campanha controlaram a política rio-

grandense, através do Partido Liberal que tinha na liderança Gaspar Silveira Martins. Na

106 FERREIRA FILHO, Arthur. Op. cit. 1986. p. 119.107 CINTRA, Antônio Octávio op. cit. p. 85.108 Idem. Ibidem.

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República Velha, o castilhismo/borgismo, buscou sustentação política nos coronéis do

Planalto que emergiram como nova força política.

Face às análises expostas, identificamos as características do coronelismo na área

primitiva do município de Palmeira das Missões, cooptado ao governo estadual, mantendo

vínculos com os demais coronéis do Planalto, no sentido da manutenção do compromisso

coronelista. Os coronéis latifundiários têm na figura de Vazulmiro Dutra o representante

típico do coronel-borgista do Planalto gaúcho, com atuação semelhante a outros que se

destacaram na região, como Firmino Paula e Victor Dumoncel. 109

Sua atuação se consolida a partir da Revolução de 23, quando os maragatos, após

vários reveses, enfraquecem sua capacidade de mobilização. Contudo, é preciso destacar que

durante a República Velha, outros coronéis tiveram intensa participação na vida política local,

ora atuando cooptados ao governo estadual, ora comandando a dissidência do PRR e, em

alguns casos, aliando-se ao poder do mato, como veremos nos capítulos seguintes.

O domínio dos coronéis era incontestável, seu poder não se manifestava só na

atuação política, mas também incluía a dominação pelo temor que causavam, devido à

capacidade de mobilização de forças, tanto a força oficial que controlavam, como utilização

de capangas e asseclas, para fazer valer sua vontade. Contudo, constatam-se formas de

resistência, que se davam não só pela luta armada, nas quais se envolviam grupos específicos

e claramente definidos como adversários, mas formas veladas de oposição aos coronéis,

representada por setores urbanos, dentre eles os comerciantes e profissionais liberais, que

procuravam, de alguma forma, resistir às imposições do grupo dominante.110

A atuação dos coronéis na região é passível de ser analisada, porque existe uma rica

documentação em arquivos públicos e privados. Difícil é estudar a atuação de grupos que não

deixaram documentos escritos, como é o caso dos caboclos. A distância temporal dos fatos

não favorece a utilização de fontes orais. Alguns processos judiciais têm permitido “dar voz”

a esses atores sociais e, através dos documentos dos que detinham o poder, pode-se fazer

inferências dos conflitos existentes.

109 Ver FÉLIX, Loiva Otero. Op. cit. Os coronéis chimangos são objeto de estudo na obra citada, sendo analisada sua atuação e relações de compromisso com o governo estadual.110 A correspondência do Arquivo Borges de Medeiros demonstra que alguns setores se opunham ao domínio dos coronéis, de forma velada, sendo muitas vezes, denunciados pelos correligionários por suas ações. Cartas enviadas a Protásio Alves fazem denúncias de dissidentes que criam dificuldades na realização dos pleitos. Em anexo à correspondência consta o jornal A Palmeira de 22/08/1915, no qual cita o nome de correligionários “que não compareceram à eleição e levaram outros a não votar. O juiz Zozimo de Oliveira Bueno, chegou a se esconder para não dar títulos”. Doc. Nº 3379, de 25/08/1915 . Constam vários documentos envolvendo advogados, comerciantes e mesmo questões com o vigário, que serão analisados em capítulo posterior. Também é importante observar a atuação de alguns coronéis que se aliaram ao poder do mato, em alguns momentos dos confrontos.

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58

Por ora, pode-se afirmar que a terra foi progressivamente privatizada, ganhando a

condição de mercadoria. As transformações que se processaram no espaço regional geraram

conflitos e tensões devido à expropriação dos caboclos e a presença de novos sujeitos.

Inovações nas formas de produzir e explorar a terra deram origem a disputas e formas

diversificadas de atuar em relação ao meio ambiente. Assim, a representação da região como

locus de violência está, em grande parte, relacionada com o conflito fundiário, aspecto ainda

pouco estudado pela historiografia regional.

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CAPÍTULO II

A QUESTÃO DA TERRA E O PODER LOCAL

O presente capítulo busca analisar a origem da formação de grupos antagônicos, a

partir de disputas pela posse da terra e pelo controle do poder local, que se manifestaram

através de várias formas de resistência e rixas políticas, chegando ao enfrentamento armado.

Valemo-nos da documentação existente em arquivos estaduais e particulares, confrontados

com a historiografia produzida sobre o tema.

Estudar a trajetória dos segmentos marginalizados se constitui num desafio, pela

dificuldade na localização de fontes, tendo em vista não se fazerem presentes na

documentação dos grupos que detiveram o poder e, freqüentemente, não se valerem de

registros escritos no cotidiano. A história pode lançar um olhar privilegiado sobre esses

sujeitos dando- lhes presença ou silenciando-os.

Assim, o presente estudo procura trazer luz sobre grupos que têm recebido pouca

visibilidade nas representações construídas sobre o passado. A análise se apóia nas leituras de

informações subjacentes nos documentos oficiais, nas falas registradas em processos judiciais

e no cruzamento das fontes com a memória coletiva e no imaginário social. Algumas obras

produzidas a partir de vivências de pessoas que percorreram a região, no século XIX, e

lançaram um olhar arguto sobre a sociedade da época, fornecem importantes subsídios.

Dentre esses, destacamos, especialmente, Maximiliano Beschoren111, que percorreu o planalto

gaúcho nas décadas de 1870 e 1880, registrando com o olhar da alteridade de um viajante

111 Maximiliano Beschoren nasceu em 06/07/1847, na Prússia, formando-se em Engenharia e Matemática. Chegou em Porto Alegre em 1869, onde trabalhou como professor. Revalidando o diploma de engenheiro foi convidado a exercer a atividade de agrimensor, na qual trabalhou durante 18 anos, viajando cerca de 3.000 léguas. Residiu em Santa Cruz do Sul, Passo Fundo, Palmeira das Missões, São Luis Gonzaga, Cruz Alta e Nonoai. Em 1874, fez parte da expedição para levantamentos topográficos de terras no Alto Uruguai, que resultou na obra Impressões de

Viagem na Província do Rio Grande do Sul. 1875-1887 , que foi publicada em seu país de origem, em 1889. Somente cem anos depois foi publicada no Brasil. Durante o período que percorreu a Região do Alto Uruguai fe zde Palmeira o centro de suas pesquisas, registrando importantes observações sobre a vida de seus habitantes. Publicou várias obras em seu país de origem. No Brasil, sua obra ainda é pouco conhecida. As atividades de demarcação do triângulo Nonoai, Peperi e Chapecó, transformaram-se numa tarefa extenuante e, transcorridos seis meses, suicidou-se. Os dados biográficos constam do prefácio e da introdução do livro, escritos por Henry Lange e Júlia Schütz Teixeira, respectivamente.

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60

estrangeiro, não só os aspectos físico-geográficos, o que era seu objetivo, mas também o

modo de vida e as manifestações culturais dos habitantes das regiões que percorreu.

Tendo feito da Vila de Santo Antônio da Palmeira seu ponto de referência, nas

explorações que realizava na região, pôde observar e registrar aspectos do cotidiano que

passaram despercebidos por outros viajantes e pelos habitantes locais, fruto do

estranhamento, de que fala Ginsburg, 112 e que permite a alguém de fora de uma determinada

comunidade de sentido alcançar outra compreensão da realidade, ou seja, representar a

alteridade. Beschoren observou as populações locais com um distanciamento que permitiu ao

estrangeiro a observação de aspectos não perceptíveis aos envolvidos mais próximos dos

fenômenos.

A passagem do autor pela “Vilinha da Palmeira”, como o município era conhecido na

época, é particularmente rica em detalhes, pois se constituiu numa espécie de “quartel” para o

explorador. “Armei meu ‘wigwan’( palhoça) de fevereiro de 1877 até outubro de 1880; e de

janeiro de 1882 até janeiro de 1884”. 113

2.1. A ocupação primitiva e a emergência de conflitos

Beschoren referiu-se com muita clareza às condições agrárias do tempo do Império. A

distribuição gratuita, às vezes, era feita sem nem mesmo saber se as terras realmente existiam

na extensão concedida e no lugar designado. Segundo ele, “a população se estabelecia ao

acaso, sem perguntar se a terra havia sido dada ou não. Toda terra parecia pertencer ao povo.

Ficavam onde mais lhes agradava e faziam, por conta própria, os limites de sua

“propriedade”. 114

De acordo com seus relatos, reinava grande confusão. Havia desavenças, porque o

governo desconhecia as terras realmente desabitadas a fim de concedê-las para a colonização.

Refere-se à Legislação de Terras de 1850, pela qual os posseiros podiam legalizar suas

propriedades, sendo medido o terreno cultivado e mais uma extensão de florestas. Relata que

a lei “não foi bem aceita pela maioria”115 e sua execução enfrentou a oposição dos grandes

proprietários e as dificuldades decorrentes da falta de homens, tecnicamente capacitados, para

112 GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p.15113 BESCHOREN, Maximiliano. p. 83114 Idem. p. 24.115 Idem p. 25.

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61

efetivar as medições. No Rio Grande do Sul, a legalização teve melhores resultados devido ao

aumento da colonização e à valorização crescente das terras. O cumprimento da lei foi

prorrogado até 1884, estabelecendo que as terras que não fossem legalizadas caberiam ao

governo, devendo atender a trâmites legais para que se efetivasse a legalização das

propriedades. É necessário destacar que essas observações foram feitas à época em que

ocorriam os registros.

O levantamento das terras, ocupadas ou não, desconsiderava totalmente a situação dos

indígenas, que reagiam com hostilidade à presença dos novos ocupantes. Beschoren refere-se

a “árduas lutas com índios” enfrentadas por alguns desses novos habitantes. Destaca que era

“preciso muita coragem para se instalar com apenas alguns companheiros e ficar sujeitos aos

ataques dos índios, que consideravam toda região, matas e campos, como suas propriedades

incontestáveis”.116

Os índios, segundo ele, altamente hostis em relação aos colonos, eram pacíficos com

os missionários e, assim, facilmente sedentarizados, embora em pequeno número migrassem

para o Paraná, onde exploravam a caça nas imensas florestas. A relação com os colonos era

tensa, pois os indígenas eram perseguidos e mortos em represália aos ataques. Atacavam ou se

defendiam, dependendo do ponto de vista. Já, na catequese, eram atraídos com estratégias

mais sutis.

Pelas observações do viajante, percebe-se que ele se coloca dentro da visão dominante

entre os novos colonizadores, considerando os primitivos habitantes como selvagens e

atrasados. Com a fundação do Aldeamento de Nonoai, a região tornou-se o ponto de encontro

dos indígenas, que povoavam as regiões próximas. O número já era bastante reduzido, cerca

de 300 índios, sendo que apenas 50 eram considerados aptos para o trabalho. Interessante

notar que, já nessa época, o grau de aculturação dos indígenas era bastante acentuado, pois

“preferem vestir-se com tecidos importados” e assim vão sendo “abraçados pela cultura”.

Nos meses de inverno, mudam-se para a floresta para colher erva, “cujo produto dá- lhes

recursos suficientes para viver, obtendo dinheiro bastante para a cachaça”. 117

O autor coloca-se claramente ao lado do branco, considerando-o vítima da reação

indígena. Em nenhum momento, considera o processo de expropriação das terras como

elemento desencadeador da reação dos primitivos habitantes. O número, já bastante reduzido,

não impressiona tanto quanto a inaptidão para o trabalho. Numa época em que o capitalismo

116 BESCHOREN, Maximiliano. Op. cit. p. 42.117 Idem. p. 44

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europeu vivia uma fase de expansão é possível entender a visão do autor em que a não

inserção no trabalho torna-se uma barreira às pretensões de construir o progresso.

Ao referir-se aos moradores da região do Goio-En, expressa sua preocupação com sua

forma de produzir. “As pessoas querem apenas viver, pensam somente no hoje”. Produzem

apenas para a subsistência, não ambicionam construir um patrimônio. A natureza oferece

dádivas em abundância “mas é preciso que essa população seja mais ativa, a fim de aproveitar

os enormes resultados que o solo oferece”.118 Expressa a convicção de que a colonização do

Alto Uruguai arrastará as regiões do Goio-En, expandindo-se até as margens da Província do

Paraná.

De fato, a colonização veio alterar o quadro, mas o colono teve que se adaptar às

condições impostas pela natureza. Jean Roche descreve as novas formas de vida enfrentadas

pelo imigrante alemão, passando a empregar técnicas utilizadas pelos indígenas e caboclos

como o desflorestamento. Isso força o europeu a cair ao nível desses moradores das áreas

florestais. Segundo o autor, o colono tornou-se um fabricante de terra na medida em que

assimilou a técnica da conquista da mata virgem, que consistia na derrubada das árvores, na

queimada dos ramos secos e no cultivo das áreas à mão, durante vários anos, até que o solo

desgastado se tornasse insuficiente.119

Assim, o desmatamento promoveu o crescimento das áreas cultivadas e o aumento do

valor da terra, sobre o qual fornece alguns dados:

No conjunto das colônias rio-grandenses, o preço das terras subiu, de 1900 a 1925, até 40 vêzes, e, de 1925 a 1950, entre 9 e 25 vêzes. Essa extraordinária valorização das terras arroteadas motivou especulações e contestações inúmeras. Explica a aspereza das questões de direito ou de fato que opuseram os colonos, uns contra os outros e os expuseram a ações reivindicatórias em quase todas as zonas de colonização120.

A passagem de Beschoren por Campo Novo proporciona uma rica apreciação do clima

de violência e desmandos em que a vila vivia. “O poder armado para conter a ordem

compunha-se de dois homens; um deles o Furriel (antigo posto militar) comandava o outro e,

com suas amantes, alojavam-se na parte dos fundos da Casa de Deus”.121 A ordem era

mantida através de espadadas aplicadas aos perturbadores noturnos, bêbados e outros

marginais. Alguns corretivos eram aplicados em plena rua. Narra um fato em que o próprio

juiz de paz assistia a uma luta sem tomar qualquer medida, pois considerava que este era o

118 BESCHOREN, Maximiliano. Op. cit. p. 51-52119 ROCHE, Jean. p. .53.120 Idem. p. .55121 BESCHOREN, Maximiliano. Op. cit. p. 58

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único meio de manter a autoridade policial. O autor, depois de algum tempo na vila, diz ter-se

convencido de que era o único meio, o mais “seguro e eficaz”.122

Os conflitos, entre índios e colonos, eram constantes.123 Os índios eram liderados pelo

Cacique Fonguí124 e, após um período de muitas lutas e mortes, inicia-se um melhor

relacionamento entre esses e os colonos. Na tentativa de buscar uma situação de paz, alguns

índios foram levados para o aldeamento de Nonoai, quando esse foi fundado, mas não se

adaptaram. Retornaram e fundaram o seu próprio aldeamento entre o Campo Novo e o Rincão

do Inhacorá.125

A figura do cacique Fongue parece ter tido papel importante na organização das

populações indígenas da região, aparecendo em vários relatos. Beschoren refere-se ao Major

Fonguí, provavelmente, por ter assumido características semelhantes aos caudilhos locais. O

Cacique tem o controle do aldeamento, e sua organização diferencia-se dos padrões indígenas,

usa a designação de Major e seus filhos são todos oficiais, de tenente para cima!

Destaca que o aldeamento apresentava-se bem organizado, com casas de madeira

resistente, sendo as condições bem melhores do que as de Nonoai. O cacique possuía uma

casa melhor e uma família numerosa com três mulheres. A figura do cacique adquire

proeminência já na época dos relatos de Beschoren e também pelas representações do

imaginário que cercam o personagem. Dizia ter mais de cem anos, mas Beschoren acredita

que devia ter de 70 a 80 anos. Há registros da morte do cacique Fongue, do Toldo de

Inhacorá, em 1920, o que seria uma longevidade surpreendente que contribuiu para a

mitificação do personagem. É provável, no entanto, que possa ter havido mais de um cacique

com o mesmo nome, como ocorreu com outros personagens, podendo ser citado o Cacique

Neenguiru.

Não há registros precisos do número de índios que viviam no aldeamento. O cacique

Fongue, quando perguntado sobre o número de índios no local, responde com um gesto

simbólico: “apanhando uma mão cheia de areia, deixando-a deslizar lentamente pelos dedos,

dizendo: TANTOS”, muito embora o cacique pudesse estar blefando, pois o número apontado

122 BESCHOREN, Maximiliano. Op. cit. p. 59. 123 O uso do termo colonos parece não coincidir com o sentido que normalmente lhe é atribuído, ou seja, imigrantes ou descendentes de imigrantes. A forma como a expressão é empregado leva a supor que refere-se a todos os trabalhadores rurais, ou seja, correspondendo a camponeses. 124 Encontram-se várias referências ao cacique em outros autores, que registram o nome como Cacique Fongue, como passaremos a utilizar, pois é como consta na maioria das obras e em documentos oficiais. Ver KLIEMANN, Luiza S. Op. cit. e MARTINI, Maria Luiza. Sobre o caboclo camponês. Um gaúcho a pé. Dissertação de Mestrado em Sociologia. UFRGS, Porto Alegre, 1993. Martini, sem referir fonte, menciona a morte do Cacique Fongue em 1886. p. 154. 125 Esta região faz parte, atualmente, do Toldo de Inhacorá, no município de Santo Augusto.

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64

em documentos parece não ser muito elevado. O sentimento de desconfiança, que os índios

tinham em relação aos brancos, fica evidente no incômodo causado com perguntas sobre o seu

modo de vida. Esses relatos datam do ano de 1876.

A questão da posse das áreas indígenas, sob o comando do Cacique Fongue, se

mantém sob controle. No entanto, em 1916, correspondência da Diretoria de Terras e

Colonização demonstra a persistência do problema da posse das áreas indígenas.

Tive ocasião de estar no Toldo de Índios de Inhacorá. Existem actualmente 40 familias com um total de 224 pessoas. Queixam-se os Índios de que suas terras estão sendo invadidas por intrusos, e que constantemente são por elles encomodados. Seria de conveniencia a medição de uma área destinada aos Indios d’aquelle Toldo afim de zelar e fazer com que elles trabalhem126.

O clima de tensão, de acordo com outros registros encontrados, atingia seu momento

crítico e, em 1920, o cacique Fongue foi assassinado junto com outro índio, no toldo de

Inhacorá. Luiza Kliemann faz registros do fato, conforme referência encontrada em relatório

da Secretaria de Obras Públicas de 1922. Os dois assassinos teriam sido presos em flagrante,

mas conseguiram fugir. Em 1922, um deles, Soriano Serra, teria sido preso, e o outro, Getúlio

Dornelles Vargas, continuava foragido.

Kliemann refere as infrutíferas buscas do processo-crime na tentativa de aprofundar a

pesquisa. Junto aos índios de Inhacorá obteve apenas a confirmação da morte de Tibúrcio

Fongue e um outro índio e, na documentação das Delegacias de Polícia, localizou o pedido de

prisão enviado, em 10 de janeiro de 1920, pelo Delegado de Porto Alegre ao delegado de

Santiago do Boqueirão, pois “Getúlio Dornelles Vargas estaria refugiado na casa de um tio

naquela localidade (...). Os estudos genealógicos da família do Presidente Getúlio Vargas

apontam a existência de propriedades desta família em Santiago do Boqueirão, mas não se

conseguiu localizar até agora entre os parentes mais próximos, o tio referido pelo delegado de

polícia”. 127

Localizamos no Arquivo Público do Rio Grande do Sul um processo que trata de

habeas corpus128 a um dos acusados, Leriano Rodrigues de Almeida, onde estão anexados os

126 Correspondência de João de Abreu Dahne, chefe da Colônia Militar do Alto Uruguai, enviada a Carlos Torres Gonçalves. Diretoria de Terras e Colonização. AHRS. S.A. nº. 220, 09/08/1916.127 KLIEMANN, Luiza. Op. cit. p.135. (Nota). A autora refere que, em 1922, um dos acusados, designado como Soriano Serra, foi preso. O esclarecimento das divergências quanto ao nome poderão contribuir para novas pesquisas.128 Processo do Cartório Cívil, nº 30/1920. Maço: 2, Est. 60. APRS. O advogado que solicita o habeas corpus é Zózimo de Oliveira Bueno. Não encontramos maiores indicações quanto a sua atuação e seus vínculos partidários, apenas encontramos referências no jornal “A Palmeira” de 22/08/1915, exercendo, então, a função de juiz. Conforme já referido, é acusado de estar do lado dos republicanos dissidentes e “chega a se esconder para não dar títulos”.

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depoimentos de testemunhas, do Juiz Distrital e relatório do Delegado de Polícia. Conforme

consta dos depoimentos das testemunhas, os acusados do assassinato do Cacique Fongue e

outro índio seriam Leriano Rodrigues de Almeida, vulgo João Serra, e Getúlio Dornelles

Vargas. As dificuldades na localização dos documentos, provavelmente, estejam relacionadas

com a identidade do acusado que foi preso. Kliemann refere o nome de Soriano Serra e, no

processo encontrado, o nome é Leriano Rodrigues de Almeida, vulgo João Serra. As

divergências quanto ao nome, no processo, aparecem também quanto à idade, pois o

advogado, na petição, registra 16 anos e o acusado diz ter dezessete anos mais ou menos129.

Além disso, trata-se de um processo civil, enquanto o processo crime, se existe, continua

desaparecido. No entanto, fazemos aqui o registro, pois esse documento é rico em

informações sobre a situação dos índios na época do crime, bem como a atuação das

autoridades policiais diante de crimes que atingiam segmentos da população, considerados

“de baixo” na história tradicional. O primeiro aspecto que despertou nossa atenção no

processo foi, justamente, o fato de referir-se ao assassinato de índios, por tratar-se de raridade,

nas primeiras décadas do século XX, a prisão de envolvidos nesse tipo de crime.

Os registros constantes no processo deixam claro que os acusados teriam invadido o

toldo indígena e abusado sexualmente de uma índia. Os índios, chefiados por Tibúrcio

Fongue, reagiram e foram mortos a tiros por Leriano e Getúlio, que foram presos logo após

terem cometido o delito. Ao serem conduzidos a Palmeira, pernoitaram numa residência, de

onde Getúlio conseguiu fugir. De acordo com o relatório do Juiz Distrital, Luiz Augusto de

Otero, anexo ao processo, os depoimentos dos acusados, embora contraditórios, “demonstram

sua criminalidade, pois Leriano disse a Getúlio (seu cúmplice): estamos perdidos, portanto,

vamos repartir a responsabilidade, tu mataste um bugre e eu matei o outro”.130

O Juiz Distrital alega não poder inquirir as testemunhas apresentadas pelo Delegado de

Polícia, pois moravam a mais de vinte léguas da Vila de Palmeira, limitando-se, assim, a ouvir

o acusado e o condutor do mesmo. O relatório apresentado pelo Delegado de Polícia consta de

quatro páginas, registrando o delito e os acontecimentos posteriores, prisão e fuga, apoiado

nas declarações de João de Oliveira Machado, guarda florestal e encarregado do toldo de

Inhacorá, Manuel João dos Santos, Juiz Distrital de Campo Novo e João Cancio Policeno,

subintendente de Campo Novo. Este declara que lhe foram entregues pelo Juiz Distrital os

dois acusados da morte dos índios Tibúrcio Fongue de Oliveira e João Mineiro, para serem

129 Nada consta sobre o outro acusado cujo nome é igual ao do futuro Presidente, que nesta época, já era nome de projeção no estado, exercendo a função de Deputado Estadual, contando com a idade de 38 anos. 130 Relatório do Juiz Distrital, anexo ao processo civil nº 30/1920, Maço: 2, Est. 60. APRS.

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conduzidos à Vila da Palmeira. Diz ter providenciado uma escolta, mas que devido à distância

pernoitaram na residência do Sr. Ignácio Graviz “ficando os criminosos amarrados e com

sentinela à vista: que, no entretanto, apesar de todas as medidas tomadas, o criminoso Getúlio

Dornelles Vargas, conseguiu cortar as amarras e fugir, saindo ele e a escolta em perseguição

do mesmo não podendo encontra-lo”131.

O réu declara chamar-se Leriano Rodrigues de Almeida, com “dezessete anos mais ou

menos”, ser natural de Campo Novo e residir nesse município onde era plantador. Dirigia-se,

a convite de Getúlio, para o “Povinho do Boqueirão” a fim de ver se encontrava colocação de

peão em qualquer fazenda, revelando, assim, ser de condição humilde. Quanto ao outro

acusado, nada consta no processo que indique sua origem ou condição, não sendo possível

identificar se há algum parentesco com a família do presidente do qual é homônimo.

As indicações fornecidas pelo processo levam a algumas considerações: apesar de

serem indicadas várias testemunhas e de o crime ter sido praticado com a maior frieza, à vista

de vários índios, a autoridade policial não despendeu nenhum esforço para solucionar o caso,

limitando-se a colocar em dúvida a culpabilidade, visto que a “prisão foi decretada sem

proceder confissão do paciente ou inquirição de duas testemunhas, que produzisse

vehementes indícios de culpabilidade”. 132 Cabe notar que, em todas as declarações dos que

estiveram envolvidos, os réus, embora contraditoriamente, acusavam um ao outro, não tendo,

em nenhuma declaração, negado a autoria do crime, havendo, portanto, veementes provas de

culpabilidade.

A vida dos índios parecia não ter valor, o habeas corpus foi concedido e ao que

parece o julgamento não ocorreu. Ressalta dos relatos o desrespeito a tudo o que se refere ao

índio, “o rancho da bugra” é invadido, expulsando o companheiro desta, João Tiburcio, que

ameaçado com faca corre para o mato, e outro índio, João Mineiro, vai ao rancho do cacique

buscar ajuda. Enquanto isso, os acusados “servem-se da bugra” e, ao chegarem em auxílio de

Brandina, os índios Tiburcio Fongue e João Mineiro foram mortos a tiros de revólver.133

Como se constata no processo, a morte do cacique não está relacionada diretamente a

questões ligadas à luta pela terra, mas demonstra o outro lado perverso na relação do índio

com o branco, em que se praticavam todas as formas de abuso, pois havia a certeza da

impunidade. O processo nada refere quanto às vítimas, além do nome, não sendo possível

131 Processo Civil nº 30/ 1920. Maço: 2, Est. 60. APRS. 132 Idem. É o que consta do despacho, sendo o habeas corpus concedido em 30 de janeiro de 1920.133 A índia Brandina da Silva era companheira de João Tibúrcio, filho do cacique Tibúrcio Fongue.

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afirmar que se trata do mesmo cacique referido por Beschoren, o qual estaria com idade muito

avançada.

As terras do toldo de Inhacorá só foram discriminadas em 1918, conforme Kliemann,

com 8.026 hectares e demarcado em 1921 já com redução de 2.164 hectares que foram

considerados como área devoluta, pela Comissão de Terras de Santa Rosa. “Nessa área,

imediatamente foram localizados colonos pela “Companhia de Colonização Dahne”, cujo

proprietário era o chefe da Comissão de Terras, João de Abreu Dahne”. 134

2.2. Os ervais do Campo Novo e as disputas pela terra.

A questão da propriedade, na região, foi motivo de árduas disputas, conforme

Beschoren já constatava na década de 1870/80: “começou depois de um grande processo

pelos direitos de propriedade de todo Campo Novo, entre o descobridor, os invasores tardios e

a Câmara Municipal de Cruz Alta”.135 No processo, o descobridor perdeu o direito sobre o

Campo que, na época, foi considerado propriedade da Câmara de Cruz Alta. O resultado

parece ser surpreendente, segundo Beschoren.

A documentação expedida pela Câmara Municipal da Vila de Santo Antônio da

Palmeira, no período de 1876 a 1879, demonstra a importância que a questão das terras

adquiriu na região. A medição das terras de Campo Novo, em 1876, pelo Dr. Benedito

Marques da Silva Acauã, Juiz Comissário de Passo Fundo, ad-hoc, para as medições do Alto

Uruguai, gerou, na região, um clima de intranqüilidade, conforme se constata na série de

documentos sobre o assunto.

Serafim de Moura Reys, que governava o município, dirige-se ao Presidente da

Província informando sobre as medições dos campos e matos do rincão denominado Campo

Novo, cujas terras são “a muitos annos zeladas pela Camara Municipal da Villa de Cruz Alta

e consideradas como de cervidão publica” de acordo com decisões do governo e da

Assembléia136. Mostra-se apreensivo, pois consta que foram apresentadas mais de vinte

declarações para registro das refe ridas terras. Anexa correspondência dirigida à Câmara de

Cruz Alta, solicitando esclarecimentos sobre a situação das terras. Destaca que as áreas em

134 KLIEMANN, Luiza. Op. cit. p. 136135 BESCHOREN, Maximiliano. Op. cit. p. 61.136 Carta de Serafim de Moura Reys para o Presidente da Província, Conselheiro Tristão de Alencar Araripe. Documentos da Câmara Municipal de Palmeira das Missões. Doc. Nº 18, de 26/06/1876. Maço: 97, Caixa: 43. AHRS.

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disputa faziam parte do patrimônio administrado pela Câmara Municipal de Cruz Alta. Com a

emancipação de Palmeira, em 1874, o domínio dessas áreas deveria ter passado para a

Câmara Municipal de Palmeira, visto que as referidas terras constituíam parte do território

deste município, cabendo, assim, à Câmara do novo município a responsabilidade da

administração dos referidos campos. 137

No entanto, percebe-se, nos documentos, a falta de conhecimento das administrações

quanto às reais condições de domínio e administração das áreas. Os moradores de Campo

Novo se dirigem à Câmara de Palmeira, denunciando a demarcação de terras consideradas de

servidão pública. O presidente da Câmara de Palmeira solicita esclarecimentos à Câmara de

Cruz Alta, que por sua vez, informa ao Presidente da Província que não possui documento que

comprove os direitos às terras tanto da municipalidade, quanto dos signatários da

representação, que dizem ter direito adquirido sobre as posses. Afirma, todavia, a certeza de

“que aquellas terras como outras anexas sempre forão consideradas como de publica cervidão,

decorrendo n’este intuito muitos annos”. 138

Apesar das tensões existentes, a tramitação dos documentos é muito lenta. A denúncia

dos moradores do Campo Novo é datada de 26 de março de 1876 e a resposta da Câmara de

Cruz Alta só ocorre em 07 de novembro de 1877. O documento dos moradores de Campo

Novo possui 41 assinaturas de posseiros e, através dele, tem-se a dimensão da insegurança e

do conflito que envolve os indivíduos que se habituaram a ver, na terra, o meio seguro de

sobrevivência através de práticas coletivas e sem a preocupação com a posse legal. As

assinaturas imprecisas e, muitas vezes a rogo, demonstram que o documento foi redigido com

apoio de alguém mais letrado na comunidade e dão uma dimensão da situação delicada a que

tinha chegado a questão fundiária na região.

Como já foi citado anteriormente, as terras do Campo Novo se constituíam em áreas

comunais de exploração de erva-mate, cuja situação tinha sido regulamentada desde 1861, por

determinação do governo federal. No entanto, à medida que avança o processo de privatização

da terra, emergem conflitos em áreas onde ainda há terras para serem privatizadas.

Os moradores do 3º distrito, Campo Novo, dirigem-se à Câmara para protestar contra

as medições que estão sendo realizadas pelo Juiz Comissário de Passo Fundo:

137 Cópia do documento enviado à Câmara de Cruz Alta por Serafim de Moura Reys. Documentos das Câmaras Municipais. Doc. Nº 18A, de 18/04/1876. Maço 97, Caixa: 43. AHRS138 Ofício da Câmara Municipal de Cruz Alta, de 07/07/1877, enviada ao Presidente da Província. Doc. Nº 19 Maço 97, Caixa: 43. AHRS.

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o Juiz Comisario deo commesso a medição dividio o Campo Novo ocupado por mais de três mil almas a annos: cujo campo fora questionado por outros cidadões, que se chamavão a posse a mais de vinte annos, cujo campo, por sentença ficou sendo propriedade Municipal aonde os habitantes tinhão suas residências tendo nos capõens imenças harvores de herva matte, de onde se fabrica milhares de arrobas de dicta herva, para exportação e mesmo onde se fornecem de madeiras para o mister de suas abitações139.

A sentença que transformou as terras devolutas em propriedade municipal

representava uma situação incomum, permitindo condições de sobrevivência a todos os

habitantes indistintamente, pois os imensos ervais se constituíam em garantia de

produtividade, inclusive, para exportação.

O texto ressalta que a privatização favoreceria apenas “meia dúzia de interessados,

fazendo assim um prejuízo considerável a Ilmª. Câmara” , pois a arrecadação do município

seria afetada. Reclamam ainda que os beneficiados nem mesmo compraram as terras do

governo geral. Assim,

apressão-se os suplicantes avir patentear semelhantes tropelias afim de que se digne V.Sªs como representantes do Município para que tomem uma medida conveniente não só embeneficio dos habitantes como prevenindo uma das fontes principais donde emana a riqueza do Município.Os supplicantes esperão do alto juízo de V.SSª. uma retta justissa.140

Como se constata no documento, as terras já tinham sido fruto de disputas anteriores,

há cerca de vinte anos. Encontram-se no Arquivo Público vários processos do período de

1848 a 1864141 , em que signatários solicitam restituição de posses e a expulsão dos posseiros

que habitavam o lugar. O problema é de difícil solução, pois a Câmara não sabe como

proceder, visto que a competência da regularização não lhe pertence. Dessa forma, em 26 de

julho de 1877, a Câmara Municipal dirige-se às autoridades estaduais informando que “os

habitantes do Campo Novo, não puderam por sua pobreza medir as terras que ocupavam,

tendo o mencionado distrito se despovoado, pois passaram a apossar terrenos no estado

vizinho em nº talvez de duzentas almas.” A municipalidade pede informações de como

considerar os terrenos, pois havia áreas de servidão pública142. Constituía-se num duplo

problema, de um lado a expulsão dos posseiros, de outro o abandono das terras e o

despovoamento, acarretando a diminuição na exploração da erva-mate. A situação de

miserabilidade era muito grande pelo que se depreende da solicitação feita ao presidente da

139 Abaixo - assinado dos moradores de Campo Novo à Câmara Municipal de Palmeira. Documentação da Câmara Municipal de Palmeira. Doc. Nº 20 A, de 26/03/1876. Maço 97, Caixa: 43. AHRS. 140 Idem.141 Cartório do Civil: 1848 a 1864. Maço: nº.1, Estante: 10. Foram examinados os processos de 15 a 19, 21 e 22 . APRS. Todos apresentam em comum a disputa por áreas territoriais no local denominado Campo Novo.142 Documentação da Câmara Municipal de Palmeira. Nº33, de 26/07/1877, Maço: 97. Caixa: 43. AHRS.

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Província de um auxílio para subsistência, pois devido à seca são cerca de 4 mil almas que

necessitam de ajuda.143

Conforme demonstram os documentos que seguem, o conflito permaneceu latente,

pois no ano de 1879, encontram-se vários registros que tratam ainda das posses das terras na

região. Pode-se avaliar a gravidade dos fatos diante de um abaixo-assinado dirigido ao

Imperador, em que os habitantes do Município de Santo Antônio da Palmeira solicitam

“remédio aos seos males que os oprimem, como agricultores e fabricantes de herva matte

pelas razoes que passão a expor”.144 Os signatários sentem-se ameaçados da perda das terras

devido às medições que estão sendo realizadas. As terras por eles ocupadas foram concedidas

para uso em comum desde 1861, embora a ocupação já viesse de longa data, tendo sido

apenas regularizada a partir desse ano.

SenhorV.M.I. serviu-se por seu beneplácito e magnanima vontade fazer graça pela lei de 20 de maio de 1861 ao povo fabricante da herva matte, as terras devolutas existentes naquelle anno de 1861 entre os Rios Turvo, Uruguay i Várzea esta graça que tão liberal fez V.M.I., fez com que se conservassem os habitantes em paz passifica, com esse direito até o anno de 1877, em que foi nomeado Juis commissario para este termo. Acontecendo que este Juis Commissario que se acha investido do poder para medir e demarcar os terrenos de posse, nem respeito tem da lei de 1861, já medindo posses tão criminosas, por seos princípios e contra a disposição da lei Nº 601 de 18 de setembro de 1850, art. 1º, que prohibiu a acquisição de terras devolutas, já mais podião ser medidas posses de taes ordens, em vista da citada lei e a concessão feita por V.M.I. e estende suas medições em terras concedidas em commum e que se achavão no anno de 1861 em mattas virgens, abrangendo os terrenos que então ficarão pertencendo em commum aopovo, existente dentro do perimetro dos três citados Rios145.

A linguagem trôpega não esconde a indignação, bem como a demonstração do

conhecimento de que a lei lhes garantia um direito que estava sendo usurpado. Revela, no tom

que adquire nas páginas seguintes, a inconformidade e a fraqueza, pois não têm a quem

recorrer dentre às autoridades próximas, tendo que se dirigir ao mandatário supremo da nação,

inclusive, fazendo denúncias de medições realizadas de forma fraudulenta em uma área.

Não contente assim, Senhor, em tomar do povo os ervais que existião em mattas altas no anno de 1861, ainda manda medir por seu agrimensor Maximiliano Beschoren, uma sua posse (...) que foi vendida ao juis Commisssario Fortes cuja medição foi feita sem a assistência do juisCommissario ad-hoc e sim do dito juis Fortes; si é possível assim se proceder nas terras por V.M.I. concedidas em commum aos fabricantes da herva matte146 (grifo nosso).

143 Correspondência da Câmara Municipal de Palmeira. Documento nº 31, de 25/07/1877. Maço: 97, Caixa: 43. AHRS.144 O documento possui 73 assinaturas reconhecidas pelo tabelião Claudino Antonio Ferreira da Rocha, datado de 24 de maio de 1879. Documentação das Câmaras Municipais. Nº. 70 A, Maço 97, Cx. 43. AHRS. 145 Idem. p. 1.146 O Juiz Comissário ad hoc era Benedito Marques da Silva Acauã, conforme citado anteriormente. Idem. p. 2.

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É conveniente lembrar que em 1876 já tinham dirigido um abaixo-assinado à Câmara

Municipal. O restante do texto é carregado de mágoa, denunciando a condição de miséria em

que vivem, absolutamente dependentes da extração da erva-mate e se as medições forem

mantidas “então se verá os pobres subditos na dura necessidade de mendigar o pão para suas

famílias no Paíz estranho”. A emigração para a vizinha Argentina parece ser, pela

proximidade, a alternativa possível. Queixam-se, ainda, que alguns estão sendo expulsos de

seus domicílios, outros chamados aos tribunais e outros ameaçados “de tudo sofrer”. 147

Junto à petição dos moradores é anexada correspondência da Câmara que informa a

“S. M. Imperial que he verdade ter o Juiz Comissário deste município medido grande número

de posses de terras dentro do perímetro marcado pelo Aviso de 20 de maio de 1861”148. No

encaminhamento que fazem à Câmara de Palmeira os moradores informam que o Juiz

Comissário Tiburcio Álvaro de Siqueira Fortes vem cometendo tropelias dentro do perímetro

dos três rios: Turvo, Uruguai e Várzea. Sempre destacando que, de acordo com o Aviso de 20

de maio de 1861, as terras devolutas existentes na área cercada pelos três rios já citados foram

concedidas aos fabricantes de erva-mate, deixando, portanto, de haver terras devolutas desde

aquele ano, mas sim terras de domínio comum. Informam que nessas terras constam ervais e

posses de simples roçados, denunciando que o dito juiz mediu para si áreas de mata,149

conforme está assinalado acima.

O documento é particularmente importante, revelando o grau de tensão que existia na

região, o desrespeito à legislação e o abuso de poder daqueles que tinham a função de cumprir

a lei. Além disso, um aspecto fundamental está no fato de ser difícil encontrar documentos

produzidos pelos despossuídos, daí porque está transcrito, em anexo, para futuras análises.

A documentação nos dá uma idéia das condições de miserabilidade dos habitantes

locais, cuja única riqueza se constituía na extração da erva-mate, evidenciando-se a gravidade

que a perda dos ervais representava. A descrição de Beschoren sobre a vila é bastante

significativa no que se refere às condições em que vivia a população, nessa época:

(...) estamos em Campo Novo.(...) A vila, ao longe, nos causou uma agradável surpresa. Porém, ficamos decepcionados. As poucas casas e ranchos estavam em ruínas. A Vila consiste em dez ranchos cobertos de capim e outros poucos com telhas. A capela serve, ao mesmo tempo, como delegacia de polícia. Não se tomaria essa construção por uma igreja, se não houvesse ao lado, um estrado com dois sinos que a retrata como tal. – Aí estava a Casa de Deus inclinada pelo

147 Correspondência da Câmara Municipal de Palmeira. Nº 70 A, Maço 97, Cx. 43. AHRS.148 Correspondência da Câmara Municipal de Palmeira. Doc. 75 C, de 15/07/1879. AHRS.149 Correspondência dos moradores de Campo Novo, de 24/07/1879, enviada à Câmara Municipal de Palmeira. AHRS.

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vento, de modo que a qualquer momento se temeria o seu desmoronar. Desapareceu o reboco branco. O material entre o madeiramento caiu, aparecendo o esqueleto nu150.

Por outro lado, entende-se a violência que ele percebeu, pois, se tratando do

agrimensor encarregado das medições das terras, deveria ser muito mal visto pelos habitantes

locais, como representante que era do poder que os oprimia e usurpava.

Descreve as condições de vida das pessoas como sendo bastante precárias em toda a

região. Ao fazer uma crítica à sua própria visão, destaca que “viajando-se por essas terras,

logo perde-se a mania alemã de julgar a fortuna das pessoas pela aparência e conforto como

vivem”. 151 Os grandes proprietários, apesar de possuírem imensas áreas, viviam

modestamente. Ao percorrer a região de Palmeira, dirigindo-se a Passo Fundo, refere-se a

estâncias em ruínas. “A prosperidade passou. Extingüiu-se uma antiga e orgulhosa geração de

estancieiros”. Descreve a estrutura das residênc ias que, apesar do estado em que se

encontram, ainda guardam marcas da antiga opulência. A Revolução Farroupilha estaria na

origem da decadência, “mesmo em estâncias tão arruinadas seus proprietários continuam

autênticos cavaleiros, os reis da coxilha, onde se nota no modo de viver, um relativo bem

estar”.152

Destaca a importância da erva-mate e manifesta sua preocupação com a forma como

vem sendo extraída, pois, segundo ele, a coleta era feita durante todo ano, em terras devolutas,

sem respeitar a época devida. Constata-se, assim, que apesar da rigidez das normas

estabelecidas no Código de Posturas do Município, citado em parte no capítulo anterior, os

ervais não recebiam o devido cuidado, o que não é difícil de entender, numa época de

dificuldades de comunicação e de transporte. Saliente-se que era necessário vencer grandes

distâncias para chegar aos locais de extração do produto, problema acrescido pelo reduzido

número de fiscais e, ainda, tendo que respeitar os interesses dos chefes locais. No olhar do

viajante da época, há uma crítica ao fato de os coletores de erva não dispensarem os cuidados

devidos aos ervais. “Não se conscientizam de que precisam cultivar a floresta ervateira,

dispensando- lhe todo o cuidado. Não se dão conta de que mesmo não sendo donos da terra,

vivem da produção que lhes dá tanto lucro, extraída do terreno que pertence a todos nós”.153

Os cuidados que as queimadas deveriam exigir, de acordo com o Código de Posturas,

não eram obedecidos, pois relata extensas queimadas em Campo Novo, onde o fogo destruía

ricas florestas de erva, onde centenas de famílias tinham aí um meio de vida. As queimadas

150 BESCHOREN, Maximiliano. Op. cit. p. 58151 Idem. p. 62152 Idem. p. 57153 Idem. p. 62

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destruíam moinhos de erva-mate, com grande quantidade do produto, ranchos cheios de

milho, roças,... gerando dificuldades para a sobrevivência. Nessas circunstâncias, despertava a

religiosidade cabocla que se manifestava com procissões, orações especiais, banho de santo e

outros rituais, pois eram as únicas formas de que dispunham para amenizar as angústias que

as secas provocavam.

A presença da erva-mate para a chegada e fixação dos primeiros povoadores da

Vilinha da Palmeira, ervateiros que se estabeleceram nas bordas da floresta. O povoado tem

origem por volta de 1830, já com a presença de compradores de erva e tropeiros que vinham

de São Paulo. O primeiro povoamento localizando-se numa coxilha, onde hoje se encontra a

praça da Vila Velha, atualmente denominada praça Paulo Ardenghi. Mais tarde, alguns

povoadores começaram a construir, numa coxilha vizinha, pouco mais baixa, outro

povoamento. “Assim, surgiram duas cidades, fortemente divididas, não só pelo vale, mas

pelas opiniões políticas aí dominantes”.154 Novamente o olhar de estranhamento do viajante

diante da divisão local.

A construção de casas no meio das duas povoações, a Vila Velha e a Vila Nova, deu

origem à rua do Comércio, hoje Independência, que fez a ligação entre os dois núcleos.

Era uma tentativa de conciliação quebrando a magia, mas a unificação tornou-se apenas física, pois a unificação no que se refere à política é impossível, pois uma das partes é exclusivamente habitada por liberais, enquanto a outra é por conservadores. Os liberais possuem a Vila Nova, situada na coxilha alta, logo avistada pelos viajantes. Os conservadores estão localizados na Vila Velha155.

É interessante observar como o autor retorna , freqüentemente, às disputas entre os

moradores da Vila de Palmeira, que estão presentes desde à fase de formação do povoado.

A fluidez dos limites na região é comentada pelo explorador que lastima a sorte dos

moradores por se verem jogados de um lado para outro. O que move o estabelecimento das

divisas dos distritos é apenas o interesse político, sem preocupações com os interesses da

população. Cita o caso de Nonoai, que, em 1875, foi anexado à Palmeira; em 1877,

novamente a Passo Fundo e, na época em que escreve, ocorria o movimento para reanexação

de Nonoai a Palmeira, o que é contra a vontade de seus moradores e contra seus interesses.

“Desse modo os pobres moradores estão sempre jogados de um lado para outro”. 156

O autor destaca que, embora os campos sejam de ótima qualidade, as matas ofereçam

um solo fértil para as lavouras e as florestas ervateiras, as mais ricas das Missões, “a

154 BESCHOREN, Maximiliano. Op. cit. p. 84155 Idem. 85156 Idem, ibidem.

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população é pobre, pobre junto aos recursos que não se esgotam. O município está muito

distante dos grandes centros comerciais, isolado e abandonado no longínquo noroeste da

Província”. 157 Sempre o problema das comunicações !

Em 1879, o governo central fundou a Colônia Militar do Alto Uruguai, conforme

referimos no capítulo I, coincidentemente, no mesmo período em que a região do Campo

Novo vivia momentos de tensão. A fundação da Colônia parece ter contribuído para melhorar

as comunicações nessa região. Uma comissão de oficiais do corpo de engenheiros, composta

por oitenta homens, foi mandada pelo governo central. Segundo Beschoren, embora a Colônia

não tivesse alcançado o que o governo esperava, no sentido de ocupar e colonizar a região

próxima ao rio Uruguai, trouxe grande vantagem para o Município, especialmente para o

distrito de Campo Novo, graças ao grande investimento do governo para a instalação e

construção de uma estrada que ligava a Colônia ao Campo Novo.

A fundação da Colônia obedeceu especialmente a uma estratégia geopolítica, devido à

condição de fronteira com a Argentina, em que as guerras eram sempre um fator iminente,

criando a necessidade de ocupação em pontos específicos. Isso tinha em vista o aumento da

densidade populacional nas zonas florestais que margeavam o rio Uruguai. No entanto, os

relatórios sobre a Colônia continuam mencionando os problemas decorrentes das

comunicações. Em 1913, o diretor da Colônia informa que o principal problema é a

dificuldade de comunicação, devido às péssimas condições das estradas e às distâncias com a

ferrovia, que era de 185 quilômetros, passando por Palmeira, em estradas intransitáveis.

Apresenta previsão de gastos necessários para serem investidos na melhoria das estradas,

como sugestão ao governo 158.

Os relatos de Beschoren são particularmente importantes, pelo período em que

percorreu a região e pela qua lidade dos registros, em que se destacam observações sobre os

aspectos geográficos, sobre a flora e a fauna, e, principalmente, sobre o modo de vida das

populações que viviam na região. Através de sua obra, podemos conhecer alguns aspectos

desses agentes sociais, pouco citados e que não produziram documentos escritos sobre as

condições em viviam. O Rio Grande do Sul do final do século XIX adquire vida nos relatos,

alternando descrições de miséria e grandeza e os caboclos que povoavam essa terra ganham

vida na perspectiva do olhar estranho.

157 BESCHOREN, Maximiliano. Op. cit. p. 87158 Diretoria de Terras e Colonização. S. A . 219, 30/06/1913. AHRS.

Page 74: Caboclos, Ervateiros Coroneis

75

2.3. A posse da terra e a legislação

A questão relativa à ocupação das terras é de grande interesse para este estudo, por ter

afetado diretamente as relações de poder que se estabeleceram entre os grupos sociais e o

poder governamental instituído, mostrando o exercício da dominação e as resistências que se

manifestam e se traduzem em várias formas de luta.

Os conflitos são gestados na ocupação das imensas áreas e começam a manifestar as

contradições, a partir da metade do século XIX, com a aplicação da Lei de Terras. É, no

entanto, na República Velha, que ocorre a explosão dos conflitos pela posse e uso da terra, e

onde o papel do Estado, como interventor e agenciador das políticas econômicas ditas

modernizantes, se torna mais presente.

Na medida em que a terra adquiria maior valor com a expansão capitalista e a

especulação fundiária, emergem os conflitos sociais decorrentes de posses mal resolvidas, em

que o que estava em jogo não era apenas o poder econômico, mas o poder político e o

prestígio social inerente à posse da terra. Controlar a terra significava controlar as populações

que dela dependiam.

A Lei de Terras de 1850, regulamentada em 1854159, pretendia resolver os conflitos

agrários existentes, substituindo a concessão pela venda e dispondo sobre a legitimação de

posses, conforme se constata nos seguintes artigos :

Dispõem sobre as terras devolutas do Império, e acerca das que são possuidas por titulo de sesmaria sem preenchimento das condições legaes, bem como por simples titulo de posse mansa e pacifica: e determina que, medidas e demarcadas as primeiras, sejão ellas cedidas a titulo oneroso assim para emprezas particulares, como para o estabelecimento de Colonias de nacionaes, e de estrangeiros, autorisado o Governo a promover a colonisação estrangeira na forma que se declara.Art.1º- Ficão prohibidas as acquisições de terras devolutas por outro titulo que não seja o de compra.Exceptuão-se as terras situadas nos limites do Imperio com paizes estrangeiros em huma zona de dez leguas, as quaes poderão ser concedidas gratuitamente.Art. 5º. Serão legitimadas as posses mansas e pacíficas, adquiridas por ocupação primária, ou havidas do primeiro ocupante, que se acharem cultivadas, ou com principio de cultura, e morada habitual do respectivo posseiro, ou de quem o represente(...)Art. 8º Os possuidores que deixarem de proceder à medição nos prazos marcados pelo Governo serão reputados caidos em comisso, e perderão por isso o direito que tenhão a serempreenchidas das terras concedidas por seus titulos, ou por favor da presente Lei, conservando-osomente para serem mantidos na posse do terreno que ocuparem com efetiva cultura, havendo-se por devoluto o que se achar inculto160.

159Coleção das Leis do Império do Brasil. Lei nº 601 de 18 de setembro de 1850. p. 307-313. L0079. AHRS.

160 Idem. p. 307-313.

Page 75: Caboclos, Ervateiros Coroneis

76

A Lei de Terras não levava em conta as especificidades e interesses regionais,

conforme Luiza Kliemann, havia um descompasso entre o legal e o real, dando margem ao

surgimento de contradições.

Teoricamente, a Lei de Terras de 1850 resolveria inúmeros problemas: acesso à terra,reorganização da produção e da sociedade e satisfação dos anseios das elites produtoras e dos intelectuais anti-escravagistas, partidários da necessidade de uma purificação do sangue e da cultura brasileira através da colonização estrangeira. Na prática, ela foi geradora de novosconflitos, pois a centralização forçada não conseguiu atenuar o descompasso entre o projeto do governo central e dos governos provinciais, ou seja, entre a legislação e as realidades agrárias regionais 161.

A regulamentação da lei estabelece uma série de medidas para legitimar as posses, que

vai desde a medição à criação de cargos diversos para a executar e fiscalizar tais

procedimentos, o que gera uma complexa rede de relações de poder, que dificultam aos

posseiros mais humildes a regularização das terras.162 Muitos processos arrastam-se por anos,

ocasionando gastos, usurpações de posse e toda série de abusos e corrupção por parte

daqueles que tinham mais condições econômicas, legitimando grandes áreas, em detrimento

dos “pequenos”.

A terra transforma-se em mercadoria que favorece a especulação e o lucro. Extensas

áreas são controladas e comercializadas pelas companhias de colonização nacionais e

estrangeiras.

2.3.1. O período republicano

As transformações do final do século XIX, advindas da abolição da escravatura, da

imigração, do aumento da produção manufatureira e, conseqüente urbanização, fazem emergir

as contradições de uma sociedade dominada pelas oligarquias agrárias. Com a implantação da

República, o Estado alarga-se, pois assume novas formas de atuação, mas torna-se incapaz de

perceber os conflitos no interior dos vários segmentos de classe.

No Rio Grande do Sul, com a ascensão dos republicanos ao poder e a implantação de

uma nova maneira de conduzir as práticas econômicas, a política agrária adquire novas

formas de interferência, embora sujeita às determinações da legislação federal.

161 KLIEMANN, Luiza Helena S. Op. Cit. p. 20.162 Ver: ZARTH, Paulo Afonso. Op. cit. e RÜCKERT, Aldomar. Op. cit. As abordagens constaram do Capítulo I.

Page 76: Caboclos, Ervateiros Coroneis

77

As medidas do governo central voltam-se para a região cafeicultora, mas aplicadas a

todo país, acabam acentuando os conflitos onde a realidade é outra. As novas leis tinham em

vista a maior penetração do capital no campo e a solução de conflitos que se arrastavam em

todo território nacional. Em nível federal, o governo provisório estabelece, entre as primeiras

medidas, o Decreto 451-b de 1890, alterando o registro de transmissão de propriedades,

operando pelo Sistema Torrens.163

O objecto principal dessa lei (...) é a mobilização da propriedade territorial, isto é, arepresentação de cada immovel por um título minuciosamente descriptivo de sua extensão e configuração, de sua composição geológica, dos seus limites, da sua área cultivada e inculta, das producções a que se adapta, do seu valor approximativo, e de todos os demaiscaracterísticos indispensáveis para darem uma idéia exacta da situação da propriedade.164

Tratava-se de uma lei australiana cuja aplicação no Brasil era defendida por Rui

Barbosa, porque “iria facilitar o comércio da terra, a transmissão da propriedade por herança,

o levantamento estatístico dos bens imobiliários e as hipotecas, evitando discussões sobre a

legitimidade das propriedades”. 165

Para a execução do Decreto, toda a estrutura administrativa foi reorganizada. A

legitimação do título de propriedade seria feita por um oficial de registro, diretamente ligado

ao juiz de direito e ao Ministério da Justiça, substituindo, assim, o vigário, tornando-se

necessária a publicação da mesma no Diário Oficial e em um dos jornais da capital ou centro

da comarca. As discussões que surgissem só poderiam ser requeridas ao Juiz, sendo os

encargos por conta dos requerentes.166

Obviamente, os pequenos proprietários e posseiros, com posses legitimadas ou não,

tinham dificuldades de contestar as legitimações que eram feitas por grandes proprietários,

incluindo áreas que não lhe pertenciam.

Encontram-se, no Arquivo Público, vários processos de legitimação de posses pelo

sistema Torrens, normalmente tratam-se de grandes áreas sem que haja contestação. No

entanto, destacamos um que merece ser analisado. Trata-se de uma contestação movida por

alguns moradores do lugar denominado Boi Preto contra Hermann Meyer, que foi

proprietário, no Rio Grande do Sul, de várias áreas destinadas à colonização, como já foi

referido no capítulo I. Em Cruz Alta, foi recebido com banda de música. No município de

Palmeira, implantou a Colônia Xingu.

163 KLIEMANN, Luiza H. S. Op. cit. p.42164Artigo sobre o pronunciamento no Congresso Nacional, proferido pelo Deputado Ignácio Tosta. Jornal do Comércio. Porto Alegre. Nº. 144. 20/06/1907. MCSHJC. 165 KLIEMANN, Luiza H.S. Op. cit. p. 42166 Ver: KLIEMANN, Luiza S. Op. cit. p. 42-43.

Page 77: Caboclos, Ervateiros Coroneis

78

Em maio de 1902, Hermann Meyer, residente em Leipzig, na Alemanha, através de

seu procurador requer a inscrição no Registro Torrens de um imóvel de sua propriedade, no

local denominado Boi Preto, município de Palmeira das Missões. Alguns moradores da

localidade interpõem embargos a tal solicitação: alegam ter a posse legal da área, pois

mantêm cultura efetiva e são moradores habituais nessas terras há muitos anos, sem oposição

de qualquer pessoa. Fazem uma exposição detalhada em vários itens, alegando que as terras

que o Dr. Meyer pretende inscrever no Registro Torrens são de propriedade dos embargantes,

tendo havido irregularidades na discriminação das terras medidas e legitimadas de Antônio

Galvão Pereira, que estavam sendo vendidas, num total de dez milhões de metros

quadrados167.

Trata-se de um dos poucos registros em que os antigos moradores, sentindo-se

prejudicados, buscam seus direitos e conseguem manter os limites de suas propriedades, visto

que as companhias de colonização tinham apoio do governo e gozavam de grandes recursos

para conduzir seus empreendimentos, dentro de uma proposta que lhes rendia vantagens

econômicas.

A política fundiária, muitas vezes, constituiu um fator de atrito entre o governo federal

e estadual, visto que os interesses da política federal nem sempre correspondia aos interesses

dos governos estaduais. Estes obtiveram certa autonomia na resolução de seus problemas de

terras, em razão do federalismo, montando uma organização administrativa e gerindo terras

devolutas, porém mantinham-se sujeitos à União por meio das leis gerais.

O governo federal tem em vista o estímulo à imigração para desenvolver a propriedade

agrícola e a entrada de mão-de-obra especializada para a incipiente indústria brasileira. Para

isso contava com o apoio de proprietários particulares, companhias de colonização e bancos

de incentivo. “Dessa forma, restringe a apropriação de terras por parte de estrangeiros na área

cafeicultora e controla a colonização nos demais estados”168. Para tanto, estabelece um

sistema de classificação das propriedades de acordo com o número de famílias que poderiam

ser instaladas e o auxílio a ser oferecido, entregando a companhias o trabalho de

discriminação de terras, medição dos lotes, bem como, de prover as condições de

167Cartório do Civil, Crime e Júri. Processo 389. M.11, Est. 59. Maio/1902. APRS. Os embargantes sãoGuilhermina Maria de Vargas, João de Deos Magalhães , Joaquim Bueno da Rosa, Joaquim Ignácio Fernandes e Antonio José Corrêa. Conforme referem no processo por ocasião da discriminação das terras de Antônio Galvão Pereira, julgando-se prejudicados, os embargantes fizeram ao juiz um protesto, em 15/07/1901, que foi localizado como Doc. 410- APRS. Nesse embargo, há inclusive a troca de nome de Hermann por Germano Meyer, visto que desconheciam tudo do colonizador, como declaram na petição. 168 KLIEMANN, Luiza. Op. cit. p. 44

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79

comunicação através da construção de estradas e outras atividades, que até então eram

realizadas pelas Comissões de Terras.

Grandes áreas foram destinadas a essas companhias, gerando conflitos cujas

proporções diferem conforme o grau de valorização das terras e pela presença de posseiros

nas áreas a serem medidas e comercializadas. No Rio Grande do Sul “as medições das

companhias entravam em choque com o projeto de colonização estadual”, porque o governo

federal entregava a administração das terras devolutas aos governos estaduais, porém

decretava como deveria ser o serviço de registro, legitimação, distribuição e venda de terras,

em todo território nacional. 169

2.3.2. O Positivismo e a questão agrária

No Rio Grande do Sul, a política do governo positivista comandada, inicialmente, por

Júlio de Castilhos, assumiu características mais ortodoxas do que no restante do Brasil. A

Constituição de 1891 consubstanciava as diretrizes positivistas de que o governo do Partido

Republicano Rio-Grandense seria o criador e executor. “As divergências no plano econômico

e a ortodoxia castilhista levaram às primeiras dissidências partidárias”170, dentre elas destaca-

se a de Assis Brasil, que vai se constituir, durante o período, no principal aglutinador das

forças de oposição.

O programa do PRR e a Constituição procuram consubstanciar as reformas pela via

capitalista, o que não ocorre sem resistências de alguns setores, por exigir uma nova

reordenação das instâncias de poder. Conforme Kliemann:

Nessa “nova ordem”, encontram-se a proliferação da livre empresa e a acumulação baseada no trabalho assalariado, a introdução de novas técnicas, a valorização do preço da terra, adiversificação da produção, a abertura de novos mercados e o crescimento da pequenapropriedade.Isso explica o comportamento do governo do estado no que se refere às reformas relativas à área rural, implícitas nas modificações do imposto de transmissão de propriedade e exportação; na instituição do imposto territorial; na proliferação da legislação sobre colonização, partilha e reavaliação de terras públicas e particulares; na criação de créditos e prêmios rurais, escolas agrícolas, cooperativas e associações de classe.171

169 KLIEMANN, Luiza S. p. 46170 Idem. p. 47171 Idem. p. 48

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80

Assim, o Rio Grande do Sul integra-se à economia nacional, sem descuidar de suas

especificidades, destacando-se, nesse período, um número significativo de medidas com vistas

ao controle da economia, formatando-se as características do estado interventor e

centralizador. A aplicação de tais medidas enfrenta as resistências de ordem política que

explodem de várias formas, chegando mesmo aos conflitos armados.

A estrutura agrária no estado influiu de forma decisiva na estrutura de poder, sendo,

portanto, as questões relacionadas com a terra que vão exigir do governo positivista uma

interferência constante, tornando-se, freqüentemente, fator de rupturas e tensões na política

rio-grandense.

A historiografia rio-grandense172 tem tratado as questões de luta política como sendo

uma luta intraclasse dominante, que colocava em confronto os pecuaristas da campanha com

os coronéis do planalto. Essa generalização não se confirma na região que é objeto deste

estudo, onde o enfrentamento se dá entre o poder do mato e o poder do campo, constituídos

de modo diferente na base econômica e fundiária, do que os grupos que se defrontavam no

estado.

A consulta à documentação da época em estudo tem confirmado que o grupo que se

levanta em armas, nos vários momentos da história regional, é constituído pelos

marginalizados do poder e que estão associados aos marginalizados na posse da terra. Em

vários documentos são encontradas referências aos caboclos que ocupavam as áreas de mata

na condição de posseiros, designados como intrusos e prejudicados no momento da

implantação da política de colonização na região norte do Rio Grande do Sul.

As políticas adotadas pelo governo Castilhista/borgista, buscando a solução dos

problemas fundiários, encontrou dificuldades na aplicação.

A solução para os problemas que se faziam sentir nessa área interessava tanto ao

governo como à oposição, daí porque as medidas adotadas tiveram algumas vezes, se não o

apoio, a condescendência de seus opositores.173 Dentre as primeiras medidas adotadas por

Júlio de Castilhos estava a de que a venda de terras seria feita em hasta pública, delimitando o

172 Ver sobre o tema ANTONACCI, Maria Antonieta. RS: As oposições e a Revolução de 23. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1981. PESAVENTO, Sandra J. República Velha Gaúcha: Estado autoritário e economia. In. DACANAL, José e GONZAGA, Sergius (Orgs.). Porto Alegre: Mercado Aberto, 1979. PINTO, Celi Regina. Positivismo : um projeto político alternativo – 1889-1930. Porto Alegre: L&PM, 1996. FËLIX, Loiva Otero. Op. cit.173 KLIEMANN, Luiza. Op. cit. p. 54

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81

tamanho das concessões territoriais 174, no que ficava evidente o incentivo à pequena

propriedade.

A política de Júlio de Castilhos voltava-se principalmente para a moralização dos

serviços administrativos, tendo preocupações com a revalidação dos títulos, medições e

legitimação de terras, em vista da constatação de inúmeras fraudes, o que levou o governo à

criação de Comissões Verificadoras em 1897. Kliemann destaca o papel das comissões no

sentido de apurar as irregularidades, juntando documentos e, quando necessário, proceder

nova medição e legitimação das terras.

Através da máquina burocrática e do aparelho policial, o governo procurou reaver terras em regiões valorizadas para promover o desenvolvimento do capital. Nessa linha de ação, foram privilegiados os colonos entrados no estado espontaneamente, as companhias estrangeiras e aqueles particulares que, com seus capitais, pudessem contribuir para o desenvolvimento do estado. Por outro lado, inúmeras vezes, saíram prejudicados os pequenos proprietáriosnacionais e estrangeiros que, oriundos da colonização oficial, foram por ela abandonados.175

No entanto, os problemas agrários continuavam a crescer. No último ano do governo

de Júlio de Castilhos, “mais uma vez o Estado republicano tentaria, através da coerção,

manter a “ordem para o progresso” com o projeto de nova Lei de Terras”. Novamente, o

governo justificava a elaboração da lei devido às fraudes e usurpações e à “necessidade de

adequar as questões fundiárias à instalação do sistema federativo para que o Estado pudesse

melhor proteger suas áreas florestais”. 176

Kliemann defende que, através da lei, o governo amplia o seu papel com vista à

manutenção da hegemonia e do controle dos aparelhos repressivos. Assim, as medidas são

implantadas pelo autoritarismo e pelo consenso, com a intenção de manter a condição

estabelecida.Várias estratégias são adotadas e demonstram o peso do agrário para a

permanência dessa hegemonia.177 Axt contrapõe ao discurso historiográfico que defende a

hegemonia uma análise do papel interventor do estado, como forma de sustentar o precário

equilíbrio das forças políticas sendo que “o processo de construção da hegemonia do bloco

histórico é permeado pela ação ao mesmo tempo cooperativa e contraditória das frações de

classe, através do eixo das políticas públicas”. Defende que as políticas borgianas voltam-se

para a construção da hegemonia da elite dirigente em “constante interação com o feixe de

174 O Decreto nº 158 de 12/04/1892, estabelecia que “nenhuma concessão de terras será maior que 100 hectares, se forem destinadas à lavoura ou de 400 hectares se o forem de colonização dentro do prazo de 5 anos”. In: Leis,

Decretos e Atos do Governo do Estado do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, AHRS, 1954.175 KLIEMANN, Luiza. Op. cit. p. 55-56.176 Idem. p. 70177 Idem. p. 15.

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82

conflitos esboçados no interior da classe dominante, determinados pelo choque de interesses e

frações de classe e pelo atrito entre facções coronelistas e o poder central”. 178 Havia entre

Borges de Medeiros, demais líderes do partido e o mandonismo local uma “tensão que

pressupunha cooperação, competição e confronto”. 179

Através da manipulação dos cargos públicos, Borges assegurava o controle do

funcionalismo policial e jurídico, como também da fazenda e obras públicas. Como presidente

do estado e líder do partido, procurava estabelecer uma relação de controle que se baseava

mais na cooperação do que na subordinação, como a relação com Firmino de Paula, Victor

Dumoncel e Vazulmiro Dutra. Os coronéis, de acordo com Félix, eram peças vitais para o

funcionamento da engrenagem política, razão pela qual o governo positivista buscava a

cooptação dos mandatários locais, integrados às estruturas de poder, ou mesmo, coagidos

pelo aparato policial.

Félix demonstra que as disputas dentro do próprio PRR eram constantes e os coronéis,

que dominavam a política local, tinham que enfrentar, além do partido de oposição, as

dissidências dos perrepistas, constatando-se uma forte contradição entre os relatos de “partido

coeso” e as dissensões existentes na documentação. É possível “comprovar a constante

dissidência dentro do partido local, sobretudo, por interesses pessoais, personalismos, vindo,

possivelmente , a favorecer o crescimento da oposição, no caso, o partido federalista, que,em

Palmeira, era uma força considerável no jogo político”. 180

Os republicanos dissidentes a cada disputa aproximavam-se dos federalistas

fortalecendo, assim, o poder do mato. As disputas se tornavam particularmente intensas no

momento em que a aplicação de medidas do governo afetava mais diretamente os setores

rurais.

O governo positivista buscou, através de extensa regulamentação, alternativas para a

questão fundiária, tendo em vista adequar os problemas relativos à posse e à intrusão com as

novas perspectivas de modernização da economia.

178 AXT, Gunter. Gênese do estado burocrático-burguês no Rio Grande do Sul (1889-1929). USP, São Paulo: 2001. Tese de Doutorado em História. p. 7.179 Idem. p. 103180 FÉLIX, Loiva Otero. Op. cit p. 125.

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83

2.3.3. A Lei de Terras de 1899 e seus desdobramentos

As mudanças que se operam no setor econômico e social, colocadas dentro da

proposta do PRR, não se alteram com a saída de Castilhos. Coube a Borges de Medeiros a

implementação da nova Lei de Terras, de Nº. 28 de 05 de outubro de 1899 e regulamentada

pelo Decreto Nº. 313 de 04 de julho de 1900. Na Exposição de Motivos, Júlio de Castilhos, ao

encaminhar a lei, justifica a necessidade da mesma devido aos abusos que se verificaram na

aplicação da Lei de 1850. Destaca que:

Nas minhas Mensagens anuais dirigidas á Assembléia dos Representantes, tenhoinsistentemente rela tado as principais ocorrências do serviço das terras publicas, exposto osinúmeros e criminosos abusos que o haviam conspurcado desde longo tempo, bem como tenho aludido ás decisivas medidas moralizadoras que a atual administração do Rio Grande do Sul ha posto em pratica para estancar as fraudes e usurpações que estavam ousadamente desfalcando o patrimônio territorial do Estado181. (grifo nosso)

Conforme Castilhos, as fraudes foram significativas, bastando observar os números:

(...) em 1881, durante os 28 anos decorridos após o regulamento de 30 de janeiro de 1854, tinham sido legitimadas posses de cerca de 50 léguas quadradas ! De setembro de 1885 a 15 de novembro de 1889 ficou também facilmente legitimada a área de 70 1/2 léguas quadradas,além dos 200 milhões de metros quadrados que receberam a indevida legitimação, de julho de 1883 a setembro de 1885 !Em contraste, informo que de janeiro de 1893 até o presente, isto é, desde que assumi o governo do Estado, a legitimação de posses não foi além de 3,4 de léguas quadradas !

A lei de 1899 dispõe sobre o serviço das terras públicas, legitimação de posses,

medição, conservação e alienação das terras devolutas e provê acerca do regimen colonial e

florestal do Estado. A lei dispunha que a legitimação das posses ocorreria nas áreas com

cultura efetiva e morada habitual do posseiro. Para os coletores de erva-mate, que eram

nômades, surgem dificuldades .

Um dos artigos mais citados da lei diz respeito ao tamanho das posses legitimadas. O

artigo 6º estabelecia “a área de cada posse, sempre que possível, não será inferior a vinte e

cinco hectares nas terras de mata e a cinqüenta nas de campo”. Conforme a referida lei, as

posses estabelecidas posteriormente a 15 de novembro de 1889 não seriam legitimáveis, mas

poderiam ser adquiridas, dispondo detalhadamente sobre todos os procedimentos necessários

para o encaminhamento das soluções.

181 Exposição de Motivos: Lei de Terras de 1899. Livro 631, 1904. p. 5 a 17. AHRS.

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84

O critério da divisão de terras em 25 hectares, de acordo com Mozart P. Soares, foi

defendido por Rondon, estando de acordo com a visão positivista de que os lotes nessa

extensão seriam suficientes para uma “família viver abastada, sendo que abastada quer dizer

uma propriedade que se basta a si própria. Abastança não quer dizer abundância”.182 Júlio de

Castilhos criou na Secretaria de Obras Públicas a Divisão de Colonização de Terras e a

entregou ao Dr. Torres Gonçalves, procurando conter a legitimação de terras devolutas.

Os processos dos Autos de Medição de posses da região da Grande Palmeira são em

número bastante expressivo, aproximadamente 490, solicitados, em grande maioria, no

período de 1901 e 1902. Já as sentenças levaram muitos anos para serem proferidas, algumas

raras foram resolvidas ainda em 1902, outras, algumas décadas depois. O clima de tensão no

município parece ter contribuído para o confronto ocorrido em 1902, como veremos mais

adiante.

Os problemas herdados do período castilhista aumentaram e a nova Lei de Terras não

foi suficiente para resolver as questões que se arrastavam. Borges de Medeiros conduz a

política agrária, procedendo a verificação e legitimação de terras, incluindo a partir de 1903 a

questão do imposto territorial.

O imposto incidia sobre o valor venal, abrangendo a extensão da terra e as

benfeitorias. Segundo Kliemann, se a nova Lei de Terras não tinha criado empecilhos, o

mesmo não aconteceu com o imposto territorial, pois atingia o latifúndio pecuarista. O

imposto foi posto em prática, apesar das pressões, e o governo justificava a medida como

necessária aos cofres estaduais, embora com riscos de perda de hegemonia. Essa cobrança de

imposto ocorreu através de decretos e as maiores resistências vinham dos médios e grandes

proprietários, que alegavam o desconhecimento da extensão de suas terras. 183

O governo estabeleceu algumas medidas que isentavam do pagamento do imposto,

como o incentivo ao plantio do trigo, que dispensaria do imposto territorial por cinco anos

aqueles que o cultivassem. Essas isenções não afetaram a arrecadação e, ao lado dessas

medidas, pelo contrário, propiciaram o seu crescimento, o que contribuía para que o PRR

mantivesse o controle político.184

As isenções atingiam, principalmente, a zona colonial, enquanto o latifúndio

pecuarista continuava descontente, alegando que as propriedades destinavam-se à criação de

gado, que já pagavam imposto de criação e exportação para o município e imposto sobre o

182 SOARES, Mozart Pereira. Entrevista concedida à autora em 14/01/2002, em Porto Alegre.183 KLIEMANN, Luiza. Op. cit. p. 77-78.184 De acordo com KLIEMANN, a arrecadação em 1903 era de 996:443 $184 e, em 1912, atingiu a cifra de 2.125: 099 $ 400.

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85

gado abatido, este pago ao estado. Em 1913, o estado cede às pressões através da revisão

tributária. No entanto, na essência, foram mantidos os decretos anteriores a respeito das

isenções, pois, o governo voltava-se, nesse momento, para o incentivo à produção agrícola

nos campos, como o arroz, pretendendo que os pecuaristas aderissem a ela ou vendessem ou

arrendassem suas terras para o desenvolvimento dessa atividade.

O governo do PRR procurou manter com o governo federal uma política, se não de

cooperação, pelo menos de aparente atendimento às medidas estabelecidas, buscando “uma

participação mais efetiva na política nacional a fim de receber, em troca, o atendimento das

necessidades da região”. 185

Em nível regional, tiveram que enfrentar o crescimento da oposição. Com a morte de

Gaspar Silveira Martins, em 1901, a liderança oposicionista passou a ser exercida por Assis

Brasil que, como republicano dissidente, nem sempre teve o apoio dos federalistas nas

questões de ordem política, especialmente no que se referia ao parlamentarismo e ao

presidencialismo.

Nas eleições de 1907, houve uma tentativa de ofensiva política em que Assis Brasil

apoiou Fernando Abbot. Esperavam o apoio dos federalistas que, no entanto, foi pífio, devido

às divergências oriundas da Revolução de 1893, quando Abbot havia lutado ao lado dos

republicanos.

Usando o aparato repressivo estatal, o candidato do PRR, Carlos Barbosa, foi

vitorioso, restando a Assis Brasil a tentativa de unificar as oposições no Partido Republicano

Democrático, que propunha reformas no setor agropecuário. “As teses políticas baseavam-se

na derrubada do autoritarismo positivista e na sua substituição pela democracia representativa,

o que resultaria num presidencialismo original, mesclado de parlamentarismo”. 186

O PRD era constituído por uma fração da classe dominante, que tinha sido alijada do

poder pelo governo positivista e, em razão disso, seu projeto de reforma rural era muito

semelhante ao do borgismo.

Borges de Medeiros, por sua vez, procurava reforçar sua posição junto aos grupos

emergentes e buscava manter o controle do poder. No entanto, no âmbito social, as tensões

avolumavam-se por conta dos problemas agrários.

Kliemann destaca que o discurso governamental repetia sucessivamente que o

problema de terras no Rio Grande do Sul se encaminhava para a solução, porém a

185 KLIEMANN, Luiza S. p. 87186 Idem. p. 92

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86

correspondência existente nas Comissões de Terra e os jornais da época demonstram que

muitas questões agrárias estavam ainda para serem resolvidas.

A questão da imigração assume rumos que nem sempre estavam em consonância com

as pretensões governamentais. Os estudos referentes ao assunto demonstram as dificuldades

enfrentadas pelos imigrantes, devido às adversidades das condições do terreno, da mata

fechada, dos enfrentamentos com os indígenas e com os primitivos habitantes das áreas.

Na região da Grande Palmeira, a imigração destina-se à ocupação das áreas de matas,

visto que os campos estavam em poder dos pecuaristas. Em relação ao espaço do latifúndio, a

imigração não ameaçou os interesses da oligarquia regional, pois os imigrantes ocuparam

as áreas de mata e, portanto, não lhes fazia concorrência. As levas de migrantes que

ocuparam a região são, sobretudo, descendentes dos primitivos colonos europeus, que

buscam, no planalto, a possibilidade de aumento de suas terras, pois nas colônias de origem

elas são insuficientes para os descendentes da mesma família.

A introdução da colonização estrangeira no Rio Grande do Sul estabelecera as bases

da pequena propriedade rural e, com ela, um novo sistema de aproveitamento do solo, que no

final do século XIX, se estende para o norte do estado. A produção, na pequena propriedade,

assume um caráter complementar em relação à economia como um todo. No estado,

apresenta um aspecto peculiar, pois a produção latifundiária não se destinava à exportação

como no resto do Brasil, em que o processo imigratório era uma alternativa que visava

substituir o trabalho escravo.

Os estancieiros gaúchos tive ram uma atitude favorável em relação à imigração, pois não

tinham porque temer a concorrência da pequena propriedade e não necessitavam de grande

quantidade de mão-de-obra. “A atividade imigrantista constitui-se, portanto, numa crítica à

sociedade tradicional em dois sentidos: introdução do trabalho livre e consolidação da

pequena propriedade”. 187

Evidencia-se com a imigração uma nova política em relação à propriedade da terra. A

valorização da pequena propriedade associa-se a uma atividade de valorização do trabalho

livre. Por outro lado, o imigrantismo está associado à questão do “branqueamento” da

população brasileira. Segundo alguns estudiosos, já havia, no Brasil, mão-de-obra suficiente

para atender às necessidades, se deslocadas de suas áreas originais, no entanto, a concessão de

terras a estrangeiros discriminou os brasileiros conforme referimos no capítulo anterior,

contribuindo para a gestação dos conflitos de terras.

187 Luiza Kliemann. Op. cit. p. 43.

Page 86: Caboclos, Ervateiros Coroneis

87

A presença de caboclos nas áreas que se destinam à imigração, os quais em grande parte

não possuem a regulamentação de suas propriedades, vai se constituir num fator alimentador

das tensões. A política do governo positivista procurou atuar no sentidos de ordem e

progresso. Criou a Diretoria de Terras e Colonização que, por intermédio das Inspetorias,

procedia a discriminação e a legitimação das terras e coordenava a política de colonização.

Os rumos da política agrária no estado, durante o governo perrepista, deve muito à

orientação doutrinária de Carlos Torres Gonçalves, que dirigiu a Diretoria de Terras e

Colonização durante o período de 1909 a 1928, desempenhando “importante papel na história

da colonização do Rio Grande do Sul. Ele dirigia os trabalhos de organização das novas

regiões, sobretudo do ponto de vista social”.188 Orientava-se pela doutrina do positivismo que

servia como justificativa científica das deliberações tomadas.

As medidas, na região, foram postas em prática por Frederico Westphalen, como chefe

da Comissão de Terras e Colonização, que exerceu um papel destacado na política agrária da

Grande Palmeira. Sua atuação coincide com um momento de bastante perturbação da ordem

política regional e será tratada em capítulo posterior, naquilo que estiver relacionado com os

conflitos ocorridos. Seguiu a orientação doutrinária de Torres Gonçalves, que, na defesa

intransigente de seus princípios, pregava que “cabia ao Estado a missão de colonizar o seu

solo”, e dessa forma procurou voltar-se para todos aspectos que envolviam a questão da terra.

“Os primeiros anos da sua gestão foram mais dedicados aos assuntos da terra do que à

colonização, em virtude da existência de grandes áreas de domínio público recobertas por

matas.”189 Defendia que não era interesse do Estado manter essas terras em seu poder e que

era natural e mesmo conveniente que essas terras fossem aos poucos sendo privatizadas, mas

devia manter o controle dessa transformação, a fim de evitar a exploração industrialista.

Através da criação da “Colônia Guarita”, Torres Gonçalves procurou concretizar a idéia

do Estado como executor do processo de colonização, atribuindo ao diretor da colônia todos

os poderes, o que tornou Westphalen um chefe respeitado na região em que atuava.190

O governo preconizava o protecionismo à economia, no entanto, a presença de capitais,

tecnologia e mão-de-obra estrangeira foi uma constante nos vários setores. Nas áreas

destinadas à colonização, grandes extensões passaram para as mãos das Companhias de

Colonização, que deveriam demarcá- las, vendê-las aos colonos e providenciar a infraestrutura

necessária ao assentamento e crescimento da região. As companhias nem sempre cumpriram

188 NORA, Nilse Corteze Dalla. Quem chega, quem sai. A política de distribuição de terras em Jaboticaba-RS.Dissertação de Mestrado em História. UPF. 2002. p. 48189 Idem. p. 49.190 Para maior aprofundamento sobre a atuação de Frederico Westphalen, ver NORA, Nilse C. Dalla. Op. cit.

Page 87: Caboclos, Ervateiros Coroneis

88

com os compromissos relativos à abertura de estradas, e a demarcação dos lotes, muitas

vezes, era feita sem levar em conta as questões de relevo e hidrografia. Assim muitos colonos

recebiam lotes que não possuíam água e situavam-se longe de qualquer meio de comunicação.

Na região, um dos problemas mais sérios está relacionado com a ocupação das terras

por posseiros. As áreas destinadas à colonização eram as mesmas em que os coletores de

erva-mate exerciam suas atividades, percorrendo os ervais, sem fixar-se definitivamente em

nenhuma área. As companhias compravam as terras, loteavam e vendiam-nas a terceiros sem

se ocuparem dos intrusos. É exemplar o que aconteceu com as terras de Hermann Meyer e

Cia. que se situavam na região de Cruz Alta onde já viviam, há mais de trinta anos, alguns

posseiros dos quais o governo tinha conhecimento. A empresa revendeu as terras e o novo

proprietário, Carlos Dhein, para livrar-se dos intrusos, mandou publicar nota exigindo a

retirada dos animais das terras. Agindo com extrema violência, mandou despejar os

ocupantes, conseguindo assim o controle da situação. Isso só foi possível devido a sua

posição: Carlos Dhein era representante de Hermann Meyer e já possuía grandes áreas.

Quando essa situação ocorria com colonos de poucas posses, os processos podiam arrastar-se

por muitos anos, gerando violência e tensões191. Conforme vimos anteriormente, na localidade

de Boi Preto, o mesmo Meyer procurou inscrever áreas, sendo contestado pelos primitivos

moradores das áreas pretendidas, antes de concretizar o apossamento das mesmas.

Isso ocorre porque o governo não tinha conhecimento da real situação das terras no

estado, onde praticamente já não existiam áreas devolutas. A desorganização aumenta com a

intermediação das companhias privadas na colonização, povoamento e exploração de recursos

naturais.

O governo não consegue fugir às contradições de seu programa, tenta manter o

consenso, mas usa também a repressão para enfrentar as resistências. Em muitos casos,

omitiu-se de sua responsabilidade e muitas pessoas, sem condições de resistir, quer pela força,

quer judicialmente, saíam em busca de novas áreas, que também já tinham dono ou

pertenciam às reservas indígenas. Como já foi dito anteriormente, o índio foi a primeira

vítima da disputa pela terra. Tal processo estendeu-se por séculos, limitando as áreas

indígenas cada vez mais, fruto da expansão das propriedades, sem que os governos

solucionassem a questão. Sempre que conflitos fundiários se estabeleciam, novas invasões

ocorriam nas áreas indígenas.

191 NORA, Nilse C. Dalla. Op. cit. p. 115

Page 88: Caboclos, Ervateiros Coroneis

89

Assim, a região do Alto Uruguai, que possuía ainda boa parte das florestas inexploradas,

era o espaço onde se concentrava a maior parte das populações indígenas do estado, da

mesma forma que vai se constituir na região de maiores enfrentamentos. Embora a política

protecionista de Rondon fosse adotada pelos positivistas, como Torres Gonçalves, muito

pouco puderam evitar a usurpação das terras indígenas. Em relatório em 1910, Gonçalves

refere-se a indígenas que foram convencidos a abandonar suas terras para satisfazer a vontade

de proprietários particulares, criticava a catequese desenvolvida pelos padres e solicitava para

sua diretoria a proteção ao índio.192

A usurpação das terras indígenas continua a ocorrer e, em 1922, uma nova

regulamentação sobre as terras consagra atenção ao problema:

Art. 20 – São consideradas terras dos índios as que se acham por eles ocupadas.Art. 21 - O Estado as considera tais independente de qualquer titulo especial de domínio, como conseqüência da prioridade da ocupação por eles.Art. 22 - Toda vez que se tiver de fazer a demarcação de terras dos índios, será ela realizada com largueza, tanto quanto possível segundo linhas naturais, consultado previamente o desejo deles.Art. 23 - O Estado auxiliará por todos os meios ao seu alcance a realização do serviço deproteção leiga aos silvícolas, instituído pelo Governo Federal.193

O parágrafo único do artigo 23 estabelecia várias medidas de proteção e apoio para

tornar os indígenas produtores capazes de viver dos seus próprios recursos. Nesse aspecto, a

função do Estado era proporcionar as condições para tal fim, sempre que o apoio da União

falhasse. Certamente ocorre grande distância entre o que é estabelecido pela lei e a realidade,

considerando a freqüência de registros e relatos de conflitos entre colonos e índios.

A crise política dos anos vinte tinha entre os seus componentes a questão agrária e,

em 1922, o governo outorgou um novo Regulamento Estadual de Terras, já citado

anteriormente. O regulamento dispõe “sobre os serviços de discriminação de terras,

legitimação de posses, povoamento, proteção aos indígenas e aos nacionais, conservação e

exploração das matas”. 194 Mesmo em uma análise superficial constata-se que o regulamento

pretendia solucionar as questões de terras que se arrastavam desde o Império. O

desconhecimento da realidade das propriedades era evidente, tanto que os artigos 3º e 4º

determinam:

192 KLIEMANN, Luiza S. Op. cit. p 133.193 Regulamento das terras públicas e seu povoamento. Decreto Nº 3004 de 10/08/1922. Coletânea de Leis e

Decretos do Estado do Rio Grande do Sul. AHRS.194 Idem.

Page 89: Caboclos, Ervateiros Coroneis

90

Por toda parte onde houver incerteza nas divisas entre terras do domínio publico e do domínio privado, o Estado promoverá gradualmente, os necessários trabalhos de discriminação; e bem assim sempre que houver suspeita de invasão de terras do domínio publico por proprietários confinantes.(...) Quando não for possível a locação exata das divisas, o Estado respeitará as áreasconstantes dos títulos e estabelecerá divisas definitivas195.

O número de processos de legitimação de terras, baseados no Decreto n.º 3.004 de 10

de agosto de 1922, é significativo em Palmeira. São aproximadamente 151, contendo Autos

de Medição e documentos relativos à autuação.

A legislação tinha em vista a regularização de todas as posses para que o Estado

pudesse ter conhecimento da realidade da situação fundiária. Assim estabelece no artigo 8º do

Regulamento que estão sujeitas à legitimação:

a) - as posses com processos iniciados de acordo com a lei n. 601, de 18 de setembro de 1850 e regulamento n. 1.318, de 30 de Janeiro de 1854;b) - as posses com processos iniciados de acordo com a lei estadual n. 28, de 5 de Outubro de 1899 e respectivo regulamento de 4 de Julho de 1900.c) - as posses transmitidas por escritura de mais de 30 anos; bem assim as de ocupação efetiva e ininterrupta de mais de 30 anos dos respectivos posseiros ou seus herdeiros e cessionários; provada em ambos os casos a continuidade da ocupação, e contados os 30 anos até a data em que tenham inicio os serviços de discriminação de terras, em cada região.196

Faz distinção entre terras públicas e particulares e estabelece detalhadamente os

procedimentos a serem observados na discriminação das terras e legalização das posses.

Vários artigos tratam da intrusão, sendo que o artigo 07 determina : “os que intrusamente se

estabelecerem em terras de domínio público estão obrigados a despejo imediato, com perda

das benfeitorias existentes e mais indenização dos danos causados”.

Ressalte-se que, ainda nesta data, a lei se refere a ervais de domínio público que

podiam ser arrendados, porém somente os das zonas onde fosse realizável a fiscalização da

extração, de modo a ficar assegurada a efetiva conservação dos mesmos. Em regra, os

arrendamentos seriam anuais, compreendendo zonas pouco extensas, limitadas por linhas

naturais. A diretoria de terras ficava incumbida de expedir instruções, regulando a exploração

dos ervais. As terras de ervais poderiam ser aproveitadas na organização colonial, porém seria

computado no preço de venda dos lotes rurais o valor do erval. Quando se tratar de ervais

plantados e não simplesmente cuidados, deviam ser equiparados às demais culturas.

O Capítulo VI do Regulamento de Terras de 1922 trata das terras e proteção dos

índios, determinando que as terras indígenas “são as que estão ocupadas por eles”. Com um

195 Regulamento das terras públicas e seu povoamento. Decreto Nº 3004 de 10/08/1922. Coletânea de Leis e

Decretos do Estado do Rio Grande do Sul. AHRS.196 Idem.

Page 90: Caboclos, Ervateiros Coroneis

91

primor de detalhes garante- lhes a liberdade de se organizarem, preservar suas crenças, sua

cultura, sendo- lhes concedidas áreas onde pudessem manter seu modo de vida, rios, matas ...

A lei dispõe sobre os núcleos coloniais de modo especial, estabelece que só seriam

organizados em terras onde houvesse meios de comunicação e transporte num curto prazo.

Fixa quais as terras destinadas à colonização e as condições para a escolha dos lotes. O artigo

36 do referido Regulamento é surpreendente. Dispõe que “os lotes rurais destinam-se de

preferencia aos descendentes da avultada população colonial do estado”. Ou seja, por

dispositivo legal dificulta a concessão de lotes das áreas de colonização aos caboclos.

Embora mantendo a extensão dos lotes em 25 hectares, estabelece que as famílias

poderão receber de 1 a 3 lotes e o agricultor maior de 16 anos e menor de 21 poderá receber

um , não podendo aliená- lo antes da maioridade. A lei estabelecia que os agricultores, no caso

de receberem mais de um lote, deveriam pagar à vista os demais, obviamente favorecendo os

agricultores que tinham mais posses, podendo ampliar suas propriedades.

O regulamento estabelece, no artigo 42, que “os nacionais, já estabelecidos nas terras,

que não sejam intrusos recentes e notoriamente não disponham de recursos para os

pagamentos a vista ou a prazo (...)” poderão ter a redução de 20% nos preços.

Encontra-se, no Arquivo Histórico, um número significativo de processos de Autos de

Medição, relativos à discriminação e regularização das posses. São mais de 150 processos do

município de Palmeira, cuja tramitação se estende por vários anos, sendo alguns solucionados

muito tempo após a solicitação.

Nos termos do art. 16º do Regulamento de Terras, de 4 de Julho de 1900, a área

legitimável ficaria limitada à extensão cultivada, e não inferior a 25 hectares. Porém, o novo

Regulamento de Terras, de 10 de Agosto de 1922, no seu artigo 9º estabelecia que os limites

poderiam variar entre 25 e 100 hectares, “ a não ser que existam inventários ou escrituras de

mais de 30 anos, consignando divisas precisas, caso em que prevalecerão estas”197. Nos

demais casos, no cômputo de área legitimável, será reunida a extensão cultivada (incluídos

nesta os ervais cuidados, embora nativos), área utilizada por animais de criação e qualquer

indústria que o requerente da legitimação ou seus sucessores mantenham, contanto que a área

total não exceda a 100 hectares. Mas fica entendido que, se 25 hectares bastarem para as

culturas do posseiro, mais a subsistência dos animais de sua propriedade e outras indústrias

instaladas, continuará sendo essa área de 25 hectares a legitimável. Portanto, o Regulamento

de Terras de 1922 não veio elevar o mínimo da área legitimável a 100 hectares, mas somente

197 Regulamento das terras públicas e seu povoamento. Decreto Nº 3004 de 19/08/1922. Coletânea de Leis e

Decretos do Rio Grande do Sul. AHRS.

Page 91: Caboclos, Ervateiros Coroneis

92

estender ao Estado a prescrição de 30 anos, regulando-a e fixando, assim, o máximo da área

legitimável em 100 hectares.

O governo assim resumia os aspectos fundamentais do novo regulamento: “quer o

Regulamento de 4 de Julho de 1900, quer o de 10 de Agosto de 1922, o que tem em vista é

somente amparar, com eqüidade e o quanto baste, os pequenos ocupantes antigos de terras, e

não proporcionar- lhes domínios extensos”198. Reforçava o dispositivo de legitimar apenas as

terras que estivessem efetivamente ocupadas por cultura, mesmo quando excedesse a 100

hectares.

Os interessados deveriam requerer a legitimação em petição dirigida ao Presidente do

estado, indicando a situação das terras, juntando ainda documentos que provem a

continuidade da ocupação da mesma por mais de 30 anos.

Aos ocupantes de terras estabelecidos posteriormente à fixação dos editais contra a

intrusão, isto é, a 31 de Dezembro de 1910, não são aplicáveis as disposições do número 27º.

Ao contrário, contra eles poderão ser aplicadas as disposições e penalidades no Regulamento

de 4 de Julho de 1900 e no Regulamento de 10 de Agosto de 1922 . O mesmo regulamento

determinava medidas a serem adotadas nos casos de intrusão após a data citada, pois, “o

intuito da administração é sempre exercer o mínimo de compressão, e somente a

indispensável para obter o completo respeito às terras do domínio público” , assim os

funcionários deveriam:

a) – intimar individualmente os intrusos estabelecidos posteriormente aos editais contra aintrusão, isto é, a 31 de Dezembro de 1910, a se retirarem, porém, oferecendo-se-lhes lotes onde existirem demarcados nas condições habituais de concessão; e, aos que não tiverem recursos, facilitando-se-lhes o pagamento em trabalhos de viação;b) – dar prazos diferentes a cada um, de 15 dias para os mais recentes, e maioressucessivamente aos outros, a fim de isolar os casos de ação compressiva, individualizando-os;c) – fazer a intimação e despejo por intermédio dos funcionários florestais, solicitando para isso o concurso das autoridades locais, de acordo com o artigo 56º do Regulamento de Terras,de 04 de julho de 1900, e despacho presidencial de 09 de outubro de 1918, em ofício da Diretoria de Terras e Colonização, n. 724, de 8 do mesmo mês. Se as autoridades policiais julgarem necessário, para fornecer força, autorização expressa dos seus superiores, deve isso ser trazido ao conhecimento da Diretoria de Terras e Colonização, para que esta providencie199.

O mesmo regulamento determinava que o despejo não seria realizado no caso de

intruso com grandes benfeitorias. Seriam demarcados os lotes das terras onde se achassem

estabelecidos. Esses lhes serão vendidos pelos preços correntes na ocasião da demarcação,

acrescidos de 50 %.

198 Regulamento de terras públicas e seu povoamento. Decreto Nº 3004 de 10/08/1922. Coletânea de Leis e

Decretos do Estado do Rio Grande do Sul. AHRS.199 Idem.

Page 92: Caboclos, Ervateiros Coroneis

93

A aplicação das novas determinações na região trouxeram dificuldades para muitos

posseiros que não apresentavam as condições exigidas para a regulamentação de suas terras,

pois a atividade seminômade dos ervais impedia o atendimento de dispositivo de áreas

efetivamente cultivadas. Por outro lado, o processo de colonização com imigrantes/migrantes

tinha desalojado os antigos posseiros de suas áreas primitivas, não tendo o prazo necessário

para justificar a regulamentação. Na região da Fortaleza, onde se concentravam as forças

maragatas, a Comissão de Terras agia com eficiência, procurando cumprir a lei, contribuindo

para o acirramento das rixas e desavenças.

Os estudos têm demonstrado a eficiência do PRR, no sentido de manter o controle

político, apoiado numa máquina administrativa, nos mecanismos de coerção e violência e no

poder econômico, representado pelos coronéis locais, que sustentaram as práticas ditatoriais

do governo positivista. As medidas econômicas do governo castilhista/borgista atingem a

sociedade como um todo. Examinamos mais detidamente a questão agrária, haja vista que

esse aspecto está na origem dos conflitos que marcaram a região.

O apossamento de grandes glebas pelos proprietários das áreas de campo, que tinham

o poder e os recursos econômicos para o registro das mesmas, se constituiu ao longo do

período imperial e, sobretudo, durante a República Velha, fator de desestabilização social, que

gerou vários momentos de tensão e crise, independentemente das motivações que inspiraram

os enfrentamentos em nível estadual. No momento em que as lutas eclodiram no estado, os

setores marginalizados se levantaram em armas, contra o governo que os oprimia,

representado pelos coronéis locais.

Page 93: Caboclos, Ervateiros Coroneis

CAPÍTULO III

LUTA E RESISTÊNCIA

3.1- Palmeira das Missões: A violência como parte do cotidiano.

O estudo da história do município de Palmeira faz emergir relatos que assombram pela

crueldade e pela freqüência com que ocorrem. A identificação da região como espaço de

violência se confirma na historiografia e no imaginário coletivo ainda constituinte da memória

social da região. É preciso, no entanto, na análise dos fatos, ter presente que o período foi

particularmente tenso em todo o estado, considerando as condições políticas de confronto

entre as facções, que buscavam o controle do poder em nível estadual, estendendo-se para os

municípios onde, da mesma forma, o confronto e as disputas se realizavam.

Seria a violência em Palmeira maior do que nas demais regiões? Teriam as matas e a

possibilidade de passagem para a Argentina atraído os revolucionários ou a violência

independe desses componentes? As características da ocupação, gerando relações de poder

coronelístico, explicariam os fatos?

A relação entre espaço geográfico e identidade é sem dúvida importante, mas não é

suficiente para explicar a violência que foi presenciada pelos antigos moradores. A região da

Grande Palmeira era constituída por uma imensa área de florestas que representaram um

refúgio para aqueles que, por razões diversas fugiam tanto da justiça como das perseguições

dos inimigos. A historiografia fala de marginais e perseguidos da lei, no entanto, a “lei”, em

muitos casos, não representava a justiça, mas servia a quem detinha o poder.

A ocupação do espaço regional originou uma estrutura socioeconômica na qual se

afirmou a figura do estancieiro, com destacada atuação política, detendo os meios de controle

do poder local, através da manipulação ou da coerção, o que pressupõe a montagem de uma

estrutura coronelista, que, de acordo com Maria Isaura P. de Queiroz, “é profundamente

Page 94: Caboclos, Ervateiros Coroneis

95

influenciada pela própria estrutura socioeconômica ali existente”. 200 Os dois aspectos se

interpenetram.

A tentativa de (re)construção do conhecimento sobre o passado não tem a pretensão de

responder a todos os questionamentos, mas apontar algumas possibilidades que permitam uma

reflexão sobre os mesmos, buscando, nos documentos produzidos na época, uma leitura que

nos aproxime de uma explicação histórica, tendo presente que a história é sempre

representação do passado.

Dessa forma a reconstrução do conhecimento sobre o passado valendo-se de múltiplas

fontes, entre elas documentos oficiais, artigos de jornal, as falas registradas nos processos

judiciais, as publicações da época, cruzando-as com depoimentos orais e a análise da

produção historiográfica existente é uma tentativa de compreensão da cultura e identidade de

uma sociedade que não pode prescindir das construções do imaginário.

As publicações do período em que se inserem os fatos analisados foram

particularmente importantes, não só por aquilo que deixaram registrado, que de outra forma

estariam perdidos, mas por trazerem a visão dos grupos que se defrontavam. Nesse sentido,

torna-se imprescindível ter em mente o calor das paixões que impulsionava os relatos,

contrapondo as informações com outras fontes, ou quando não for possível, relativizar os

fatos, buscando estabelecer a coerência necessária.

Destacamos aqui, sobretudo, as obras de Euclydes B. de Moura, O vandalismo no Rio

Grande do Sul; de Antônio Ferreira Prestes Guimarães, A Revolução Federalista em Cima da

Serra; de Wenceslau Escobar, Apontamentos para a História da Revolução rio-grandense de

1893; de Ângelo Dourado, Voluntários do martírio e de Rafael Cabeda, Os crimes da

ditadura: a história contada pelo dragão. Nelas temos registradas as visões dos

contemporâneos de acordo com seu engajamento político, tendo em comum o aspecto de

terem sido escritas por pessoas que, de alguma forma, vivenciaram os fatos ou ouviram os

relatos à época em que aconteceram.

A obra de Euclydes Moura foi publicada pela primeira vez em 1892 e retrata os

acontecimentos políticos que sucederam à proclamação da República no Rio Grande do Sul,

narrando uma série de crimes que ocorreram em vários municípios gaúchos, no período que

antecedeu a Revolução de 1893. O autor, embora declare realizar um relato imparcial, deixa

clara a visão dos republicanos. Baseia-se em informações da imprensa , especialmente o

jornal “A Federação”, e depoimentos de testemunhas. Essa publicação contribui para o

200 QUEIROZ, Maria Isaura P. de. O coronelismo numa interpretação sociológica. In. FAUSTO, Bóris (Org.) História geral da civilização brasileira. São Paulo: Difel, 1985. v. 8. p. 171

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96

conhecimento do clima hostil que dominava no período em que foi divulgada. É dedicada ao

Partido Republicano e ao Dr. Júlio de Castilhos e, dessa forma, apresenta a visão de “um

soldado disciplinado” do partido, como ele se intitula, relatando apenas as violências contra os

aliados. Usa uma linguagem carregada de elogios aos chefes republicanos e termos ofensivos

aos adversários políticos. Na reprodução de artigos de “A Federação”, Afonso Honório201,

líder federalista, é chamado de latrinário e seus aliados de affonsuínos.Acusa os adversários

de atos ilícitos na aquisição de terras, opondo-se à medidas pacificadoras adotadas por

Evaristo Teixeira do Amaral, tentado “chamar o burro aos trilhos”. As acusações são de toda

ordem e reforçam a idéia do clima de hostilidade que culminou em episódios de extrema

violência.202

As obras de Ângelo Dourado, Wenceslau Escobar, Prestes Guimarães e Rafael Cabeda

nos dão a visão dos federalistas, registrando passagens que permitem o confronto das idéias e

o relato dos fatos de acordo com as versões que circulavam em ambas as facções. Nessas

obras, as acusações voltam-se contra os republicanos e, da mesma forma, precisam ser

analisadas com a devida isenção. Procuramos extrair das obras referidas os fatos relacionados

à área de abrangência deste estudo, no intuito de traçar um quadro da situação vigente,

enriquecido das manifestações de rivalidades e mágoas que foram expressas pelos envolvidos

nos fatos.

Essas obras têm, em comum, o fato de terem sido escritas por pessoas que

participaram diretamente do movimento armado e, parte dos acontecimentos narrados foram

presenciados pelos mesmos. Ângelo Dourado, médico da coluna de Gumercindo Saraiva,

descreve, em minucioso relato, os acontecimentos que presenciou e as condições em que

viviam os rio-grandenses durante o período da guerra civil. A obra foi publicada em 1896 e,

conforme ele mesmo diz: “é a narração dos factos sob a impressão do momento”. 203

O relato de Prestes Guimarães, comandante das forças revolucionárias de Cima da

Serra, abrange o periodo de 1892-1895, versa sobre os acontecimentos nos municípios de

201 Afonso Honório dos Santos era advogado e exerceu papel de destaque como líder oposicionista. Atuava na sede, mantendo a ligação com os maragatos da zona da mata. Após a Revolução de 1893 e o Levante de 1902 esteve exilado na Argentina, assim como Leonel Rocha.202 MOURA, Euclydes B. de. O vandalismo no Rio Grande do Sul: antecedentes da revolução de 1893. Porto Alegre: Martins livreiro, 2000. As expressões constam de um texto de Evaristo Teixeira do Amaral Filho, publicada na “A Federação”. Data da carta: 29/02/1892, a data do jornal não consta. p. 156-171. No artigo faz acusações aos envolvidos no ataque à Palmeira chefiado por Rocha Tico .203 DOURADO, Ângelo. Voluntários do Martírio: narrativa da revolução de 1893. Porto Alegre: Martins Livreiro – Editor. 1977. p. 1.

Page 96: Caboclos, Ervateiros Coroneis

97

Passo Fundo, Soledade, Palmeira das Missões e Cruz Alta. Trata-se do depoimento de quem

vivenciou os combates e as lutas políticas durante o período.204

A obra de Wenceslau Escobar, publicada em 1919, traz relatos de acontecimentos, faz

denúncias da ditadura positivista e registra encaminhamentos políticos, ressalvando que,

mesmo tendo participado diretamente da luta contra os republicanos, procurou “expor os fatos

com a posssível imparcialidade”. 205

O livro de Rafael Cabeda é uma reedição da obra de 1902 sobre atrocidades praticadas

pelos vitoriosos da Revolução de 1893, a partir de denúncias levantadas pelo jornal O

Maragato, então editado na cidade uruguaia de Rivera. Cabeda, um dos chefes federalistas,

durante o exílio e contando com a participação de Rodolpho Costa, faz um relato de saques,

prisões ilegais, assassinatos, empastelamento de jornais, estupros e as famosas degolas.

Abrange o período de 1889 a 1900, retratando, assim, um quadro da situação pós-revolução

em que as perseguições continuaram, mesmo após a assinatura da paz, em 1895.206

Extraímos das obras referidas os relatos vinculados à região em estudo, buscando

dados que ajudassem a compor um quadro dos acontecimentos no município, tendo presente a

parcialidade contida nas mesmas.

3.1.1. ... nos últimos anos do Império

Feita a emancipação em 06 de maio de 1874, a primeira Câmara Municipal207 foi

instalada em 1875, tendo como primeiro presidente Serafim de Moura Reys. A preocupação

inicial esteve relacionada com a elaboração do Código de Posturas do município, que em

linhas gerais assemelhava-se ao de Cruz Alta, município-mãe. O documento trata com

detalhes de todos os aspectos da zona urbana 208 e rural. Em especial, preocupa-se com a

204 GUIMARÃES, Antônio Ferreira Prestes.A revolução federalista em Cima da Serra, Porto Alegre: Martins Livreiro – Editor. 1987. A obra foi organizada a partir dos registros manuscritos encontrados, incluindo os relatos de campanha.205 ESCOBAR, Wenceslau. Apontamentos para a história da revoução rio-grandense de 1893. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1983. p. 4.206 CABEDA, Rafael. Os crimes da ditadura: a história contada pelo dragão. Porto Alegre: Procuradoria-Geralde Justiça, Memorial do Ministério Público, 2002.207 As Câmaras Municipais tinham, na época, funções maiores que as de hoje, exercendo as atribuições do poder executivo e legislativo, cabendo ao Presidente da Câmara a função de governo do município. 208 Com referência à zona urbana, que não é nosso objetivo, destacamos que o documento trata detalhadamente de aspectos que vão desde a largura das ruas até a edificação de residências, cuidados com a limpeza das áreas públicas, combate à saúva, obrigações diversas dos moradores e as respectivas multas. Doc. Nº 2C , M: 97, Cx. 43, AHRS.

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exploração e preservação dos ervais que se constituíam numa das principais riquezas,

estabelecendo rigorosas normas de controle, conforme já foi referido no capítulo I.

O final da década de 1870 é marcado, sobretudo, por conflitos na região do Campo

Novo, relacionados à posse da terra, por disputas pela ocupação dos ervais públicos, em torno

das quais moradores estiveram mobilizados, dirigindo-se até mesmo ao Imperador, como já

foi analisado no capítulo II. Nesse mesmo período, a região enfrenta uma seca extremamente

séria que agravou as condições já precárias em que a população vivia. Ocorrem incêndios nas

matas, conforme Beschoren registra, queimaram-se “as ricas florestas de erva, concedidas a

centenas de famílias, que tinham aí um meio de vida. (...) As notícias recebidas de Campo

Novo eram bem tristes: moinhos de erva-mate, com grande quantidade do produto, ranchos

cheios de milho, roças, matas ervateiras – tudo destruído de forma arrasadora”. 209 A situação

era tão difícil a ponto de a Câmara Municipal dirigir solicitação de ajuda ao Presidente da

Província.210

As dificuldades enfrentadas pelos moradores da região eram grandes. Conforme se

depreende da documentação da Câmara Municipal em relatório sobre receita e despesa, há

necessidade de providências e comentários sobre os problemas enfrentados, entre eles, a falta

de professores e as péssimas condições de comunicação. Destaca que a abertura de uma

picada ligando o Alto Uruguai a Campo Novo poderia contribuir para a solução do problema,

assim como uma picada ligando Fortaleza ao Alto Uruguai “atravessando enormes hervaes, a

principal riqueza ao alcance da classe pobre”. 211

À precariedade das condições econômicas, na última década do período Imperial,

acrescentam-se problemas de ordem política, com uma Câmara dividida por rixas pessoais e

disputas constantes entre liberais e conservadores. Em 1881, assume a presidência da Câmara

o Coronel Athanagildo Pinto Martins.212

Nesse momento, desponta na política palmeirense uma das figuras que marcariam

presença na fase inicial da República, estando sua morte relacionada ao início da Revolução

209 BESCHOREN, Maximiliano. Op. cit. p. 79. Registra as manifestações de religiosidade dos moradores, que através de procissões, rezas e procedimentos diversos pedem misericórdia e clemência divina, suplicando chuva.210 Correspondência da Câmara Municipal ao Presidente da Província. Doc. Nº 31, 25/07/1877. Maço: 97, Cx. 43. AHRS. 211 Idem. Doc. Nº 36, de 03/10/1877. AHRS.212Trata-se do bisneto do desbravador, que tinha o mesmo nome, conforme informa Mozart P. Soares.Destacaram-se em momentos bem distintos da história municipal, o primeiro, designado pelo título de Alferes, constituiu uma das primeiras estâncias da região e o segundo, que atingiu o título de Brigadeiro, atuou na política local, na fase de emancipação até o início da República.

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99

de 1893, no município. Trata-se de Evaristo Teixeira do Amaral213 que tem uma atuação

polêmica, sendo mostrado de forma contraditória por seus contemporâneos.

Athanagildo Pinto Martins não chegou a completar seu mandato, ao que tudo indica,

por desentendimentos com seus adversários: Evaristo Teixeira do Amaral e o Tenente

Coronel Miguel Antunes Pereira. Devido às desavenças existentes, Athanagildo cassou o

mandato político dos mesmos, o que contribuiu para que os ânimos ficassem ainda mais

exaltados, levando Athanagildo a afastar-se do cargo.

No período seguinte, 1883/86, os vereadores afastados retornam à Câmara, marcando

um momento de intensa luta política numa Câmara dividida entre duas facções, conforme se

constata na documentação existente214. As disputas acabam favorecendo ao Major Evaristo

Teixeira do Amaral, que assume a presidência em 1886, abrindo- lhe caminho para o

predomínio político, que se estende até a fase inicial do período republicano. Inicia sua

atuação, desmontando o sistema organizado por seus antecessores, substituindo professores e

abrindo violenta luta política com seus adversários.

A atuação polêmica dos coronéis locais dá uma idéia do clima de instabilidade que

envolvia a Vila de Santo Antônio da Palmeira no limiar da República. As lutas pela afirmação

levaram a medidas extremas. Evaristo chega a instalar uma Câmara paralela em sua

residência.

Félix aponta diferenças entre o coronel do Império e o coronel borgista, sendo a

Revolução Federalista um marco divisor para o coronelismo gaúcho. O coronel Evaristo,

dessa forma, constitui-se num elemento de transição, pois atua na fase final do Império e

início da República, buscando manter o equilíbrio, na frágil estrutura de poder que marcou os

primeiros anos da República no Rio Grande do Sul, com a “redistribuição do poder local e

regional no estado, respaldado por novo grupo hegemônico, o republicano”. 215

213 Evaristo Teixeira do Amaral fazia parte da estirpe de família paulista que ocupara o Planalto no ciclo do tropeirismo. Nasceu em São Paulo, em 31/12/1831, vindo para o sul, residiu em Alegrete. Em 1854, transferiu residência para Passo Fundo: “caminho das tropas”. Retorna a Alegrete em 1857, fundando a empresa Evaristo & Cia., forte casa comercial que se dedicava à exportação de erva-mate, lã e couros, importando sal, açúcar, tecidos, cigarros, fumos, charutos, dos países vizinhos: Uruguai, Argentina e Paraguai. Acumula um grande patrimônio em terras, gado, possuindo, inclusive cinco escravos. Participou da Guerra do Paraguai, a qual trouxe prejuízos a seus negócios. Em 1869, é nomeado Major Ajudante da Guarda Nacional, sendo em 1870 transferido para Cruz Alta, reiniciando seus negócios e estendendo sua atuação até a Vila de Palmeira. Em 1882, foi eleito vereador da Câmara de Palmeira, atuando num clima de intensas rixas políticas. Por Decreto Imperial de 14/07/1887, Evaristo Teixeira do Amaral é nomeado para o cargo de Coronel Comandante Superior da Guarda Nacional da Comarca de Cruz Alta. Foi nomeado Comandante da Colônia Militar do Alto Uruguai e várias outras funções públicas. Esses dados foram extraídos de biografia elaborada por Castúlio Amaral, neto do mesmo. (mimeo.)214 Documentação da Câmara Municipal do Município de Santo Antônio da Palmeira, período 1874 a 1889. Maço: 97, Cx. 43. Ver também, SOARES, Mozart Pereira. Op. cit. p. 168-170.215 FÉLIX, Loiva Otero. Op. cit. p. 59.

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Emerge um novo grupo de poder, os coronéis do Planalto, tendo Cruz Alta como

centro político, ao qual Palmeira se acha vinculada, quer pelas origens históricas, acentuadas

por traços identitários comuns, quer pelo vínculo político de aliança entre os coronéis que

dominavam a política regional. Nesse aspecto, cabe salientar as ligações, no início da

República, entre José Gabriel, que dominava a região de Cruz Alta, e Evaristo T. do Amaral,

que se destacava em Palmeira. Firmino Paula se sobressaiu na Revolução de 1893, passando a

ocupar um papel de destaque na política regional, estabelecendo fortes ligações com os

coronéis que vão controlar o poder na década de 1920, especialmente, Vazulmiro Dutra.

3.1.2. ...e quando chega a República

Com o avanço da propaganda republicana, ocorre uma mobilização em que Palmeira

se faz representar, na primeira Convenção do Partido Republicano Rio-grandense, em 23 de

fevereiro de 1882, em Porto Alegre. De acordo com Love essa convenção organizou

formalmente o partido e os participantes formavam um grupo cerrado, constituído por jovens,

unidos pela educação e pelos negócios familiares, relacionados com a pecuária.216 Às

vésperas da proclamação, fundou-se, no município, o Clube Republicano, liderado por

Evaristo Teixeira do Amaral Filho.217

O pai permanece em atitude aparentemente neutra até 15 de agosto de 1889, quando

adere ao movimento na 2ª reunião do partido, realizada em sua casa e presidida por seu filho.

Na data de 15 de novembro, Evaristo encontra-se numa curiosa posição, tendo aderido à

República, mas no exercício do poder ligado ao governo imperial. Como chefe do poder

municipal, dirige-se ao Visconde de Pelotas informando da renúncia da Câmara, mas

afirmando que a mesma “é composta por republicanos muito antes de 15 de novembro”.218

A Junta Governativa indicada para a transição é composta por Fernando Westphalen,

Evaristo Teixeira do Amaral e Guilherme Fetter, sendo presidida pelo mais idoso, que era

Evaristo, permanecendo no poder até sua morte em 27 de outubro de 1892. Em

correspondência enviada pela Junta Municipal, em 04 de junho de 1890, mostram-se

republicanos convictos, ressaltando “a grande obra de 15 de Novembro e (...) de joelhos ante a

patria redimida, sauda a República dos Estados Unidos do Brasil”. Tecem críticas ao Império

216 LOVE, Joseph. O regionalismo gaúcho. São Paulo: Perspectiva, 1975. p.29.217 SOARES, Mozart Pereira. Op. cit. p.178. Evaristo Teixeira Amaral Filho atuará como deputado estadual e como diretor do jornal A Federação.218 Idem. p. 179.

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e destacam a grandiosidade da proclamação em que a pátria renasce “de seu leito de

angustias, levada em triumpho nos braços masculos dos heróes de 15 de Novembro que,

destroçando os demolidores dos brios nacionaes transformaram em larga estrada de paz e

liberdade a vereda sinuósa por onde aventurara incertos passos a patria brasileira”. 219

Trata-se de um longo relato das condições do município, manifestando a certa altura a

convicção de que depois de constituída legalmente a República e “descentralizada a

administração, poderão as municipalidades reger por si os negocios do município, base da

verdadeira liberdade e fonte original do progresso e desenvolvimento da nação”. 220 Isso nos

leva depreender a aspiração de autonomia dos municípios. Faz um relato das condições do

município em setores como saúde, segurança, administração judiciária, instalação da comarca,

instrução pública, necessidades de construção de pontes e estradas. Entre as reivindicações,

consta a anexação do território da Freguesia de Nossa Senhora da Luz de Nonohay, assunto

recorrente em vários documentos.

Um aspecto importante do documento diz respeito aos impostos. Informam que estão

sendo cobrados conforme as leis do Império, destacam como principais o fabrico da erva-

mate e do fumo em corda, porém ressaltam que o imposto causa dificuldades aos

“industriais”. Saliente-se que Evaristo era um dos principais ervateiros da região, mantendo

em Erval Seco um grande engenho de erva-mate. Sugerem a cobrança de outros impostos,

como pedágio nas pontes, casas de jogos, teatros, bailantas, impostos sobre veículos e sobre a

terra. Como veremos mais adiante, a cobrança de impostos e multas presumíveis contribuiu

para deflagrar o clima de instabilidade e desavenças que vão surgir no município durante este

governo.

Pouco tempo depois, em 20 de julho de 1890, a junta envia ao governo do estado uma

extensa correspondência referindo-se a conflitos e tensões na questão de terras, que, como já

vimos anteriormente, se constitui num ponto muito sensível de atritos na região. Destacam,

primeiramente, que o município possui extensas áreas de terras nacionais e devolutas, assim

como ressaltam as excelentes condições do solo que foi favorecido pela boa distribuição das

águas, pois cinco rios atravessam a área, sendo os mesmos margeados por matas. Voltam

suas críticas à população:

A população do Município porem suppõe que as terras nacionaes são logradouros públicos, e todas (...) invadem as terras nacionaes, derrubão e queimão as mattas, estragando até os hervais

219 Correspondência da Junta Municipal de Santo Antônio da Palmeira, assinado por Evaristo T. do Amaral, Fernando Westphalen, Guilherme Fetter. 04/06/1890. M. 353, Cx.190. AHRS.220 Idem. p. 3.

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nacionaes, que é uma fonte de receita para a pobreza. Assim constituem o que elles chamão posse por um ou dois annos para depois venderem a outros, e irem adiante na serra fazer outra pósse para o mesmo fim.Estes factos se tem dado com mais frequencia a dez annos a esta parte, e actualmente não respeitão nem a propriedade particular, invadindo as posses legitimadas, devastando os mattos de diversos proprietarios, que constantemente reclamão providencias.A Lei de Terras de 1850 e seo regulamento de 1854 nunca foi executada n’este municipio.221

(grifo nosso).

Fazem referência a alguns invasores que se apossam de áreas, permanecendo nelas por

alguns anos e depois vendem-nas, apossando-se novamente de outras. As áreas ocupadas

localizam-se no lugar denominado Pary, Estiva e margens dos rios Uruguai, Fortaleza e

Várzea. Dizem já ter levado ao conhecimento do governo do estado, mas que, no entanto, não

foram tomadas providências. Assim, o Delegado de Polícia tem agido no sentido de obstar

tais procedimentos. Solicitam providências para cessar tais abusos e que sejam “processados

na forma da lei os delinqüentes”. 222

Chama atenção no documento a solução apontada, já que essa medida iria afetar

grande parte da pobreza, solicitam autorização para “medir e demarcar as extintas aldeias de

índios existentes n’este município a fim de aforar aos particulares”. Apoiam-se, para tanto, na

lei nº 3348 de 20 de outubro de 1887. Quanto às terras indígenas informam:

Vários aldeamentos d’indios, e d’estes há extinctos primeiramente o do Pary onde esteve aldeada toda a indiada com o Cacique Fongue, depois d ‘este o da Guaryta de onde essa indiada foi para o Aldeamento de Nonohay, e ultimamente existião tres aldeamentos de indios, o do Inhacorá, o da Estiva e Campina que ficarão reduzidos a dous – Campina e Inhacorá, ficando extinto o da Estiva. Esta Camara pede permissão para medir o antigo aldeamento do Pary, ou da Estiva. 223

Como se depreende dos documentos, a apropriação de terras e as respectivas medidas

adotadas pelas autoridades locais, associadas às estruturas de poder e dominação vigentes,

contribuem para o encaminhamento de situações conflituosas. A atuação de Evaristo colabora,

ainda mais, para o acirramento da violência. A aplicação de multas, sob a alegação de burla

fiscal, levou um dos atingidos Antonio Maria da Rocha Tico, inconformado, a invadir a Vila

da Palmeira em fevereiro de 1892 “à procura de Evaristo e seus sequazes que, avisados a

tempo imigraram para Misiones, Argentina”. 224 Escobar registra a cobrança das multas

abusivas que teriam provocado a reação de Rocha Tico. O fato é comentado por Evaristo

221 Documentos da Junta Municipal de Palmeira- 20/07/1890. M. 353, Cx. 190. AHRS.222 Documentos da Junta Municipal de Santo Antônio da Palmeira – 20/07/1890. M. 353, Cx. 190. AHRS.223 Idem .224SOARES, Mozart Pereira. Op. cit. p. 180. Há poucos registros sobre o fato e, menos ainda, sobre o personagem. Não foi possível estabelecer se existiu algum parentesco com Leonel Maria da Rocha, que aparece no cenário das disputas durante a Revolução Federalista.

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Teixeira do Amaral Filho no artigo transcrito na obra de Alcides Moura, apontando os

vínculos com Afonso Honório dos Santos e Ubaldino Machado. Isso leva a identificar a

emergência de um grupo de contestação ao poder dos coronéis castilhistas. Esse grupo unido

ao poder do mato vai estender sua ação por todo período da República Velha.

Evaristo ao retornar de seu exílio, continuou a exercer seu papel de autoridade

regional225 e, pelo que indicam os fatos que se seguiram, passou a agir com maior rigor contra

os adversários políticos. Soares registra com base em depoimentos de contemporâneos, que

não procedia de forma vingativa, embora tivesse oportunidades para tal. No entanto, o mesmo

autor afirma não ser “aceitável que se comportasse indiferentemente em relação aos fatos

ocorridos e teria adotado ações políticas que explicam seu assassinato em 27/10/1892”.226 Os

fatos que se seguiram demonstram um clima de tensão, cada vez mais acentuado, sendo difícil

acreditar que adotasse medidas conciliatórias. A bibliografia da época apresenta registros

extremados de acordo com a facção a qual pertenciam. Entre os federalistas, como já foi

citado, destacam-se Wenceslau Escobar e Prestes Guimarães, que fazem relatos dos abusos

cometidos pelos republicanos, destacando, sobretudo, as medidas repressivas adotadas após o

assassinato de Evaristo e tais procedimentos teriam alimentado os ódios que se revelam na

Revolução de 1893.

Os republicanos manifestavam-se através do órgão oficial do partido “A Federação”,

fazem acusações e criam versões para a violência policial que se seguiu, especialmente, na

região e na capital. A obra de Euclydes B. de Moura apresenta a versão dos republicanos, com

referências freqüentes ao jornal do PRR, fazendo violentas críticas à oposição.

De acordo com Prestes Guimarães, chefe federalista, as arbitrariedades corriam soltas

e “na Palmeira, Evaristo Amaral, confiscava tropas de bestas de seus adversários ausentes e

extorquia dos oprimidos indefesos contos e contos de réis a título de indenizações”. 227

Durante o período de Vitorino Monteiro se desencadearam os ódios devido às

inúmeras arbitrariedades e atentados contra a vida e a liberdade. Em todo o estado, os líderes

federalistas são feitos prisioneiros. Em Palmeira, figuram Padre Bernardo Brandão, Afonso

Honório, Luiz Moreira, ex-delegado Belmonte, entre outros228.

Segundo alguns autores, o assassinato de Evaristo T. do Amaral marca o início da

Revolução de 1893 na região, motivada pela represália e atos de vingança. A morte do líder

225No período inicial da República, Evaristo T. do Amaral exercia as funções de chefe político, Chefe de Polícia e Intendente Municipal.226SOARES, Mozart Pereira. Op. cit. p. 181227 GUIMARÃES, Antônio Ferreira Prestes. Op. cit. p. 25.228 ESCOBAR, Wenceslau. Op. cit. p. 55.

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republicano é registrada de forma contraditória nas obras que se referem ao período, de

acordo com a posição ideológica dos autores. Escobar registra em sua obra que “este coronel

(Evaristo) extorquiu a vários fazendeiros serranos, a título de indenização e de multa, alguns

contos de réis. A odiosidade que lhe valeu este reprovado procedimento foi, certamente, a

causa real de sua morte”. 229 Destaca, em Palmeira, alguns dos federalistas que foram atingidos

pelas multas, entre eles:

O tenente-coronel José Ribeiro de Sampaio foi multado em 3:000$000; Antonio Maria da Rocha Tico 2:000$000; Carlos Arbo e João Amado em 1:000$000 cada um. Este chefe(Evaristo) , favorecido pelo servilismo e parcialidade de juízes leigos e ignorantes, a pretexto de perdas e danos oriundos da tentativa revolucionária de fevereiro, por ele mesmo e seus parciais levada a efeito, fez constar a propositura de uma ação contra o tenente-coronelUbaldino Demétrio, reclamando indenização de 54:000$000! Como medida securatória, para pagamento desta indenização, embargou, ou melhor, proibiu a venda de mulas de umainvernada do referido tenente-coronel, então emigrado. Tal era a consciência destes prejuízos, que, por acordo amigável, fê-los por 13:000$000, recebendo sete de corpo presente!...(grifo nosso)230

Essas atitudes teriam contribuído para que “quando tentava extorquir dinheiro do

fazendeiro Gaspar José Fagundes, no Rincão do Cadeado, próximo à Cruz Alta, o coronel

Evaristo fosse morto brutalmente por quinze homens que, num ato de extremo banditismo, o

degolaram, castraram e ainda deceparam suas mãos e pés”. 231

A repercussão do assassinato se fez sentir em todas as esferas republicanas influindo

no desenrolar dos acontecimentos que levaram à Revolução de 1893, juntamente com outro

fato que foi a apreensão de cartas sigilosas enviadas por Facundo Tavares, irmão de Joca

Tavares, a dois ou três cidadãos filiados ao partido federalista. As cartas deixavam clara a

intenção de deflagrar o movimento revolucionário. A Felipe Portinho informava que

projetavam “reagir contra este governo, que tantos males tem acarretado ao nosso desgraçado

Estado. (...) de acordo com meu irmão general Silva Tavares estamos nos preparando para a

luta”.232

As cartas forneceram ao governo o motivo para determinar a prisão de todos os chefes

federalistas, matando-os se resistissem, dando lugar a que se desencadeasse uma série de

229 ESCOBAR, Wenceslau. Op. cit. p. 68-69. O autor cita uma vasta lista de federalistas que foram prejudicados pela cobrança de supostas multas em toda região, como uma prática do governo republicano, especialmente, no período de Vitorino Monteiro e que seguiu sendo realizada no segundo governo de Fernando Abbot. Tambémaconteciam saques a comerciantes, destacando-se em Palmeira: Romualdo Ervité e Antônio Correia. p. 60.230 ESCOBAR, Wenceslau. Op. cit. p. 60-61.231 CAVALARI, Rossano Viero. O ninho dos Pica-paus: Cruz Alta na Revolução Federalista de 1893. Porto Alegre: Martins Livreiro, 2001. p. 56232 ESCOBAR, Wenceslau. Op. cit. p. 70 a 72. As cartas estão transcritas na íntegra e, segundo nota do autor, Facundo agia por conta própria sem o conhecimento do irmão ou do líder federalista Gaspar Silveira Martins.

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violências praticadas pelas autoridades. Tais atos mobilizaram a oposição, conduzindo o

estado a mais sangrenta e cruel dentre as lutas que se desenrolaram no estado.

Euclides Moura, como republicano, apresenta a visão dos fatos sob a ótica do seu

partido. Reproduz artigos de Evaristo Teixeira do Amaral Júnior, então deputado estadual,

publicados em “A Federação”, que acusavam os federalistas por toda violência praticada: “me

dirijo unicamente aos Affonsos, Ubaldinos233 e quejandos que se intitulam chefes”. Afirma

que o município de Palmeira gozava de “pleníssima paz” durante o governo de seu pai. “Eram

respeitados todos os direitos, garantidos todos os cidadãos. Os criminosos e ladrões

perseguidos iam emigrando e há quase dois anos não havia um processo criminal no foro de

Palmeira”. 234 É possível vislumbrar, no discurso, o tipo de justiça que era praticada. Esse

enunciado acaba sendo uma forma de acusação mais forte do que as palavras dos adversários,

pois mostra que não havia processos criminais, embora ocorressem vários crimes, porque a

justiça era feita de outra maneira, ou seja, de acordo com o poder do mais forte. Afirma que

“os adversários não tendo a coragem para a luta frente a frente, não lhe opunham a mínima

resistência e declaravam-se hipocritamente satisfeitos”.235 Essas declarações referiam-se ao

atentado sofrido pela família em fevereiro de 1892, sendo a carta datada de 29 de fevereiro de

1892. A publicação da mesma no jornal ocorre em data posterior, não constando no livro.

Uma nota de rodapé informa que na época da publicação ocorre o assassinato de Evaristo T.

do Amaral. 236

Como se pode deduzir da repercussão do crime no estado e, especialmente entre os

republicanos, a violência dos fatos deve ter contribuído para acirrar mais os ânimos,

motivando a reação de pegar em armas. As medidas que se seguiram por parte das autoridades

para caçar os culpados foram ainda mais surpreendentes. Em Porto Alegre, ocorreram prisões,

realizadas de forma arbitrária, outros foram mortos, como possíveis envolvidos na

conspiração.

A represália ao assassinato de Evaristo foi comandada, na região, por José Evaristo do

Amaral, filho da vítima, que, magoado pela dureza do golpe, agiu com extrema brutalidade.

Foi- lhe entregue uma escolta e, chegando a Cruz Alta, “encontrou poderoso e eficaz auxílio

233 Referia-se a Afonso Honório dos Santos e Ubaldino Machado, líderes federalistas em Palmeira das Missões.234 MOURA, Euclydes B. de. O vandalismo no Rio Grande do Sul: antecedentes da revolução de 1893. Porto Alegre: Martins Livreiro, 2000. p. 156235 MOURA, Euclydes Moura. Op. cit. p. 157.236 Trata-se de uma longa acusação, sob o título Os caudilhos da Palmeira apresentando a narrativa dos fatos ocorridos em fevereiro de acordo com a visão republicana. Ao que se depreende da nota, seria publicada em outubro , data em que ocorre o assassinato de Evaristo. Como os jornais A Federação desse período estão indisponíveis, não foi possível verificar a data exata da publicação, que não é referida pelo autor.

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por parte do chefe local José Gabriel da Silva Lima, que não teve, sequer, uma palavra de

moderação, antes estimulou aquele espírito desvairado”. 237

Escobar publica uma lista com o nome de 134 pessoas assassinadas barbaramente até

outubro de 1892.238 Não havia julgamentos para não descontentar os chefes locais. O número

de mortos é impossível precisar, mas podem ter chegado próximo de uma centena. Até

mesmo o jornal “A Federação” cita uma relação de cidadãos que “teriam sido mortos, uns em

ato de resistência, outros por suicídio”239. A maior parte dessas vítimas eram pequenos

lavradores do Cadeado, humildes trabalhadores, obscuros peões de estância, que sob a mais

leve suspeita de terem direta ou indiretamente auxiliado o assassinato do coronel Evaristo

eram imediatamente presos e depois retirados da cadeia, desaparecendo para sempre.240

Castúlio Amaral, na biografia do avô, registra a repressão que se instalou da seguinte forma:

José Evaristo, seu filho mais velho, reúne gente, organiza tropa e, secundado pelo bravo Coronel Firmino de Paula, lança-se à caça dos assassinos de seu pai, só escapando aqueles que, mais avisados, conseguiram atravessar o rio Uruguay, internando-se na Argentina e Paraguai, de onde nunca mais voltaram, pois todos os outros, caçados um a um, foram sumariamente justiçados.241

Como se verifica nas obras publicadas por contemporâneos dos fatos, o assassinato do

chefe político Evaristo Teixeira do Amaral contribuiu para a exacerbação dos ódios. As

análises posteriores também deixam claro que o clima de tensão e violência esteve vivo em

todo período que separa a data do crime até a eclosão da Revolução de 1893. Loiva Otero

Félix ressalta que “a luta entre castilhistas e maragatos tomou ali (Palmeira das Missões) um

caráter mais intenso, mais violento do que no restante do estado, razão pela qual nunca foi

pacificado, apresentando uma polarização política constante”. 242

As lutas foram particularmente intensas, visto que os papéis nas disputas pelo poder

local ainda não estavam claramente definidos. De acordo com Félix, o período de 1889 a 1904

é caracterizado “por dissensões dentro do PRR, devido a disputas internas entre coronéis e

oposições maragatas”. 243

No breve período em que os federalistas estiveram no poder, ocorreram fatos brutais e

Palmeira das Missões também registra atos que marcam o imaginário de violência. Um dos

237 ESCOBAR, Wenceslau. Op. cit. p. 83. As declarações de Escobar foram contestadas judicialmente pela família de Evaristo, conforme consta da biografia organizada pelo neto Castúlio Amaral.238 Idem. p. 85-89.239 Essas denúncias constam da obra de Escobar e retomada por outros autores que o tomam como referência.240 Sobre o assunto ver ESCOBAR, Wenceslau. Op. cit. e CAVALARI Rossano V. Op. cit.241 Biografia de Evaristo T. Do Amaral. Out./1964. p. 13.242 FÉLIX, Loiva Otero. Op. cit. p. 116. 243 Idem. p. 117.

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acontecimentos mais terríveis que antecederam o episódio ocorreu com o republicano

Domingos Mancha, durante o período denominado por Castilhos de governicho. O capitão

Domingos Mancha 244 foi supliciado, sendo antes forçado a ver as cinco filhas serem

violentadas. “Segundo A Federação ‘bandidos federalistas’ entraram na casa do velho e

amarraram-no forçando-o a olhar suas cinco filhas serem violentadas; Mancha, então foi

castrado e, depois de esfaqueado e lanceado, recebeu o golpe de misericórdia em estilo

gaúcho: sua garganta foi cortada de uma orelha a outra”. 245

Escobar narra fato semelhante em Passo Fundo, realizado pelos republicanos contra o

septuagenário Francisco Xavier da Costa que “espancado e posto em quatro estacas, passou

pelo acerbo desgosto, requintado pela maldade de uma crueza feroz, de presenciar a violação

de suas filhas e noras”. 246

Constata-se, assim, que a violência não era uma especificidade de Palmeira, pois é

registrada também em grande número em Cruz Alta, Soledade e Passo Fundo, onde os saques

alimentavam a cobiça dos que comandavam e as atrocidades eram cometidas com freqüência

inusitada. Prestes Guimarães afirma que Passo Fundo, Soledade e Palmeira estavam fora da

lei no segundo semestre de 1892 e primeiro semestre de 1893247. Daí a adesão imediata ao

movimento.

3.2. A violência exteriorizada na Revolução.

A administração do município, durante o período da Revolução Federalista, passou a

ser exercida por Fernando Westphalen. Enfrenta as dificuldades próprias de momentos de

lutas armadas, voltando a administração para a manutenção da ordem.

Às vésperas da revolução, era líder político federalista, em Palmeira, o coronel

Ubaldino Machado248 que reuniu mais de 600 homens, destacando-se nas lutas na região. O

244 O registro desse fato aparece de forma semelhante em outros autores que se ocupam do tema sem outros dados, para ampliar o significado do fato. Na obra de Moura, temos indicações, na exposição de Evaristo do Amaral Filho, de que Domingos Ferreira seria o mesmo Domingos Mancha. p. 162.245 LOVE, Joseph. Op. cit. p. 55.246 ESCOBAR, Wenceslau. Op. cit. p. 62.247 GUIMARÃES, Prestes. Op. cit. p. 21 a 23. Transcreve extensa lista de vítimas de prisões arbitrárias e extorsões.248 SOARES, Mozart Pereira informa que Ubaldino era um daqueles ressentidos contra a destituição do poder trazida com a proclamação da República. Poucas são as fontes para uma melhor análise do período. O que se constata é que a proclamação da República não trouxe mudanças na estrutura de poder no município, visto que o mandatário e líder político era Evaristo T. do Amaral que aderiu à república às vésperas da proclamação, assegurando o controle dos mecanismos de poder.

Page 107: Caboclos, Ervateiros Coroneis

108

Visconde de Pelotas presumia que Júlio de Castilhos impediria as eleições, pois já tinham sido

adiadas anteriormente, além de apresentar outros problemas eleitorais relacionados com

exclusão de listas de votantes e fraudes. Por essa razão, em fins de junho de 1892, expediu

ordens no sentido de organizar a resistência 249.

Com o domínio do poder pelos republicanos, em Passo Fundo, Soledade e Palmeira,

ocorreram vários atentados. Em Soledade, foi maior o número de assassinatos e, em Palmeira,

os atentados contra a propriedade foram numerosos, entre eles, roubo de animais, saques,

além das disputas políticas acirradas. Prestes Guimarães apresenta uma lista de prisões

arbitrárias e extorsões ocorridas.

Ubaldino tinha regressado do Paraná e comandava uma coluna no município de

Palmeira. Juntou-se a Prestes Guimarães, que foi aclamado comandante das forças

revolucionárias serranas. Em Palmeira, havia ficado a tropa sob o comando de Manoel

Fagundes e Marcelino Bueno Galvão. Foram obrigados a retirar-se da Vila, seguindo o rumo

da “Fortaleza”, em virtude da chegada de uma força legalista vinda de Cruz Alta. Marcelino, à

frente de uma piquete, atacou a força legalista, sendo morto na ocasião.250

Em fins de março de 1894, Prestes Guimarães despacha “em missão reservada, ao

estado Paraná ao então Major Leonel Maria da Rocha – bravo e distinto rio-grandense – filho

de Taquari”251. Temos aqui o primeiro registro da participação daquele que vai se destacar nas

lutas regionais até o início do período de Vargas. Tal missão, como se constata em outros

registros, era manter contato com Gumercindo Saraiva, o grande líder dos maragatos. O

próprio Prestes Guimarães relata que, em junho, “soube pelo major Leonel Maria da Rocha,

que fora em comissão ao Paraná, desempenhando-a cabalmente, do regresso iminente do

legendário Gumercindo Saraiva e foi esperá- lo na fazenda do finado Capitão Joaquim

Fagundes dos Reis. A igual distância da cidade de Passo Fundo e da entrada do Mato

Castelhano”. 252 Escobar também refere-se ao fato e informa ainda que Prestes enviou o

mesmo major Leonel para levar- lhe recursos e prestar algum auxílio, enquanto ele “ansioso,

aguardava o valoroso caudilho”. 253

249 GUIMARÃES, Prestes. Op. cit. p. 15. Prestes Guimarães relata esses fatos e atribui a Cruz Alta umaexpressão bastante usada entre os federalistas de terra autoritária e ninho de pica-paus. p. 43250 Idem. p. 42.251 GUIMARÃES, Prestes. Op. cit. p. 44.252 Idem. 50.253 ESCOBAR, Wenceslau. Op. cit. p. 248

Page 108: Caboclos, Ervateiros Coroneis

109

3.2.1. A chacina do Boi Preto

Um dos mais trágicos episódios da Revolução Federalista ocorreu no território de

Palmeira das Missões. A barbárie deixou marcas que foram relatadas pelos sobreviventes e

que permanecem na memória coletiva. Um dos entrevistados que morou no Capão da

Mortandade relata passagens da infância e rememora os acontecimentos contados pelos pais e

situações que vivenciou. “Ali houve aquela mortandade... e eu muitas vezes achei ossos ali...

Tinha um trilho que nós usava no mato e eu não ía sozinho. Eu tinha uma irmã e nós íamos

correndo... Prá nós parecia que tinha uma coisa atrás...” O pai e a mãe contavam a história

dos mortos no Boi Preto. “Foi de duzentos prá mais... os mortos... Contavam que o

comandante vendeu a tropa...Passaram a noite de festa... churrasco... Disseram que não

precisava de sentinelas, por isso que eles desconfiam... De madrugada, os ordenanças

encilharam os cavalos... os que tinham cargos mais elevados ainda fizeram um alerta...”254 A

idéia de que Ubaldino teria traído a tropa ressurge, freqüentemente, na memória coletiva. Os

que ocupavam melhor posição já tinham se retirado e não foram tomadas precauções,

mantendo sentinelas. Além disso, Ubaldino foi avisado por um bilhete de Prestes Guimarães

que Firmino Paula atacaria. A idéia mais aceita parece ser de que Ubaldino Machado foi, no

mínimo, displicente com a tropa.

Mozart Pereira Soares registra o fato, enriquecendo-o com o relato de descendentes

dos que sobreviveram e que tiveram uma proximidade maior do acontecimento. As obras que

tratam da Revolução de 1893 fazem referência ao fato, com pequenos aspectos discordantes,

entre eles, a imprecisão do número de mortos e data exata em que ocorreu. Soares refere o

fato como tendo ocorrido na noite de quatro para cinco de abril de 1894, Prestes Guimarães

registra a data de oito ou nove do mesmo mês, quando a tropa de Ubaldino, acampada no

local hoje denominado Capão da Mortandade, acerca de dez quilômetros do povoado de Boi

Preto, no distrito de Chapada, foi surpreendida por Firmino Paula.

Corria a notícia de que a paz seria assinada e talvez por essa razão não tivesse havido,

por parte dos maragatos, a guarda necessária, precavendo-se de possível ataque. Ubaldino fora

avisado por uma nota escrita por Prestes Guimarães, mas não deu a devida atenção ao aviso.

Muitos oficiais deixaram o acampamento em visita às famílias e os demais divertiam-se com

mulheres trazidas de Palmeira.

A tropa de Firmino Paula atacou por volta das três da manhã, estando o acampamento

totalmente sitiado. Soares registra o relato de um contemporâneo dos fatos

254 Entrevista de Vazulmiro Martins à autora, em 23/10/2001.

Page 109: Caboclos, Ervateiros Coroneis

110

Ante a horrenda confusão que se estabeleceu, enquanto alguns caiam mortos ou feridos, outros procuravam escapar subindo em árvores , outros ainda fugiam semi ocultos pelo mato e depois pelo banhado de caraguatás abaixo do acampamento, enquanto mulheres gritavam e os animais disparavam assustados. Ao clarear do dia, um dos sitiados aproximou-se da beira do capão e agitou uma bandeira branca. O fogo então cessou. Os revolucionários foram sendo tirados em pequenos grupos de dentro do mato e levados à presença do General. Este fazia uma rápida triagem dos prisioneiros, antes de passá-los pelas armas. 255

A triagem consistia em perguntar a alguns, melhor trajados, se não queriam servir nas

tropas republicanas. Alguns se negavam, outros diziam até ser republicanos e que estavam

entre os maragatos, porque tinham sido presos. Firmino, após o massacre, telegrafou a Júlio

de Castilhos comunicando “ter morto 370 maragatos e aprisionado 3 carretas, 38 comblains,

222 lanças, munição, abundante armazenamento particular, além de quinhentos animais, parte

de sua propriedade”256.

Prestes Guimarães registra também que, por felicidade, não se encontravam no local

parte dos oficiais revolucionários e suas colunas. Afirma que alguns morreram lutando, mas

“caíram prisioneiros 200 e tantos revolucionários, os quais, exceção de uns 50 dos mais

moços, foram todos paulatinamente degolados em lotes de 10 a 20, de distância em distância,

e deixando aos montões, insepultos, a beira do caminho”257. Os corpos deveriam ficar

expostos para servir de exemplo.

Ângelo Dourado, na marcha rumo à Colônia Militar do Alto Uruguai, registra na

passagem por Palmeira: “vimos o que bem indica a que ponto chegou a ferocidade n’essa

gente dos Srs. Castilhos e José Gabriel: um monte de ossos humanos. Foram de pobres

homens que se escondiam no Capão do Boi Preto. (...) reuniram os ossos, naturalmente como

monumento da Ordem e Progresso, que escreveram como uma pungente ironia na bandeira

que impuseram ao Brasil.”258 Dourado, dentre as muitas e magoadas críticas que faz, registra

uma carta que apreenderam dirigida a Firmino Paula e assinada por um dos heroes que

assistira a matança do Boi Preto, na qual “mostrava qual o fim do patriotismo d’elles, dizia:

Dou-lhe os parabéns, nas invernadas já ha muitas mil mulas”. 259

Vários registros atestam que os prisioneiros não foram todos mortos no mesmo local e

sacrificados em grupos, ficando insepultos pelos campos, à beira da estrada da Palmeirinha,

por onde Firmino seguiu, de Boi Preto para Cruz Alta. A maioria dos autores registra que os

maragatos foram degolados, o que era uma prática comum neste período, porém, Soares

255 SOARES, Mozart P. Op. cit. p. 183.256 Idem. p. 184. O autor informa que, na passagem pela fazenda das Brancas, de propriedade de Firmino Paula, Ubaldino arrebanhou gado e cavalhada, que Firmino toma de volta depois do massacre do Boi Preto.257 GUIMARÃES, Prestes A. Op. cit. p. 46258 DOURADO, Ângelo. Op cit. p. 287.259 Idem. p. 287.

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111

insiste que, de acordo com os sobreviventes, os prisioneiros eram fuzilados depois de

amarrados. “A degola, quando acontecia, se destinava apenas aos que não morriam em pouco

tempo, em conseqüência do tiro”. Sérgio da Costa Franco também registra que, em 10 de

abril, o grosso da coluna rebelde de Ubaldino foi “virtualmente exterminada através de

sumário fuzilamento”. 260

É difícil a aceitação de tal versão, considerando ser a degola praticada como medida de

economia para poupar munição, que era escassa. Conforme Joseph Love “a degola era rápida,

silenciosa e barata”. 261

A revolução caminhava para o seu fim. Na região da Campanha, os revolucionários

sofreram inúmeros reveses. Poucos dias após a morte de Gumercindo Saraiva, ainda em

agosto de 1894, a coluna Serrana de Prestes Guimarães e a Missioneira de Dinarte Barcellos

separaram-se. Uns regressaram a Soledade e muitos oficiais emigraram para a Argentina.

Viviam um momento difícil. O comandante dos revolucionários de Cima da Serra relata a

comovente despedida dos que retornavam ao lar, sem recursos e dos que iam asilar-se em

terra estranha, também sem recursos.262

A morte de Gumercindo significou para os revolucionários um duro golpe e o

desânimo tomou conta. Ângelo Dourado relata que, após a passagem por Cruz Alta,

buscavam o rumo da Colônia Alto Uruguai, optando pelo caminho que passava por Palmeira.

Os revolucionários viviam um momento crítico: “o fim de nossa marcha, buscando um ponto

onde nada temos que fazer”. 263 Depois de inúmeras dificuldades chegaram à Colônia Militar

do Alto Uruguai que foi tomada sem resistência, pois a maioria dos habitantes fugiram para o

mato. Descreve a miséria da Colônia e as dificuldades dos revolucionários para chegarem à

Argentina. “No dia 5 de setembro saímos do Brasil onde só pode viver quem tem armas para

lutar ou quem já se resignou a abdicar de si os predicados do homem livre”. 264

Em Palmeira, os revolucionários ainda tentam resistir, mantendo-se mobilizados até o

último momento da assinatura da paz. 265 Em meados de maio, Veríssimo transpôs o rio da

Várzea e com Pedro Bueno juntou-se a Leonel Rocha, “o heróico comandante dos

revolucionários da Palmeira”. Essa junção foi feita na “Fortaleza”, próximo à Vila de

Palmeira. As três forças unidas formaram um efetivo de 900 combatentes, porém sem

260 FRANCO, Sérgio da Costa. A guerra civil de 1893. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1993. p.80261 LOVE, Joseph. Op. cit. p. 62.262 GUIMARÃES, Prestes. p. 55-56.263 DOURADO, Ângelo. Op. cit. p.287264 Idem. p. 294.265 Em 23 de agosto de 1895, lavra-se em Pelotas a ata final da pacificação do Rio Grande do Sul, depois de fixadas pelo governo federal as condições aceitáveis, dentre as que eram exigidas por Joca Tavares. Entre elas, a anistia aos rebeldes. Ver FRANCO, Sérgio da Costa. Op. cit. p. 89.

Page 111: Caboclos, Ervateiros Coroneis

112

munição. Em Campo Novo, conseguiram algum recurso e, em 9 de junho, sitiaram Palmeira,

contando submeter pela fome os legalistas, que tinham uma guarnição de cerca de 200

homens. No entanto, uma força vinda de Cruz Alta obrigou os maragatos a recuar, acampando

a 12 quilômetros da vila, no caminho da Fortaleza, onde permaneceram até a assinatura da

paz.266

Os revolucionários chegaram ao final do conflito sem terem conquistado os objetivos

da luta que eram a deposição de Castilhos e dos republicanos do poder, bem como a alteração

da Constituição de 14 de julho. O governo federal passou a intervir no movimento da

pacificação, devido às perdas econômicas e financeiras que a manutenção do conflito

representava. “A discussão pela imprensa e no Congresso da concessão da anistia aos

envolvidos em revoltas levava a juntar numa só questão anistia e a pacificação”. 267 Não cabe

aqui uma maior análise das condições de paz estabelecidas, mas a anistia restrita concedida

foi criticada pela imprensa da oposição.

Mesmo feita a paz, Prestes Guimarães, no final de sua obra, manifestava desconfiança.

“Será uma brilhante realidade a paz pactuada a 23 de agosto?” 268 Os acontecimentos que se

sucederam mostraram que a dúvida se confirmava. As marcas deixadas pela violência do

confronto fizeram ressurgir novos levantes, principalmente porque não ocorreram mudanças

na estrutura de poder, e, pior, os republicanos enfeixaram cada vez mais poderes, tanto em

nível estadual, como em nível municipal, obrigando os opositores ao exílio ou à resignação,

conforme veremos no próximo capítulo, na Região da Grande Palmeira.

3.3. Os caboclos vão à luta

Os relatos que vimos são, como já foi dito, a visão de participantes diretos dos

confrontos. São a expressão de sentimentos, a expressão do vivido, da forma como foi

assimilada, funcionando quase como catarse, não estando, portanto, isenta de mitificação.

Conforme Passerini, “a história não pode se lançar contra o mito mas (...) deve historicizar o

mito e seu impacto: descobrir suas origens, estudar suas trajetórias, analisar os sinais de seu

fim”. O lugar do mito é evidente na perspectiva da história do imaginário, podendo-se

266 GUIMARÃES. Prestes. Op. cit. p. 59. Este é um dos poucos registros do cerco a Palmeira. Na verdade trata-se de uma tentativa desesperada, diante de uma situação que não oferecia alternativas.267 MEDEIROS, Laudelino T. A pacificação da Revolução de 1893. Porto Alegre: La Salle, 1995. p. 32268 GUIMARÃES, Prestes. Op. cit. p. 60

Page 112: Caboclos, Ervateiros Coroneis

113

também mostrar como diferentes tipos de mitos se relacionam com contextos sócio-culturais e

institucionais, estudando as mudanças “na fronteira entre o imaginário e o real”. Pode

evidenciar o conhecimento de como gerações de seres humanos têm contribuído para criar

nossas próprias noções de realidade o que forneceria a compreensão de nossa própria cultura e

a do passado.269

Dessa forma, o registro dos fatos, na perspectiva daqueles que participaram

diretamente dos mesmos, fornece informações que vão além da simples narrativa, mas

evidenciam sentimentos e conflitos que os documentos oficiais são incapazes de transmitir.

Mostram, sobretudo, o pensamento dominante, as construções ideológicas que motivaram

para a luta. Não podemos esquecer, nesse caso, o mito no regionalismo gaúcho, que plasmou

a figura do gaúcho forte, destemido, altaneiro, que “não foge à luta”, que enfrenta de peito

aberto as vicissitudes.

A historiografia tem buscado analisar as lutas dentro de perspectivas que contemplem

uma visão mais abrangente, buscando entendê- las dentro do contexto da formação das

estruturas socioeconômicas e das relações de poder local, regional e estadual. Essas obras

têm, de modo geral, atribuído peso significativo à formação de dois blocos de poder

antagônicos, porém, ambos pertencentes à classe dominante: latifundiários da Campanha, em

oposição ao grupo que empolgou o poder, vinculados aos grandes proprietários do Planalto. O

ideário positivista, que inspirou a ação dos republicanos, e interpretado pelo

castilhismo/borgismo conforme as conveniências, serviu, em muitos momentos, como

justificativa para o enfrentamento. Por fim, e não menos importante, emergem as questões

econômicas, relacionadas tanto com as mudanças estruturais no momento específico, vivido

pelo capitalismo, como com as medidas adotadas pelo governo e que afetam diretamente os

interesses dos segmentos envolvidos.

A seqüência de fatos narrados, anteriormente, nas obras de alguns personagens que

participaram dos mesmos, assume, em geral, a perspectiva de lutas motivadas pelo anseio de

liberdade contra um governo opressor, na busca dos ideais de justiça. É compreensível, pois,

que os discursos que estimulavam para o combate sejam impregnados de expressões

construtoras de valores mitificados nos heróis e os adversários sejam apontados com atributos

negativos. Joca Tavares, conclamando para a luta contra a administração do estado, assim se

referia: “Os inimigos da Pátria arvorados em governo legal implantaram nela o terror como

269 PASSERINI, Luiza. Mitobigrafia em história oral. Projeto História. São Paulo: v.10, dez/1993, p. 32.

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114

meio de ação. (...) O Rio Grande, pátria de heróis, está convertido em terra de escravos, com

os pulsos algemados e a boca amordaçada...”270

Se havia motivações de ordem ideológica, por outro lado há consenso de que fatores

de outra ordem influíram na explosão do conflito. Sérgio da Costa Franco destaca que:

(...) segundo as justificativas da cúpula insurgente e as representações mentais dos lutadores rebeldes, a insurreição era uma luta pela liberdade contra a opressão castilhista, pelosprincípios liberais contra o autoritarismo da Constituição de 14 de julho. Mas seria umprimarismo acolher tais conceitos na exegese histórica da Guerra Civil”.271

Nesse estudo, interessa-nos desvelar as razões da intensa participação de Palmeira nos

confrontos, onde as facções locais eram social e economicamente distintas. Como vimos

anteriormente, desde a formação do município, as rivalidades e o confronto foram marcas

sempre presentes. Com a implantação da República, as disputas pelo controle do poder local

foram intensas, dando origem a episódios brutais de parte a parte. Nessa disputa pelo controle

político, enfrentavam-se grupos pertencentes à elite econômica, constituída pelos coronéis-

latifundiários, apoiados, uns e outros, por segmentos oriundos das classes intermediárias:

comerciantes e profissionais liberais.

É no contexto das lutas do início da República que emerge o poder do mato,

constituído por pequenos proprietários, coletores de erva-mate, posseiros, meeiros, enfim,

uma população cabocla com um modo de vida próprio, baseado no cultivo de pequenos

roçados e na extração da erva-mate nativa. Como já foi mostrado, essa população vai

engrossar as fileiras da oposição federalista, comandados pelo líder maragato Leonel Rocha.

Nos capítulos I e II, situamos a questão da terra com a devida importância, procurando

mostrar a relevância que a ocupação do solo adquiriu no estabelecimento das relações de

poder local. As questões fundiárias, que vinham se acumulando desde a Lei de Terras de

1850, adquiriram, no início da República, novos enfoques gerados pela legislação federal e

estadual. Sintetizando, podemos destacar: a implementação do registro e transmissão de

propriedade pelo sistema Torrens, colocando na ilegalidade as propriedades que não fossem

medidas nos prazos estabelecidos; as fraudes e usurpações que eram constantes na

regularização das terras; a política de colonização que promoveu um avanço sobre as terras

públicas, reduzindo o espaço da economia de cooperação cabocla; o comércio das terras

270Proclamação de Joca Tavares na Campanha. Apud. FRANCO, Sérgio da Costa. Júlio de Castilhos e sua

época. 4ª Ed., Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS. p. 133271 FRANCO, Sérgio da Costa. Op. cit. p. 134.

Page 114: Caboclos, Ervateiros Coroneis

115

através das companhias de colonização que dificultou ainda mais a regularização ou mesmo

aquisição pelos nacionais, enfim, toda série de medidas que contribuíram para a expropriação

das terras dos caboclos.

Todos esses fatores demonstram que a desestruturação do modo de vida das

populações da área da mata se manifesta na resistência cabocla ao poder constituído,

representado em nível local pelos coronéis que detinham, além do poder econômico, o

controle dos cargos e funções públicas. Daí a intensa participação, na Revolução de 1893, dos

caboclos da área denominada Fortaleza, que correspondia ao limite entre o campo e a mata,

onde hoje se localizam os municípios de Seberi, Boa Vista das Missões e Jaboticaba.

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CAPÍTULO IV

O PODER DO MATO : REPRESENTAÇÃO E IMAGINÁRIO

Pretende-se, no presente capítulo, a reconstituição da história das formas de luta do

poder do mato, incluindo mobilização, apoios e motivações, ocorridas dentro de um contexto

adverso, perseguindo esse objetivo através da trajetória do líder maragato Leonel Rocha, que

representava, na região, as aspirações da população cabocla.

4.1. Leonel Rocha – “o caudilho a pé”272

A reconstituição da trajetória do líder dos maragatos encontra a dificuldade própria das

situações em que se depara o historiador que busca o conhecimento da “história dos

vencidos”. A escassez das fontes, devido à busca do apagamento da memória por parte

daqueles que detinham o poder, e o fato de envolver a ação de grupos pouco afeitos ao uso da

escrita, demandam a necessidade da garimpagem de informações em múltiplas fontes e, a

partir delas, proceder o ordenamento, a montagem possível e as conclusões resultantes das

análises feitas. Os depoimentos orais adquirem importância, embora a distância temporal

torne as informações imprecisas, restando, sim, o levantamento das construções do imaginário

social, como importante fonte para entender como uma determinada sociedade viveu e se

constituiu num determinado momento. Assim, utilizando obras que fazem alguma referência

ao personagem, registros em processos judiciais, em jornais, correspondências oficiais e

particulares e as manifestações do imaginário, procurou-se compor um retrato da atuação de

Leonel Rocha, que liderou o movimento de resistência e luta ao poder constituído,

representado, na região, pelos coronéis republicanos, aliados e sustentáculo do

castilhismo/borgismo.

272 A expressão caudilho a pé, empregada por Mozart Pereira Soares, ao que parece, foi apropriada dacaracterização corrente e da memória popular . Teria sido usada, inicialmente, pelos adversários, com sentido pejorativo e mais tarde adquire valor positivo. O autor afirma, em entrevista de 26/05/2002, que usa a expressão como uma característica de distinção e por ser de uso corrente. Arthur Ferreira Filho refere-se ao caudilho

caipira, pelas características que o distinguem dos demais caudilhos, donos de terra e gado. Ver FERREIRA FILHO, Arthur. Op. cit. p. 117; SOARES, Pereira Soares. Op. cit. p. 251.

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117

Fonte: Álbum dos Bandoleiros. Revolução sul-riograndense: 1923. IHGRS.

Figura 3 – Foto de Leonel Rocha que possui lugar de destaque no Álbum dos

Bandoleiros.273

Dentre o material que conseguimos reunir, um texto adquire importância por trazer as

palavras do próprio personagem. Trata-se de um artigo organizado pelo Padre João Alberto

Hickmann, publicado na Revista Estudos, em 1955, sob o título Bom Retiro do Sul. O artigo

destaca, no início, os homens ilustres do município e dentre eles ressalta a figura do caudilho

273 A designação bandoleiros usada, inicialmente, pelos legalistas com o sentido depreciativo, próprio da palavra, foi, mais tarde, incorporada pelos federalistas com sentido de valoração positiva.

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118

revolucionário Leonel Maria da Rocha, sobre o qual versará o referido ensaio. O autor

informa na introdução que procura relatar notícias sobre as campanhas de Leonel Rocha como

“ele pessoalmente as referiu em cartas a pessoa amiga de sua terra natal”. Destaca que seu

trabalho foi somente de coordenador da matéria, “citando quase sempre ipsis verbis o que o

caudilho escreveu despreocupadamente. Tendo Leonel apenas cursado aula primária o leitor

não queira reparar no estilo e fraseado”.274

O nome da pessoa amiga não consta do texto e as buscas empreendidas para a

localização de um possível arquivo do Pe. Hickmann foram infrutíferas.275 Dessa forma

registramos aqui algumas informações prestadas pelo autor sobre os dados biográficos e

destacamos algumas das narrativas de Leonel Rocha que contribuem para a reconstituição da

trajetória do chefe maragato. Na maior parte do texto, a narrativa está na primeira pessoa, a

partir das cartas referidas, o próprio Leonel conta suas façanhas.

Leonel Maria da Rocha nasceu em 13 de outubro de 1865, no Faxinal Silva Jorge,

distrito de Bom Retiro do Sul, município de Taquari. Seu pai tinha participado da Revolução

Farroupilha o que teria exercido influência no rumo de sua vida, pelas histórias que lhe eram

contadas pelo mesmo. Com 23 anos, transferiu residência para Palmeira e, em 1893, filiou-se

ao Partido Federalista, iniciando sua trajetória revolucionária.

Quando explode o movimento de 1893, resolveu reunir sua tropa de gado e mudar-se

para o estado do Paraná, mas, às vésperas de seguir viagem, foi avisado de planos para

eliminá- lo, juntamente com outros companheiros políticos. Decidiu, então, participar

ativamente nas lutas, apresentando-se ao chefe revolucionário local: Coronel Ubaldino

Demétrio Machado. Não parou mais, esteve envolvido em todos os movimento armados que

ocorreram até 1932.

Em entrevista ao Correio do Povo, em 1944, Leonel Rocha confirma os motivos

iniciais que o levaram à luta armada:

Eu era um homem de recursos. Residia em Palmeira, onde possuía duas léguas de campo arrendadas. Tinha gado em quantidade: ovelhas, cavalos e outras criações. Sempre fui

274 HICKMANN, Pe. João Alberto. “Bom Retiro do Sul”. In. Revista Estudos. Revista de filosofia e cultura da Associação de Professores Católicos do RS, Colégio Anchieta, Porto Alegre, jan/mar. 1955. p. 79-91.275 Padre Hickmann faleceu na diocese de Santa Cruz do Sul, mas não foi possível localizar nenhum arquivo com documentação deixada por ele, nem mesmo havia cópia de seus trabalhos. Conforme consta sobre o autor, no texto em questão, “era um grande estudioso da História do Rio Grande do Sul. Modesto e simples, pouquíssimo tem publicado. Entretanto, vai colhendo aqui e ali subsídios para a História”. A localização das cartas poderia permitir outras análises. Chegamos a manter contato com algumas pessoas que o conheceram, mas desconheciam seus estudos históricos e existência de algum arquivo. Sérgio da Costa Franco, em artigopublicado no Correio do Povo de 03 de agosto de 1978, sob o título “O guerrilheiro Leonel Rocha” faz referências ao ensaio do Pe. Hickmann, o que reforça a convicção de ser este um dos raros textos excritos sobre o líder maragato.

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federalista. Não tinha intenção de me envolver em lutas fratricidas. Mas a isso fui levado por circunstâncias especiais, só o fazendo quando inimigos meus, conhecedores das minhas idéias, tentaram matar-me em diversas ocasiões. Várias vezes fui avisado por pessoas amigas do sinistro propósito. Foi por isso que tomei uma deliberação extrema: Entrei na carreira das armas, firmemente disposto a defender o ideal de Silveira Martins, que era o meu próprio ideal. E uma vez integrado no espírito revolucionário da época, mandei dizer aos meus adversários, que ia dar o que fazer a todos eles.276

No mesmo ano de 1893, após tomar parte num combate em Santo Ângelo, Prestes

Guimarães que viera da Argentina, nomeia-o Major e seu ajudante de ordens. Seguindo para

Palmeira, acampam no Boi Preto, onde a tropa permanece. De acordo com suas palavras “o

general Prestes Guimarães resolveu mandar-me para o Estado do Paraná para fazer ligação

com o General Gomercindo Saraiva, que estava em Ponta Grossa”. 277 Faz um relato breve

sobre a viagem a cavalo e sobre os lugares pelos quais passou, tendo sido levado de Restinga

Seca a Ponta Grossa de trem, onde se encontrou com Gumercindo. Aí aguardou o resultado da

investida da esquadra de Custódio de Melo em Rio Grande, na qual não lograram êxito.

Gumercindo manda-o de volta para informar Prestes Guimarães. Não tece nenhum

comentário mais elucidativo do encontro com o líder maragato.

A narrativa do retorno é uma demonstração das peripécias que enfrentou em seus

longos anos de luta, em condições adversas. Escreve que, em Palmas, foram surpreendidos

pelas forças inimigas, porém “escapei milagrosamente; deixei o cavalo encilhado com bons

arreios, roupas na mala e passei pelos matos já noite, cruzei o rio Caldeiras com água pela

cintura, caminhei muito sem saber onde andava (...) fiquei com as bombachas em pedaços (...)

Caminhei toda noite e no outro dia já encontrei gente da força do Gal. Gomercindo”. 278 Ficou

aguardando contato com o General e no terceiro dia avistou-se novamente com ele, que,

satisfeito com seu desempenho, o promoveu a Tenente Coronel.

No retorno ao Rio Grande do Sul, encontrou-se-se com Prestes Guimarães e entregou-

lhe a correspondência de Saraiva. Continuou fazendo a conexão com Gumercindo, que se

encontrava no Paraná. Vencendo inúmeras dificuldades conseguiu desincumbir-se de sua

tarefa.

A morte de Gumercindo é considerada por Leonel como o “maior fracasso da

revolução de 1893. Oito mil homens, - era este o efetivo do exército, - se debandaram tão

276 Reportagem do jornal Correio do Povo sob o título: “Um homem que viveu lutando. Fez seis revoluções, algumas no posto de general, e agora vive com os recursos de uma modesta aposentadoria – A vida caudilhesca de Leonel Rocha”. Sadi Rafael Saadi informa que entrevistou o velho caudilho no município de José Bonifácio, hoje Erechim. Provavelmente essa seja uma das suas últimas manifestações públicas, pois veio a falecer em 1947. Sua admiração por Gaspar Silveira Martins se manifesta no nome de um dos filhos: Silveira Martins daRocha. Correio do Povo de 09/05/1944. Porto Alegre. 277 HICKMANN, João. Op. cit. p. 81.278 Idem. p. 82

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somente por causa da morte do General Gomercindo. Os demais chefes revolucionários

perderam o tino e não se entenderam mais; foram emigrando para a Argentina. Eu voltei para

Palmeira, onde tinha compromisso.” 279 Na entrevista que presta ao Correio do Povo, em

1944, expõe uma versão sobre o enterro de Gumercindo, que difere da versão corrente.

“Ainda guardo com nitidez os detalhes do combate em que pereceu o bravo revolucionário

Gomercindo Saraiva”. Relata o combate no Capão do Carovi, entre as tropas federalistas,

comandadas pelo General Dinarte Dorneles, e as tropas legalistas, em que Gumercindo foi

mortalmente ferido. Seu irmão Aparício, empenhado nas lutas corpo a corpo, custou atender

ao chamado e Gumercindo faleceu pouco tempo depois. Segundo seu relato

O corpo foi colocado numa carroça e conduzido por Aparício até uma fazenda situada no município de São Borja, sendo ali enterrado debaixo de uma roseira. Por meio de um hábil ardil Aparício Saraiva conseguiu enganar as forças governistas, que desejavam recolher o cadáver de Gomercindo como prova de seu extermínio. Assim Aparício no local em que foi sepultado um soldado de nacionalidade polonesa, que também fazia parte das forçasfederalistas, colocou o arreamento, a espada e a capa pertencentes ao seu bravo irmão, o que deu margem a que os legalistas, mais tarde, julgassem ser de Gomercindo o corpo que aí estava enterrado. O cadáver do polaco foi retalhado na suposição de que fosse o do valoroso chefe revolucionário.280

Afirma ainda, que seis anos depois a viúva de Gumercindo mandou buscar os restos

mortais, por intermédio de uma comissão do Estado Oriental, que ofereceu uma gratificação

de “seis contos de réis” ao dono da fazenda em que o corpo do líder maragato fora enterrado.

Como se constata, essas colocações contradizem a versão corrente de que o corpo de

Gumercindo foi violado e a cabeça enviada a Júlio de Castilhos. Seriam “sonhos ucrônicos”281

do caudilho ou versões difundidas para manter as tropas mobilizadas?

No retorno a Palmeira, conseguiu reunir um piquete com cerca de cem homens e ataca

a cidade, guarnecida com mais de quatrocentos homens. “Usei um truque estratégico. Antes

do referido ataque mandei tocar clarim à voz de avançar e todos nós gritávamos : Viva o

general Gomercindo Saraiva e o General Prestes Guimarães! Isto foi suficiente para

intimidar o inimigo que defendia a cidade”. 282

Conta sobre alguns dos ferimentos que sofreu, entre eles, nas proximidades do rio Ijuí,

“nesta ocasião eu fui ferido no rosto. A Providência me curava sem ser preciso remédio”. 283

279 HICKMANN, João A. p. 83280 Entrevista de Leonel Rocha ao Correio Povo. O9/05/44. MCSHJC.281 PORTELLI, Alessandro. Sonhos ucrônicos – Memórias e possíveis mundos dos trabalhadores. Projeto

História. v. 10, São Paulo: Dez. 1993. O autor trata de relatos que “não se referem à forma pela qual a história se desenrolou, mas como ela poderia ter ocorrido. Seu campo não incide na realidade, mas na possibilidade”. p. 50.282 HICKMANN, João Pe. Op. cit. p. 84283 Com essa narrativa desfaz a idéia de que ele nunca tinha sido ferido. Idem. p. 84

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Chegando em Palmeira, entrega o comando ao verdadeiro comandante, Coronel Pedro Bueno

de Quadros e emigra para a Argentina. Tinha, em Santo Tomé, o apoio de alguns amigos,

entre eles Paulino Centena e o Dr. Beltran, que foi quem extraiu a bala. Esteve durante quatro

meses na Argentina, quando foi encarregado por Prestes Guimarães, que estava preparando

nova invasão, para trazer correspondência aos Coronéis Veríssimo da Veiga, Pedro Bueno de

Quadros e Borges Vieira, de Soledade. O retorno a Palmeira, narrado pelo próprio Leonel, dá

uma idéia das condições adversas que enfretavam para sustentar a luta:

Comprei 32 armas de guerra e munições, subi o Rio Uruguai em canoas e fiz a invasão pelo Pari. O inimigo soube que vinha vindo. Mandaram uma força, que me encontrou no Sertão e ali brigamos umas quatro horas. Perdi dois soldados e saí ferido (pela 3° vez); no fim do combate brigamos corpo a corpo; pegou-me fogo na roupa com um tiro; sinão fosse um rio perto, eu morria queimado; atirei-me na água, apaguei o fogo da roupa e vim terminar o combate. O inimigo correu, levando mortos e feridos. Nesta ocasião criei imundície no ferimento; não havia remédio nem creolina; felizmente encontrei um pouco de mercúrio, foi com que me curei.284

Relata que, em Palmeira, as tropas maragatas estavam quase aniquiladas. Restava o

Coronel Pedro Bueno de Quadros, com quarenta homens e vinha corrido pela Serra e se

dirigia para a Argentina. Leonel fez junção com o grupo de Bueno, enfrentando “vários

combatezinhos, em que fomos felizes”. O maior desses combates foi com o transporte do

General Santos Filho. Com um piquete de vinte e cinco homens, conseguiu tomar as doze

carretas, armas e munição. Com isso melhoraram a situação difícil em que se encontravam, a

ponto de declarar: “ficamos ricos”. 285 A narrativa não faz referência às datas em que os fatos

ocorreram e desfazem o mito de que, na sua longa trajetória de lutas, nunca foi ferido em

combate.

Leonel Rocha ainda conta que sitiou Palmeira durante nove dias. Num reconhecimento

que fez topou com um piquete inimigo, deu voz de prisão, mas o soldado atirou e o feriu, o

que não o impediu de continuar a luta, ferindo na cabeça o seu agressor. Com a chegada de

reforço a Palmeira, tiveram de levantar o sítio, mas a revolução prosseguia com alguns

tiroteios, até assumir a presidência, segundo Leonel, “o grande Dr. Prudente de Moraes, que

conseguiu a pacificação”. Apresentou-se, então, ao “General Antônio Fontoura Mena Barreto.

Nesta ocasião eu já estava com uma coluna de mil e tantos homens. Tornei-me muito amigo

do Gal. Mena Barreto”. 286

284 HICKMANN, João Pe. Op. cit. p. 84285 Idem. p. 85286 Idem. ibidem.

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Seu relato sobre a situação que se estabeleceu após a pacificação, não deixa dúvidas

quanto à permanência do clima de animosidade. “Sobrevieram perseguições que os obrigou a

revoltar-se contra as autoridades. Saíram-se mal desta revolta. Reuniram gente. As

autoridades assustadas mandaram fazer propostas que foram aceitas”. 287 No entanto, um

piquete de nove homens não quis saber do acordo, fazendo tropelias pela cidade, morrendo na

ocasião, o Tenente Coronel Valentim Duarte, das tropas legalistas, o que comprometeu a

gente de Leonel perante o General Firmino Paula. Conferenciaram durante três dias, “não

sendo aceitas as condições, por falta de confiança, Leonel Rocha emigrou para a Argentina.

Este exílio durou nove anos”. 288

Leonel afirma, que “o mesmo General Firmino de Paula, que me processou, mais

tarde, reconhecendo que eu tinha razão, mandou chamar-me na Argentina e ele mesmo foi

meu defensor”. 289

Não foram encontrados outros registros que permitissem um melhor esclarecimento

dos fatos que se seguiram à revolução, também não foi localizado o processo que julgou os

envolvidos. Contudo, os familiares entrevistados confirmam o exílio na Argentina, não

havendo precisão quanto ao período, pois, em 1902 participou de um levante em Palmeira. As

referências feitas por Prestes Guimarães e Wenceslau Escobar foram transcritas anteriormente

e se referem ao período de 1893/95, estando em consonância com as informações contidas na

monografia do Padre Hickmann.

O cruzamento de todos os registros que conseguimos reunir leva a supor que as

perseguições sofridas e a revolta que empreenderam contra as autoridades, como afirma,

ocorreram em 1902, quando morreu Valetim Modesto. Esse episódio obrigou os líderes a

emigrar e pelo qual foram processados, tendo Firmino Paula uma atitude, ao que parece,

complacente com os rebeldes, por ocasião do julgamento em 1907. Provavelmente, essa

atitude de Firmino esteja relacionada com suas desavenças com Serafim de Moura Reis, pela

disputa do poder local e regional, como veremos adiante. O exílio de nove anos de Leonel

teria ocorrido após o levante de 1902. Conforme registra Silvio Oliveira, após os

acontecimentos de setembro de 1902, iniciou um período de duras perseguições aos

federalistas, levando “a que Leonel Rocha e Affonso Honório dos Santos iniciassem uma

longa viagem em direção à Argentina, para curtir um prolongado asilo político”. 290

287 Idem. p. 86. Referência ao General legalista Antônio Adolfo da Fontoura Mena Barreto. O grande aliado de Leonel Rocha, na Revolução de 1923, foi João Rodrigues Mena Barreto.288 Idem. p. 86. Refere -se aqui ao levante ocorrido em 1902, que trataremos adiante.289 Idem. p. 86290 OLIVEIRA, Silvio. Vilinha da Palmeira. Bels. Porto Alegre: 1974. p. 37-38.

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123

4.1.1. O Levante de 1902

Arthur Ferreira Filho faz um dos raros registros dos acontecimentos de 1902,291 em

Palmeira das Missões, no qual se baseia Soares quando se refere ao movimento. Silvio

Oliveira apresenta uma crônica sob o titulo “A guerrinha da Vila Velha”, no qual acrescenta

outras informações, fruto de relatos colhidos entre descendentes de contemporâneos dos fatos

que se constituiram em memória coletiva na região. Trata-se de um acontecimento que bem

demonstra a permanência do clima de hostilidade e ressentimentos, fruto dos acontecimentos

de 1893/95, onde o Massacre do Boi Preto e outros barbarismos permaneciam vivos e “neste

município mesmo havendo paz, os piquetes republicanos e maragatos continuavam a cortar

livremente os seus diversos quadrantes, muitas vezes em estado de beligerância, com as

naturais provocações de ambas as partes”.292

O período pós-revolucionário foi de extrema dificuldade. A situação de pobreza era

geral e os roubos às propriedades, no interior, eram freqüentes. Grupos armados “chefiados

por João Bezerra, Valentim Modesto e outros percorriam a serra do rio da Várzea, em

contínuas correrias, tolhendo a liberdade, ameaçando e amedrontando o pessoal residente

nessa zona”.293 A situação política consolida o domínio do PRR. Sem ter que enfrentar a

oposição, que estava totalmente desestruturada, com a maioria dos líderes emigrados, os

castilhistas podiam agir com total liberdade para impor sua hegemonia.294

No limiar do século XX, Palmeira das Missões apresentava-se como um núcleo

urbano com dificuldades de comunicação com os centros mais populosos, onde as notícias da

capital do estado chegavam, não apenas com grande atraso, mas também deturpadas,

conforme os interesses em jogo. Os habitantes raramente recebiam jornais, eram informados

pelo que se murmurava nas pequenas povoações ou nas “vendas”. Para Ferreira Filho, as

dificuldades de comunicação e a ignorância da real situação em que se encontrava a política

estadual teria favorecido o confronto.

As preocupações da Intendência, conforme registra Soares, estavam voltadas para a

publicação de editais visando implantar “pedágios nos rios Goyo-en, em Nonoai e no rio da

291 Arthur Ferreira Filho registra o fato em longo artigo publicado no Correio do Povo de 1960, sob o Título de

“Revolução da Palmeira”. Preferimos usar a expressão “Levante” por se tratar de um movimento de curta

duração e sem provocar alterações no contexto social e político.292

OLIVEIRA, Silvio. Op. cit. p. 35.293

SOARES, Mozart Pereira. Op. cit. p. 186-187.294

Cabeda denuncia os abusos na qualificação dos eleitores, que na época era feita pelas Câmaras de Vereadores.

Cita alterações no livro de atas do Conselho Municipal de Palmeira pelo Conselheiro Antônio Ardenghy que

“apesar de constar que se deram providências para aqualificação, esta não se fez (...)”. Ver CABEDA, Rafael.

Op. cit. p. 123.

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124

Várzea, na estrada geral e Guarita, no Erval Seco”. Outra medida da municipalidade diz

respeito à instalação da iluminação pública e que constava de um pequeno número de

lampiões a querosene em frente à intendência e em torno da praça principal. Não havia praças

ajardinadas, nem ruas calçadas.295

Nesse ambiente, aparentemente calmo, as notícias trazidas pelos compradores de gado

e por caixeiros viajantes intranqüilizavam a população com a ameaça de uma revolução

iminente. Conforme Ferreira Filho, esses negociantes tornavam-se boateiros pelo interesse em

realizar bons negócios. Os tropeiros alarmavam os criadores com a ameaça de novas

revoluções, para conseguir comprar o gado a preço mais baixo, e os mascates procuravam

convencer os comerciantes de que, em caso de revolução, as mercadorias, além de se

tornarem mais caras, seriam de difícil aquisição pelos riscos durante o transporte.

A circunstância de os boatos desempenharem um papel significativo no desenrolar dos

acontecimentos, conforme Dominique Julia, só se justifica porque encontrou ressonância,

porque se afirmou no “sistema de representações, profundamente enraizado na consciência

coletiva”. 296 A cada nova informação mal compreendida, que representava uma ameaça, se

estabelecia a percepção de que algo estava sendo tramado. A autora referida, citando o estudo

de Georges Lefebvre “O Grande Medo de 1789”, remete a algumas questões sobre como

funciona o rumor. Quais têm sido seus canais? E, principalmente, como o rumor se deforma

na propagação oral e como se dá a apropriação? A análise destaca a formação “de uma

mentalidade coletiva, na gênese das representações”, 297 só assim pode-se entender as reações

em cadeia que uma informação pode gerar. O que motiva a ação popular é uma construção de

sentido, fundada na leitura do que foi visto ou percebido.

No caso em estudo, “a presença de uma memória popular do antagonismo” entre os

coronéis- latifundiários e os moradores da área da mata contribuiu para a potencialização do

confronto. O boato aparece como desencadeador de ações e propiciador de eventos políticos

que, no caso, contribuiu para a emergência dos antagonismos cristalizados na oposição entre

os coronéis, detentores do poder e os moradores das áreas de mata, excluídos da rede de

influência.

“Vivia, pois, uma grande parte da população camponesa, sob a angustiante ameaça de

uma revolução iminente” , nas palavras de Ferreira Filho. Alguns maragatos, sobreviventes da

295 Ver SOARES, Mozart Pereira. Op. cit. p. 192-193.296 JULIA, Dominique. “A violência das multidões: É possível elucidar o desumano? In. Passados recompostos:

campos e canteiros da história. BOUTIER, Jean e JULIA, Dominique (Orgs.), Rio de Janeiro: Editora UFRJ: Editora FGV, 1998. p. 224.297 Idem. p. 222.

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Revolução de 1893 “sentindo-se perseguidos injustamente, resolveram enfrentar à mão

armada o subintendente Serafim de Moura Reis Júnior, homem de temperamento agressivo e

intolerante”.298

É o poder do mato levantando-se novamente, após um breve intervalo de 1895 a 1902,

período em que alguns líderes se encontravam emigrados na Argentina. Nota-se que o fato

ocorre num período de intranqüilidade nas áreas de mata, que passavam por um processo de

privatização, apossadas pelos grandes fazendeiros, sendo depois vendidas para os colonos

que, na época, voltavam-se para as matas do Alto Uruguai, como alternativa para a escassez

de áreas livres nas chamadas “colônias velhas”.

O regulamento nº. 313, de 04 de julho de 1900, estava em fase de execução e,

conforme foi analisado no capítulo anterior, a aplicação da legislação criava áreas de atrito,

por afetar a vida dos caboclos e ativar rivalidades entre os grandes proprietários, pela disputa

de maiores e melhores áreas. Não foram encontrados outros registros que expliquem com

maior clareza os motivos da rivalidade com Serafim de Moura Reis Júnior, levando a supor

que o reacender dos velhos ódios, que mobilizavam federalistas e republicanos, estivesse

relacionado com a volta dos líderes que estiveram emigrados, potencializados pelas

dificuldades que os pequenos proprietários e posseiros enfrentavam. Silvio Oliveira também

atribui peso aos boatos de que novos levantes estavam prestes a ocorrer, mas acrescenta que

fora assassinado “numa artéria central de Palmeira, por elementos tidos da situação, o cidadão

de alcunha Mamado, influente prócer do Partido Federalista”. Destaca que o fato causou mal-

estar geral, sendo acrescido de notícias de que se engendrava um golpe contra os maragatos e,

ainda, que Serafim Junior havia se deslocado para o distrito de Erval Seco, para aliciar

homens com o objetivo de concretizar a ameaça. A intensidade dos boatos levou alguns

federalistas a abandonar a sede e se reunirem aos companheiros acampados no Capão Alto, no

Potreiro Bonito.299

Valentim Modesto, um chefete maragato, juntamente com João Bezerra e Albertino

Corrêa, mantinham grupos armados no Potreiro Bonito, a duas léguas da sede e serra do rio da

Várzea, onde realizavam tropelias e intranqüilizavam a população. De acordo com Pereira

Soares, tal procedimento já tinha exigido providências do intendente anterior, Olegário

Falcão, o que vem confirmar que o poder do mato manteve-se mobilizado, em maior ou

menor intensidade, durante o período de 1893 a 1923.

298 FERREIRA FILHO, Arthur. A Revolução da Palmeira. Artigo Correio do Povo, 1960. p. 14.299 OLIVEIRA, Sílvio. Op. cit. p. 36.

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Na Fortaleza, os Galvão começaram a reunir gente, unindo-se a Valentim Modesto.

Leonel Rocha juntou-se ao grupo, assim como o federalista Afonso Honório dos Santos,

advogado, que tinha o comando na sede. Reuniram cerca de meia centena de homens, para a

eventualidade de uma luta, pois havia informações de que, no povoado e no interior do

município, os companheiros sofriam perseguições de Serafim de Moura Reis Júnior.

Serafinzinho de Moura começou a reunir gente em Erval Seco, onde a família possuía

vastas propriedades. Procurou dar ao episódio proporções mais graves, conquistando, assim, o

apoio dos republicanos, que acreditaram que se tratava de um novo movimento revolucionário

e não uma atitude de desagravo as suas próprias arbitrariedades. Conseguiu reunir cerca de

trezentos homens, justificando medidas duras contra os federalistas.

Circularam notícias e boatos que aumentaram o clima de animosidade e apreensão,

levando os chefes federalistas a crerem que estava prestes a eclodir nova revolução. Afonso

Honório, que residia na vila, julgando-se inseguro, juntou-se aos companheiros no interior,

assim como Leonel Rocha, a quem foi entregue o comando por ser o mais experiente. Com

sua liderança e prestígio, conseguiu reunir forte contingente. Embora precariamente armado,

manteve-se em posição de confronto iminente.

Estes fatos ocorrem em setembro de 1902. Na sede, o coronel Augusto Sampaio,

simpatizante dos maragatos, procurava pacificar os ânimos exaltados. Afonso Honório,

retornando à sede, busca maiores informações, convencendo-se de que se tratava de uma

rebelião local e nela não estava disposto a participar. Não lhe interessava uma luta quase

pessoal e, por ser mais esclarecido e influente entre os federalistas, buscou acalmar os

correligionários, contando com o espírito conciliador do Delegado de Polícia, Fidêncio de

Melo e com o próprio Intendente Serafim de Moura Reis (pai), que procurou atuar com

equilíbrio, certo dos prejuízos que poderiam advir de uma rebelião armada.

Leonel Rocha e os demais chefes revolucionários, acreditando que Serafinzinho, por

ser um homem rancoroso e confiante na fraqueza do adversário, dificilmente aceitaria depor

as armas e desmobilizar a tropa, resolveram, antes, dar uma demonstração de força. Os

rebeldes foram mobilizados, sendo que Leonel Rocha deveria manter-se com sua gente numa

posição de vanguarda, na proximidade da vila, aguardando o resultado das negociações

pacificadoras. No entanto, Valentim Modesto e Alberto Corrêa “não encaravam o caso no

plano estadual, mas tão somente do ponto de vista de seus rancores em relação ao

subintendente Moura”. 300

300 FERREIRA FILHO, Arthur. Artigo Correio do Povo, 1960.

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127

Sílvio Oliveira faz referências a um incidente que teria desencadeado o enfrentamento

armado. “É que elementos da situação estiveram na casa de Affonso Honório dos Santos, na

cidade, desrespeitando sua esposa e seu lar”. Esse fato teria sepultado a esperada paz.

Pedrinho dos Santos e José Ferreira Brandão, à noite foram levar a notícia aos chefes

maragatos, constituindo-se na faísca que desencadeou o ataque.301

Os rebeldes avançaram em direção à vila, sem considerar as instruções de não atacar,

desbaratando uma guarda a poucas quadras da mesma, ali postada para a defesa. Em seguida,

marcharam rumo à vila, onde ocorre um confronto violento e, sob todos os aspectos

lamentável e desnecessário, contribuindo para manter acesas as desavenças e ódios.

O piquete avançou até as proximidades da atual praça da Vila Velha, onde se

localizavam as construções mais importantes da época, casa do Intendente, do Vice, além da

Intendência e da cadeia, sendo recebidos por um contingente, numericamente superior e

fortemente armado que, num combate de extrema violência, derrotou completamente as tropas

rebeldes. Na ocasião, morreram Valentim Modesto, mais um filho e Alberto Corrêa.302

Serafim de Moura Reis Júnior ficou gravemente ferido, tendo que amputar uma perna. A

tropa rebelde, completamente desorganizada, teve que se retirar.

Os chefes rebeldes dispersaram sua gente pelas florestas do rio da Várzea,

aproximaram-se da fronteira argentina, protegidos pela selva, esperaram que o tempo se

encarregasse de esfriar os ânimos exaltados.

A repercussão do fato chegou à capital e Borges de Medeiros enviou a Palmeira

Firmino Paula, Subchefe de Polícia, vindo de Cruz Alta, o que lhe valeu prestígio para um

avanço na sua intervenção posterior, na política do município. Em 26 de setembro, chegou a

Palmeira com vinte praças da Brigada Militar e grande número de civis armados. Não houve

qualquer enfrentamento, pois os rebeldes já estavam dispersos. Tomou uma atitude

pacificadora, convidando Afonso Honório, Leonel Rocha e seus companheiros a regressarem

à vila. No entanto, conhecedores da fama do velho comandante e receosos de novas

represálias, não atenderam ao apelo e emigraram para a Argentina.

Ferreira Filho registra que os revoltosos “voltaram mais tarde, sem que nada lhes

acontecesse” e que o inquérito policial não responsabilizou ninguém, anistiando todos os

envolvidos na luta. No entanto, notícia do Correio do Povo de 06 de janeiro de 1907 registra o

301 OLIVEIRA, Silvio. Op. cit. p. 36. O autor refere as dificuldades em precisar a data dos acontecimentos, mas aponta a data de 05/09/1901 para o ataque final. Documentos do ABM, confirmam a data de 24/09/1902. Doc. 3357 de 22/12/1903. Carta de Serafim de Moura Reis a Borges de Medeiros. IHGRS.302 Carta de Serafim de Moura Reis a Borges de Medeiros, faz referência ao fato quando afirma que pode manter a ordem pública como “em 24 de setembro, quando os inimigos da República foram rechaçados e vencidos ficando mortos na praça de Santa Cruz”. Doc. N° 3357 de 22/12/1903. ABM

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julgamento dos líderes do Levante de 1902, o que confirma terem os réus sido processados. O

júri foi realizado nos dias 19, 20 e 21 de janeiro de 1907, em Palmeira das Missões,

pertencente à Comarca de Santo Ângelo, foi presidido pelo Juiz de Cruz Alta, Dr. Augusto

Guarita. O Dr. Firmino Paula, subchefe de polícia, compareceu para manter a ordem e agir, se

necessário.

A notícia registra que chegara ao município para “defender os denunciados Affonso

Honório dos Santos, Leonel Maria da Rocha e outros implicados no célebre processo político

que perturbou a Palmeira durante o tempo em que exercia o cargo de intendente o coronel

Serafim de Moura Reis, o Dr. Roberto Cunha, medico e advogado, residente em Passo

Fundo”. O colunista destaca que o júri despertou a atenção por se tratar de um processo

importante e porque o defensor era um “orador de ilustração reconhecida”, havendo grande

movimentação na Vila, afluindo para a mesma grande número de pessoas vindas, até mesmo,

de municípios vizinhos. Informa que “os réus do célebre processo não se apresentaram e a

sessão se passou sem maior incidente”. Destaca que todos os réus foram absolvidos.303

Ferreira Filho registra que 21 anos mais tarde, na Revolução de 1923, “Palmeira foi

atacada por considerável força revolucionária, à frente da qual, como chefes se destacavam,

precisamente os dois inimigos da luta municipal”, Leonel Rocha e Serafinzinho Moura, o que

é um equívoco, conforme esclarece Mozart Pereira Soares, pois há quatro Serafins que se

destacaram na história local. Tratava-se de Serafim de Moura Assis, que a família distinguia

com os apelidos de Finzinho ou Finzito. Este sim militaria em “dois campos opostos: em

1923, ao lado de Leonel Rocha, atacaria Palmeira, defendida por Vazulmiro Dutra; cerca de

dez anos mais tarde, em 1932, seria o comandante escolhido por Vazulmiro para levar o

célebre Pé-no-chão aos campos de batalha de São Paulo.”304 Quanto a Serafim de Moura Reis

Júnior, às vésperas da Revolução de 1923, sem condições de lutar, pois tinha sofrido a

amputação de uma perna em 1902, afastou-se do cenário das lutas, indo para Cruz Alta e

depois para a Argentina, onde veio a falecer em 1925. É importante destacar, no entanto, que

o Inquérito Policial que investigou os envolvidos na Revolução de 23 aponta Serafim de

Moura Reis Júnior como um dos líderes, informando sobre documentos enviados por ele, de

São Paulo, aos revolucionários.305

303 A mesma notícia destaca que o Juiz nomeou ex-officio o advogado Dr. Roberto Cunha, para defender vários réus, processados por crimes diversos. Ressalta que o ardente e talentoso orador conseguiu, em três dias,defender 14 réus em 12 processos, tendo conseguido absolvição unânime de todos os seus constituintes.304 SOARES, Mozart Pereira. Op. cit. p.196.305 Processo 1588, de 23/04/1923. APRS. Aponta entre os principais líderes do “movimento sedicioso”: Leonel Rocha, Serafim de Moura Reis Junior, Serafim de Moura Assis e Onofre da Silveira.

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129

O Levante de 1902 insere-se no contexto das lutas coronelistas, pondo em confronto as

mesmas forças que se digladiam durante todo o período da República Velha, demonstrando

que o confronto poder do campo e poder do mato se mantém latente, emergindo em

momentos específicos. Não dispomos de muitos elementos para uma análise mais detalhada

dos fatos306, mas a relação pode ser estabelecida, considerando alguns aspectos. Dentre eles,

destacamos a presença dos coronéis que aparecem relacionados aos acontecimentos de

1893/95 e 1923. A atuação de Borges de Medeiros foi imediata, no sentido de colocar em

ação “o velho guerreiro que ficara famoso na Revolução de 1893”, 307 Firmino Paula que vem

acompanhado do coronel Josino Eleuthério dos Santos, que também estivera envolvido nos

fatos que antecederam a Revolução de 93, em Palmeira, por ser genro de Evaristo Teixeira do

Amaral.

Quanto ao nome dos rebeldes envolvidos no conflito, são oriundos do espaço que

identificava o poder do mato: serra do rio da Várzea, Fortaleza, Potreiro Bonito, onde havia a

presença de áreas de ervais e mata. Félix destaca que a oposição maragata sempre teve no

município um reduto certo, articulando-se, freqüentemente, através das lideranças da sede e

do interior.308 Por outro lado, a família Moura Reis era proprietária de vasta área na região do

Erval Seco, onde mantinha seus interesses econômicos, inclusive com engenho de erva-mate e

domínio de vastas áreas de ervais privatizados, afetando os interesses da economia cabocla. A

constituição dos grupos de parentela, para defender interesses próprios, era um procedimento

comum nas lutas entre as facções, as quais eram ampliadas pela cooptação de outros setores,

que se identificavam com as facções políticas, federalistas ou republicanos.

Afonso Honório dos Santos e Leonel Rocha mantiveram-se coerentes com suas

posições assumidas em 1893, o primeiro liderava a aglutinação de apoio na sede, e o segundo,

chefiava a constituição das tropas.

A luta apresenta um duplo aspecto: estava relacionada ao contexto das lutas

coronelistas pela disputa de prestígio e poder local e, por outro lado, tinha o caráter de luta

política de significado social forte, relacionada à privatização da terra, com a conseqüente

exclusão do segmento menos favorecido. De acordo com Félix, “a situação de luta local

306 FERREIRA FILHO, Arthur, destaca que a reconstituição só foi possível pelas informações publicadas na época pelo jornal A Federação, Correio do Povo e informes de Vazulmiro Dutra. A tentativa em localizar oprocesso judicial, ou mesmo o inquérito policial, revelou-se infrutífera, o que viria certamente, acrescentar outros elementos para uma análise mais rica. 307 Idem.308 FÉLIX, Loiva Otero. Op. cit. p. 116

Page 129: Caboclos, Ervateiros Coroneis

130

tomou maior relevo, pelo fato de que nem sempre o coronel tinha hegemonia sobre todo

município. Havia disputa entre os representantes do poder local também ao nível distrital”. 309

Assiste-se, no contexto das lutas, aquilo que Cintra denomina “de relação piramidal de

poder”, 310 e em que se observa Firmino Paula “pairando acima” da política local, podendo

intervir como representante oficial, por delegação expressa no cargo de subchefe de polícia, e

também pelo respeito ou ‘temor’ que impusera nos embates de 1893, submetendo outros

coronéis que, por sua vez, dominavam outros setores.

Destaca-se, outrossim, o contexto em que está inserida a rebelião maragata, que ocorre

simultaneamente à implementação da nova Lei de Terras de 1899, do governo estadual,

regulamentada em 04 de julho de 1900, pelo decreto nº. 313, que atingia de várias formas o

interesse dos moradores das áreas florestais, que acabavam engrossando as fileiras das lutas

coronelistas, empreendidas pelos chefetes locais. Sobretudo, o decreto n° 607, de 27 de março

de 1902, que regulamentava a exploração e conservação dos ervais de domínio do Estado

atingiam os interesses dos caboclos das áreas dos ervais. Martini destaca que

Os federalistas que viviam no complexo da economia extrativa, sob forte competição do produto argentino, perdendo mercado externo e interno, ameaçados pelas atribulações dalegislação florestal republicana, regulamentação da exploração da erva-mate, além dasverificações de legitimidade, regularização das terras e política fiscal restritiva do comércio na fronteira, atacaram Palmeira das Missões, por volta de 22 de setembro. Ou seja, apenas seis meses depois do decreto de 27/03/1902, número 607, reiterar as disposições sobre a exploração e conservação dos ervais.311

Esse decreto estabelecia que a exploração dos ervais existentes em terras devolutas

não seria feita pelo estado, mas sim por particulares, mediante arrendamento em concorrência

pública, ficando proibida a qualquer outra pessoa explorar os ervais de domínio público.312

Muitos dos caboclos itinerantes que viviam no complexo da economia ervateira não

postulavam o arrendamento, isso era feito por grandes proprietários que se instalaram e

ampliaram suas terras. Dentre eles, destaca-se a família Moura Reis.

Outras disposições do regulamento dificultavam a vida dos extratores de erva-mate,

como a proibição de fazer roças nas áreas dos erva is, conforme artigo 10º e a construção de

habitações permanentes nessas áreas, artigo 11°. Proibia a derrubada de árvores de qualquer

espécie, exceção feita àquelas necessárias à instalação da exploração, assim como havia a

proibição da poda da erva-mate, respeitando o prazo de 3 anos, entre uma poda e outra.

309 Ver FÉLIX, Loiva Otero. Op. cit. p. 116.310 CINTRA, Antônio Octávio. Op. cit. p. 85.311 MARTINI, Maria Luiza. Op. cit. p. 323.312 Artigos 3º e 5° do Regulamento para exploração e conservação dos ervais. Gazeta do Fôro, Ano 1. julho de 1902. MCSHJC.

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131

Enfim, as disposições visavam à preservação dos ervais, que, no entanto, atingia às

necessidades imediatas dos extratores de erva-mate. A proibição do corte da madeira dentro

da faixa de servidão pública determinou a criação do imposto sobre o fornecimento de lenha a

estradas de ferro e o arrendamento de ervais por grandes ervateiros. 313

A regulamentação da atividade ervateira e as leis de terra favoreceram a emergência de

conflitos. “A Revolução da Palmeira realizou-se, nesse contexto, pelos focos armados

guerrilheiros, que não foram desarticulados depois de 1893”. 314 Os conflitos não eram uma

realidade apenas em Palmeira. Martini cita documentação da Intendência de Passo Fundo, em

que os posseiros queixavam-se de problemas com arrendatários dos ervais, havendo

divergências na interpretação do regulamento 313, de 04 de julho de 1900 e o regulamento de

1902, com referência à exploração dos ervais. O intendente de Passo Fundo coloca-se como

intermediário no esclarecimento das divergências. Em Palmeira, os posseiros não tinham a

quem recorrer, pois a exploração dos ervais e o exercício do poder estavam nas mãos das

mesmas pessoas.

As preocupações do Intendente palmeirense, Serafim de Moura Reis, com os rebeldes

continuaram após o levante. Correspondência enviada a Borges de Medeiros, em 18 de março

1903, informa que os maragatos que emigraram faziam intenso contrabando no sertão do

Uruguai, “através da barra do Pepery Guassu desembarcando no território argentino, seguindo

dali estrada até o Paraguay cujo caminho (...) foi aberto pelos maragatos, por onde recolhiam

elementos bélicos obtidos no estrangeiro, evadiam este estado e imigravam quando lhes

convinha...” Denunciava que através desse caminho maragato, por onde emigrara Leonel

Rocha, os revolucionários e os contrabandistas em geral, em vez de utilizarem o porto legal,

situado na Colônia Militar do Alto Uruguai, faziam o contrabando de mercadorias para o

comércio, pagas com produtos do município.315

Constata-se, assim, a manutenção dos vínculos de comunicação dos maragatos

emigrados em Santo Thomé com os seus aliados no Brasil, estando “aquela zona Argentina

povoada por revolucionários brasileiros”, conforme denuncia o intendente.316

A resistência dos caboclos continuou após a rebelião de 1902, e a correspondência do

intendente é esclarecedora da situação. Em longa carta enviada a Borges de Medeiros, 22 de

dezembro de 1903, por Serafim de Moura Reis, é possível detectar as contradições entre a

313 MARTINI, Maria Luiza. Op. cit p. 323.314 MARTINI, Maria Lu iza. Op. cit. p. 323.315 Ofício nº 52 de Serafim de Moura Reis para Borges de Medeiros. 18/03/1903. Apud. MARTINI, Maria Luiza. Op. cit. p. 324316 Idem. p. 325.

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132

situação de paz que afirmava existir e a realidade do município. Comunica que a Guarda

Municipal encontra-se organizada, sendo desnecessária a permanência da Brigada Militar,

uma vez que o município se encontrava “em plena paz”. Justifica a solicitação, afirmando que

pode manter a ordem pública como em 24 de setembro, quando os rebeldes atacaram a sede e

Valentim Modesto foi morto. Informa que Afonso e Leonel continuam emigrados e que estão

processados. Queixa-se dos falsos republicanos e dos negociantes que “procuram com afinco

perturbar as obras da minha administração sem a mínima razão (...) Nenhum dos sete ou oito

negociantes estava presente à defesa da Villa na ocasião do assalto”. 317

A persistência do clima de tensão manifesta-se em outros documentos. Em 1904,

informa que o comandante da Brigada Militar solicitou a devolução das armas do estado, mas

que as mesmas foram distribuídas aos republicanos por ocasião do confronto de 1902. Solicita

que “permaneçam com os companheiros como garantia de alguma defesa”, solicita também

munição para os “prestigiosos companheiros”.318 Em carta, do mês de maio do mesmo ano,

faz registros de violência em Nonoai onde “o maragatedo criminoso continua a viver

francamente naquele Distrito” , onde foi assassinado barbaramente o cabo que comandava a

força municipal. 319 Vê-se que o intendente, ao mesmo tempo que reafirma a existência de um

clima de completa paz, considera importante manter os companheiros armados.

A documentação mostra atritos no interior do partido e uma oposição sutil de alguns

setores, mas, sobretudo, desvenda um dos questionamentos colocados na proposta de pesquisa

sobre as bases de apoio e sustentação do grupo rebelde, que, de acordo com o intendente, viria

dos comerciantes. Estes faziam, aparentemente, um jogo duplo, diziam-se republicanos, mas

sigilosamente apoiavam os maragatos. Conforme o Intendente, os negociantes

conservão como seus bons fregueses vendendo a prazos a eles maragatos criminosos (...) revelando-lhes sempre os nossos planos, como fez Antonio Ardenghi que mandou vir de Porto Alegre uma arma de repetição com muita munição que entregou ao celebre Domingos Galvão e consta ser presente delle, com a qual naturalmente nos tiroteou no dia do assalto, o que ficou provado pelas investigações abertas pelo sub-chefe, que deu em resultado a pronuncia do referido Domingos Galvão. 320

A correspondência do Intendente, além da contradição já apontada, permite desvelar

vários aspectos da política local, num período particularmente tenso, devido aos conflitos

ocorridos e às relações entre os chefes locais com as lideranças regionais.

317 ABM. Doc.nº 3357, de 22/12/1903.318 Doc. Nº3358, de 03/01/1904. ABM, IHGRS.319 Doc. Nº 3359, de 24/05/1904. ABM, IHGRS.320 Idem.

Page 132: Caboclos, Ervateiros Coroneis

133

1º- A continuação de focos de resistência dos maragatos, que representavam, nesse

caso, a resistência cabocla, que mesmo com líderes mortos ou exilados, continuava mantendo

o poder constituído em alerta.

2º- As disputas internas pelo poder entre os republicanos locais, onde se detectam

rivalidades e desconfianças recíprocas.

3º- O enfraquecimento do poder local em favor do fortalecimento da intervenção do

poder estadual, observada na disputa pela manutenção da Guarda Municipal, organizada pelo

intendente e a solicitação da retirada da Brigada Militar, pois sua permanência

“desmoralizava” o intendente em exercício, de acordo com suas palavras.

4º- Elucida as formas de apoio que o poder do mato recebia dos setores urbanos, neste

caso, dos comerciantes locais, que, de modo discreto, apoiavam a resistência maragata.

Todas as constatações parecem fundamentais para a análise do clima de belicosidade

que marcou o período. O primeiro aspecto que fica evidenciado é o de que o poder do mato

tinha sua base de sustentação entre os habitantes das áreas florestais, em razão das medidas

adotadas pelo governo, traduzidas em leis e regulamentos, que quase sempre contribuíam para

marginalizar os nacionais que ocupavam áreas sem os devidos registros de posse. Essa

questão já foi devidamente analisada no Capítulo II, assim, cabe aqui, somente o registro de

medidas adotadas no período e seus vínculos com as relações de poder em nível local,

regional e estadual.

O governo estadual criava aparatos específicos para reprimir os caboclos, tentando

evitar o envolvimento da Intendência com o conflito. Em 10 de março de 1904, criou uma

polícia florestal para fazer cumprir os códigos e enfrentar a resistência cabocla321. Kliemann

destaca que, a partir de 1907, há um aumento da corrente migratória para o Alto Uruguai o

que gerou, além da invasão de terras particulares, a intrusão em áreas do estado, da União ou

áreas indígenas.322 Essa intrusão, em muitos casos, teve a participação do estado ao

determinar medidas de compensação a colonos nacionais e estrangeiros, que tiveram anuladas

as sentenças de legitimação, recebendo terras em outras regiões. As áreas da União foram,

muitas vezes, usadas para resolver problemas de indenização e, quando surgiam questões, o

governo estadual se omitia, e as pessoas eram obrigadas a buscar novas terras aparentemente

desocupadas.

Apesar da falta de uma política que integrasse os nacionais de modo efetivo à

ocupação do solo, os caboclos resistiram na floresta, mantendo seus vínculos comunitários e

321 MARTINI, Maria Luiza. Op. cit. p. .325.322 Ver KLIEMANN, Luiza. Op. cit. p. 122.

Page 133: Caboclos, Ervateiros Coroneis

134

reorganizando-se militarmente, sob o comando de Leonel Rocha, quando os setores

dominantes chegaram novamente ao rompimento em 1922.

Contudo, a questão conflitante do domínio das áreas de mata não pode ser vista

isoladamente e só adquire relevo, quando confrontada com o exercício da dominação política,

na qual as disputas pelo poder em nível local impulsionaram enfrentamentos entre o poder do

mato e o poder do campo.

4.2. Coronéis & coronéis

As lutas coronelistas estimularam ou arrefeceram os conflitos conforme os interesses

em jogo. Segundo Loiva Otero Félix, o ano de 1903 começou a apresentar sinais de crise

interna e luta pelo poder dentro do diretório do partido republicano, espaço de disputa dos

coronéis palmeirenses.323 A correspondência do Intendente, enviada a Borges de Medeiros,

mostra os setores de atrito. Cartas de Serafim de Moura Reis a Firmino Paula e Borges de

Medeiros solicitam a saída do delegado, sob a acusação do exercício de arbitrariedades324.

Noutra solicita a retirada da Brigada Militar, mas a resposta de Firmino é curta e direta,

dizendo que não pode atender.325 Fica evidente na documentação a rivalidade entre o

Intendente e o subchefe de polícia. Serafim de Moura Reis dirige-se a Borges de Medeiros em

longa carta, datada de 22 de dezembro de 1903, já citada, fazendo uma exposição da situação

do município.

Constata-se que estava ocorrendo o esvaziamento do poder local. “Firmino era o

instrumento de Borges de Medeiros para diminuir a força política e o prestígio do coronel

Serafim de Moura Reis”. 326 Firmino se impunha como líder regional, enquanto declinava a

força política do intendente palmeirense. Nesse sentido, a correspondência trocada pelo

intendente com Borges de Medeiros mostra a preocupação com a presença da Brigada Militar,

pois essa representava um limite a sua atuação. Em longo arrazoado justifica a solicitação da

saída da Brigada Militar, pois sua “permanência desmoraliza o partido”. 327

A documentação traz à tona as disputas internas do Partido Republicano. Serafim de

Moura Reis queixa-se de seus correligionários “que procuram com afinco perturbar as obras

323 FÉLIX, Loiva Otero. Op. cit. p.117.324 Carta de Serafim de Moura Reis para Firmino de Paula. Solicita a demissão do delegado Inerio Dutra. Doc. Nº 3356/1 de 03/11/1903. ABM./ IHGRS.325 Idem . Solicita a retirada da B.M. Doc. nº 3356/2. ABM. IHGRS.326 FÉLIX, Loiva Otero. Op. cit. p. 118.327 Doc. Nº 3357, de 22/12/1903. ABM. IHGRS

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135

de minha administração, (...) como procederam com meus antecessores Olegário Falcão e

Fernando W estphalen”. 328

A realização das eleições, em 1904, traz outro ingrediente às já tensas relações

políticas no município. Em 24 de maio de 1904, Serafim informa a Borges de Medeiros que

está de “relações cortadas com Firmino Paula”. Expõe as rivalidades com os correligionários

Olegário Falcão e Coronel Josino, chegando mesmo a sugerir: “Vossa Excelência como tem

tino político há de evitar o pleito na eleição municipal que trará desgastes para todos”. 329

Essa época, conforme Félix, é um momento de “cristalização do poder estadual,

perfeitamente ajustado às bases locais”. 330 Traduzia-se na ação dos subchefes de polícia como

elementos ‘pontes’, fazendo a ligação entre o poder dos coronéis, filtrados pelos subchefes, e

o poder do governo. Assim, em linhas gerais, “vemos os coronéis cooptados pelo governo e

integrados ao partido, em relativa harmonia com o poder estadual, embora com a diminuição

da autonomia municipal”.331 Contudo, destaca que há variantes no grau de adesão, como é o

caso de Palmeira, onde a luta coronelista sempre foi maior.

As disputas políticas de 1904 tornam visíveis a rivalidade política no seio do partido

republicano, exigindo do governo estadual uma maior atuação no sentido de fazer valer sua

autoridade. Serafim de Moura Reis indicara para seu sucessor o Coronel Josino Eleuthério dos

Santos, e esse procedimento estava em discordância com o candidato do governo estadual que

era Júlio Pereira dos Santos.332

Félix afirma que o encaminhamento político do borgismo no sentido de buscar a

cooptação dos coronéis serranos foi, em geral, mais fácil quando era menor o número de

coronéis, com o predomínio de apenas um coronel no município. “No caso de Palmeira deu-se

o contrário. Ali a luta coronelista sempre foi maior. A extensão territorial do município e a

diversificação da produção econômica sobretudo erva-mate/pecuária (...) facilitaram a

proliferação de lideranças distritais que disputavam entre si o prestígio ao nível municipal”. 333

No caso das eleições de 1904, fica clara a atuação do governo estadual, no sentido do

uso da coerção, como forma de superar o enfrentamento entre poder local e poder estadual,

considerando a impossibilidade de resolver o problema através da cooptação. Assim, o

Intendente denuncia a exclusão de eleitores, fraudes eleitorais, títulos em branco, telegramas

328 Idem.329 Doc. nº3359 de 24/05/1904. ABM. IHGRS.330 FÉLIX, Loiva Otero. Op. cit. p. 108.331 Idem. p. 109.332 SOARES, Mozart Pereira. Op. cit. p. 197. Informa que Júlio de Castilhos, antes de sua morte, induzira “ a vinda a Palmeira de seu amigo e correligionário em quem depositava a melhor confiança e a quem almejava vergovernando o tumultuado município”333 FÉLIX, Loiva Otero. Op. cit. p. 119.

Page 135: Caboclos, Ervateiros Coroneis

136

que estão sendo impedidos de envio, enfim, solicita medidas de ordem para que votem apenas

os eleitores cadastrados no último alistamento estadual. 334

A eleição transcorre num clima tenso, com a evidente atuação de Firmino Paula,

garantindo a eleição de Júlio Pereira dos Santos. “Com tal resultado ficou provado à força, o

predomínio do general Firmino sobre os coronéis locais” como também “a legitimação do

PRR sem um lastro de aceitação maior, o que nos explica por que Palmeira teve sempre, ao

longo da República Velha, um oposição política mais tenaz”. 335

Eleito Júlio Pereira dos Santos, o município passa por um período de aparente calma,

estando os coronéis sob controle e o poder do mato sem condições de mobilização devido à

ausência das lideranças que estavam exiladas desde o Levante de 1902. Não se encontram

registros da época em que Leonel Rocha e Afonso Honório retornam da Argentina, mas sua

atuação ressurge nas eleições de 1915.

A administração de Júlio Pereira dos Santos, de acordo com Mozart Pereira Soares, foi

“operosa”, destacando-se a construção de pontes, melhoria de estradas, saneamento das

finanças municipais. Isso possibilitou investimentos em obras públicas, como o

estabelecimento de linhas telegráficas, entre outras medidas. Seu governo se estende até 1911,

quando veio a falecer, no final do 2º mandato, sendo sucedido por Vicente Machado da Silva,

presidente do Conselho Municipal, completando o mandato e sendo reeleito para o período de

1912-1916, contando com o apoio de Firmino Paula, que nesse tempo era decisivo.

Realizou um governo modesto e, aparentemente pacato, embora a correspondência a

Borges de Medeiros registre já, em 1913, que as animosidades continuam presentes entre os

coronéis locais. Josino Eleuthério dos Santos informa que “a política deste município está em

completa anarchia há muito tempo e actualmente em absoluto abandono”. Registra que o

partido está “completamente desorganizado (...) a administração municipal, nula pela

incompetência, polícia judiciária infame pela sua conduta...” No entanto, todos continuam

fiéis a Borges de Medeiros, achando necessária sua interferência.336

No ano de 1915, acentuam-se as divergências, o clima pré-eleitoral começa a mostrar

rachas entre os republicanos e observa-se o enfraquecimento do prestígio do General Firmino

na região e a absoluta obediência a Borges de Medeiros. Um dos emissários do grupo

dissidente afirma “General Firmino aqui não tem partido, o partido é de Vossa excelência”.337

334 Doc. nº 3363 de 04/08/1904. Carta de Serafim de Moura Reis a Borges de Medeiros. ABM/IHGRS.335 FÉLIX, Loiva Otero. Op. cit. p. 121.336 Carta de Josino Eleuthério dos Santos a Borges de Medeiros. Doc. nº 3372 de 28/09/1913. ABM/IHGRS337 Carta de Valentim Aragon para Borges de Medeiros. Doc. nº 3337 de 18/04/1915. ABM/IHGRS

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137

A sucessão de Vicente Machado apresenta-se como um dos pleitos mais disputados,

diferenciando-se dos anteriores, tanto pela atuação intensa dos dissidentes, como pelo

crescimento da oposição, chegando os federalistas a apresentar um candidato, Urbano

Bellegard de Meneses, professor em Campo Novo, que gozava de amplo prestígio. Isso

demonstra uma nova forma de atuação dos maragatos, liderados por Leonel Rocha e Afonso

Honório.

Os republicanos, que continuavam com sua velha disputa interna, apresentaram dois

candidatos: o Major Mario Mello, apoiado por Firmino Paula e uma ala renovadora do partido

apresentou como candidato Frederico Westphalen. Nessa época, o município contava com a

publicação do jornal “A Palmeira”, que se apresentava como um órgão sem filiação partidária,

mas, no entanto, fazia combate à liderança de Firmino Paula e isso permite, a partir de alguns

exemplares enviados a Borges de Medeiros, dimensionar o grau de rivalidade entre os grupos

envolvidos.

A facção que apoiava o escolhido de Firmino Paula, oficialmente afastado, porém

atuando nos bastidores, recebeu o apelido de “Casco Velho” e a ala que se apresentava como

renovadora foi denominada “Bloquinho”. 338 A disputa foi intensa desde o período de

composição das chapas, conforme revela a correspondência enviada a Borges de Medeiros, a

ponto de ser necessário um reforço na segurança, com a presença do Subchefe de Polícia

Cavalheiro do Amaral e, durante o pleito, a vinda do próprio Chefe de Polícia Coronel Carlos

Pacheco. Mesmo com todas as precauções tomadas, graves irregularidades aconteceram.

Mozart P. Soares registra que:

Durante uma breve ausência do Presidente da mesa, Major Alfredo Westphalen, ocorrida na segunda noite da votação, acrescentaram-se fraudulentamente duzentas cédulas em favor do candidato do firminismo, Mario Melo. Após violenta discussão, ficou estabelecido que se prosseguiria na votação e posteriormente se ingressaria com recurso cabível.339

A documentação sobre essas eleições é farta e as fraudes são confirmadas nas cartas

do Intendente Vicente Machado e do próprio subchefe chefe de polícia Carlos Pacheco de

Castro. Outro destaque é a votação do candidato federalista, Urbano B. Menezes, que apesar

das fraudes recebeu 804 votos, contra 828 votos de Mário Melo e 1102 de Frederico

Westphalen. Os federalistas elegeram três conselheiros, que poderiam se aliar aos dissidentes

e obter a maioria.

338 Do “Bloquinho” faziam parte os nomes de vários cidadãos que se destacam na política local no período posterior, entre eles: Frederico Westphalen, Ramão Luciano de Souza (Coronel Bicaco), Serafim de Moura Reis Júnior, Alfredo e Cândido Westphalen, Zózimo de Oliveira, Jayme Borges, Francisco Ferreira Martins.339 SOARES, Mozart Pereira. Op. cit. p. 203.

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138

Diante da grave situação política, o governo resolveu intervir no município nomeando

para Intendente o Chefe de Polícia, coronel Carlos Pacheco de Castro. Frederico Westphalen

perdia o cargo de Intendente, mas era nomeado Chefe da Comissão de Terras do

Município340, evitando-se, assim, reações de descontentamento. Com a intervenção, também

os federalistas seriam mantidos sob controle.

Em 1918, procederam-se eleições para o Conselho Municipal, buscando normalizar

politicamente o município, cabendo a Antonio Azambuja Villanova governar até terminar o

agitado quatriênio.

Cabe destacar que essas disputas pelo poder inscrevem-se no quadro das lutas

coronelistas, motivadas pela “atomização política” dentro do partido, porque, como já foi dito,

não havia o predomínio de um único coronel, mas de alguns coronéis, representantes

máximos do poder no seu distrito, a lutar pelo mando político na sede ou no município todo,

através da intendência ou da participação no Conselho Municipal.341

As eleições para o período de 1920-1924, novamente dão uma idéia das disputas

internas, agravadas pela atuação do Partido Federalista, que crescia em importância, desde

1916, constituindo-se numa nova força, que não podia ser subestimada. Villanova tinha se

apresentado como candidato, mas a executiva do partido, como se tratava de reeleição, temia

que ele não atingisse os 2/3 dos votos e indica Hildebrando Westphalen. 342 Considerando o

crescimento do Partido Federalista e as divisões internas, Westphalen coloca sua candidatura

nas mãos de Borges de Medeiros, que aceita a renúncia e indica Adolfo Teixeira do Amaral.

As eleições de agosto de 1920 confirmam a vitória do indicado. Os federalistas elegem dois

dos sete membros do Conselho, Hildebrando é eleito Presidente e Vazulmiro Dutra, aparece

aqui, no início de sua carreira. O Conselho é empossado em 20/10/1920 tendo que enfrentar o

período convulsionado pelos fatos relacionados com a Revolução de 1923. Sintetizamos a

situação de conflito nas relações de poder, nas palavras de Félix:

O fundamental é termos presente a força do coronelismo em Palmeira, produto do atraso geral em que vivia o município somado a uma grande extensão territorial que dificultava medidas efetivas de superá-lo. Tal atraso histórico permitiu que se desenvolvessem em redutos isolados identificados em geral com os distritos longe da sede focos de poder dos coronéis que, ao se reunirem na sede, disputavam o poder. Por outro lado, temos a evidência de um poder estadual forte, consciente da necessidade de manter um dos maiores municípios do estado (em extensão territorial) sob controle do PRR, quando exatamente proliferavam lá não só o domínio dos potentados locais, mas também o da oposição maragata, sede do líder federalista Leonel Rocha,

340 Carta de Frederico Westphalen a Borges de Medeiros agradece o cargo concedido. Doc. Nº 3397 de25/12/1916.341 FÉLIX, Loiva Otero, Op. cit. p. 125342Carta da Comissão Executiva do PRR de Palmeira das Missões para Borges de Medeiros. Doc.3424 de12/03/1920. ABM/IHGRS.

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possuidor de forte contingente eleitoral entre os marginalizados do poder oficial, os pequenos lavradores, chacareiros e ervateiros.343

O período intermediário entre as duas grandes conflagrações que marcaram a

República Velha, 1893 e 1923, teve em Palmeira, além do levante de 1902, uma permanente

instabilidade que, quando não se manifestava em lutas armadas, era pródiga em disputas

políticas pelo controle do poder local que se dava dentro do Partido Republicano, onde as

dissidências foram constantes. A oposição federalista esteve ativa em todo período, ora

levantando-se como poder do mato em momentos específicos de mobilização armada, ora

unindo-se à dissidência republicana nos embates eleitorais.

Fonte: Álbum dos Bandoleiros. Op. cit. IHGRS

Figura 4 – Leonel Rocha, ao centro, na galeria dos bandoleiros.

343 FÉLIX, Loiva Otero. Op. cit. p. 126-127.

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140

4.3. Palmeira na Revolução de 1923

As lutas coronelistas, como vimos, se manifestaram em animosidades e rixas políticas,

durante todo período da República Velha, mantendo acesos os ódios que explodem em novo

confronto armado em 1923. A oposição não conseguiu se organizar, para fazer frente ao

grupo no poder, estando seus líderes exilados durante o período que se seguiu ao confronto de

1902. A partir de 1915, constata-se uma tentativa de articulação dos federalistas pelas vias

legais, participando das eleições. A ata do Conselho Municipal de 17 de julho 1916, que

estudou e aprovou a lei eleitoral registra a presença de Leonel Rocha,344 entre outros

federalistas e, nas eleições posteriores, conseguiram eleger alguns membros, que embora em

minoria, criaram um clima de apreensão, podendo sempre aliar-se às dissidências do PRR.

A violência na Revolução de 1893 e no levante de 1902 deixou profundos

ressentimentos, que associados aos novos problemas políticos na disputa das eleições locais,

acirraram os ânimos, contribuindo para que Palmeira estivesse entre os primeiros municípios

a se levantar em armas, contra a posse de Borges de Medeiros, alegando irregularidades e

exigindo a reformulação da Constituição Estadual.

Contudo, seria simplificar os fatos admitir que esse fator seria o fundamento da

participação nas lutas e, em Palmeira, alguns documentos são particularmente elucidativos da

influência de outros fatores, especialmente se levarmos em conta a composição do grupo

oposicionista, que no município, se diferenciava do resto do estado.

Os historiadores que se debruçaram sobre o estudo da Revolução de 1923 costumam

apontá-la como uma luta no interior da classe dominante.345 Pereira Soares afirma ser a

participação de Palmeira “geográfica e socialmente excêntrica ao sentido dessa luta entre

Fazendeiros e o Poder em mãos de Borges de Medeiros”. 346 Podemos destacar, nesse sentido,

dois aspectos que a diferenciam do restante do estado. O primeiro diz respeito ao chefe

revolucionário, que em Palmeira não foi um fazendeiro poderoso, mas um caudilho a pé”, que

conforme Arthur Ferreira Filho, “não possuía o penacho dos senhores a cavalo”. E o segundo

está na composição das tropas e nas motivações da luta.347

Como foi analisado no II capítulo, os excluídos da posse da terra estavam prontos a

pegar em armas para derrubar um governo que consideravam a causa de seus infortúnios. A

ausência de documentação no Arquivo Borges de Medeiros, no período de 1921 a 1924,

344 Ata do Conselho Municipal de Palmeira das Missões. Doc. nº 3392, de 20/07/1916. ABM./ IHGRS.345 Ver: ANTONACCI, Maria Antonieta . Op cit; PESAVENTO, Sandra J. Op. cit; PINTO, Celi Regina. Op. cit.346 SOARES, Mozart Pereira. Op. cit. p. 208 347 FERREIRA FILHO, Arthur. Op. cit. p. 119.

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141

limita a possibilidade de análises do ponto de vista do poder, no entanto, foi possível,a partir

de outros documentos, estabelecer algumas constatações, vinculando luta armada e posse da

terra.

As tropas rebeldes, que são identificadas aqui como poder do mato, eram oriundas da

região de Fortaleza, rio da Várzea, Potreiro Bonito, onde Leonel Rocha reunia o contingente

das tropas revolucionárias. A aplicação dos regulamentos, que tinham em vista legalizar a

situação da propriedade, como vimos, marginalizou os caboclos que viviam do extrativismo

ervateiro e, nesse momento, especialmente, a implementação da Lei de Terras de 1922, em

que os nacionais foram preteridos em favor dos novos grupos migratórios que chegavam à

região para ocupar as extensas áreas de mata.

A atuação da Comissão de Terras e Colonização, através de seu Chefe, Frederico

Westphalen, ao aplicar a regulamentação do governo positivista, atingia os interesses dos

posseiros que não tinham regularizado suas terras. Nesse aspecto, o processo judicial nº 389,

de 14 de agosto de 1923, é particularmente elucidativo da existência de um clima de

enfrentamento entre caboclos e o Chefe da Comissão de Terras. Os fatos constantes do

processo ocorreram no final do ano de 1922 e demonstram que, antes de ser deflagrada a

Revolução no estado, Palmeira já se encontrava em clima de luta armada.

Trata-se de um processo-crime cuja denúncia é apresentada pela Justiça Pública contra

Frederico Westphalen, Vicentino Pereira Soares, os praças que constituiam a escolta e os

acusados que entram em confronto com a mesma, totalizando 13 pessoas.

O fato delituoso conforme a denúncia ocorreu em 18 de novembro 1922348. Consta que

uma escolta composta por praças da Brigada Militar e alguns civis, comandados por

Vicentino Pereira Soares e da qual faziam parte, dentre outros nomes, Frederico Westphalen,

tentou desarmar Felício Bueno e seu filho menor que carregavam armas proibidas. Felício

teria reagido, alvejando a escolta e pondo-se em fuga. Pouco depois, volta a atacar o grupo,

travando-se ligeiro tiroteio do qual resultaram ferimentos em Elpídio, um dos praças, e em

Pedro Domingos Camargo Filho.

Seguem-se alguns depoimentos dos envolvidos e testemunhas. Entre os envolvidos

apenas depuseram Frederico Westphalen e Vicentino Pereira Soares, subdelegado e

subintendente e mais sete testemunhas. Não constam depoimentos dos demais envolvidos,

alguns dos quais com participação ativa entre o poder do mato, como Felício Bueno e Pedro

Domingos Camargo.

348 Processo nº 389, Maço: 18, Est. 60. A data da constituição do processo é de 14/08/1923, sendo encerrado em 1925. APRS.

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O depoimento de Frederico Westphalen é particularmente elucidativo do vínculo entre

a participação na Revolução de 1923 pelos grupos armados da área da mata e a questão da

terra. Afirma o depoente que:

Pedro Domingos e Felício Bueno, vêm perturbando o sosego do 8° districto, desrespeitando o respectivo sub-intendente e sub-delegado, bem como ordens e recomendações da respectiva Commissão de Terras, invadindo colonias e comettendo depredações, entre as quaes, pode

citar o caso de terem destruído, a machado a morada de Komproski, colono, cujas terras

invadiram, aconselhados, segundo consta, pelo seu advogado, Dr. Antônio Pinheiro; que em vista destes constantes desmandos e tendo ambos aquelles indivíduos o habito de transitarem, às vezes, com grupos, sempre armados de winschester, pelas estradas do districto, acontecendoaté que recentemente, ambos, acompanhados de mais tres, todos de winchester, deram uma descarga provocante em frente à casa do sub-intendente e sub-delegado, este dirigiu officio ao depoente, que se achava em Palmeira, onde é chefe da Commissão de Terras, ecommunicando-lhe o facto e solicitando sua intervenção, junto ao Intendente Municipal, no sentido de conseguir umas praças da Brigada Militar. (grifo nosso)349

Diante dos fatos delituosos que estavam acontecendo e diante da ameaça de desordens,

designou quatro praças no intuito de que a presença das mesmas coibisse aqueles desmandos

e fosse um sinal de autoridade. Quanto ao episódio que motivou a averigüação, declara que,

em companhia do subdelegado e acompanhados da escolta, percorreram o 8º distrito “a fim de

demonstrarem que a autoridade estava aparelhada para se fazer respeitar”. Avistaram Felício,

que, com atitudes provocativas, arremeteu contra uma praça, a qual “arrebentando o estribo,

foi cuspida ao chão, donde alvejou o fugitivo”. 350 O enfrentamento não parou por aí. Quando

regressavam para a sede do distrito, foram atacados por Felício, Pedro Domingos e mais

alguns homens, ficando feridos um soldado e o filho de Pedro Domingos. Informa ainda que

tinha notícias de que Pedro Domingos e Felício Bueno estavam reunindo a capangada nas

imediações de suas casas e premeditavam atacar o depoente, o subdelegado e a escolta.

Os depoimentos seguintes são bastante semelhantes no conteúdo. Confirmam a versão

do fato conforme apresentada por Frederico Westphalen, acrescentam as informações de que

Felício Bueno e Pedro Domingos reúnem gente, “fazem correrias”, e, entre outros fatos,

dissolveram o puchirão de Antonia Jesus, atacaram a propriedade dos colonos polacos, bem

como realizaram a descarga de winchester nas proximidades da subintendência.

Vicentino Pereira Soares, subdelegado e subintendente na localidade de Fortaleza,

além de confirmar os registros anteriores, acrescenta algumas informações que demonstram

não se tratar o episódio de um fato isolado, mas a continuidade de uma série de manifestações

com o mesmo propósito: opor-se às medidas adotadas pela Comissão de Terras, manifestando

349 Processo-crime nº 389/1923. Maço 11, Est. 60. APRS, Porto Alegre. A data da abertura do processo é14/08/1923, sendo encerrado em 1925.350 Idem. Processo nº 389/1923. APRS.

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a revolta contra as autoridades constituídas. Narra Vicentino alguns episódios esclarecedores,

entre eles, o assassinato de um irmão de Pedro Domingos, João Domingos Camargo. O

assassino foi logo libertado através de um habeas corpus. O acusado trabalhava para o

agrimensor Prieto, que fazia medições na região, e que, diante do fato, Felício e Pedro

Domingos reuniram gente para atacar Thomé de tal e o agrimensor, o que só não aconteceu

porque os visados foram informados a tempo de se protegerem.

Esclarece, quanto à dissolução do puchirão de D. Antonia, que esse se realizava nos

matos do Juiz Distrital Jesus Mendes Castanho. Quanto aos ataques às propriedades, afirma

que participavam os acusados, juntamente com Januário Bispo de Almeida, que invadiam “a

propriedade do colono Thomaz Koproski e outros, obrigando os colonos a arrancarem suas

próprias casas”. Destruíam cercas de arame e madeira, sob o pretexto de que as referidas

terras lhes pertenciam e que tinham sido vendidas pela Comissão de Terras para os ditos

colonos.

A luta partidária foi um dos fatores de acirramento das animosidades. O sub-delegado

declara que, por ocasião da propaganda política da eleição presidencial do estado, Pedro

Domingos e Felício Bueno, agrupados, corriam o distrito ostensivamente armados de

winchester, ameaçando os eleitores e declarando que, “fosse como fosse, derrubariam o Dr.

Borges de Medeiros”.

José Gonçalo Outeiro, que se encontrava em um automóvel que vinha de Iraí, destaca

ter recebido as informações por parte dos soldados e que, diante dos fatos, dirigira-se ao cabo

repreendendo-o “como é que mandava a força tirotear o povo”, o qual respondeu que cumpria

ordens de Vicentino. Informa que o menor, ferido no ombro, foi deixado na casa de Serafim

de Moura Reis Júnior.

Fidêncio de Souza Mello Filho, segundo declara, viajava de Iraí para Palmeira,

juntamente com José Gonçalo Outeiro. Informa que chamou a atenção do Guarda Florestal,

Gentil Vargas, que “não devia andar, assim, cabalando, acompanhado de força militar” e

ainda, que fez ver ao cabo que, sendo praça da Brigada Militar, “não devia estar recebendo

ordens absurdas, tiroteando o povo de tal maneira, ao que, aquelle cabo respondeu que estava

cumprindo ordens superiores”. Narra o episódio de acordo com o que ouviu de Felício Bueno,

afirmando que o tiroteio foi iniciado pela escolta. Fidêncio Mello residia em Porto Alegre.351

351 Fidêncio Melo Filho, à época do Levante de 1902, era delegado no município. Foi dos primeiros a engajar-seno movimento de 1923. Partic ipa ativamente da revolução, lutando ao lado de Leonel Rocha e, posteriormente, exila-se na Argentina junto com o mesmo. Ferreira Filho registra que era um dos chefes revolucionários mais belicosos. Ver FERREIRA FILHO, Arthur. Op. cit. 1973. p. 38.

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144

Uma das testemunhas inqueridas é Jesus Mendes Castanho, Juiz Distrital, que não

esteve envolvido diretamente no confronto, mas expõe o fato conforme teve informações,

repetindo todas as acusações dirigidas a Pedro Domingos e Felício Bueno. Seu depoimento

apresenta um dado importante para o objetivo desta pesquisa, na medida em que cita nomes

de outros envolvidos nos episódios e que se constituem elementos de relevância na

organização do grupo que denominamos poder do mato. Informa sobre o acontecimento

ocorrido na sede da vila, no dia 09 de novembro, em que o grupo de Felício tiroteou nas

imediações da subintendência, estando entre eles, Leonel Rocha, Serafim de Moura Assis,

José Gonçalo Outeiro, Domingos Galvão, Dario Felício Bueno e muitos outros. Diz que o

grupo chegou a sua casa, antes do episódio, e que, após pequena palestra se retirou, tendo

ouvido, pouco tempo depois, uma forte descarga a umas quatro quadras mais ou menos. Não

explicita o assunto tratado e destaca que somente Felício e Dario estavam armados de

winchester, acusando os mesmos de realizarem constantes correrias e que “por qualquer

coisinha, reunem seus capangas”.

Com referência ao puchirão, citado pelos demais depoentes e que foi dissolvido pelo

grupo de Felício, informa que era realizado em terras de Manoel Alexandre de Almeida,

“sendo que parte destas terras este prometeu dar, em pagamento, ao depoente, de dinheiros

que adiantou para a respectiva medição, aconteceu que Pedro Felício Bueno, a mão armada,

dizendo-se dono da respectiva terra, dissolveu, com outros sequazes, o referido puchirão”.

Os dados constantes do processo possibilitam estabelecer alguns nexos com o

movimento revolucionário de 1923, entre eles destacamos algumas constatações:

1º- Trata-se de um episódio envolvendo representantes do poder local – Frederico

Westphalen e Vicentino Pereira Soares – em confronto com alguns chefetes da zona da mata,

entre eles, Felício Bueno, Pedro Domingos, Domingos Galvão, configurando, assim, um

enfrentamento entre poder do campo e poder do mato.

2º- É evidente o vínculo com Leonel Rocha e Serafim de Moura Assis , constatado,

através do depoimento do Juiz Distrital, quando afirma que, em 09 de novembro, aqueles,

juntamente com um grupo de moradores da região de Fortaleza, deram uma demonstração de

disposição para a luta, realizando uma descarga armada nas proximidades da subintendência.

3º- Fica demonstrado o vínculo de luta pela terra, quando os envolvidos são acusados

de atacarem as propriedades rurais de colonos, derrubarem cercas e benfeitorias, dissolve rem

um puchirão, alegando a posse das terras para si. Mais que tudo, o poder do mato enfrenta o

Chefe da Comissão de Terras, que representava o poder oficial.

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4°- A data do processo é de 1924, o que deixa margem para algumas indagações, pois

o fato delituoso ocorreu em 18 de novembro de 1922 e a primeira peça do processo é de 14 de

agosto de 1923, durante o desenrolar da Revolução, quando os envolvidos se encontravam em

plena luta. O processo, concluído em 1925, informa que os envolvidos não puderam ser

cientificados por não terem sido localizados, “alguns ausentes, outros viajando e Fidêncio

Mello, emigrado em Corrientes com Leonel Rocha”.

5°- Pedro Domingos Camargo Filho, ferido na escaramuça, foi deixado na casa de

Serafim de Moura Reis Júnior que, nessa época, fazia parte do grupo dos dissidentes. Isso

vem confirmar as ligações do grupo com os federalistas.

Em suma, de posse das informações do processo, é possível constatar que os caboclos

da região de Fortaleza, influenciados por motivações alheias ao levante estadual de 1923, mas

descontentes com as medidas da política agrária, postas em prática por Frederico Westphalen,

se levantaram em armas chefiados por Leonel Rocha, antes mesmo da deflagração do conflito

em nível estadual.

Pelos elementos constantes no processo, constata-se que José Gonçalo Outeiro e

Fidêncio Mello, que “passavam na localidade, vindos de Irai”, são as únicas testemunhas que

manifestam críticas à atuação policial. Seus nomes aparecem vinculados aos maragatos. O

primeiro faz parte do grupo que acompanha Felício e Pedro Domingos, quando estes tiroteiam

em frente à subintendência, o segundo , após a Revolução, consta estar exilado com Leonel

Rocha. Sua atuação já aparece em 24 de janeiro de 1923, quando, juntamente com João

Rodrigues Mena Barreto, Pedro Lopes de Oliveira e Serafim Assis, todos republicanos

dissidentes, aliados aos federalistas Leonel Rocha e Salustiano de Pádua, liderados pelo

deputado Arthur Caetano da Silva, declararam-se em rebelião contra o governo do estado.352

Conforme Ferreira Filho, nem sempre a luta era iniciada pelos federalistas, mas pelos

dissidentes, “levados à luta pelo impulso de mágoas antigas ou recentes, a maioria das quais

nascidas nas disputas pelo poder municipal”. 353

Os acontecimentos descritos que constam do processo se inserem no contexto das lutas

que antecederam a Revolução de 1923. O clima na região, em novembro de 1922, já era de

mobilização armada, tendo Leonel Rocha reunido tropas no interior do município, Potreiro

Bonito, serra do rio da Várzea e território de Nonoai. Serafim de Moura Assis arregimentou

sua gente de Erval Seco e os Galvão, Pedro Domingos e outros reuniam as tropas da

Fortaleza. O movimento, na sede, contava com a adesão de prestigiosos republicanos, como

352 FERREIRA FILHO, Arthur. A Revolução de 1923. Porto Alegre, Imprensa Oficial do Estado, 1973. p. 28.353 Idem. p. 34

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Josino Eleuthério dos Santos, genro de Evaristo Teixeira do Amaral, além dos republicanos

ligados a Serafim de Moura Reis. Afonso Honório dos Santos e outros federalistas, no início,

procuraram manter-se aparentemente afastados das lutas, mas acabam revelando suas

simpatias.354 Várias pessoas abandonaram Palmeira, temendo perseguições, como o

comerciante Adrião Gonçalves, mas seus filhos Galileu e João participam ativamente.355

A preocupação com o clima de beligerância tomava conta de todos. O Intendente

Adolpho Teixeira do Amaral e o Coronel Ramão Luciano de Souza, conhecido como Coronel

Bicaco, buscaram acalmar os ânimos, escrevendo cartas a Vicentino Pereira Soares e

Frederico Westphalen, “para que se mantenham na atitude de sempre, não provocando

conflicto, não atacando e tendo mesmo a possível tolerância com os elementos adversos”. 356

A carta é datada de 20 de novembro de 1922, portanto, apenas dois dias após o episódio na

região de Fortaleza. Os missivistas informam terem recebido propostas da parte de Domingos

Galvão e de Serafim Lütz, impossíveis de serem aceitas. O primeiro é um dos chefes do poder

do mato, na região de Fortaleza, e o segundo, genro de Serafim de Moura Reis. Adolpho

Teixeira do Amaral era Intendente, licencia-se do cargo, assumindo Frederico Westphalen.

No dia 23 de novembro, num episódio em frente à residência de Serafim Júnior, ocorre

a morte de Belizário Simões, que, conforme Soares, seria a primeira vítima da Revolução de

23.357 No final de dezembro de 1922, Leonel Rocha já havia reunido um contingente regular e

acampou no Passo Grande. O Delegado Homero Pereira dos Santos, juntamente com um

destacamento da Brigada Militar de cerca de quarenta homens, tentou dissolver o contingente.

Não obtendo êxito, solicitou novas instruções ao governo do estado. Os legalistas se

organizavam sob o comando de Vazulmiro Dutra, que formou o Terceiro Corpo Provisório.358

Nota-se, outrossim, que antes mesmo da Comissão de Poderes da Assembléia se

pronunciar sobre o resultado do pleito que confirmou a eleição de Borges de Medeiros, já

354 SOARES, Mozart Pereira. Op. cit. p. 211.355 Entrevista Waldemar Gonçalves Sobrinho, em 10/03/2002. Informa que seu pai João Gonçalves participou da Revolução de 1923, junto às tropas de Felipe Portinho.356 Carta de Adolpho Teixeira do Amaral e Ramão Luciano de Souza. Apud .SOARES, Mozart Pereira. Op. cit. p. 211. 357 Serafim de Moura Reis Júnior, sabendo que a revolução se articulava, resolveu transferir-se para Cruz Alta, pois não tinha condições de enfrentar uma nova luta, visto ter perdido uma perna no Levante de 1902.Seu primo, Serafim de Moura Assis (Finzito), foi encarregado de organizar a saída com segurança, reunindo um piquete com 30 a 40 homens, que o acompanhassem a Cruz Alta, de onde poderia atingir a Argentina, se necessário. Essa gente chegou a Palmeira ao anoitecer de 23 de novembro de 1922, poucos dias após o confronto narrado no processo. Quando o último cavaleiro penetrava o portão da residência de Serafim, foi atingido por uma rajada de fuzil da Brigada Militar, tombando morto, junto da montaria. Era Belizário Simões, que seria a primeira vítima da revolução. SOARES, Mozart Pereira. Op. cit. p. 209.358 Idem. p. 213.

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ocorriam escaramuças na região de Fortaleza, conforme relato de Arthur Ferreira Filho. Sem

precisar a data em que o fato ocorreu, informa que:

No Rincão da Fortaleza, Palmeira das Missões, o Cel. Serafim Assis é derrotado em ligeiro combate pelo capitão legalista Vicente Pereira Soares, sendo este o primeiro sangue derramado na luta que se iniciava. E também no mesmo município, o chefe dissidente Cel. Josino dos Santos, antigo companheiro e amigo pessoal de Júlio de Castilhos e Pinheiro Machado, seguido de Fidêncio Mello e outros, levantava-se contra a situação estadual desatendendo ao apelo da Loja Maçônica local para que desistisse de semelhante atitude”.359

De acordo com Mozart Pereira Soares, o fato teria ocorrido em princípio de janeiro de

1923, havendo alguns feridos e “tendo sido este o primeiro combate em Palmeira, na

Revolução que se iniciava”. 360 Afirma que “o primeiro combate que aconteceu na Revolução

de 23 não foi, como dizem, em Carazinho, comandado pelo deputado Artur Caetano, mas foi

o encontro entre as tropas do governo do Rio Grande do Sul, os borgistas, contra o Leonel

Rocha, no Passo Grande. Foi o primeiro combate e o Governo era representado pelo meu avô,

Capitão Vicentino Pereira Soares. Artur Ferreira Filho nota esse fato. E quem disse isso foi

um homem que conheceu no local os fatos que escreveu”. 361

Em 24 de janeiro, quando o deputado Arthur Caetano dirige-se ao Presidente da

República em telegrama dizendo-se “à frente de 4.000 revolucionários dispostos a só largar as

armas, quando Borges de Medeiros deixasse o poder”, Leonel Rocha tenta apoderar-se de

Palmeira.362

Parece haver consenso, entre os estudiosos da Revolução de 1923, de que a oposição

no Rio Grande do Sul pretendia com o movimento armado criar condições para a intervenção

federal no estado, pondo fim ao mandato de Borges de Medeiros. De acordo com Maria

Antonieta Antonacci, Artur Bernardes “enfrentando forte oposição no âmbito parlamentar e

militar, não se sentia suficientemente forte para agir no RS. Numa atitude de expectativa e

reserva, aguardou melhor oportunidade para intervir, deixando o movimento armado rio-

grandense tomar vulto”. 363

Os revolucionários, contando com poucos recursos, procuraram deixar o Rio Grande

convulsionado, adotando a tática de guerrilhas, com lutas dispersas, nunca empenhando a

totalidade de suas forças. Para enfrentar os revoltosos, as tropas governistas tiveram que se

fragmentar para atender aos vários pontos ameaçados.

359 FERREIRA FILHO, Arthur. Op. cit. 1973. p. 34.360 SOARES, Mozart Pereira. Op. cit. p. 213.361 Idem. Entrevista concedida a autora em 14/01/2002.362 FERREIRA FILHO, Arthur. Op. cit. 1973. p. 36363 ANTONACCI, Maria Antonieta. RS: as oposições & a Revolução de 1923. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1981. p. 99.

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O município de Palmeira, dispondo de vasta área florestal, constituiu-se num espaço

privilegiado para ação intensa dos maragatos na região, durante o convulsionado ano de 1923.

Os líderes revolucionários que agiam na região norte do estado, entre eles, Fidêncio Mello,

Mena Barreto e Serafim Assis, dividiam suas tropas em vários grupos e “em caso de

necessidade agregavam-se a Leonel Rocha, caudilho maragato de real prestígio entre os

caboclos palmeirenses, que engrossavam suas fileiras com adesões diárias”. 364

A tática de guerrilha exigia dos governistas uma ação constante em várias frentes. Daí

a criação dos Corpos Provisórios, “compostos por civis e distribuídos em várias brigadas,

perfazendo totais de mil e quinhentos a dois mil combatentes. Para a composição dos Corpos

Provisórios, o governo lançou mão do voluntário a maneador, homem incorporado à força e

de mercenários uruguaios”. 365

Fonte: História ilustrada do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Já Editores. 1998. p. 230

Figura 5 – Mapa dos combates da Revolução de 1923.

364 FERREIRA FILHO, Arthur. Op. cit. 1973. p. .38.365 ANTONACCI, Maria A. Op. cit. p. 100.

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As tropas revolucionárias foram acrescidas de um reforço vindo de Santa Catarina,

com Felipe Portinho, que trouxe um pequeno contingente e uniu-se a Salustiano de Pádua. O

jornal A Federação faz duras críticas a essas tropas, afirmando serem remanescentes da

Guerra do Contestado:

Da sua tropa, os moradores dos municípios por elle percorridos espalharam-se em panico, rôtos, famintos, verdadeiras presas do pavor; os esclarecidos patriotas educados na escola

cívica do monge João M aria, e que vieram com Portinho do Contestado, são os únicos que ainda o acompanham. Vêr-se livre desses, ser-lhe-á difficil, aliás. Esse pessoal que não se contenta com pouca cousa: veiu para roubar, saquear e satisfazer todos os seus baixos instintos. Não será sem chamar a ordem o seu ‘general’ que os desentocou que elles hão de regressar para os desvãos do Contestado, mais ou menos com as mãos abanando, como vieram. (grifo nosso)366

Durante todo o período da revolução, Leonel manteve-se nas matas do município,

fazendo ataques freqüentes, num típico movimento de guerrilha. O ataque de maiores

proporções aconteceu em 04 de junho de 1923, quando ele, auxiliado por Mena Barreto e

Serafim de Moura Assis, e contando, ainda, com o republicano dissidente, Josino Eleuthério

dos Santos, tentaram tomar a Vila de Palmeira. O ataque era esperado há muito, e Vazulmiro

tratou de fortificar a Vila e tomar uma posição defensiva, concentrou tropas nas principais

entradas da cidade, pôs trincheiras e barreiras na entrada das ruas que davam para o Quartel e

a Intendência. “Algumas ruas públicas foram minadas com latas de querosene carregadas de

explosivos, que detonariam acionadas por um dispositivo elétrico”. 367 O problema maior para

os grupos em confronto era a escassez de munição, daí usarem estratégias de efeito

psicológico para impressionar o inimigo.

O ataque a Palmeira, de acordo com Leonel Rocha, é atribuído a uma decisão de

Fidêncio Mello Filho que, “com seus 40 homens, seguiu pela estrada de Potreiro Bonito,

enquanto Leonel Rocha, acampado em Lageado Macaco, distante duas e meia léguas da

cidade, seguiria pela estrada de Santa Bárbara com elementos de Fortaleza, Passo Grande e

Iraí”. Quando Fidêncio tomava posição, num valo próximo duma olaria à espera das forças de

Leonel, foi surpreendido pelo inimigo, atacou sozinho a cidade, mas foi rechaçado. Leonel,

em companhia do Cel. Mena Barreto, Serafim de Moura Assis e o coronel Pompílio Pithan

“atacaram a cidade para salvar o coronel Fidêncio e depois se retiraram em ordem”.368

366 Artigo do jornal A Federação: O exército libertário: as suas ‘façanhas e os seus triumphos’. 02/04/1923, p. 1. MCSHJC.367 Ver SOARES, Mozart Pereira. Op. cit. p. 215-220. O autor faz uma descrição detalhada do episódio, valendo-se do relato de pessoas que participaram dos fatos.368 HICKMANN, João Pe. Op. cit. p. 87.

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Leonel parece não dar ao episódio a importância que o fato adquire nos registros

oficiais, talvez por representar uma amarga derrota. Na memória coletiva, o episódio adquire

especial relevância em razão de terem ficado mortos, na periferia da vila, três maragatos e que

foram sepultados em cova rasa por algumas pessoas que ficaram sensibilizadas. Um deles que

morrera praticamente dentro do povoado foi arrastado à cincha do cavalo por João Anselmo,

integrante do 3º Corpo Provisório.

No local, mais tarde, foi construído um túmulo pelo pedreiro Gabriel Silva, que foi

Tenente do Terceiro, para cumprir uma promessa. Os ossos foram transferidos para o

cemitério municipal, mas no local, ainda algumas pessoas acendem velas e colocam flores. O

episódio influenciou na denominação da área, que hoje é conhecida como Maragatinhos,

assim como o córrego próximo.

Vários combates marcaram a Revolução na região e, em todos, Leonel Rocha teve

uma participação destacada: Fazendinha, Estância Velha, São Bento, entre outros. Relata

assim, o assalto ao trem de passageiros que vinha de Cruz Alta, interceptado nas imediações

de Pinheiro Marcado: “parando o coboio pedi ao chefe do trem para passar uma vistoria.

Encarreguei desta tarefa o valoroso Cel. Fidêncio Melo Filho e o Cel. Eduardo Dumoncel”369.

Vinham no trem cinco oficiais, um cabo e uma praça, sendo um o Tenente Pedro Farias,

ajudante de ordens do Gal. Firmino de Paula. “Tratei-os como filhos, ficando os ditos

prisioneiros em liberdade no acampamento, sob a guarda de meu assistente, Cel. Pompílio

Pithan, com tôdas as regalias”. 370

O último combate que Leonel Rocha teve em 1923 foi na retirada de São Bento, no

município de Carazinho. As forças borgistas de Passo Fundo, Cruz Alta e Palmeira tentaram

cercá- lo. Leonel retirou-se apressadamente, confiando a retaguarda ao Coronel Aníbal

Geraldo Pereira, também natural de Bom Retiro do Sul, que desempenhou sua missão com

altivez371.

O movimento revolucionário, à medida que se alastrava, obteve a simpatia de alguns

membros do Governo Federal, a ponto de comparecerem a “uma festa realizada no Clube dos

Diários, em benefício dos rebeldes feridos em combate, Estácio Coimbra, vice-presidente da

República, o Gen. Setembrino de Carvalho, Ministro da Guerra e o Almirante Alexandrino de

369 Eduardo Dumoncel era irmão do Coronel Victor Dumoncel Filho, ambos ocupando posições políticas de destaque, porém em campos contrários: o primeiro era maragato e o segundo, chimango. Victor Dumoncel desempenhou importante papel na política regional, rivalizando com Vazulmiro Dutra, na disputa pelo controle do poder regional, dentro dos quadros do Partido Republicano. 370 HICKMANN, João Pe. Op. cit. p. 86.371 Idem. p. 88.

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Alencar, Ministro da Marinha”. 372 Entretanto, Arthur Bernardes abstinha-se de qualquer

pronunciamento.

O Governador de Santa Catarina, Hercílio Luz, favorecia abertamente os rebeldes,

permitindo que ali se organizassem e permanecessem acampados e armados, estando as

fronteiras entre os dois estados, sempre franqueadas. Isso permitiu uma aproximação com a

população cabocla da região oeste de Santa Catarina. O jornal “A Federação” denunciava a

presença de remanescentes do Contestado entre as tropas de Felipe Portinho, registrando essa

aproximação de maneira irônica:

Destroçado no Capão Bonito, o homem só teve uma preocupação: acertar com a porta por onde entrara. Supersticioso como qualquer libertário educado por João Maria, o da Virge de

Bascelona, Portinho entendeu que é de mao agouro entrar por um lugar e sahir por outro. Dahi o seu esforço, em voltar pelos caminhos já percorridos, até poder se abrigar nos salvadores mattos da fronteira com Santa Catarina.373

Na região de Erechim, foi instalada a administração revolucionária, sendo nomeado

governador provisório Temístocles Ochôa. Aí as tropas de Portinho mantinham seu reduto,

podendo facilmente evadir-se para o estado de Santa Catarina. Nos primeiros dias de

setembro, teve que enfrentar combates vigorosos contra as brigadas de Firmino Paula e Paim

Filho, obrigando o General a cruzar o rio Uruguai para o vizinho estado.

Portinho não mais voltou à região norte, onde restaram apenas as colunas de Leonel

Rocha e mais alguns grupos dispersos, Mena Barreto e Jango Bento. Aproveitando o

momento em que a tropa de Firmino se encontrava na perseguição a Portinho, Leonel Rocha

ataca o Sobrado de Dumoncel, próximo a Santa Bárbara, onde havia farto depósito de

munição e outros materiais, mas que representava também o ataque a um dos símbolos do

poder dos coronéis.374 Foi um ato de ousadia que surpreendeu os republicanos, conforme

Vazulmiro Dutra: “jamais se poderia crêr que os insidiosos inimigos da ordem e da Republica

(...) matutos, sempre ariscos a se mostrarem em lugares distanciados dos mattos pudessem

tentar uma sortida contra Santa Bárbara”. 375

Leonel Rocha achava-se acampado no Passo Grande, quando foi assinado o armistício.

Dissolveu, então, suas tropas, ocultando o armamento prestável, como era comum.

372 FERREIRA FILHO, Arthur. Op. cit. 1973. p. 41373 Jornal A Federação, 02/04/1923. MCSHJC.374 Idem. p. 44. Trata-se do sobrado do Coronel Victor Dumoncel, um dos líderes republicanos mais destacado na região.375 Ordem do dia 18/09/1923 – Vazulmiro Dutra. AVaD/IHGRS. Faz críticas à atuação dos maragatos, informa que houve 18 mortos, além do roubo de armas e munição.

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Fonte: Álbum dos Bandoleiros. IHGRS.

Figura: 6 – Coronel Adalberto Machado, General Leonel Rocha e Eduardo

Victor Dumoncel.

4.3.1. O olhar do poder

O Inquérito que apurou a Revolução de 1923 é um demonstrativo da atuação de

Leonel Rocha na região, como também dos demais envolvidos na deflagração do movimento,

na região do Planalto. As investigações constam dos processos nº 1588, de 23 de abril de

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1923, sendo de suma importância para elucidação dos fatos que deram início ao movimento

revolucionário. A investigação policial, iniciada por determinação de Borges de Medeiros,

conforme cons ta da parte inicial do processo, trata o movimento como uma “conspiração” ,

promovida pelo Deputado Estadual Arthur Caetano da Silva, João Rodrigues Menna Barreto,

Salustiano de Pádua e outros, nos municípios de Passo Fundo, Palmeira das Missões e Boa

Vista do Erechim.

Constata-se que, em abril de 1923, em pleno período de lutas armadas em várias partes

do estado, o governo procurava tratar o assunto como um caso policial, um simples

movimento sedicioso contra os resultados da reeleição de Borges de Medeiros. Constam do

processo inúmeros documentos sobre danos ocorridos ao patrimônio, mortes, requisição de

mercadorias, entre outros.

Na denúncia inicial consta que, a 12 de janeiro do fluente ano (1923), João Rodrigues

Menna Barreto, Adão Issler, Otaviano Issler, Salustiano de Pádua, Pedro Lopes de Oliveira,

vulgo Lolico, e o deputado federalista Arthur Caetano da Silva e chefes assisistas, no

município de Passo Fundo, “começaram a reunir partidários despeitados pela estrondosa

victória conquistada na manifestação libérrima das urnas, no ultimo pleito para sucessão

presidencial do Estado”. O objetivo inicial era evitar a posse de Borges de Medeiros, mas que

tendo o mesmo sido reconhecido e empossado como presidente eleito do estado, “aquelles

chefetes, assumiram então, atitude francamente sediciosa, reunindo perto de dois mil homens,

quase todos armados de mausers, winchesters, comblains, lanças, rewolveres, espadas e

facões...”

Em Carazinho, mudaram o nome para Assisópolis e Menna Barreto foi aclamado

chefe, que juntamente com Salustiano Pádua e Arthur Caetano, constituiam a junta

revolucionária, sendo acusados de várias violências como saques, na forma de requisições,

conforme documentos inclusos. Informa que as forças legais, comandadas por Firmino Paula,

obrigaram os sediciosos a se dispersarem em grupos, tomando a direção de Quatro Irmãos, no

município de Erechim e daí para Nonoai, município de Palmeira. Concomitantemente,

idêntico movimento sedicioso se manifestava neste último municípío e no de Boa Vista do

Erechim, promovido diretamente por Leonel Rocha, Serafim de Moura Reis Júnior, Serafim

de Moura Assis, Hortencio Silveira, João do Amaral, João José de Lima e Pedro Domingos,

em Palmeira e por Leopoldino Silva e outros em Erechim. Em Palmeira, chegaram a investir

contra a Vila, “com perto de mil e tantos homens, sitiando-a”. Assim como em Passo Fundo,

foram repelidos, sendo que, com a aproximação de um reforço levado pelo próprio General

Firmino Paula, se puseram em desordenada fuga.

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Segue a denúncia com informações de que nos três municípios, Passo Fundo, Palmeira

e Erechim, os sediciosos cometeram “violências vandalicas conforme detalhadamente referem

as testemunhas idôneas que são arroladas”. Anexa documentos diversos, especialmente,

requisições dos chefes revolucionários e determina a prisão dos envolvidos. Seguem-se os

depoimentos das testemunhas, todos fazendo acusações de abusos cometidos pelos

revolucionários, como confisco de bens (cavalos, reses, armas), e pressões para que

participassem do movimento.376

Em anexo, consta o processo da Subchefatura de Polícia, da 2ª Região, com o

Relatório Policial sobre o movimento sedicioso de janeiro do mesmo ano, no município de

Palmeira. A parte inicial do relatório, assinado pelo Subchefe de Polícia, José N. de Miranda

Neto e datado de 3 de abril de 1923, esclarece que “atendendo instruções recebidas do

Governo do Estado, me transportei para esta Villa de Palmeira, com o fim de proceder a

indagações sobre o movimento sedicioso, havido neste município, em janeiro próximo

passado”. Os acontecimentos são tratados como se fossem um fato isolado e já superado.

Informa que procurou ouvir as pessoas de mais respeitabilidade do município,

escolhendo-as dentre os partidários de ambas as facções políticas. Procurou também ouvir

alguns indivíduos que estiveram envolvidos no movimento sedicioso e que, depois dos seus

primeiros fracassos, se apresentaram às autoridades policiais procurando garantias. Os

depoimentos das testemunhas levam o subchefe de polícia a concluir que :

(...) em 12 de janeiro proximo passado, teve início neste município um movimento subversivo da ordem publica, chefiado por Leonel Rocha, Serafim de Moura Assis, Serafim de Moura Reis Junior e Hortencio Onofre da Silveira, movimento este que tinha por objetivo procurar impedir, por meios violentos, a posse do Dr. Borges de Medeiros, no cargo de Presidente do Estado, para o qual fôra eleito e reconhecido pela Assembléia do Estado. Este movimento, não resta a menor dúvida, se prende ao plano de uma sedição preconcebida, de há muito, em alguns municípios da Região Serrana e que tinha como chefe principal e ostensivo, em Passo Fundo, o Dr. Arthur Caetano da Silva, deputado à Assembléia do Estado e como objetivo principal o mesmo acima declarado.377

Seguem-se os depoimentos das dezenove testemunhas378 que, em linhas gerais,

confirmam a ocorrência do movimento revolucionário com o objetivo de impedir a posse de

376 Os depoimentos são em número de quarenta, tomados em Passo Fundo e datados de 23/03/1923. Processo Nº 1588 de 23/04/1923, p.10 a 66, relativos ao movimento em Passo Fundo. Maço: 105, Est. 42. APRS377 Denúncia constante do processo citado. p. 2378 Os depoentes são João Antônio de Vargas, Rufilo Corrêa da Silva, Onofre Bento Rodrigues, Edemar de Souza, Ramão Luciano de Souza, Frederico Guilherme Hofmeister, Manoel Pereira de Almeida, Benevenuto Dalla Borba, Antonio Pereira Neto, Basílio Ferreira Brizolla, Marcolino Ribeiro Martins, José Simão Felix,Jayme Borges Gonçalves, Frederico Westphalen, João Maria Baptista, Josino Gonçalves Duarte, Rufino Ribas Feijó, João Tacilhos Corneauer e Alcides Gomes de Souza. Processo Nº 1588 de 23/04/1923. APRS.

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Borges de Medeiros. Os chefes do movimento são os nomes arrolados acima e que foram

efetivamente indiciados no inquérito, no entanto, muitos outros nomes foram citados, dentre

eles: Pompílio Pithan, Pedro Arão, Domingos Galvão, João Amaral, João Rodrigues de

Almeida, Pedro Lemes de Carvalho, Felício Bueno e José Gonçalo Outeiro. Os três últimos

foram apontados por Frederico Westphalen e estiveram envolvidos no episódio de 18 de

novembro de 1922, na Fortaleza.

A análise dos depoimentos leva a algumas conclusões:

1º- Vários depoimentos afirmam ter o movimento iniciado, no município, em 12 de

janeiro, quando os revolucionários já tinham gente reunida “na Fortaleza” e no “Passo

Grande” e atacavam os automóveis em trânsito para as Águas do Mel, Iraí. Ramão Luciano de

Souza, o Coronel Bicaco, destaca que “o movimento teve início antes da eleição para

Presidente do Es tado, pois desde o dia 18 de novembro do ano passado que os assisistas

tinham gente reunida e começaram a atacar os nossos eleitores na Fortaleza, tendo um piquete

comandado por Pedro Domingos, tiroteado o Dr. Frederico Westphalen, que, com outros

companheiros, andava em excursão política na Fortaleza”. Faz outras declarações que

confirmam que a mobilização já vinha ocorrendo desde o final do ano anterior, dentre elas,

informa que, por ocasião da vinda do Chefe de Polícia ao município, “Leonel e os outros

chefes assisistas prometeram dissolver sua gente, o que entretanto não fizeram”. Declarou

ainda que, desde 22 de janeiro, atacavam automóveis na estrada de Fortaleza, impedindo o

trânsito regular entre essa vila e o povoado do Mel.

Frederico Westphalen também afirma que o movimento começou antes das eleições

“pois em 17 de novembro os assisistas começaram a reunir gente, tendo impedido o trânsito

de automóveis entre esta vila e o Mel, desarmando passageiros e agredindo as forças da

polícia”. Faz referências ao episódio em que esteve envolvido, juntamente com Vicentino

Pereira Soares, “no qual foi agredido a tiros por um piquete de revolucionários”. Destaca que

depois da eleição dissolveram “essa gente”, mas começaram a se reunir em 12 de janeiro e

tornaram a impedir o trânsito na estrada do Mel.

2º- Foram indiciados no inquérito os revolucionários apontados como chefes do

movimento sedicioso no município, na seguinte ordem: 1- Leonel Maria da Rocha; 2- Serafim

de Moura Assis; 3- Serafim de Moura Reis Junior; 4- Hortêncio Onofre da Silveira,

considerados incursos nos artigos 118 e 112 do Código Penal.

3º- Os depoentes afirmaram que houve depredações, saques, havendo, ainda, grupos

revolucionários pelos distritos, que furtavam e faziam emboscadas aos republicanos, o que

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tornava muito perigoso transitar pelo interior. A maioria dizia-se prejudicada, citando outras

pessoas em idênticas condições.

4º- A maior parte dos depoimentos registra que “o fim que os revolucionários tinham

em vista era evitar a posse de Borges de Medeiros”. Alguns poucos dizem desconhecer os

motivos do movimento, entre esses estão os federalistas inqueridos.

5º- Alguns depoimentos de federalistas informam que eles foram induzidos a

participar do movimento sob a alegação de que o mesmo consistia em fazer um protesto

contra a eleição e posse do Dr. Borges. Outros dizem terem sido obrigados a participar, mas

assim que puderam, afastaram-se da luta.

6º- Confirma-se pelos depoimentos a participação de Serafim de Moura Reis Junior,

apontado como um dos líderes, o que comprova a informação de Arthur Ferreira Filho de que

os inimigos de 1902 estavam lado a lado em 1923. Não participou diretamente das lutas, mas,

de acordo com o que consta do processo, comunicava-se com os correligionários, por linha

telegráfica, a partir de São Paulo. No depoimento de Marcolino Martins, constata-se haver

uma combinação por meio de chaves telegráficas, entre Serafim de Moura Reis Júnior, que se

encontrava em São Paulo, e os chefes revolucionários. Declara que “está absolutamente alheio

a tais combinações, não tendo sido consultado a respeito e se tivesse sido não aceitaria o

papel que lhe quizeram dar (...) principalmente a pedido de Serafim de Moura Reis Junior,

que foi aqui um dos maiores perseguidores dos federalistas”.

Outro adepto da candidatura do Dr. Assis Brasil, Basílio Ferreira Brizolla, declara, a

respeito de uma carta dirigida ao depoente por Serafim de Moura Reis Junior, de Itararé,

município de São Paulo, e apreendida pela polícia que “nunca teve com Serafim Junior

qualquer troca de correspondência ou qualquer combinação sobre o movimento

revolucionário deste ou de outro município”. Mais adiante declara, no entanto, que trocou

telegramas com o mesmo. Um deles veio de Santa Maria, antes da eleição de novembro em

que pedia ao depoente para trabalhar pela candidatura Assis Brasil e outro, de Florianópolis,

pedia notícias ao qual ele respondeu que estava tudo em paz. Declara, ainda, ter enviado outro

telegrama, juntamente com o gerente do Banco da Província, para que Serafim Junior

solucionasse o pagamento de uma letra de dois contos de réis, da qual era avalista.

O depoimento de Josino Gonçalves informa que esteve nas forças revolucionárias “por

ter sido reunido à força” e que todos obedeciam a ordens e recebiam instruções por cartas e

telegramas de Serafim de Moura Reis Júnior, que se achava ausente.

O relatório informa, ao final, sobre as investigações feitas pelo ex-delegado de polícia

Homero Pereira dos Santos, “a respeito de umas cartas apreendidas pela polícia e contendo

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combinações sobre o movimento sedicioso, as quais foram enviadas de São Paulo, por um de

seus chefes, para Leonel Rocha, Serafim de Moura Assis, Leopoldino Cesar e outros”. De

acordo com os depoimentos, os envolvidos379 no recebimento de tais cartas, protestam sua

inocência. O relator declara que “tomando informações sobre os mesmos soube que são

pessoas respeitáveis e que não tomaram parte alguma no movimento sedicioso e que nem

sobre eles pesa a menor parcela de suspeição de se entregarem à espionagem”. Parece que

Serafim de Moura Reis Junior, estando ausente desde antes das eleições, enviou tais cartas,

supondo que os federalistas citados estivessem participando do movimento revolucionário,

por serem partidários da candidatura Assis Brasil.

As lutas continuavam, visto que o Subchefe de Polícia informava não ser possível

proceder aos corpos de delito e às exumações nos distritos rurais onde ocorreram os atos

delituosos, pois ainda não estava de todo restabelecida a segurança do município. “Pelos

sertões de quase todos os seus distritos grupos sediciosos da pior espécie, continuam a

perambular, furtando, depredando e armando emboscadas para assassínios de viajantes”.

Assim, embora a realização das investigações insistisse em tratar o assunto como um

fato isolado, o movimento revolucionário prosseguia no estado, só sendo pacificado no final

daquele mesmo ano.

4.3.2. A pacificação

O Partido Republicano Rio-grandense reuniu-se em Congresso, a 5 de outubro de

1923, pela primeira vez desde a proclamação da República e reafirmou o apoio a Borges de

Medeiros. A situação militar, no movimento revolucionário, era francamente favorável ao

Governo, enquanto os rebeldes viviam momentos difíceis, com escassos recursos bélicos. Os

generais maragatos estavam dispersos: Portinho passara para o município catarinense de São

Joaquim; Leonel Rocha internara-se nas florestas de Palmeira; Honório Lemes, no Caverá;

Estácio Azambuja, rumara para o Uruguai, e apenas Zeca Neto tinha realizado uma façanha

recente, a ocupação momentânea de Cruz Alta.

Os revolucionários aguardavam, desde o início, a intervenção do Governo Federal,

para depor Borges de Medeiros, o que teria cessado o confronto armado, evitando mortes e

prejuízos. Arthur Bernardes designou o Ministro da Guerra, General Setembrino de

379 Entre os envolvidos no recebimento das cartas são citados Protásio Vargas, Basílio Pereira Brizola, Marcolino Pereira Martins e João dos Santos Siqueira.

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Carvalho380, para entrar em contato com os líderes rio-grandenses e promover a paz. Chegou a

Porto Alegre em 1º de novembro e, de seus primeiros encontros com Borges de Medeiros,

resultou um armistício, que vigorou a partir de 7 de novembro. Em contato com Assis Brasil e

Maciel Júnior, iniciaram as negociações, para que pudessem encontrar um meio termo entre

as aspirações dos revolucionários e os interesses do governo. Nessa perspectiva, as propostas

de paz caminharam no sentido de buscar a conciliação entre as frações da classe dominante,

em luta.381

Conforme Antonacci, a mudança de rumo veio com a conscientização de Assis Brasil,

que entendeu “a necessidade de superarem as questões no interior da classe dominante

gaúcha, para poderem fazer frente aos da classe como um todo”. 382 A saída de Borges de

Medeiros, razão da luta armada, era uma questão fora de cogitações, tanto por parte dos

republicanos, como por parte do Governo Federal. Maciel Júnior apontava para uma

perspectiva mais viável, defendendo uma supressão progressiva do domínio do PRR,

propondo o “avanço paulatino, que consolidaria os alicerces de uma nova era”. 383

Assis Brasil desistiu da renúncia de Borges de Medeiros e concentrou seus esforços no

adiamento das eleições federais para a Câmara e o Senado, previstas para 1924, na eleição do

vice presidente e em garantias federais para a efetivação das novas eleições. Mas não foi fácil

às oposições chegarem ao consenso, que só foi alcançado mediante a manutenção na ênfase

nos procedimentos eleitorais, passando, assim, “da luta das armas para a luta das urnas”,

conforme proclamação de Assis Brasil. A 14 de dezembro de 1923, no castelo de Pedras

Altas, foi assinada a “Ata de Pacificação”, não sem antes ter ocorrido intensa luta interna, em

ambas as facções. De acordo com Antonacci,

O Pacto de Pedras Altas, fruto da habilidade e da visão política de Assis Brasil, canalizou a luta armada das oposições para um acordo com os republicanos borgistas. Se taticamente as oposições conseguiram o que pretendiam ao iniciar o movimento revolucionário (intervenção federal e convocação de eleições livres), no terreno dos princípios também obtiveramsignificativa vitória. Os assisistas atingiram seus objetivos políticos, principalmente (...) a proibição de reeleição do presidente e dos intendentes, e eleição do vice-presidente. Oprincípio da reeleição do presidente e dos intendentes, articulado com a nomeção do vice-

380 Setembrino de Carvalho era gaúcho e tinha um curioso relacionamento com o PRR. Participou da Assembléia Constituinte nomeado por Castilhos, atuara como interventor no Ceará, em 1914, atendendo a Pinheiro Machado. Mas não era amigo de Borges de Medeiros e só veio ao estado, quando esse estava decidido a estabelecer negociações de paz. Instalado em Pedras Altas, transmitia as informações a Borges, em Porto Alegre,pressionando ambas as partes a terminarem a guerra. Ver: LOVE, Joseph. Op. cit. p. 223.381 Ver: ANTONACCI, Maria Antonieta. Op. cit. p. 105-107.382 ANTONACCI, Maria antonieta. Op. cit.. p. 107.383 João Francisco Maciel Junior, descendente de tradicional família pelotense, exerceu as funções de deputado federal de 1915 a 1917; de 1921 a 1926 e em 1930; revolucionário de 1923 e de 1930. Foi Ministro da Justiça de 1932 a 1934, durante o governo provisório de Getúlio Vargas. “Integrara-se ao movimento pró-Assis, chegando a se unir às forças rebeldes do Cel. Portinho. Participou intensamente das negociações para o Pacto de Pedras Altas”. ANTONACCI, Maria Antonieta. Op. cit. p. 105.

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presidente, era o sustentáculo do ponto nuclear do projeto do PRR: a continuidadeadministrativa.384

Os federalistas não foram bem sucedidos quanto à deposição de Borges de Medeiros,

no entanto, conseguiram limitar sua autoridade. Este, relutantemente, aceitou a mudança na

Constituição, proibindo os mandatos consecutivos e sacrificou a medida positivista que

permitia ao governador indicar o seu vice. A garantia de eleições, que possibilitassem à

oposição conquistar cadeiras na Assembléia e no Congresso, permitiu a assinatura do Acordo

em meados de dezembro, encerrando uma guerra de onze meses. Embora o acordo não

agradasse a todos os libertadores, Love afirma que “a paz significou uma situação diferente

daquele relacionamento vencedor-vencido de 1895, quando não, um acordo entre iguais”. 385

Fonte: Álbum dos Bandoleiros. IHRGS

Figura 7: Conferência de Bagé. Quadro histórico da reunião efetuada no Salão do Hotel do Comércio, em 14 de novembro de 1923. Da esquerda para a direita: Gen. Setembrino de Carvalho, Gen. Zeca Neto, Dr. Ângelo Pinheiro, Gen. Honório Lemes, Gen. Felipe Portinho, Gen. Leonel

Rocha, Gen. João Rodrigues Menna Barreto, Cel. Chiquinote Pereira, Gen. Estácio Azambuja, Dr. Assis Brasil; de pé: Cel. Lafayette Cruz.

384 ANTONACCI, Maria Antonieta. Op. cit. p. 110.385 LOVE, Joseph. Op. cit. p. 223.

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Os revolucionários palmeirenses renderam-se à solução conciliatória negociada pelos

líderes federalistas, ocorrendo uma aproximação de Leonel Rocha com Antunes Maciel, o que

se depreende de correspondência posterior trocada entre ambos. Maciel Júnior dirige-se a

Leonel designando-o como “a figura honrada e valorosa do meu velho amigo”386 no período

em que este se encontrava emigrado na Argentina, em 1929. Na ocasião, envia-lhe dinheiro e

o exorta a aderir ao movimento liberal.

O documento mais importante para elucidar a posição de Leonel Rocha quanto às

negociações de paz é uma carta enviada a Setembrino de Carvalho na qual expõe os motivos

que o levaram à luta e que se constituem na condição para a deposição das armas. Declara em

sua carta:

Tomei das armas por amor do nosso berço, que prêso ao jugo da prepotência borgista, clamma, anciando por Liberdade e Justiça; - bens e direitos que há vinte e cinco annos lhe são vedados gozar. Creia V. Excia. que esta lucta, tarde ou cedo, deveria irromper, provocada pela situação cruel e opressora que a tyrania do Dr. Borges nos queria impor.Republica, e muito menos Democracia, bem vêdes, não existem de facto no nosso Rio Grande. Criou-se aqui uma autocracia, a qual enfecha nas mãos de um só homem todos os poderes, tornando-o o mais absoluto dos Senhores. Não podia portanto a terra classica da Liberdade, terra tradicional nas pugnas dos Direitos do Homem dobrar a cerviz e acceitar impassivel semelhante estado de cousas.(...) Pois bem, antes de tomar qualquer deliberação, consultei o animo dos que me auxiliam nesta nobre cruzada e, em todos, officiais e soldados, notei a mesma disposição, em todos os mesmos sentimentos e desejos, anciando por um mesmo e unico fim; - a deposição do Dr. Borges e conseqentemente a effectualidade de uma eleição, realizada pela lei eleitoralfederal.387

Suas palavras denotam clareza quanto ao motivo da luta, afirmando que não reconhece

a eleição de Borges de Medeiros, tendo em vista que usurpou o cargo de Presidente do Estado

e praticou toda sorte de fraudes, a ponto de ir até a pratica de assassinatos em mesas eleitorais.

É incisivo quanto às condições de paz: “se as causas desta lucta são a deposição do despota e

consequentemente a realização de uma nova e verdadeira eleição, - só cessando essa causa

poderá desaparecer o effeito”(grifo nosso).388 Afirma que seu pensamento consubstancia o

pensamento dos seus comandados. No entanto, ao final, faz uma ressalva “se esta não for a

deliberação tomada pelos chefes das outras divisões (...) não serei eu, certamente, a notta

386 Carta de Antunes Maciel Júnior para Leonel Rocha, de 07/09/29. CPDOC/FGV. Cópia no NHP/UPF.387 Carta de Leonel Maria da Rocha, na condição de General em chefe da Divisão da Palmeira, no Exército Libertador Sul Rio -grandense, a Setembrino de Carvalho, Ministro da Guerra e encarregado das negociações para o acordo de paz. 12/10/1923, CPDOC- FGV. p. 1 e 2. Cópia no NHP/UPF.388 Idem. p. 3

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dissonante, o obice á hamonia da familia rio-grandense submetendo-me ao que a maioria

resolver”. 389

Fonte: Álbum dos Bandoleiros – IHGRS.

Figura 8: Foto histórica das personalidades presentes às negociações do Acordo de Pedras Altas. Da esquerda para a direita: Gen. João Rodrigues Menna Barreto; Cel. Estácio Azambuja; Gen. Zeca Neto; Gen. Honório Lemes; Dr. Assis Brasil; Gen. Setembrino de Carvalho, Ministro da Guerra; Dr. Ângelo Pinheiro Machado; Gen. Leonel Maria da Rocha; Gen. Felipe Portinho e Cel. Chiconete Pereira.

Ele, como outros líderes, não aceitou facilmente depor as armas, visto que o objetivo

que os movia não seria atendido de imediato. Contudo, submeteu-se, conforme afirmou, à

decisão tomada pela maioria, assinando, juntamente com os demais generais do Exército

Libertador, o acordo negociado.

No entanto, a Paz de Pedras Altas atendia aos interesses da classe dominante, mas não

resolveu os motivos subjacentes, que nem mesmo eram explicitados pelos federalistas que

compunham o poder do mato na área do município de Palmeira. A luta armada não cessa na

região, e Leonel Rocha aparece, ora atuando em confrontos de terra e disputas locais, ora

aproximando-se do movimento tenentista no período de 1924 a 1927.

389 Idem.

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162

4.3.3. A paz inconclusa

Após o Acordo de Pedras Altas, no Rio Grande do Sul, ocorre uma nova composição

de forças. Com a revisão da Constituição Castilhista, o controle exclusivo do PRR entrou em

declínio, e novos setores da classe dominante gaúcha passaram a ter possibilidades nas

instâncias de decisão, com maior significado a partir de 1928, no governo de Getúlio Vargas,

escolhido através de acordos com a oposição, para substituir Borges de Medeiros na

presidência do estado. Conforme Antonacci:

A reconciliação da classe dominante rio-grandense começou em 1923, com o Pacto de Pedras Altas, e completou-se em 1929, com a formação da Frente Única, tendo em vista o lançamento da candidatura de Getúlio Vargas para a presidência nacional. No decorrer deste espaço de tempo, avanços e recuos marcaram este difícil reencontro político, registrando-se conflitos e lutas armadas no velho estilo.390

Os estudos sobre o período posterior à Revolução de 1923 são escassos, destacando-se

a obra de José Fernando Kieling Política oposicionista no Rio Grande do Sul que abarca

justamente o período de 1924-30. Destaca que, após 1923, apresenta-se uma conjuntura

histórica em que se configuram novas estratégias na “luta política, ultrapassando as fronteiras

desse recanto meridional para conectar-se a outros movimentos semelhantes no país”. 391

Interpreta a conjuntura do período de 1924-30, procurando fugir do economismo ou do

politicismo, mas relacionando os fatos políticos com as condições econômicas e sociais então

vigentes. Mesmo atribuindo peso significativo às formas institucionais na definição das

orientações políticas, entende que o nível político “sempre é e deve ser relacionado com a

dinâmica e os conflitos sociais”. 392 E assim, também, atribui peso relativo às ideologias.

Da mesma forma, entende que a economia não pode ser considerada como fator

decisivo nos processos sociais. “Ela será o papel e o lápis sem os quais não se escreve, mas

não o discurso propriamente dito”. Assim, considera os fatores sociais como determinantes,

expressando-se na vida política em que se dá a negociação dos setores sociais. Reconhece as

dificuldades da apreensão das diferenc iações sociais, devido ao tipo de fontes disponíveis,

“onde a presença da classe dominante peenche todos os espaços, excluindo os demais grupos

sociais”. 393 Dessa forma, sua análise não avançou muito além do nível político-partidário.

390 ANTONACCI, Maria Antonieta. Op. cit. p. 111.391KIELING, José Fernando. Política oposicionista no Rio Grande do Sul (1924 - 1930). Dissertação de Mestrado em História. USP. São Paulo: 1984. p. 3.392 KIELING, José Fernando. Op. cit. p. 6.393 Idem. p. 7.

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163

A obra de Kieling adquire importância para o estudo dessa fase, considerando que há

um vazio historiográfico sobre esse período e, mais ainda, sobre o papel da oposição.

Utilizando, preponderantemente, o jornal Correio do Sul, de Bagé, sua análise volta-se para a

região da Campanha, procurando identificar como o momento histórico foi apreendido pela

imprensa local.

Coloca-se de acordo com a maioria dos historiadores, quando afirma que o período

posterior à Revolução de 1923 apresenta-se na história e registrado na historiografia como um

período de aglutinação, em que oposição e situação procuram superar os conflitos intra-

oligárquicos. Porém, afirma que essa explicação se aplica a uma ala do Partido Libertador,

mas não a todos os libertadores. Assis Brasil mantém sua liderança nas forças de oposição e,

em janeiro de 1924, é fundada a Aliança Libertadora com vistas às eleições federais. Mas

Borges de Medeiros e a direção do PRR reestruturam rapidamente suas fileiras, usam todos os

meios possíveis, como o aparelhamento da Brigada Militar e dos Corpos Provisórios. Em

poucos meses, a AL estava enfraquecida.

Quando se inicia a reação tenentista em 1924, a primeira atitude dos libertadores foi a

de se organizarem para auxiliar Arthur Bernardes394. Sobre tal fato, o Correio do Povo noticia

que os ex-chefes revolucionários telegrafaram ao Presidente da República “reafirmando

solidariedade e oferecendo seus serviços”. 395 Informa que os serviços foram aceitos pela

União e que Felipe Portinho, Leonel Rocha, Salustiano Pádua e Quim Cesar “já tem em

diversos pontos da região serrana, deste Estado, alliciado elementos, que estão sendo

encaminhados para aqueles ex-chefes revolucionários para o Estado do Paraná, onde estão

também em formação batalhões patrióticos por elementos de Santa Catarina”.396 O governo

estadual também entra em ação, através do Chefe de Polícia, envia telegrama circular

recomendando às autoridades policiais de todo o estado que não ponham oposição à

organização de forças. Honório Lemes organiza um Corpo Patriótico, mas recebe de

Setembrino de Carvalho solicitação para sustar tal ação. A atitude dos generais libertadores é

no mínimo inusitada e se presta a interpretações. O que pretendiam com o apoio a Bernardes?

Porque mudaram de lado tão rapidamente? Para Kieling, os generais revolucionários

apostaram na revolução paulista de duas formas:

reorganizaram suas milícias para auxiliar Bernardes e, em conseqüência, teriam apoio para

reabrir a luta contra Borges. Ou aproveitaram o motivo para reorganizar as milícias e reacender

394 KIELING, José Fernando. Op. cit. p. 57395

Correio do Povo, Porto Alegre, 26/07/1924. p. 3.396 Idem.

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imediatamente as lutas de 1923. Isso fica bastante claro quando, em seguida, manifestaram-se

vinculações com Prestes e Izidoro Lopes.397

Reacendem-se as disputas. Borges de Medeiros determina prisões, divulga o plano

revolucionário, e Honório Lemes é obrigado a emigrar para o Uruguai. Os generais

revolucionários apostaram na luta, ao que parece, buscando novamente o apoio de Artur

Bernardes para reabrir a ofensiva contra Borges.

Quando ocorre o levante das guarnições federais de São Luiz, São Borja, Uruguaiana e

Santo Ângelo a situação da AL se transforma. “Até então, estava ela manietada pelo

compromisso tácito com o governo federal, restringindo-se a atacar – inutilmente – o

borgismo e a pedir – inutilmente – favores à presidência da República”. 398 A partir de então,

conforme Kieling, aproxima-se de outros movimentos revolucionários, ultrapassando as

exíguas fronteiras das oligarquias e tornando-se vulnerável à influência de setores mais

populares, embora identificando esses setores com as camadas urbanas. Assim, o movimento

transpõe os limites de articulação oligárquica. Alguns generais revolucionários, como

Honório Lemes e Zeca Neto, estabelecem ligações com Prestes, que distribui comunicado em

Santo Ângelo já contando com o apoio desses generais na zona da fronteira, além do apoio de

revolucionários de Palmeira, Nova Würtenberg, Ijuí e outras localidades.

O que se observa nas ações seguintes, é que a AL vai incorporando-se ao movimento

tenentista, absorvendo-o e passando a tratá- lo como uma questão sua. O manifesto dos

revolucionários aborda questões nacionais, incorporando a visão tenentista. O governo

republicano encontra justificativa para a reestruturação do sistema policial, sob a justificativa

do recrudecimento da luta em várias cidades. Os republicanos firmam seu domínio e os

revolucionários emigram para os países vizinhos, como é o caso de Leonel Rocha, aqueles

que permaneceram ficaram sob o controle do governo borgista.

A ligação da AL com o movimento tenentista reflete um rompimento do Acordo de

Pedras Altas, e suas conseqüências extrapolam os limites do estado, rompendo com o governo

federal. A partir de então terá a oposição não só do governo borgista, mas também do governo

federal, vivendo uma nova dimensão aliada à oposição nacional.

A partir de 1925, as ligações tornam-se mais evidentes. Embora fiquem claras

diferenciam-se em duas correntes. Assis Brasil, reconhecido como chefe civil da revolução

brasileira, defende a atuação através das vias parlamentares, mas a ala mais radical,

397 KIELING, José Fernando. Op. cit. p. 58.398 Idem, ibidem.

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165

comandada por Luiz Carlos Prestes, defende a força das armas para derrubar o regime. Estes

procuram manter um intenso movimento de guerrilha, que, no entanto, ocorre de maneira

difusa. Os chefes revolucionários não conseguem articular o movimento. Além da coluna que

se desloca pelo sertão brasileiro, ocorrem levantes em várias partes do Brasil. No Rio Grande

do Sul, além da ação de Leonel Rocha, “atuando na faixa de fronteira com o Uruguai”, 399

Honório Lemes e Zeca Neto combatiam na fronteira-oeste. Lemes foi preso, quando combatia

Flores da Cunha.

De acordo com Kieling, a ameaça oposicionista mais séria, nesse período, foi o golpe

previsto para 14 de novembro de 1926, véspera da posse de Washington Luiz, em que coube

a Zeca Neto o papel principal. A revolta articulada por Isidoro Dias Lopes previa o levante

das guarnições de Santa Maria e da fronteira, bem como os exércitos recrutados entre os

exilados no Uruguai e Argentina. No entanto, o plano foi descoberto, provocando “uma

assincronia de ataques que levou os planos ao fracasso”.400 As guarnições de Bagé, São

Gabriel e Santa Maria precipitaram-se e lançaram-se a campo, sem o apoio dos demais

contingentes, a não ser o de Zeca Neto. Sob seu comando, instituiu-se um pequeno exército,

contando com um grupo militar de Santa Maria, sob a chefia dos irmãos Etchegoyen, e de São

Gabriel, sob as ordens do Sargento Walter Correa da Silva, tendo que enfrentar as milícias

estaduais comandadas pessoalmente por Oswaldo Aranha. Zeca Neto venceu a batalha em

Seyval, mas teve grandes desfalques, ficando “debilitado para outros possíveis combates, não

lhe restou outra alternativa senão perambular quase dois meses pela campanha e voltar para o

Uruguai”.401 Esse insucesso parece ter afetado todo o movimento e a entrada de Prestes, na

Bolívia, e de Zeca Neto, no Uruguai, ocorrem quase simultaneamente, em fins de 1926 e

início de 1927.

A partir desse momento, conforme interpreta Kieling, ocorre uma mudança na ação

dos libertadores. A ação não será mais através das armas, mas visa buscar modificações na

política brasileira pela via parlamentar. No entanto, de acordo com suas palavras:

(...) esta fase não significa retorno a posições anteriores. Ela se constrói a partir da lutarealizada e num contexto novo, o contexto nacional, em que a AL não mais trata com o PRR a nível de província. Este, parece-nos é o mérito do tenentismo: chamar atenção para osproblemas nacionais(...)Parece-nos que ao conseguir lançar este marco novo os tenentes não estavam driblando a realidade. No entender desses revolucionários a solução para os problemas que afetavam as camadas populares tinha de ser buscada numa conjuntura mais ampla que as brigas locais pelo controle do poder; deveria ser procurada num contexto nacional. Os focos dessa luta,

399 KIELING, José Fernando. Op. cit. p. 66.400 Idem. p. 67.401 Idem, ibidem.

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inicialmente representação e justiça, atacavam pontos fundamentais das relações de poder cristalizados , no decorrer da República Velha, na política dos governadores. Era necessário, pois, quebrar essa política para poder aflorar a questão nacional. 402

O autor ressalva que a forma de abordar os problemas pode apresentar ou não uma

perspectiva revolucionária, mas o mais significativo é que o movimento atraiu “velhos

partidos oligárquicos, assentados em vetustas tradições de mandonismo local, inserindo-os na

problemática nacional”. 403

O estudo realizado por Kieling permitiu esclarecer alguns pontos nebulosos nas lutas

locais, constatando-se, também nesse período, algumas especificidades regionais, na inserção

dessas lutas no contexto maior. A despeito de Leonel Rocha ser um dos signatários do Acordo

de Pedras Altas, poucas mudanças parecem ter ocorrido em sua vida caudilhesca, após o

término da revolução, pois Leonel “não pertencia à classe dos que recolhem os frutos das

vitórias”. 404 Não desmobilizou totalmente suas tropas, entrando num outro ciclo de lutas,

agora distanciado dos interesses dos coronéis federalistas da Campanha. O prestígio que

adquirira nas lutas de que participara, tornaram-no um líder natural em outros movimentos de

contestação. Na esteira da Coluna Prestes, associa as lutas, na região, aos interesses dos

caboclos nas áreas de colonização. Em 1924, é encontrado em lutas nitidamente relacionadas

à questão da terra, associando-se aos caboclos que lutavam contra a demarcação da Fazenda

Sarandi, conforme se constata na documentação da Diretoria de Terras.405 Vinculando-se às

lutas da Coluna Prestes, realiza combates na região, em que, não por acaso, ataca áreas de

colonização onde atuavam companhias particulares como a Colônia Xingu, a Colônia de

Tesouras, ao mesmo tempo em que estabelece vínculos com o movimento tenentista.

A atuação do caudilho, no movimento revolucionário de 1924, tem merecido poucos

registros na historiografia. O manifesto da AL, em apoio ao tenentismo, é assinado, inclusive,

por Leonel Rocha.406 Nelson Werneck Sodré registra que, “enquanto as forças que haviam se

retirado de São Paulo combatiam no Paraná, irrompeu na região missioneira do Rio Grande

do Sul, tendo como centro de gravidade Santo Ângelo, o levante comandado por Luís Carlos

Prestes, com adesão de forças irregulares, na região serrana, comandadas por Leonel

Rocha”. 407 O próprio Leonel Rocha faz referências claras de sua adesão ao mesmo,

informando que “levantou forças em Palmeira para fazer junção com Luis Carlos Prestes, que

402 KIELING, José Fernando. Op. cit. p. 68.403 Idem. Ibidem.404 FERREIRA FILHO, Arthur. Op. cit. p. 119.405 Doc. nº 538, Cx. 22, AHRS.406 KIELING, José Fernado. Op. cit. p. 64.407 SODRÉ, Nelson Werneck. A Coluna Prestes.Circulo do Livro, São Paulo: 1982. p. 30.

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estava em São Luiz. Entretanto esta junção não foi possível em vista de estar tomada a picada

de Porto Feliz, em Santa Catarina”. 408

Em virtude desse fracasso, emigrou novamente para a Argentina, onde também se

encontrava Isidoro Dias Lopes, que ali preparou a invasão do estado, em Libres, para

recomeçar a luta. Leonel, engajou-se na nova tentativa, atravessou Porto Feliz, atingindo

Barracão, Colônia Chopin e Guarapuava, chegando ao Contestado. A tropa que o

acompanhava era pequena. “Perseguido pela polícia argentina, seus planos foram em parte

prejudicados, pois, a sua intenção era fazer junção com as tropas de Felipe Portinho, em

Tubarão”. 409 Afirma que foi cercado por doze mil homens e que conseguiu escapar

milagrosamente, indo refugiar-se mais uma vez na Argentina. De acordo com seu filho

Cláudio Rocha, pretendia juntar-se à Coluna Prestes, mas isso não chegou a acontecer. “Meu

pai nunca se encontrou com Prestes, apenas trocavam correspondêcia e rompeu com ele

quando ele se declarou comunista”. Diz que o pai fazia a ligação, no Contestado, levando

recados para os outros líderes que estavam lá.410

Na região de Palmeira, o movimento contou, de um lado, com o apoio de Leonel

Rocha que se solidarizou com Luís Carlos Prestes e, por outro, “com a perseguição de

Vazulmiro, que deixou Clevelândia e, através de picadas de Xanxarê e Nonoai, impediu que

Leonel desempenhasse o papel que premeditara”. Vazulmiro passa a fazer parte do

destacamento sob o comando do Coronel Eneas Pompílio Pires, e em 1º de junho de 1925, o

Terceiro inicia em Santa Bárbara411 a longa marcha de perseguição à Coluna Prestes.412

Diários de Campanha registram essa marcha através dos estados de Santa Catarina, Paraná,

Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás.413

A passagem da coluna ficou marcada no imaginário, porque foi travado, na região, o

combate da Ramada, que é considerado como dos mais sangrentos que a Coluna teve que

enfrentar. Luís Carlos Prestes, em entrevista a Sodré, refere-se ao combate “no lugar chamado

Ramada, no dia 3 de janeiro de 1925”, sem fazer observações quanto ao fato de que se

constituiu numa das maiores perdas da Coluna. Conforme Anita Leocádia Prestes, “o combate

da Ramada foi um dos mais sangrentos de toda saga da Coluna Prestes, os revolucionários

408 Entrevista de Leonel Rocha ao Correio do Povo. 09/05/1944.409 Idem.410 ROCHA, Cláudio. Filho de Leonel Rocha que nasceu na Argentina em 1928. Entrevistado em 21/10/2001.411 Santa Bárbara por sua localização entre Pameira e Cruz Alta e devido ao entroncamento rodo-ferroviário,adquire importância militar, pois “situava-se no denominado círculo de ferro, que fechava as possíveis saídas da famosa Coluna Prestes. Ver: PRESTES, Lauro Filho. Crônicas II – de Santa Bárbara do Sul. Santa Bárbara do Sul; Gráfica e Editora Minuano Ltda. s/d. p. 20. Crônica de 25/03/99.412 SOARES, Mozart Pereira. Op. cit. p. 228.413 Diários de Campanha; de 23/05/1925 a 20/09/1925. AVaD/IHGRS.

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tiveram ciqüenta mortos e cem feridos”. Apesar disso, os rebeldes saíram vitoriosos, pois

repeliram o ataque inimigo, obrigando-o a bater em retirada. A autora afirma que Juarez

Távora, referindo-se ao famoso episódio, declara que essa vitória tática “abriu à coluna

revolucionária estrada livre para as fronteiras de Santa Catarina”. 414

As tropas legalistas, comandadas pelo Capitão Carlos de Oliveira Duro, tendo na

vanguarda o 18º Corpo Auxiliar, sob o comando de Victor Dumoncel, atacou a Coluna no

clarear do dia, mantendo o ataque por longas horas, havendo grande número de baixas de

parte a parte, embora maior entre os rebeldes. Contudo, a Coluna conseguiu passar pela

Ramada, em direção ao Uruguai. “Nesse trajeto foram deixando os feridos transportados

mediante precários recursos, em padiolas improvisadas com ramagens e cobertores, pelas

fazendas e propriedades que quisessem recebê- los. Dia 7 a Coluna se encontrava em marcha

para a Colônia Militar do Uruguai”. 415

São muitas as referências que remetem a uma nova ordem de conflitos no município,

sobretudo com a afirmação de Vazulmiro Dutra como líder inconteste nos rumos da política

local. Os demais coronéis estão desarticulados ou cooptados à nova ordem.

É nesse contexto, que ocorrem outros episódios marcantes e ainda pouco

desvendados, como o assassinato do Padre Manuel Gonzalez e seu coroinha416 e a Chacina de

Nonoai417, entre outros. Esses episódios são o testemunho de que as lutas locais tinham outras

motivações, além daquelas que movimentam as lutas estaduais. São fatos que mobilizam uma

carga de emotividade que dificulta uma aná lise com o devido distanciamento. O local onde

foram mortos o padre e o coroinha tornou-se ponto de romaria, pois constam relatos de que

“apesar dos corpos terem permanecido por quatro dias no meio do mato, nenhum animal os

tocou. Tampouco os cadáveres exalavam odor. Remexidos, verteu sangue de seus ferimentos.

A história correu de boca em boca. Para o povo não havia mais dúvida Manuel e Adílio eram

santos”. 418

O assassinato do padre Manuel Gomes Gonzales e do coroinha Adílio Daronch

ocorreu em maio de 1924, perto de Três Passos, município de Palmeira das Missões. Padre

414 PRESTES, Anita Leocádia. Uma epopéia brasileira: Coluna Prestes. São Paulo. Moderna, 1995. p. 52.415 SOARES, Mozart Pereira. Op. cit. p. 226.416 O assassinato do Padre Manoel Gonzales e do coroinha Adílio Danroch tem merecido atenção devido ao processo de beatificação, em andamento, e romarias no local do crime e em Nonoai, na capela onde estão enterrados.417 A Chacina de Nonoai ocorreu em 04 de junho de 1927, por ocasião de um baile, em que foram mortas 13 pessoas e 25 tiveram ferimentos. O fato apresenta confronto entre maragatos e chimangos, denúncia de racismo e desentendimentos entre as autoridades policiais. Ver: SOARES, Mozart Pereira. Op. cit. e FÉLIX, Loiva Otero. Op. cit.418 Jornal Zero Hora , 08/07/1997. “Alto Uruguai venera dois mártires”. Sobre o assunto o jornal de 16/05/1999 publicou a reportagem: “Alto Uruguai – fiéis buscam um milagre”.

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Gonzáles atendia a paróquia de Nonoai e, muitas vezes, também a de Palmeira que,

freqüentemente, ficava sem sacerdotes.419 Segundo o Padre Arlindo Rubert, que pesquisou

sobre o fato, o crime estaria relacionado com as lutas entre maragatos e chimangos destacando

que o “terror se espalhara pela região, quando facções adversas ganharam os campos de

Palmeira e o sertão do Uruguai”. O sepultamento de maragatos em Nonoai e os sermões em

que condenava as injustiças teriam sido os supostos motivos que o levaram à morte. O

julgamento só ocorreu na década de 1940, tendo os acusados sido absolvidos, pois o crime já

estaria prescrito.420

Tal acontecimento insere-se no contexto das relações de poder, entre os vários

segmentos sociais em que os setores da Igreja não podem ser esquecidos. Esse fato, os

registros no Livro Tombo e a correspondência encontrada no Arquivo Borges de Medeiros

evidenciam situações de tensão e conflito que estão a merecer uma análise mais aprofundada,

mas isso foge do objetivo deste estudo.

Observa-se, em Palmeira, após a Revolução de 1923, um quadro ainda bastante tenso e

a região é agitada por movimentos, ora relacionados com o contexto nacional, ora relacionado

com questões de cunho local. Leonel Rocha refere-se, em suas cartas, a perseguições

políticas. Em 1924, sua casa foi queimada e destruído seu sítio. Conforme o relato de seu filho

Silveira, o pai tinha “uma chácara que foi atacada pelos chimangos. Espalharam tudo o que

havia, feijão milho... e aí queimaram tudo. Daí emigrou para a Argentina.”421

No mesmo ano, participou do combate na Colônia Xingu onde, em companhia do

Tenente Coronel Erasmo Cordeiro, prendeu o chefe Maizinho e sua tropa.422 Também faz

referências de ataque ao Pari, hoje Tenente Portela, em que estando Leonel Rocha sesteando,

foi atacado por mais de mil homens do governo. Não teve tempo de organizar a retirada, que

419 O Livro Tombo da paróquia não tem nenhum registro no período de 1922 a 1925. Em 1922, consta “nos últimos meses deste ano começou a revolução – a obra nefasta que reduziu esta população a miséria e arruinou a vida religiosa”. O próximo registro só ocorre em 1925. O pároco anterior fora embora devido a problemas com políticos e o padre Gonzales foi assassinado, após sua passagem por Palmeira.420 Ver RUBERT, Arlindo Pe. O herói do Alto Uruguai – Padre Manuel Gonzalez. Passo Fundo: Editora Berthier. 1986. 421 Silveira Martins Rocha, em entrevista concedida a autora em 21/10/2001422 HICKMANN, João. Op. cit. p. 88. Consta que Leonel Rocha fez transportar o filho de Maizinho, gravemente ferido, para Palmeira, a fim de que tivese tratamento médico, mas apesar dos cuidados faleceu poucos dias depois. “Ao levantar o falecido da cama, Leonel encontrou debaixo do travesseiro duas carteiras contendo vinte e cinco contos e que entregou a Maizinho.” Associando os depoimentos é possível concluir que Maizinho é o apelido de Oscar Luiz Meissinger, chefe da Colônia Xingu.Também faz referências a ataques a Santa Bárbara“onde o inimigo estava entrincheirado no sobradinho do Cel. Vitor Dumoncel Filho”. O ataque resultou num fracasso, segundo ele, indicando o ano de 1924 , como data em que o fato teria ocorrido. No arquivo AVaD, consta registro de ataque ocorrido em 1923.

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fez para a costa do Uruguai, onde continuou a luta noite adentro.423 O fato constou da

investigação do movimento de 1924 e o chefe ao qual se refere é Oscar Luiz Meissinger, que

comandava a colonização particular Xingu, de propriedade de Hermann Meyer. Sobre esse

fato foram localizados poucos registros. Carlos Dhein, representante de Meyer e

contemporâneo dos fatos, assim o registrou:

O senhor Luiz Meisinger, que na última revolução do ano passado sofreu muito, foinovamente assaltado. Sua casa foi queimada pelos agressores. Ele mesmo não ficou ferido, mas seu filho foi ferido por três tiros, destes um tiro no pescoço e nas mãos. Leonel Rocha soltou os presos que agora estão em Palmeira. Mesmo uma quantia de dinheiro de vários contos de réisfoi queimada.424

No dia 21 de novembro, registra o fato com maiores detalhes a partir das informações

que tinha conseguido colher. O ataque, ao que parece já era esperado, pois Luiz Meisinger

com sua família e outros colonos foram esconder objetos na mata, quando a colônia foi

atacada, ficando seu filho Kurt Meissinger gravemente ferido. Relata que um grupo de

Taquarussu, juntamente, com Leonel Rocha penetrou por dois lados diferentes na Colônia.

“Leonel Rocha chamou todos os colonos, pôs o senhor Simon como Intendente provisório e

enviou um escrito ao Meissinger garantindo sua vida e livre retirada com o seu pessoal se ele

entregasse as armas. Rocha levaria a família para Neu-Würtenberg através de um auto”. De

acordo com o relato, a proposta foi aceita, e Leonel manteve sua palavra. Relata, também, que

outros colonos foram saqueados e que o fogo destruiu a biblioteca de Meissinger, com mais

de 1.300 livros.425

Nesse mesmo ano Leonel Rocha esteve em Sarandi, acompanhado pelo subchefe de

polícia Miguel Schmilewski. Relata que, no hotel, durante a noite, estiveram em perigo de

vida, sendo salvos por interferência do Padre Eugênio, vigário de Sarandi.426 Embora tal fato

tenha merecido apenas um breve registro em suas cartas, a documentação encontrada, como

veremos adiante, demonstra tratar-se de um episódio relevante que mereceu das autoridades

uma atuação cautelosa.

423 HICKMANN, Pe. João alberto. Op. cit. p. 88. Na ocasião foi morto o capitão Estigarribia e o Tenente Antônio Alves Pinheiro. Na costa do Uruguai teve um morto e vários feridos. O fato parece estar relacionado à participação no movimento da Coluna Prestes.424 RENNER, Darci [et. al..]. Xingu – Cem Anos. Constatina : Editora Artes Gráficas Ltda. 1997. p. 79. Trata-seda transcrição do diário Carlos Dhein, representante de Hermann Meyer. A data do registro é 18/11/1924.425 Idem. p. 80426 Idem. p. 88.

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Todas essas passagens referentes a Leonel Rocha, no ano de 1924, inscrevem-se no

quadro das lutas relacionadas com a passagem da Coluna Prestes, ao menos é assim que

foram vistas pelas autoridades, conforme o Inquérito que apurou o “Movimento Sedicioso”,

como foi designado na imprensa da época.427 O jornal Correio do Povo noticia as audiências

que então se procediam, em Porto Alegre, relativas ao processo dos implicados na Revolução

de 1924, e alguns dos depoimentos colhidos são reveladores dos acontecimentos no estado e

da participação de Leonel Rocha nos episódios.

Os depoimentos registrados sobre o movimento sedicioso, que envolveu Leonel Rocha,

não se relacionam diretamente com a marcha da Coluna, mas com questões locais de luta

agrária que encontraram condições de vir à tona, diante do clima de instabilidade e

contestação que a passagem da Coluna propiciou. Alguns dos depoimentos que constaram no

processo dos implicados na Revolução de 1924 esclarecem a atuação do líder maragato, que

juntamente com outros chefes locais, nitidamente identificados com o poder do mato,

pegaram novamente em armas, numa luta que já não se pode atribuir à contestação ao

governo do PRR.

Frederico Westphalen, então intendente municipal, faz um depoimento esclarecedor:

Em fins de outubro de 1924, no município de Palmeira, Leonel Rocha, em combinação com o Batalhão Ferroviário, estacionado em Santo Ângelo, começou a reunir gente, afim de dar início a um movimento revolucionário; que, a frente de 200 homens, na séde da colonisaçãoparticular Xingu, deu início a esse movimento, travando combate com a força organizada e commandada por Oscar Luiz Meissinger.Nesse combate foi ferido um filho de Meissiger, sendo, também, queimada a casa. Em seguida, as forças rebeldes atacaram a colonização particular “Sarandy” e, após rápida escaramuça, della se apossaram, partindo para “Tesouras”.428

Informa, ainda, que depois dos ataques, os rebedes foram perseguidos pelas forças

legais e emigraram para a Argentina. Atribui a chefia a Leonel Rocha que tinha como

principais auxiliares, Othylio Rosa, José Gonçalves Outeiro, José Pedroso, Felício Bueno e

Antonio Fagundes.429 O depoimento de Frederico Westphalen confirma terem sido mortos em

427 O jornal Correio do Povo em várias edições subseqüentes, nos meses de janeiro e fevereiro de 1926, faz referências ao processo dos implicados na Revolução de 1924, sob o título “Movimento sedicioso”. Transcreve parte dos depoimentos colhidos no estado em sucessivas audiências presididas pelo Juiz Federal Dr. Luiz José de Sampaio e acompanhadas pelo Dr. Fernando Maximiliano, Procurador da República; Dr. Souza Lobo, curador dos réus ausentes; Doutores Pereira da Cunha, Waldemar do Couto e Silva, Oscar Argollo, Dario de Bittencourt, Olivério de Deus Vieira Filho e Carlos Machado, advogados dos réus. 428 Depoimento de Frederico Westphalen, no processo dos implicados na Revolução de 1924. Correio do Povo, 26/01/1926. p. 8.429

Correio do Povo, 26/01/1926, p. 8. Movimento Sedicioso – O processo dos implicados na Revolução de

1924. No depoimento do Dr. Frederico Westphalen são apontados outros grupos que faziam parte da força de Leonel Rocha, sendo chefiados por: João do Prado, Severino Pires, Erasmo Cordeiro, Alberto Grott, Pedro

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“Sarandy”, no dia 13 de novembro, Alfredo Baldissareschi, Francisco Valduco e feridos

Domingos Pascoal, Luciano Lemes e Roque Santos.

Confirma os questionamentos formulados de que a força, sob o comando de Leonel

Rocha, requisitou, na Colônia Quatro Irmãos, mercadorias e dinheiro e que só sabe por ouvir

dizer que Favorino Pinto, com 40 homens, no dia 13 de dezembro, invadiu a colônia referida,

requisitando mercadorias e dinheiro. Em Tesouras, além da requisição de mercadorias, os

ataques provocaram a morte dos indivíduos João Telmo, Manoel Canhado e Antonio Manoel

Barros, sendo feridos Arlindo Siqueira e Lulu dos Santos. Foi perguntado sobre o fuzilamento

de 14 homens pelos rebeldes, tendo confirmado ter recebido informações sobre o fato.

A investigação busca esclarecer o papel de Assis Brasil, tendo o Procurador da

República perguntado se sabe se o líder oposicionista “concitou os seus correligionários antes

de 29 de outubro a tomarem parte no movimento revolucionário?” 430 O intendente diz não

afirmar, mas supõe que sim. O curador dos réus ausentes faz algumas perguntas sobre a

atuação do intendente, que informa que não pegou em armas contra os revolucionários.

O processo sobre o “Movimento Sedicioso” continua sendo divulgado pelo Correio do

Povo nos dias subseqüentes, investigando o movimento nas várias regiões do estado.

Destacamos o depoimento de Paulino de Souza Barbosa, funcionário estadual, residente em

Palmeira. Declarou saber que:

em Tesouras, Leonel Rocha, á frente de 400 homens, atacou aquella colonia, que, depois de uma resistencia de 3 horas e meia, foram o depoente e mais trinta homens, que defendiam a colonia, obrigados a baterem em retirada, morrendo, nessa ocasião, Manoel Candido, João Telmo de Oliveira e Manoel de Tal; que esse grupo revolucionário, a que se referiu, depois de ocupar a colonia, entregou-se ao saque e assassinou o colono J. Edelwein. 431

O depoimento confirmou a participação dos indivíduos citados por Frederico

Westphalen, acrescentando alguns nomes e confirmando Leonel Rocha no comando dos

grupos, afirmando que se constituíam em chefetes das forças do mesmo: Othilio Rosa,

Aparício Machado, Pedro Lucio e Alberto Grett, e quanto aos demais “só sabe por ouvir

dizer”. 432

Confirma que os revolucionários espalharam boletins “nos quais declaravam que

pretendiam, com a revolução, depor o governo federal e alterar a Constituição da

Lucio e Adriano Michelon, além de outros que foram juntar-se a Leonel na Argentina: Favorino Pinto, Aparício Machado e Severo Machado.430Idem.431 Depoimento de Paulino de Souza Barbosa, no processo dos implicados na Revolução de 1924. Correio do

Povo, 29/01/1926. p. 4. 432 Idem. Correio do Povo, 29/01/1926.

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Republica”. 433 Tinha conhecimento dos mesmos, apenas por ter ouvido notícias a respeito. Os

boletins, segundo constava, eram assinados pelos chefes revolucionários: Isidoro Dias Lopes,

João Francisco434, Zeca Netto, Honorio Lemes, Leonel Rocha, Migue l Costa, Bernardo

Padilha, Olinto Mesquita e Felipe Portinho.

Segundo o depoente, depois da ocupação de Tesouras, os revolucionários requisitaram

mercadorias das casas comerciais, cavalos, produtos e roupas dos colonos. Confirmou ter

chefiado o movimento de resistência às forças de Leonel Rocha, em Tesouras, que era sede do

Distrito, onde exercia a função de escrivão no cartório de registro civil.435

O resultado das averiguações constantes do processo foi publicado em 1929, sob a

seguinte manchete: “O Supremo Tribunal, por seis votos contra cinco, pronunciou os cabeças

da revolução rio-grandense de 24”. 436 O artigo, como outros publicados no dia seguinte, faz

críticas a Washington Luís e defende a anistia. Informa que, em virtude da decisão do

Supremo Tribunal Federal, foram postos em liberdade vários oficiais revolucionários. Diante

da condenação dos cabeças do movimento, vários artigos defendem a “necessidade da

anistia”, citando artigo do Jornal do Comércio e destacando que “quase toda a imprensa

carioca ataca fortemente o governo por esse acto”. Afirma que, no Rio Grande do Sul, há uma

“ampla pacificação dos espíritos”, pois quase ninguém se lembra de Honório Lemes a não ser

para “evocar o legendário batalhador”. A decisão do Supremo Tribunal Federal é criticada por

chegar em hora imprópria, porque todos estão se unindo em torno de Getúlio Vargas. Finaliza,

ressaltando que “não é fora de tempo a condenação de uma política que, se infelizmente não

acabou, de todo, felizmente, já vae acabando”. 437

Como se pode constatar nos depoimentos, os locais de atuação de Leonel Rocha, no

movimento de 1924, coincidem com áreas onde atuavam companhias de colonização

particular. Relativamente à Colônia Xingu438 e Colônia de Tesouras439 não nos foi possível

433Correio do Povo de 29/01/1926.

434 Trata-se de João Francisco Pereira de Souza, chimango de 1893, que, conforme Caggiani, aparece como um dos articuladores do movimento de 1924, no Rio Grande do Sul, acompanhando seus genros, que em São Paulo participavam do movimento tenentista. Em 24 de setembro envia carta a Leonel Rocha, através do Comandante Cunha Filho, a fim de acertar encontro. “V. Excia., é uma das primeiras figuras, guiarem a juventude liberal no caminho da honra marchando com a bandeira da nossa revolução (...) se vossas falanges gloriosas de 22 –Senhor General – nos ajudarem agora a conquistar aquilo que a perfídia de Bernardes, Medeiros e Setembrinos vos roubou, violando e burlando o Pacto de Pedras Altas, podeis estar seguro de que é fácil, e muito fácil vingar-vos, desafrontar o Rio Grande liberal e salvar a República das garras dos abutres!” Ver CAGGIANI, Ivo. João

Francisco: a hiena do Cati. 2ª. Ed. Porto Alegre: Martins Livre iro Editor, 1997. p. 168.435 O Correio do Povo segue destacando os depoimentos, nas várias regiões do estado, nas seguintesdatas:30/01/1926; 02/02/1926; 09/02/1926; 27/02/1926; 05/03/1926.436

Correio do Povo, 29/01/1929. A caminho da annistia. p. 3.437

Correio do Povo, 30/01/1929. Há vários artigos sobre o assunto, confirmando o clima de conciliação. 438 A Colônia Xingu, assim denominada pelo empresário Hermann Meyer, que veio ao Brasil para uma excursão ao Xingu, na Amazônia, “da qual participaram alguns teutos-riograndenses que seriam futuros sócios seus no

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aprofundar a investigação dos fatos, por não terem sido localizados documentos. Já com

referência à Colônia Sarandi, localizamos correspondência da Diretoria de Terras, que

permitiram uma melhor análise e compreensão dos fatos, conforme tratamos a seguir.

4.4. Caboclos e colonizadores na Fazenda Sarandi440

Em 28 de setembro de 1924, Carlos Torres Gonçalves, que se encontrava em Passo

Fundo, envia telegrama ao Secretário de Obras Públicas, Dr. Ildefonso Pinto, o qual comunica

ter sido informado pelo Dr. Vergueiro, juntamente com o encarregado da Colônia Sarandi,

Armínio Silva, de “graves ameaças” à perturbação da ordem.

Cerca de noventa homens armados sob direcção de Leonel Rocha, ameaçam atacar turma medição fazenda e em seguida povoado Sarandy, séde da colonia. Município não dispõe força e sexto Corpo Provisório está em pé de marcha para Paraná, com effectivo completo. Agrimensor Luiz Magalhães, empregado da Colonia Sarandy, está entrincheirado com 25 homens mal armados, em attitude defensiva.441

Informa, ainda, que o Subchefe de Polícia encontra-se em Erechim e, de acordo com

Dr. Vergueiro, se o grupo atacante não for reprimido, poderão ocorrer violências contra a

população da colônia. Informa que está tentando fazer chegar convite para um encontro, em

nome do Governo do Estado a Leonel Rocha, por intermédio de Frederico Westphalen.

A preocupação de Torres Gonçalves se manifesta no telegrama enviado a Leonel

Rocha, transmitido através de Frederico Westphalen, na mesma data. Manifesta a disposição

de encontrar-se com o mesmo nos seguintes termos:

comércio de terras do Rio Grande do Sul”. Conforme já referimos, Meyer foi um dos maiores empresários estrangeiros que atuou na colonização do Planalto. A Colônia Xingu foi adquirida em 1897, através de seuprocurador Carlos Dhein. A posse foi adquirida de Maria Rita do Espírito Santo e possuía uma área de cerca de 1,8 mil hectares. Foi a primeira de uma série de outras. Ver ZARTH, Paulo Afonso. Op. cit. p. 86-87.439 A Colônia de Tesouras foi fundada em 1915, com uma área de 3.700 hectares. Foi colonizada por Miguel Matt, em 1915, adquirindo as terras de José e Antônio Sampaio. O intermediário-vendedor foi Pedro Sefrin, mais tarde morto em escaramuças revolucionárias. Tesouras em 1920 tinha 300 habitantes, conforme “Relatório apresentado ao Dr. A. A. Borges de Medeiros pela Secretaria do Estado dos Negócios das Obras Públicas, em 1920”. STEFFEN, Roque Jacob, Inês Maria L. e Nelson S. Histórico do Município de Chapada. Gráfica e Editora da UPF, 1984.440 Não é nosso objetivo o aprofundamento do estudo sobre a Fazenda Sarandi, a qual situava-se na área do município de Passo Fundo. Sobre o tema ver RÜCKERT, Aldomar. Op. cit. e VENCATO, Almedoro. Op. cit. No entanto, a abordagem dos episódios aqui tratados se faz necessária para acompanhar a trajetória de Leonel Rocha, seu vínculo com os caboclos de ambas as margens do rio da Várzea e o encaminhamento da sua luta em favor dos “despossuídos”. 441 Telegrama de Carlos Torres Gonçalves ao Secretário de Obras Públicas, em 28/09/1924. Pasta. nº 538, Doc.nº1, Cx. 22. AHRS.

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Informado que grupo armado ameaça turmas de medição terras Sarandy, appelo vosso patriotismo intervirdes junto ao mesmo acalmando animos. Em nome Governo doEstado vos convido nos encontrarmos aqui em Passo Fundo, em Santa Bárbara ou na Villa Palmeira, afim transmitir-vos de viva voz medidas de proteção. Aguardoresposta sobre ponto onde preferis nos encontrarmos.442

Na incerteza sobre o meio de encontrar mais facilmente Leonel Rocha, faz seguir

também um enviado de Passo Fundo para Sarandi com o mesmo convite. O tom amistoso da

carta e a atenção dada ao fato revelam a situação tensa que existia e o cuidado em evitar que

as ameaças se concretizassem, buscando, na liderança que Leonel Rocha exercia, um ponto de

conciliação. Dirige-se ao “Cidadão Coronel Leonel Rocha”, tendo o cuidado de informar no

início que se encontrava nesta cidade

com a incumbência do governo do Estado de examinar calmamente a situação dos ocupantes das terras da Colonia Sarandy, para onde devo seguir, estando aguardando a cessação das chuvas, afim de providenciar com eqüidade sobre os mesmos, quando sou surpreêndido pelo aviso de que numeroso grupo armado ameaça atacar as turmas de medição da companhia colonizadora das terras e a sede da mesma colonia.Informado de vosso ascendente sobre pessoas desse grupo, appelo para o vosso patriotismo, no sentido de intervirdes junto a ellas, para acalmar os animos superexcitados.443

Tem o cuidado de informar que está autorizado pelo governo para convidá- lo para um

encontro, insistindo que o local e data podem ser escolhidos por Leonel, “afim de transmittir-

vos de viva voz as medidas de protecção aos moradores de Sarandy que o governo tem

resolvido, e, por vosso intermédio, ouvir os descontentes com a companhia colonizadora”. 444

Na mesma data, envia outra correspondência, por via férrea, ao Secretário de Obras

Públicas, Dr. Ildefonso Pinto, confirmando os telegramas anteriores e informando sobre a

situação da colônia. Os dados são surpreendentes e mostram que o conflito já vinha de meses

anteriores.

População colonia Sarandy monta cerca de quatro mil pessoas ou setecentas famílias. Os chefes de cerca de trinta dessas famílias, homens de maos precedentes, todos muitoconhecidos, participantes da ultima revolução, foram os que atacaram em 25 de julho as turmas de midição, assassinando o agrimensor João Pedro Flores e um peão e ferindo outro peão. A companhia colonizadora expulsou em seguida essas trinta famílias das terras. Outras famílias moradoras, cerca de mais oitenta, retiraram-se na mesma ocasião, algumas por serem seus chefes solidários com autores do attentado, e a maioria em virtude da intranquilidade da colonia.

442 Idem. Anexo nº 2. Torres Gonçalves informa o teor do telegrama enviado a Leonel Rocha, através de Frederico Westphalen .443 Carta de Carlos Torres Gonçalves, Diretor de Terras e Colonização para Leonel Rocha. Passo Fundo29/09/1924. Pasta .nº. 538, Doc. nº. 2. Cx: 22, AHRS. 444 Idem.

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A não ser as trinta famílias dos autores do attentado ás turmas, a companhia colonizadora manifesta-se disposta a receber novamente nas suas terras as demais que sahiram.445

Diante da situação tensa, aponta como alternativa oferecer a essas famílias lotes em

uma região mais afastada, na colônia Santa Rosa, onde o governo mantém um serviço de

proteção aos nacionais, dando- lhes transporte gratuito e facilitando o pagamento dos lotes em

serviço, assim como o pagamento de indenização pelas benfeitorias que perderem em Sarandi.

Informa que os chefes envolvidos no atentado estão sendo processados em Passo

Fundo e, para melhor esclarecimento, anexa o relatório do Delegado de Polícia, Juvenal

Xavier. O relatório registra o episódio do dia 26 de julho do mesmo ano, quando o agrimensor

João Pedro Flores saía do seu acampamento de trabalho na Serra do Sarandi, juntamente com

seus peões, para proceder à demarcação de colônias, que fazia por conta do agrimensor Luiz

Magalhães, contratante do serviço, quando a turma foi “assaltada e barbara e traiçoeiramente

por um grupo de malfeitores occultos nos mattos de ambos os lados do trilho por onde se

dirigia a turma”. 446 Foi morto, na osasião, o agrimensor João Pedro Flores, o peão José Pedro

dos Santos, saindo ferido Alipio Xavier Simões. Este, juntamente com outros peões que

compunham o grupo, presta declarações reconhecendo e informando os agressores. Entre os

nomes mais citados encontra-se Primo Savoldi, Pedro Americo, Angelo Giordani, Severino

Peres e vários outros. Relata que quando os companheiros retornaram ao local para buscar os

corpos para sepultar foram novamente atacados pelo grupo que se mantinha nas imediações,

ficando os corpos insepultos por vários dias. Denuncia que os assaltantes levaram o

instrumento de trabalho do agrimensor e algumas armas. O delegado informa não ter, ainda,

enviado o relatório devido ao acúmulo de serviço e às dificuldades para a investigação, dada a

distância do local.

Verifica-se, na correspondência enviada por Torres Gonçalves, nos dias seguintes, a

preocupação em manter o Secretário de Obras Públicas informado de todas as ações que está

desenvolvendo. Segundo ele, o encontro com Leonel Rocha, em Sarandi, seria arriscado, por

ser o local das agitações, presumindo que Palmeira seria o ponto mais indicado para o

encontro.447 Em correspondência posterior, informa que o encontro ocorreu em Palmeira e

que “Leonel Rocha declarou concordar com as medidas propostas”. 448 Solicita ao secretário

autorização para a transferência das famílias para Santa Rosa ou Erechim, pois a permanência

445 Carta de Carlos Torres Gonçalves ao Dr. Ildefonso Pinto. Pasta 538, Doc. nº. 3, Cx. 22. AHRS.446 Relatório do Delegado de Polícia de Passo Fundo, Juvenal Xavier. Pasta 538, Anexo ao Doc. nº. 3. Cx.22. AHRS.447Torres Gonçalves para Secretário das Obras Públicas, Ildefonso Soares Pinto de 30/09/1924. Doc. nº. 4. Idem.448Telegrama de Torres Gonçalves para o Secretário de Obras Públicas de 05/10/1924. Doc. nº. 4. Idem.

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das mesmas é uma ameaça à manutenção da ordem. O número de famílias não seria trinta,

mas quinze e a Companhia Sarandi estaria disposta a ficar com as benfeitorias, indenizando os

moradores, segundo a avaliação feita pela Comissão de Passo Fundo. 449 Em anexo, constam

instruções ao Chefe da Comissão de Terras de Passo Fundo, sobre as providências a serem

tomadas para avaliação e transferência das famílias.

Coloca-se, assim, o governo, através da Comissão de Terras, como intermediário entre

os caboclos e a Companhia, criando condições favoráveis para a transferência das famílias

que tivessem de ser afastadas, providenciando transporte e facilidades para a aquisição de

novas terras, “no sentido de ampliar os períodos de pagamento e facilitar este mediante a

prestação de serviço em trabalhos de viação”. Tais facilidades seriam exclusivamente para as

famílias em questão.450

O episódio, revestido de muita violência, demonstra a gravidade das ações que

acompanhavam os processos de apropriação de terras, ditas devolutas, na região Norte do

estado. A correspondência de Torres Gonçalves mostra que o governo tinha conhecimento do

clima de hostilidade que havia contra a Companhia Colonizadora Sarandi e procurou agir com

presteza, desativando um foco de tensão, que poderia se agravar diante da participação de

Leonel Rocha, quando as cinzas da Revolução de 1923, ainda não tinham se apagado de todo.

Torres Gonçalves afirma em uma das cartas que:

As pessoas com quem tenho falado, attribuem a situação de Sarandy antes a moveis politicos do que a descontentamento de moradores. Assim poderá ser, na verdade, se for exacto, como vou procurar verificar no local, que a grande maioria dos ocupantes das terras, não sópermanece em attitude pacifica, como considera-se victima das violencias e perturbações constantes dos amotinados, todos alli estabelecidos durante a ultima revolução, e cuja volta para as terras lhes repugna, a ponto de muitos declararem-se dispostos a não consentir nisso.451

Tem-se aí a visão do poder. A percepção do ponto de vista dos moradores consta em

uma carta enviada a Leonel Rocha, por Primo Savoldi, 452 um dos principais acusados,

indicando que se encontrava no local denominado Potreiro Bonito, um dos redutos onde se

449Torres Gonçalves para Ildefonso Soares Pinto, Secretário das Obras Públicas de 05/10/1924. Idem.450 Carta de Carlos Torres Gonçalves para o Chefe da Comissão de Terras de Passo Fundo, de 05/10/1924. Idem.451 Idem. Doc. Nº 4.452 Savoldi foi o primeiro professor do ensino primário do povoado de Sarandi. Por ter se desentendido com os integrantes da Companhia Colonizadora Gomes, Silva & Cia., tornou-se persona non grata e, premido pelas conseqüências socio-políticas da época ingressou no Partido Libertador, passando a liderar os maragatos da região de Sarandi. Tomou parte de vários episódios que fazem a história de Sarandi, sendo acusado de co-autordos assassinatos do agrimensor João Pedro e do chefe da medição das terras da Colônia Sarandi. Foi processado, junto com outros companheiros, e absolvido por 7 a 0. Foi o primeiro júri da Comarca de Carazinho, tendo atuado como Promotora Pública a Drª. Sofia Galanternick, como Juiz de Direito Jorge Fonseca Pires e o advogado de Passo Fundo Celso Fiori. Embora o crime tenha ocorrido em 28/06/1924, os indiciados somente foram julgados em 1941. Desiludido com os acontecimentos retirou-se para Iraí, onde faleceu. Ver VENCATO, Almedoro. Sarandi, um recanto histórico do RS. Sarandi: Gráfica Editora “A Região” Ltda. 1994. p. 86.

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concentravam os caboclos da zona da mata. Escreve que “um boato ou notícia exacta (...)

infundio um jubilo de alegria nos corações de diversos habitantes que foram escurraçados do

Sarandy” . A notícia seria a chegada de Torres Gonçalves a Palmeira para conferenciar com

Leonel Rocha sobre as “horrendas passagens de tristeza que passou os habitantes da terra

protestada do Sarandy”. Demonstra, na linguagem simples com que se expressa, que a

presença desse representante do Governo do Estado, pode vir a solucionar seus problemas.

(...) assim é que si exacto for esta notícia confiamos pela segunda vez que esta autoridade do Governo do Estado, e que lançará um olhar benigno sobre centenares de famílias laboriosas escurraçadas de suas casas pelos infames usurpadores do direito desse pessoal, dissemos infames uxurpadores do direito porque a actual Companhia Colonizadora veio destruir o direito deste grande número de habitantes, desalojar moradores de suas casas e vender o referido lote há outros compradores que nem se sabe de onde vem e que está residindo em outros municípios, queimar centenares de casas com mantimentos, expulsar fóra do solo nactivo centos de familias, espostos aos rigores do tempo soffrendo as mais rudes provas que a humanidade possa resistir, creanças chorando e morrendo de fome, sem poder socorrel-a sendo tomados todos os mantimentos que há estes pertenciam, suor uxurpado (pela maldicta Companhia) dos laboriosos agricultores que a um annoderramaram o suor para agora aproveital-o em mantimentos para si e para os filhos...453

A linguagem confusa não impede que se constate uma grande revolta contra a

Companhia: “estamos na época que está sendo violado o direito do laborioso trabalhador”. 454

Afirma que muitos tiveram que abandonar o solo nativo e ir para o estrangeiro. Esclarece a

passagem de Leonel Rocha por Sarandi, quando relata que o Subchefe de Polícia aí esteve,

cientificando-se dos fatos. Na ocasião, colheu muitos depoimentos, só não se apresentando

mais queixosos, porque se viram sem garantias de vida, visto que o pessoal, sob as ordens do

Capitão Luiz Magalhães, estava pronto a bombardear o hotel em que se achava hospedado o

Subchefe, o próprio Leonel Rocha e demais companheiros. Savoldi destaca que “isto é

contado por muitas pessoas da séde, que estiveram toda a noite com as armas na mão,

prompto para tal desordens e si o pessoal atacou a medição é porque se viram violados os seus

direitos”. 455

Faz referências em sua carta a 400 habitantes que foram expulsos de suas casas e

muitas delas queimadas, havendo entre eles posseiros que residiam no local há mais de 30

anos, “e agora vir uma companhia e tratar de espulsal-os a todos sem ao menos dar a

preferência aos habitantes das terras. É verdade que estamos atravessando uma época que o

453 Carta de Primo Savoldi a Leonel Rocha, de 30/09/1924. Doc. Nº 11, Pasta 538, Cx. 22. AHRS.454 “Isso remete às discussões thompsonianas sobre a economia moral da multidão , pelas quais as comunidades

têm determinadas concepções do que é moralmente justo ou injusto – concepções que não necessariamente coincidem com as dos membros da elite ou com as dos historiadores – e reagem quando sentem seus direitos violados”, conforme apontado por Benito B. Schmidt na argüição deste trabalho. 455 Carta de Primo Savoldi a Leonel Rocha, 30/09/1924. Doc. Nº 11, Pasta 538, Cx. 22. AHRS.

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homem que procura o seu direito é considerado como bandido”. 456 Afirma depositar confiança

em Leonel Rocha, a quem trata com deferência, confiando que, se fosse firmado um acordo,

não seria prejudicial aos antigos moradores.

Constata-se, na documentação exposta, que o episódio está diretamente ligado a

conflitos fundiários, sendo trazido para a análise por demonstrar com clareza o vínculo de

Leonel Rocha com os deserdados da terra, comprovando que sua luta não era apenas contra o

governo, mas contra uma ordem social avalizada e mantida por esse mesmo governo.

Sobre a atuação de Torres Gonçalves é de se observar o extremo cuidado com que

atuou no sentido de oferecer condições para que o conflito fosse resolvido. A atitude está em

consonância com sua postura ideológica que tinha como uma de suas metas a proteção aos

nacionais. “A colonização privada, em que pese os resultados elogiáveis em nível da pequena

produção policultora, aparentemente não é tida como o procedimento em melhor consonância

com os princípios positivistas do governo estadual, esses seriam, basicamente, de caráter

social para com os imigrantes e para os caboclos – os nacionais”. 457

Para melhor clareza sobre o rumo dos acontecimentos, posteriormente aos episódios

que constam da documentação exposta, recorremos a obra de Almedoro Vencato, que

escrevendo sobre a história de Sarandi afirma que “o desentendimento com os componentes

da firma Gomes, Silva & Cia. deu-se porque se dizia que as terras pertenciam ao governo, de

vez que o mapa elaborado... fora alterado, propositadamente, ocorrendo uma grande

controvérsia entre os caboclos e a companhia”. O professor Primo Savoldi, que se havia

indisposto com o pessoal da Companhia Colonizadora, passou a liderar os que se opunham à

medição de terras da Colônia Sarandi, organizando, então, dois grupos de caboclos maragatos

que se dispunham a impedir a tarefa dos agrimensores e, sendo necessário, eliminá- los.458 Os

caboclos não admitiam que os colonizadores medissem as terras, principalmente, as que

margeavam o rio da Várzea, onde se concentrava maior número daqueles que vieram de

Palmeira das Missões.

Sarandi era um reduto de muitos habitantes caboclos e ali se processava uma

colonização com colonos italianos, decididos a tomar posse das terras que tinham adquirido

da companhia colonizadora. Estabeleceu-se o conflito, porque os caboclos não aceitavam que

os colonizadores medissem as suas terras. Conforme Vencato:

456 Idem. Ibidem.457 RÜCKERT, Aldomar. Op. cit. p. 127.458 VENCATO, Almedoro. Op. cit. p. 86.

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Sarandi passa a ser alvo da atenção dos maragatos, pois, além de ser reduto de muitos habitantes caboclos (intrusos da Fazenda dos Castelhanos), aqui se processava umacolonização de elementos alienígenas que, para os caboclos, eram gringos, tidos (estes sim)como intrusos, indesejáveis, perturbadores do sossego e paz daquele meio que viviam os primitivos habitantes: criadores de gado, caçadores, mateiros, coletores de pinhão, fugitivos da justiça, negros libertos e outros tantos habitantes de arribação.(...) Estes logo se aliaram, em grande número, aos grupos revolucionários maragatos,formando os famosos piquetes que atacavam, de surpresa, a população local, atemorizando os pacatos colonizadores. Os chefes da Cia. Colonizadora, naturalmente, aderem às forças governamentais, buscando-lhes apoio e proteção. Assim, estabelece-se entre as duas forças o confronto.459

Vários episódios violentos ocorreram e foram relatados por Vencato que afirma que, à

medida que mais colonos iam chegando, a companhia colonizadora foi sendo pressionada a

prosseguir na medição das terras. No período revolucionário de 1923 a 1925, ocorreram

mortes e vinditas políticas, sendo o período caracterizado pelo temor da ação das facções em

luta. De acordo com Vencato, a companhia colonizadora contava com o apoio do Intendente

Nicolau de Campos Vergueiro, que defendia a propriedade da firma aos castelhanos Julio

Mailhos, Mouriño & Lapido. Já os moradores da zona da mata diziam que a área pertencia ao

Governo do Estado e, por isso, opunham-se à medição. A tentativa de oferecer lotes em outras

regiões não atingiu seu intento e a violência chegou a registrar mortes, como as que foram

registradas anteriormente, voltando-se contra os que realizavam a tarefa da medição.

Apesar da intervenção do Governo Estadual a questão não foi totalmente resolvida

com a saída de algumas famílias e, em 12 de novembro de 1924, Leonel Rocha, juntamente

com Primo Savoldi e Ângelo Giordani invadiram a Vila de Sarandi à frente de um piquete de

450 homens. Ocorreram mortes e o maior saque das invasões à vila. “Mas o que os invasores

queriam era a vida de Armínio da Silva, chefe da Cia. Colonizadora. Gritavam ofensas ao

mesmo, buscando-o por todas as casas e possíveis esconderijos, caracterizando, através dessas

manifestações, o desagrado dos caboclos contra a demarcação das terras”. 460

Os acontecimentos posteriores foram marcados pela reação dos chimangos.

Começou, então, a vindita dos chimangos: Carlos Sbaraini e outros companheiros foramencarregados pela Cia. Colonizadora para efetuar a eliminação dos ranchos de caboclos e seus ocupantes a ferro e fogo, pagando-se certya quantia pelo destruído: o despejo era feito a tiros e os que não fugiam eram apagados.Os que não conseguiam fugir pra as matas eram mortos e jogados no rio da Várzea. Há algo decididamente fantástico: destas empreitadas, era costume trazer as orelhas dos caboclos , atadas aos tentos dos arreios. O trabalho era recompensado pelo número de pares de orelhas contados, junto à sede da Cia. Colonizadora, quando do retorno do grupo.461

459 VENCATO, Almedoro. Op. cit. p. 90. Segundo informações do autor, seu relato é fruto de registros locais e relatos orais dos contemporâneos dos fatos. 460 Idem. p. 100.461 Idem. p. 101.

Page 180: Caboclos, Ervateiros Coroneis

181

Diante da crueza das perseguições, os posseiros caboclos da margem direita do rio da

Várzea foram expulsos, indo localizar-se na margem esquerda, já no município de Palmeira

das Missões, enquanto outros transferiram-se para Tenente Portela ou para o estado vizinho.

No entanto, a colonização privada avançava e a mercantilização da terra torna-se uma

realidade, conduzindo à expropriação dos nacionais das áreas que ocupavam, ao invés de

serem incorporados ao processo de colonização. Conforme Rückert:

O não-engajamento parcial dos camponeses nacionais aos projetos de colonização produz um amplo raio de tensões e conflitos nas terras ocupadas por caboclos. A colonização das terras de matas da Fazenda Sarandy é um caso exemplar no que diz respeito à expropriação emarginalização dos camponeses caboclos, via de regra chamados de intrusos, uma vez que nela se dá a implantação da colonização particular a partir de 1917 pelos uruguaios Lapido, Mouriño e Mailhos.462

Os acontecimentos de 1924 permitem conclusões sobre a inspiração das lutas

empreendidas por Leonel Rocha, ao atacar os redutos de onde, mais claramente, se

evidenciava o caráter excludente da posse da terra para os caboclos. De acordo com Sodré, a

Coluna enfrentou, em momentos diversos, as forças regulares do Exército, mas, “no conjunto,

as que de fato e continuamente a combateram foram as forças irregulares, a tropa do

latifúndio (...) com a ajuda ou aliança das polícias militares estaduais”.463 Por aquilo que a

Coluna representava como fator de contestação ao coronelismo, “atraiu a simpatia dos

desafortunados e dos perseguidos”. 464 Os familiares ressaltam o afastamento de Leonel Rocha

de Luís Carlos Prestes, quando este aderiu às idéias socialistas. No entanto, sua luta o

identifica com os depossuídos e as palavras de Arthur Ferreira Filho parecem adequar-se ao

personagem: “talvez, mesmo sem o saber, já lutasse como instrumento de seus próprios

adeptos, por uma vaga transformação que viesse melhorar a sorte dos roceiros e trabalhadores

da enxada”.465

Segundo Hickmann, Leonel Rocha “timbra em ressaltar” em suas cartas que só lutava

pela Liberdade e Justiça. Não exercia vingança e sempre poupava a vida de seus adversários

vencidos. Assim, enquanto o ideal de liberdade e justiça não fosse alcançado, Leonel Rocha

continuava na luta. Em 1926, encontrava-se na Argentina e, juntamente com alguns velhos

aliados, planejavam novas investidas. Escreve Leonel:

462 RÜCKERT, Aldomar. Op. cit. p. 128.463 SODRÉ, Nelson Werneck. Op. cit. p. 40. 464 Idem. p. 46.465 FERREIRA FILHO, Arthur. Op. cit p. 118.

Page 181: Caboclos, Ervateiros Coroneis

182

Esta revolução de 1926, fiz no Contestado de Santa Catarina. Foi a mais braba de todas.Estava eu nesta ocasião imigrado na Argentina; quem estava preparando a revolução naArgentina era o General Zeca Neto, depois passou para o General Isidoro. Fui quatro vezes conferenciar com eles, primeiro em Casseiros, depois em Passo dos Libres. Acertamos bem os planos e o General disse: revolução bem preparada como esta, não houve; falhando a metade, ainda temos demais. Finalmente falhou tudo.466

Ferreira Filho refere que, em 1926, Leonel Rocha, apoiando o movimento iniciado em

Santa Maria, pelos irmãos Etchegoyen, tenentes do Exército, levantou-se no município de

Palmeira à frente de um pequeno grupo rebelde. Vazulmiro Dutra é chamado a combatê- lo,

mas não houve necessidade de entrar em campanha. O caudilho revolucionário abandonou

rapidamente a cena, rumando para leste, onde foi derrotado pelo coronel Joaquim Acauã, no

Morro Agudo, município de Bom Jesus.467

Leonel recebeu ordens de fazer a invasão de Porto Feliz, hoje Mondaí, em Santa

Catarina, onde surpreendeu a todos os habitantes, enquanto dormiam. Entrando na Colônia

recém criada de Porto Novo, hoje Itapiranga, prendeu os colonos, que mais tarde foram postos

em liberdade.468 De Porto Feliz, Rocha seguiu para Barracão, depois tomou o rumo de Palmas

e, em Pato Branco, foi atacado por uma força do Exército. Segue na sua trajetória atacando

vários locais: Colônia Chopim, Guarapuava, Marechal Malé, Campos Novos, São Joaquim,

Lajes, Tijuca, Bom Jesus. Tomam armamentos e também enfrentam grandes perdas.

“Costeando a Serra do Rio Canoas foram atacados por uma força do Exército de mais de mil

homens. A metade da gente de Rocha ficou extraviada nesta ocasião”. 469 Após o encontro em

Urubiçu, ficou só com quinze homens. Retornou ao Rio Grande do Sul, passando por

Erechim, atravessou o rio Uruguai e internou-se, novamente na Argentina, onde se encontrava

sua família desde 1925.

Tendo que empreender a volta em condições adversas, durante vários dias, faz

prodígios de habilidade, movendo-se com extrema dificuldade, para livrar-se dos numerosos

destacamentos que, em ambas as margens do rio Uruguai, aguardavam a passagem do

caudilho.

Esse novo surto de rebeldia foi desastroso para os velhos caudilhos, que já não

encontraram o mesmo ambiente de luta e muitos dos velhos companheiros não os

466 HICKMANN, João. Op. cit. p. 89.467 FERREIRA FILHO, Arthur. Op. cit. 1986. p. 80.468 Idem. p. 89. Estes fatos lhe valeram, na região, uma fama negativa. Os mesmos estão descritos no livro de Maria F. Rhode Pioniergeistder Väter Erbe, história dos primeiros 25 anos de Porto Novo. Tipografia do Centro – Porto Alegre, conforme consta em Hickmann.469 HICKMANN, João. Op. cit. p. 89.

Page 182: Caboclos, Ervateiros Coroneis

183

acompanhavam mais. Zeca Neto sem conseguir controlar seus comandados, após algumas

escaramuças, foi derrotado e obrigado a regressar à república vizinha.470

Leonel Rocha lançou-se nessa aventura com poucos homens e, conforme Ferreira

Filho, destinada previamente ao fracasso. “Não se podendo sustentar em seu campo predileto

de ação, as matas de Palmeira, transpõe o rio Uruguai e sobe pela margem catarinense, numa

caminhada sem objetivo (...) Estava em campo limpo, fora de seus hábitos e em zona estranha

a todos os componentes de sua coluna”. 471

Pouco se sabe da vida de Leonel Rocha nos anos subseqüentes ao episódio de 1926.

Seu filho informa que viviam em Bompland, na Argentina, onde o pai tinha uma chácara, que

ficava a uns dez quilômetros da cidade, para onde ia todo dia, a cavalo. Dedicava-se à

agricultura e à extração de erva-mate.

Em 1930, de acordo com Hickmann, o Dr. Osvaldo Aranha mandou buscar Leonel

Rocha na Argentina, incumbindo-o do comando da Brigada Militar em Palmeira. No entanto,

não chegou a participar efetivamente da movimentação, pois, enquanto aguardava o

armamento, a revolução terminou. Faz referência à ajuda financeira que recebeu : “o general

Flores da Cunha mandou- lhe três contos de réis para fazer a mudança da Argentina para

Palmeira”. 472 Leonel teria retornado ao Brasil, nessa ocasião, embora a família tivesse

permanecido em Bompland. Conforme o filho, Silveira Rocha, voltam ao Brasil em 1932, “foi

chamado pelo Getúlio”. 473 O filho Cláudio conta que o pai “tinha uma caminhãozinho, no

qual trazia algumas coisas, mas teve que deixar na aduana... não pode trazer nada, veio só

com a roupa do corpo”. 474

Como estava agora do lado governista, “o general Flores da Cunha fez levar Leonel

Rocha para Porto Alegre para protegê- lo contra seus inimigos”. 475 Conforme o próprio

caudilho, “essa foi a primeira vez em minha vida que viajei com leito, em carro de primeira

classe”. 476 Nessa luta teve autorização para formar uma Brigada e foi guarnecer Porto União,

onde conseguiu debelar uma revolta. De suas tropas, foram enviadas três companhias para o

litoral de São Paulo, atendendo pedido do Interventor Manoel Ribas, do Paraná. Bateram-se

num combate onde tiveram um morto e doze feridos.

470 Ver FERREIRA FILHO. 1986. Op. cit. p. 104.471 FERREIRA FILHO, Arthur. Op. cit. p. 119.472 HICKMANN, João. Op. cit. p. 90.473 Entrevista com Silveira Martins Rocha, concedida à autora em 21/10/2001.474 Entrevista com Cláudio Silveira Martins, concedida à autora em 21/10/2001.475 HICKMAMM, João. Op. cit. p. 90476 Entrevista de Leonel Rocha ao Correio do Povo. 09/05/1944.

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Cessava aí o passado de lutas, em que combateu em condições quase sempre adversas,

defendendo, conforme proclamava, “Liberdade e Justiça”. Após a Revolução de 1932, Flores

da Cunha nomeou-o chefe dos guardas florestais em Erechim, cargo no qual foi aposentado,

em 1938, quando o Rio Grande do Sul era governado por Cordeiro de Farias.477 De certa

forma, isso vem confirmar as palavras de Arthur Ferreira Filho de que Leonel Rocha “Não

pertencia à classe dos que recolhem os frutos das vitórias revolucionárias”. 478 Aceitou um

emprego modesto e viveu seus últimos anos de modo discreto, sem perder o vínculo com os

caboclos que chefiara. Conforme afirma sua filha Nelci “sempre vinham caboclos de

Palmeira, tinha um fogo-de-chão no galpão, onde ficavam conversando... vinham trazer

notícias de política”. 479

Hickmann encerra a biografia, registrando o falecimento do líder maragato em 20 de

dezembro de 1947, aos 82 anos, na cidade de Erechim. Dentre os velhos companheiros de

luta, o Coronel Fidêncio Melo, que teve com ele destacada atuação na Revolução de 1923, se

manteve próximo até sua morte. O enterro simples teve a presença de políticos e repercutiu

em todo estado, sendo homenageado na Câmara de Vereadores de Erechim e na Assembléia

do Estado, por proposta do então deputado, Leonel Brizola.480

4.5. Por que lutou Leonel Rocha?

A atuação de Leonel Rocha nos conflitos que conflagraram o Rio Grande do Sul, no

período da República Velha e parte do período Getulista, desperta atitudes contraditórias,

conforme a posição política de seus contemporâneos. No entanto, há consenso quando se trata

de reconhecer nele a valentia, a coerência de suas posições e o reconhecimento de sua

capacidade de arregimentação e comando. Sempre foi considerado um adversário de respeito

pelos opositores e um líder que impunha confiança em seus comandados.

477 Recebia na função o salário de um conto de réis, tendo sido aposentado com os mesmos vencimentos.478 FERREIRA FILHO, Arthur. Op. cit. p. 119.479 Entrevista com Nelci Rocha, concedida à autora em 21/10/2001.480 O Correio do Povo publicou a notícia, conforme consta no Jornal a Voz da Serra, destacando as homenagenspóstumas e votos de pesar recebidos pela família. Leonel Brizola, que atribui a escolha de seu nome ao líder maragato, envia telegrama a familia: “Ligados por profundos laços de admiração, como também indestrutíveis tradições de família, à figura heróica e digna de vosso saudoso pai, General Leonel Rocha, foi com profundo pesar recebi notícia seu falecimento (...)”. Publicado no jornal A Voz da Serra , de Erechim, em 08/01/1948, sob o título “Repercute ainda o falecimento do General Leonel Rocha”. Noticia também a homenagem da Câmara de vereadores local, por indicação do vereador Aldo Afonso de Castro.

Page 184: Caboclos, Ervateiros Coroneis

185

No final da República Velha, Leonel encontrava-se emigrado na Argentina e pelo que

demonstram algumas cartas, vivendo em condições precárias. Vivia-se um momento em que

se instalava uma nova composição de forças e, velhos adversários aliavam-se em torno de

Getúlio Vargas. Nesse contexto, o líder maragato foi insistentemente assediado para que

compusesse as novas hostes libertadoras. Cartas de Antunes Maciel481, então Deputado

Estadual, conclamava o seu “velho amigo que manifestasse a sua solidariedade ao

movimento liberal que empolga o paiz, como bom Libertador que é, filiado e disciplinado. Os

demais generais libertadores o Portinho, Netto, Honorio já se solidarizaram, não devendo,

portanto o Leonel, ficar para trás”. 482 Faz referências a outra carta enviada anteriormente no

mesmo sentido, como também tinha solicitado ao amigo Fidêncio Mello para que interferisse.

Informa que solicitara a Getúlio Vargas, na condição de Presidente do Estado, “que se

interessasse pela sua volta ao estado, expedindo determinações sobre a sua tranqüilidade e

segurança, em Palmeira, ou onde lhe convier ficar. Elle o fez, mandando que o Secretario do

Interior se dirigisse a Valzomiro Dutra, com recomendações especiaes”. 483 Comunica o envio

de oitocentos mil réis pelo Banco Pelotense e insiste para que retorne, ressaltando que “o meu

velho amigo deverá escolher o ponto que melhor lhe sirva, dentro do Rio Grande e para ahi

virá, terminando o cyclo de privações e agruras que tem experimentado com sua família, em

terra estranha”. Fala com entusiasmo da Campanha Liberal e das esperanças que se abrem,

que o movimento cresce de Sul a Norte, insistindo em que para tornar o bloco rio-grandense

mais compacto desejava ver “nas suas vanguardas a figura honrada e valorosa do meu velho

amigo”. 484

As palavras e as medidas tomadas para que a adesão de Leonel Rocha ao movimento

se efetivasse demonstram o prestígio do líder maragato e a importância de seu engajamento à

causa Liberal e, surpreendentemente, o envolvimento de Vazulmiro Dutra, no sentido de fazer

cumprir as determinações de Getúlio Vargas reforça essa convicção.

Leonel responde à primeira carta, de 22 de agosto de 1929, confirma o recebimento

dos oitocentos mil réis e informa que “veio de Palmeira o Delegado de Polícia major João

481 Trata-se de Francisco Antunes Maciel Júnior que foi deputado federal de 1915 a 1917, de 1921 a 1926 e em 1930, inicialmente pelo Partido Federalista e a partir de 1924 na legenda da Aliança Libertadora. Revolucionário de 1923 e 1930 e Ministro da Justiça de 1932 a 1934, durante o Governo Provisório de Getúlio Vargas. Na Revolução de 1923 chegou a participar diretamente do confronto, fazendo parte do grupo de Felipe Portinho. As cartas foram enviadas a Leonel Rocha a Bompland, Misiones, na Argentina, 22/08/1929 e 07/09/1929.AAM/CPDOC- FGV. Cópia do documento no NHP/UPF.482 Carta de Antunes Maciel para Leonel Rocha. 07/09/1929. AAM/CPDOC/FGV. Cópia do documento no NHP/UPF.483 Idem.484 Idem.

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Alberto Corrêa, mandado pelo Intendente Cel. Vazolmiro Dutra com o fim de me levarem,

trouxe carta do Cel. e me disse que tinha autorização do Intendente e do chefe de terras

Frederico Westphalen para eu ir que me davam capital para mim negociar, querem me

ajudar”. 485 Em linguagem simples expõe as informações trazidas pelo Delegado, que

confirmam a interferência de Getúlio Vargas, as dificuldades econômicas em que se

encontrava e a disposição em ajudá- lo. Diante de sua alegação de não poder aceitar por ter

contas a pagar, o Delegado “insistiu para eu ir junto para trazer o dinheiro necessário para

liquidar todos os meus negócios aqui e para as depesas de viagem e que chegando lá eu tinha

dinheiro de sobra para negociar”. 486

A atitude do caudilho é de precaução e dúvida: “tenho andado bastante impressionado

com tantas amabilidades desses homens que queimarão minha caza e mandarão assassinar

minha família oficial”. Diz que o fato não aconteceu, porque aqueles que foram encarregados

de tal ação declararam não ter coragem de cumprir tais ordens e que depois da Revolução de

23, passou a maior parte do tempo dormindo nos matos, pois a casa estava constantemente

“rondada pelos assacinos delles e agora dizem que querem me tirar dos sacrifícios para que eu

tenha uma boa vida. O que diz meu amigo, será verdade?”487 Homem precavido, após ter

enfrentado tantos revezes, informa ter enviado ao Diário de Notícias e para Palmeira, uma

comunicação para que fosse publicada. Também autorizava Antunes Maciel a fazer uma

declaração em seu nome.

Como se constata, tinha conquistado uma posição de respeito e a simpatia de muitos

homens ilustres de seu tempo, porém, do ponto de vista econômico, tinha perdido tudo. É

certo que não era um homem de posses como os coronéis seus aliados ou os adversários, mas

situava-se numa posição intermediária entre os caboclos despossuídos e os latifundiários,

conforme afirma em entrevista já citada e em depoimento transcrito pelo Pe. Hickmann e já

referido. Isso o colocava em posição de ascendência entre os que nada tinham. As lutas de que

participou deixaram-no pobre, confirmando as palavras de Arthur Ferreira Filho: “não

pertencia à classe dos que colhem os frutos das vitórias revolucionárias”. 488

Em 1932, encontrava-se em Palmeira, procurando ainda atuar de alguma forma contra

situações de injustiça. Em cartas enviadas a Flores da Cunha e Raul Pilla faz denúncias da

situação política de Palmeira e repudia a indicação de Luiz Magalhães para Delegado de

Polícia: “O indigitado candidato não poderia corresponder melhor aos anseios da situação

485 Carta de Leonel Rocha para Antunes Maciel. 06/09/1929. AAM/CPDOC/.FGV. Cópia no NHP-UPF486 Carta de Leonel Rocha a Antunes Maciel. 06/09/29. AAM/CPDOC/FGV. Cópia NHP/UPF. 487 Idem.488 FERREIRA FILHO, Arthur. Op. cit. p. 119.

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local, dado o seu rubro passado de sanguinário truc idador de vítimas inermes no distrito de

Sarandy, Município de Passo Fundo”. Luiz Magalhães era o agrimensor que coordenava as

contratações para medição dos lotes da Fazenda Sarandi, estando envolvido nos episódios que

expusemos anteriormente. Faz duras críticas ao “famigerado indivíduo” , acusando-o de

“lampeão em miniatura”. 489 Indica o dr. Miguel Chimieleski para comprovação do que estava

afirmando. Esse era subchefe de polícia e presidira o inquérito instaurado para a apuração dos

delitos ocorridos, relacionados aos episódios da Fazenda Sarandi, em 1924.

O fato que está ocorrendo é o afastamento do prefeito, por motivo de licença, em seu

lugar assumindo o Delegado João Alberto, o que abre a vaga para a indicação de Luiz

Magalhães para esta função. Faz sérias acusações ao grupo que governa o município e destaca

que “poucas vezes o quadro local tem estado tão sombrio como agora”. Na carta a Raul Pilla,

deixa uma série de indagações:

Porque tanta demora na solução de um caso que viria beneficiar o conceito do próprio Partido Republicano local que, justiça lhe seja feita, não apoia de modo algum os desmandos desse grupo de homens desfibrados, sem ideal e sem patriotismo, que só disvirtuam os princípios que dizem professar, tirando das posições que ocupam os mais escandalosos proventos materiais?Qual será a causa que insiste em negligenciar tão ás claras uma situação por demais conhecida em todo o Estado, repudiada mesmo por quase todos os elementos situasionistas de outros municípios?Qual será a incógnita desse problema tão difícil de resolver? (...)Onde estará o nó dessa meada tão difícil de desembaraçar? São perguntas que estão nos labios dessa gente simples que habita o interior deste município, e ás quaes deichamos de responder para não comprometermos o que ahi ouvimos do digno General Interventor.490

Sugere, como se depreende do texto, que Flores da Cunha tinha conhecimento da

situação de Palmeira.491 Esse clima de descontentamento, provavelmente, tenha influído para

que Leonel assumisse as funções do cargo de guarda florestal em Erechim. Convinha para o

governo , pois temia que novamente se levantasse em protesto e convinha para o caudilho,

que nesta época contava com 67 anos.

Por todos os fatos que foram expostos, Leonel Rocha aparece na memória coletiva

com construções que o diferenciam dos demais comandantes revolucionários e a questão que

se impõe, na discussão dessa figura histórica é a mesma que perpassa o imaginário social :

“Por que lutou Leonel Rocha”? A pergunta se constituiu em título de uma composição

apresentada na 3º edição do Carijo da Canção Gaúcha, festival de música nativista que ocorre

489 Provavelmente uma referência ao relato de Vencato sobre morticínios, em que os executores levavam os pares de orelhas para comprovar a matança dos caboclos, já referida anteriormente. Ver VENCATO, Almedoro. Op. cit. p. 101.490 Carta de Leonel Rocha para Raul Pilla, 14/04/1932. AFC/UFRGS. Cópia do documento no NHP/UPF.491 As desavenças entre Flores da Cunha e Vazulmiro Dutra são conhecidas e registradas em sua biografia. Ver: FERREIRA FILHO, Arthur. Op. cit e FÉLIX, Loiva Otero. Op. cit.

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anualmente no município. Os versos retratam a figura do “caudilho a pé” e reforçam as

representações sobre sua figura, de que, embora vencedor no campo de batalha, não teve

recompensas pelos seus feitos, continuando a ser identificado com os despossuídos.

Não era representante das elites cavaleirasem lutas pelo poder na comandância campeira.Não era dos coronéis, que armavam revoluções,quando as águas se encrespavam, ameaçando as posições.492

Os registros biográficos sobre Leonel Rocha são escassos e pouco acrescentam, para o

conhecimento sobre os motivos que impulsionaram sua vida de luta. Os registros encontrados

afirmam que lutava pela “Liberdade e Justiça”, idéia proclamada, segundo tudo indica, por ele

mesmo em suas cartas, que serviram de embasamento para a monografia elaborada pelo Padre

Hickmann. Essa idéia aparece em outros textos encontrados em obras de cunho municipal,

sendo, portanto, pouco esclarecedora uma vez que os conceitos de liberdade e justiça são

amplos, envolvendo juízos de valor. Como federalista que era, circunscreveu sua luta como

reação a um governo opressor, personificado, primeiramente, em Júlio de Castilhos e depois,

em Borges de Medeiros. No entanto, mesmo pacificada a Revolução de 23, assinado o Acordo

de Pedras Altas e tendo ele participado do evento, não depõe as armas, como era de se

esperar. Isso não pode ser atribuído a uma simples questão de ressentimentos pessoais, visto

que os alvos de sua luta agora são outros.

O levantamento da trajetória de luta do caudilho traz à luz elementos que confirmam

sua atuação permanente nas manifestações de luta e resistência ao castilhismo/borgismo,

representado em nível regional pelos coronéis perrepistas. Numa região em que o poder

coronelístico se impunha e, em que a posse da terra era garantia de prestígio socioeconômico

e político, com a conseqüente exclusão de muitos, sua atuação adquire contornos de

contestação ao poder constituído.

Os episódios em que esteve envolvido, no ano de 1924 são esclarecedores dos

vínculos que o aproximavam dos excluídos do processo de regularização da posse da terra.

Não se tratava mais da luta entre frações da classe dominante, mas episódios relacionados ao

controle da terra. Embora os dados colhidos sobre esses episódios ainda necessitem de maior

aprofundamento, são tangenciais para a compreensão da força que o movia, como também

daqueles que o seguiam.

A reconstituição foi feita a partir de fragmentos que pontilharam várias obras do

período, assim como fontes primárias, que a princípio pareciam escassas, mas que adquiriram

492 MENEZES, Moisés. “Por que lutou Leonel Rocha? Letra da música apresentada no 3º Carijo da Canção Gaúcha. Anexo Nº 2.

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consistência no transcorrer da pesquisa. Dois textos foram particularmente importantes para o

encaminhamento inicial do trabalho: o ensaio produzido pelo padre João Hickmann e a

biografia elaborada por Arthur Ferreira Filho, em sua obra Revoluções e Caudilhos, que

apesar de breve 493 forneceu alguns dos principais pressupostos para a análise da ação desse

personagem.

O texto enxuto fornece um rico material para análise. É a visão de quem o conheceu,

que embora estando em campo oposto, revela algumas das facetas do caudilho, que não seria

possível perceber no relato formal dos entreveros dos quais participou. Mesclando uma

atitude de respeito e sutil ironia fornece informações da personalidade do homem que

conseguiu manter em sobressalto aqueles que controlavam o poder.

Ferreira Filho insiste nas características que distinguiam o líder maragato dos seus

oponentes ou mesmo de seus aliados.

Todos os outros caudilhos foram fazendeiros ou, pelo menos, tropeiros. Isto quer dizer, homens a cavalo, homens de esporas, ligados às atividades pastoris.(...) Leonel Rocha representou outra categoria social. Era um pequeno agricultou, muito pobre, que trabalhava de enxada em terras que nem lhe pertenciam. Não se achava integrado, nem por si, nem por sua ascendência, à aristocracia rural do Rio Grande.494

Aponta algumas de suas características físicas e de caráter: “corpulento,forte,

denunciava nos olhos azuis o traço de sangue açoariano que lhe corria nas veias. Era de

natural bondoso, de aspecto pacífico, quase humilde”. Apresentava “excelentes qualidades de

guerra: discreto, corajoso e astuto”. 495

O mesmo autor afirma que era “pobre, semi-analfabeto e matuto”. Essas indicações

devem ser consideradas tendo em vista a situação da época. Era pobre em relação aos grandes

latifundiários dos quais era aliado ou adversário. Conforme ele mesmo afirma, era um homem

com algumas posses, com terra arrendada, porém possuia boa quantidade de reses. Depois que

ingressou nas lutas perdeu tudo o que tinha. Ferreira Filho destaca que:

Se os fazendeiros o desprezavam, os roceiros viam nele um espelho de seus própriossentimentos, um depositário de suas insatisfações, de seus preconceitos e de suas vagas esperanças. E só por isso se explica o fato desse homem sem a mínima influência nas camadas dominantes, sem dinheiro, sem talento oratório, quase analfabeto, reunir sob seu comando, na Revolução de 23, quase mil combatentes que, nem todos, sabiam porque lutavam.496

493 A biografia consta em três páginas, 117 a 119, e, conforme o autor “não se trata propriamente de biografias. São apenas flagrantes onde se procurou destacar os aspectos que melhor caracterizam as personalidades aqui representadas”. Nota da 3ª edição.494 FERREIRA FILHO, Arthur. Op. cit. 1986. p. 117.495 Idem. p. 47.496 Idem. p. 118.

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O autor insiste na condição de semi-analfabeto ou quase analfabeto, no entanto, cartas

de próprio punho de Leonel demonstram que, para os padrões da época, tinha um

conhecimento razoável, uma vez que as escolas eram raras e os professores, sendo escolhidos

pela sua filiação partidária, apresentavam, muitas vezes, conhecimentos precários. O matuto,

conforme afirma, conquistou o respeito de alguns dos homens mais ilustres de seu tempo, os

quais procuraram em momentos específicos atraí- lo para a sua causa, como vimos no período

que antecedeu a Revolução de 30.

É ainda Ferreira Filho que que nos dá indicações das razões de sua luta “dizia-se um

perseguido pelo crime de lutar pela liberdade de sua terra e dos oprimidos, contra a força

opressora dos poderosos”. Os fatos levantados confirmam que sua luta não foi apenas contra

um governo, embora esse governo personificasse a opressão que ele combatia. Isso fica

evidente nos episódios de 1924 cuja ação se volta mais diretamente na defesa dos interesses

dos caboclos expropriados, no caso da Fazenda Sarandi e Xingu. É o poder do mato se

levantando novamente. A continuidade da sua luta parece deixar claro a motivação que o

sustentava e que Ferreira Filho expressa com notável perspicácia: “Talvez, mesmo sem o

saber, já lutasse como instrumento de seus próprios adeptos, por uma vaga transformação que

viesse melhorar a sorte dos roceiros e trabalhadores da enxada”. 497

4.5.1. O imaginário

Leonel Rocha passou grande parte de sua vida emigrado na Argentina, ou oculto nas

florestas de ambas as margens do rio Uruguai, tendo conquistado o respeito e a estima dos

inumeráveis caboclos, pequenos cultivadores ou mesmo foragidos que habitavam essas áreas.

Sua aproximação com os caboclos e com seu modo de vida contribuiu para a construção de

um imaginário que o identificava com esse segmento do qual se tornou líder e depositário de

suas aspirações. As representações historiográficas de caudilho a pé e caudilho caipira

reforçaram essa construção.

No imaginário coletivo, circula a idéia de que Leonel nunca teria sido ferido em

combate, o que, no entanto, não é verdadeira. O texto de Hickmann vem desfazer essa idéia.

Há referências a quatro ferimentos dos quais se curou de forma surpreendente. Conforme

afirmava, “a Providência” o curava, como já foi exposto.

Seu vínculo com os caboclos se evidencia através de alguns registros. Carregava

sempre, para se proteger, uma oração de Santa Catarina, muito presente na religiosidade desse

497 FERREIRA FILHO, Arthur. Op. cit. 1986. p. 119.

Page 190: Caboclos, Ervateiros Coroneis

191

grupo. Acreditam que a oração de Santa Catarina é garantia de proteção, e isso vem de uma

construção simbólica: carregar a oração, funciona como um patuá. Deve ter o nome da pessoa

e serve como proteção dela e não de outra. Muitos não sabiam ler, mas levavam-na como

forma de “fechar o corpo”. Os familiares preservam uma oração que pertencia ao caudilho,

constando a indicação: Esta oração pertence a Leonel Rocha. Trata-se de uma súplica

representativa do contexto vivido, pedindo para conservar a vida, a saúde e a felicidade,

acentuando “meu corpo não será prezo e nem ferido, meu sangue não será derramado nas

mãos inimigas”. 498

Essa mesma oração, com algumas variações, também foi encontrada entre os monges

do Contestado e entre os Monges Barbudos,499 assim como outras manifestações da

religiosidade cabocla. Na obra de Prestes Guimarães, há registro de um fato em que o

sargento Firmo teve a “boca e os dentes esbandalhados por uma bala, no combate dos “Três

Passos”, e de que esse mesmo sargento, na véspera, não quisera beijar a bandeira do Monge

que umas mulheres levaram ao acampamento, dizendo em tom zombeteiro: - ‘Não beijo: pode

quebrar-me os dentes!” 500

O caudilho aproximava-se da cultura cabocla e nunca rompeu os vínculos que o

aproximavam dos seus antigos seguidores. Os filhos lembram que, já morando em Erechim,

recebia a visita de caboclos de Palmeira e o pai se reunia com eles num galpão onde, ao redor

de um fogo de chão, ficavam contando histórias.

Leonel Rocha tinha assumido, diante de seus seguidores, um lugar de proeminência e

responsabilidade, criando vínculos que impediam o recuo, conforme declara:

Homem do Povo sou, e foi esse Povo que me aclamou seu chefe, no município onde resido, que obrigou-me, concitou-me a tomar armas a seu lado, para salvaguardar seus direitos, pelodespotismo conspurcados. Sobre meus hombros, desde que aceitei essa prebenda, pezamresponsabilidades bem grandes que, certo sabereis avaliar.501

Fora das fontes oficiais, não há registros de que tenha cometido atrocidades. No

Inquérito policial que investigou a Revolução de 23 e no Inquérito sobre o Movimento de 24,

acusam-no de violação da propriedade, saques, requisições de mantimentos, armas, animais,

isto é, crimes contra a propriedade. Nicanor Letti, num artigo sobre a degola no estado, afirma

498 Ver Anexo nº 3. Oração de Santa Catarina. Original em mãos dos familiares.499 Ver: KUJAWA, Henrique Aniceto. O Movimento dos Monges Barbudos. Dissertação de Mestrado emHistória. UPF. Passo Fundo: 2000.500 GUIMARÃES, Prestes. Op. cit. p. 55.501 Carta de Leonel Rocha ao Ministro da Guerra Setembrino de Carvalho, 02/101923. CPDOC/FGV- Cópia no NHP/UPF.

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que “Leonel Rocha que foi um ‘caudilho a pé’ , não pampeano e que teve como companheiros

os ‘mateiros’ do Alto Uruguai, pelo que consegui investigar não permitia a degola”. 502

Algumas vezes transparece a identificação que se atribuia aos grupos de bandoleiros,

conforme narra um entrevistado: “O Leonel Rocha era um chefe revolucionário. Ele morava

no Capão Alto e aí tinha esse povo, vamo dizê essa bandidagem de Fortaleza, essa indiada

valente, era tudo dele... tudo era maragato. Era o Pedro Domingues, tinha os Camargo, o

Felicião...” 503

Também há relatos das perseguições: “apoiavam Leonel Rocha porque tinha muita

gente contra os chimangos, contra o Borges... Esse maragatedo era muito perseguido, quando

eles (chimangos) estavam no governo... que sempre estiveram, né...O Getúlio que desbancou

ele... os borgistas com essa Frente que criou, né...”. 504

O Correio do Povo de 9 de maio de 1944 publicou uma entrevista que se constitui

num dos poucos registros em que o próprio Leonel Rocha se manifesta sobre o seu passado

de lutas.

Sempre fui defensor da teoria de que “da vida nada se leva”. Hoje estou velho e cansado. Parece até irrisório que eu não tenha mais energias para enfrentar o inimigo – si eu o tivesse –com o mesmo entusiasmo e a mesma energia de outros tempos. Sinto-me gasto, mas vivo com a recordação acesa da minha existência cheia de perigos. (...) Si hoje nada possuo resta-me a satisfação de haver travado relações com homens de pura bravura e que o Rio Grande já consagrou, como Silveira Martins, Gomercindo Saraiva, seu irmão Aparício, que posso afirmar ter sido o homem mais valente que conheci.505

Na entrevista afirma não ter “queixas de nenhum inimigo, (...) sou de opinião que os

homens que defendem, nobremente seus ideais no campo da luta, mostram-se desejosos de se

abraçarem e de se conhecerem mais intimamente em tempos de paz”. 506 Enfim, nas palavras

do caudilho é possível constatar um espírito de sentimentos nobres e uma atitude de

desprendimento diante das perdas materiais que a vida de lutas lhe reservou.

O levantamento dos dados demonstrou uma atuação constante, no ciclo revolucionário

com uma dimensão maior do que se supunha, abrindo outras perspectivas de pesquisa,

visando peencher lacunas que se impõem. Nesse aspecto, destacam-se as lutas do ano de

1924, que embora relacionadas ao tenentismo, apresentam, nitidamente, aspectos vinculados

com a questão agrária.

502 LETTI, Nicanor. A degola no Rio Grande do Sul. Correio do Povo. 06/12/1975.503 Entrevista de Januário Lima, concedida à autora, em 11/09/2001.504 Idem. 505 Entrevista de Leonel Rocha ao Correio do Povo, 09/05/1944.506 Idem.

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193

A pesquisa evidenciou um chefe revolucionário de muita bravura e movido pelo

idealismo. Aproximou-se dos homens mais destacados de sua época, sem perder o vínculo

com os mais humildes. As características que lhe foram atribuídas, “de muito pobre e quase

analfabeto” não se confirmaram. Tornou-se pobre no decorrer das lutas e seu preparo

intelectual era superior ao que era comum na época.

A foto que consta da entrevista publicada no Correio do Povo de 09 de maio de 1944 é

demonstrativa da posição de respeitabilidade e aceitação, de que gozava. (Figura nº 9) O

embarque do General para Bagé, em 1923, é acompanhado pela sociedade de Cruz Alta, com

a presença de pessoas que, pelo vestuário elegante, demonstram pertencer às camadas mais

favorecidas, comprovando uma receptividade social tal, que permitia até mesmo a presença de

mulheres. A homenagem com flores faz desse momento, certamente, um acontecimento raro,

nos duros tempos de revolução.

Isso não condiz com o que foi passado pela historiografia, conforme a visão dos

vencedores, identificado-o com os despossuídos. Assumiu a bandeira dessa categoria , mas

apresentava características que lhe davam notoriedade e prestígio, mantendo vínculos com

outras camadas sociais.

Fonte: Correio do Povo de 09/05/44.

Figura 9. Foto do General Leonel Rocha no embarque para Bagé, 1923.

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194

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na intrincada teia de relações de poder que se estabeleceram na história da ocupação

do espaço de Palmeira das Missões, emerge a figuração poder do campo & poder do mato,

em torno dos quais se aglutinaram os interesses em jogo, na luta pelas vantagens materiais e

simbólicas, que poderiam advir da adesão a um ou a outro grupo. O poder simbólico,

conforme Bourdieu “só se exerce se for reconhecido (...), se define numa determinada relação

– e por meio desta – entre os que exercem o poder e os que lhe estão sujeitos”. 507

Refletindo sobre essas idéias, procuramos destacar algumas das constatações

percebidas ao longo da realização da pesquisa em que, as lutas armadas e enfrentamentos

ocorridos na região, se constituíram no elo aglutinador servindo como pano de fundo para o

estudo das relações de poder que permearam a sociedade em estudo.

O peso do coronelismo, na estrutura da sociedade local, gerou múltiplas formas de

adesão e resistência, esta traduzida ao final na luta armada, como forma de expressar a

insatisfação dos setores dominados. A terra, distribuída de forma desigual, atribuía poder a

quem a possuía, razão pela qual gera reações por parte dos segmentos excluídos da posse da

mesma.

A construção do espaço regional possibilitou a formação de grupos antagônicos,

relacionados com a posse da terra. Na área de campo, domínio da pecuária, considerada

atividade que conferia status na concepção da época, define-se a proeminência dos coronéis-

latifundiários. Associando poder econômico e, em decorrência poder político, constituem o

grupo que “se autopercebe e que é reconhecido como membros da boa sociedade”. 508

Na área da mata, na qual o extrativismo seminômade da erva-mate, em grande parte

nos ervais públicos, não favoreceu o apossamento de grandes glebas, constituiu-se uma

população cabocla, estigmatizada com atributos de atraso, falta de capacidade produtiva,

violência, entre outros.

Se aplicarmos a análise proposta por Elias e Scotson, estabelece-se a relação

estabelecidos–outsiders, que revela propriedades gerais de toda relação de poder.

Superioridade social e moral, autopercepção e reconhecimento, pertencimento e exclusão são

507 BOURDIEU, Pierre. Op. cit. p. 14.508 NEIBURG, Federico. In. ELIAS, Norbert & SCOTSON, John. Op. cit. p. 7.

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elementos dessa dimensão da vida social, que o par estabelecidos-outsiders ilumina

exemplarmente.”509

Na área de abrangência do presente estudo, a figuração se aplica ao poder do mato e

ao poder do campo. Este controla o poder, mas enfrenta a reação daquele, que reage diante da

condição que lhe é imposta. O desenvolvimento do tema dentro de uma proposta de história

regional possibilitou a observação mais detalhada das relações de poder entre os grupos

antagônicos, que se aplicam também a um universo maior de análise do coronelismo.

Permitiu, ainda, a visualização das disputas dentro da rede de relações coronelistas, na

tentativa de manter os privilégios e vantagens.

A posse da terra representou um componente significativo, no estabelecimento das

relações de poder e, conseqüentemente, influiu na organização de uma sociedade que atribuia

valor à mesma. Como se percebeu, a questão da terra está na origem de muitos conflitos,

devido à agregação de outros fatores. A posse podia determinar a condição que o indivíduo

ocupava na sociedade. Conforme Bourdieu :

A posição de um determinado agente no espaço social pode assim ser definida pela posição que ele ocupa nos diferentes campos, quer dizer, na distribuição dos poderes que actuam em cada um deles, seja, sobretudo, o capital económico – nas suas diferentes espécies - , o capital cultural e o capital social e também o capital simbólico, geralmente chamado prestígio, reputação, fama, etc. que é a forma percebida e reconhecida como legítima das diferentes espécies de capital.510

O autor se refere às diferentes espécies de poder ou de capital, que ocorrem nos

diferentes campos, importante para entendermos o poder que Leonel Rocha exercia. Tratava-

se de um poder simbólico devido ao prestígio que possuía entre os caboclos da zona da mata e

mesmo entre os adversários.

Os dados levantados na pesquisa documental possibilitaram a confirmação das

hipóteses levantadas, pois as lutas em Palmeira, embora relacionadas ao contexto estadual,

apresentam especificidades na composição dos grupos que se enfrentavam. Os maragatos da

região da Grande Palmeira, embora aliados dos estancieiros da Campanha, não pertenciam ao

mesmo grupo social. Eram pequenos proprietários que lutavam para garantir a posse de áreas

que ocupavam sem título de propriedade. Nesse sentido, os acontecimentos que ocorreram no

distrito de Fortaleza, no final de 1922, já mostram a mobilização do poder do mato e estão

estreitamente ligados com o deflagrar da Revolução de 1923. Isso vem confirmar que a

509 NEIBURG, Federico. In ELIAS, NORBERT & SCOTSON, John. Op. cit. p. 8.510 BOURDIEU, Pierre. Op. cit . p. 134.

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196

participação dos revolucionários palmeirenses, no conflito, é acrescida de outras motivações,

além das que impulsionaram os federalistas no restante do estado.

Leonel Rocha afirmava que sua luta era contra a reeleição de Borges de Medeiros e

também pela justiça e pela liberdade. Qual o significado que atribuía a essas palavras? A que

justiça se refere? Que liberdade buscava?

Sua atuação, nos acontecimentos de 1924 é, particularmente, importante para a

comprovação das hipóteses que propusemos no início da pesquisa. A luta contra o governo de

Borges de Medeiros tinha cessado com a assinatura do Acordo de Pedras Altas e uma nova

composição de forças políticas se articulava no estado, no entanto, Leonel Rocha atuava

intensamente em lutas na região. Conforme seu próprio relato, participou dos ataques às

colônias Sarandi, Xingu e Tesouras, todas pertencentes a companhias de colonização, cujos

proprietários compravam áreas para loteá- las e vendê-las aos colonos. A documentação

encontrada sobre a Colônia Sarandi mostrou que a área já era ocupada e que os caboclos

contavam com a ajuda de Leonel Rocha para a luta contra a demarcação dos lotes.

Os ataques às colônias Xingu e Tesouras incluem-se no Movimento Sedicioso,

relacionado à Coluna Prestes, conforme se constatou no julgamento procedido em nível

federal. No entanto, a ligação de Leonel Rocha com Luís Carlos Prestes é imprecisa e os

ataques às colônias se constituem em protesto contra as companhias de colonização, que

expropriavam os caboclos ocupantes das áreas antes da medição dos lotes.

A instalação das companhias, as especificidades da colonização nessas áreas e os

respectivos conflitos que originaram se constituem numa lacuna que está a merecer maior

aprofundamento.511 A importância desses fatos e sua relação com o tema desse estudo

cresceram no desenrolar da pesquisa, ficando, em aberto, para futuras averiguações.

As mudanças que se processaram na política rio-grandense após a Revolução de 23

conduziram a um clima de pacificação, alterando as relações de poder nos municípios. A

“redefinição do papel dos municípios na organização política brasileira abriu caminho para

uma quebra gradual da dominação coronelista sobre as populações locais”.512 O mandonismo

local adquire outra face.

511 Conforme apontado por Benito Schmidt, outra possibilidade de análise do tema e desdobramento para futuras pesquisas estaria vinculada ao aprofundamento do estudo das relações das autoridades, elites e dominados para os quais uma boa indicação seriam as reflexões de THOMPSON, E. P. Em sua obra Senhores e

caçadores,Thompson analisa os conflitos gerados pela Lei Negra que, na Inglaterra, impedia que os camponeses caçassem nas florestas reais, o que ajudaria a entender os confrontos em torno da exploração dos ervais nativos nas matas de Palmeira.512 COLUSSI, Eliane Lúcia. Op. cit. p. 27.

Page 196: Caboclos, Ervateiros Coroneis

197

No município de Palmeira das Missões, o enfraquecimento do coronelismo demorou a

ser percebido. O que se verifica é a dominação dos coronéis- latifundiários, agora sem a

oposição do poder do mato, uma vez que os resultados da Revolução de 23 e derrotas

posteriores levaram-no à desmobilização. Leonel Rocha emigrou para a Argentina e, em

1929, diante da constituição do grupo de apoio a Getúlio Vargas, é assediado para aliar-se à

nova composição de forças, o que acaba se concretizando. Apóia a Revolução de 1930 e

participa da mobilização, mas só retorna ao Brasil em definitivo, em 1932, aceitando um

emprego público de guarda florestal no município de Erechim.

A pesquisa realizada procurou responder a uma das lacunas mais instigantes da

história local, relacionada ao papel desempenhado por Leonel Rocha como representante dos

pequenos e médios lavoureiros e ervateiros, na condução dos confrontos, bem como

identificar os motivos que inspiravam sua ação, visto que, conforme aponta Arthur Ferreira

Filho, não se assemelhava aos outros caudilhos oposicionistas, que entraram na luta por

“ressentimentos” ou porque “aspiravam a altas posições”, caso saíssem vencedores dos

confrontos.513

O autor insiste na condição de pobreza e de que era quase analfabeto. No entanto,

algumas cartas do personagem e entrevista publicada no Correio do Povo, em 1944,

demonstram que possuía razoável conhecimento para os padrões da época. Além disso,

informa que antes de iniciar a trajetória de lutas, possuía alguns bens. Não se assemelhava aos

grandes proprietários na posse da terra, mas se encontrava numa posição intermediária entre

os latifundiários e os caboclos que liderava. Isso também se constata entre os chefes dos

grupos que constituíam sua tropa, líderes dos grupos de parentela e vizinhança que ocupavam

redutos da região das matas. A participação nas lutas, as perseguições de que foi vítima e os

constantes exílios tornaram-no muito pobre, a ponto de precisar de ajuda financeira para

retornar ao Brasil. No entanto, essa ajuda lhe veio dos novos donos do poder, que articulavam

novas formas de atuação e buscavam a cooptação do experiente caudilho.

A busca de informações, através de todas as fontes que nos foram possíveis, permitiu

traçar um quadro razoável da trajetória do caudilho, embora pontilhada de lacunas e

imprecisões. Trata-se de uma tentativa inicial de lançar uma nova visão sobre o passado,

trazendo para o debate singularidades ainda pouco estudadas, pois como expõe Benito

Schmidt “o biógrafo deve fazer também ‘o caminho de volta’ em suas pesquisas, ou seja, a

partir dos cacos recompor o mosaico de uma vida”. Refere-se nesse sentido, à “inserção dos

513 FERREIRA FILHO, Arthur. Op. cit. p. 119.

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198

diversos fragmentos recuperados pelo historiador em redes sociais e discursivas mais

amplas”. 514

O final de sua trajetória não coincide, certamente, com a glória atribuída aos heróis.

Talvez por não ter ocupado cargos públicos de destaque e não ter amealhado fortuna ficou

deliberadamente ausente nos registros historiográficos e a reconstituição da atuação desse

personagem se transformou numa tarefa desafiadora. A partir de fragmentos partimos para a

investigação de fontes documentais que permitissem traçar um quadro razoável dos

acontecimentos. Acreditamos que os dados levantados, embora apresentando lacunas e

insuficientemente analisados, contribuíram para avançar na construção da história regional,

trazendo para o debate sujeitos históricos, ainda, pouco estudados ou esquecidos.

514 Schmidt, Benito. Op. cit. p.51

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ROCHE, Jean. A colonização alemã e o Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora Globo. 1969.

RÜCHERT, Aldomar. A trajetória da terra: ocupação e colonização do centro norte do Rio Grande do Sul: 1827/1831. Passo Fundo: Ediupf, 1997.

SCHMIDT, Benito Bisso. A pós-modernidade e o conhecimento histórico: considerações sobre a volta da biografia. In. Cadernos de Estudo. UFRGS. Porto Alegre: v. 10, dez. 1994, p. 31 - 56.

SILVA, Lucia Silva e. Uruguaiana e os coronéis. Porto Alegre: L.S.S. Evangraf, 2001.

SILVA, Vera Alice Cardoso. “Regionalismo: o enfoque metodológico e a concepçãohistórica”. In. SILVA, Marcos A. da (Coord.) República em migalhas. História regional e local. São Paulo: Marco Zero, 1990, p. 43-50.

SILVEIRA, Rosa Maria Godoy. “Região e História: questão de método”. In. SILVA, Marcos A. da (Coord.). República em migalhas. História regional e local. São Paulo: Marco Zero, 1990, p. 17-42.

SOARES, Mozart Pereira. Santo Antônio da Palmeira. Porto Alegre. Bels, 1974.

SODRÉ, Nelson Werneck. A Coluna Prestes. São Paulo: Círculo do Livro S.A. 1968.

STEFFEN, Roque Jacob [et.al.]. Histórico do Município de Chapada. Passo Fundo: Gráfica e Editora UPF. 1984.

VENCATO, Almedoro. Sarandi, um recanto histórico do Rio Grande do Sul. Sarandi: Gráfica Editora A Região. 1994.

ZARTH, Paulo Afonso. História agrária do Planalto Gaúcho: 1850-1920. Ijuí. Editora UNIJUÍ, 1997.

ZARTH, Paulo Afonso [et. al. ]. Os caminhos da exclusão social. Ijuí: Ed. UNIJUÍ, 1998.

Page 203: Caboclos, Ervateiros Coroneis

FONTES

- Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul – Porto Alegre – RS.

- Arquivo Histórico de Cruz Alta – Cruz Alta – RS.

- Arquivo Histórico de Passo Fundo – Passo Fundo – RS.

- Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul – Porto Alegre – RS.

- Biblioteca da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Porto Alegre – RS.

- Bibioteca da Universidade de Passo Fundo. Passo Fundo – RS.

- Biblioteca Pública de Porto Alegre – Porto Alegre – RS.

- Centro Cultural Mozart Pereira Soares – Palmeira das Missões – RS.

- Instituto Brasileiro de Geografia e Estatítica. Agência de Palmeira das Missões – RS.

- Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. Porto Alegre – RS.

- Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa – Porto Alegre – RS.

- Núcleo de História Política – Universidade de Passo Fundo – Passo Fundo – RS.

- Paróquia de Palmeira das Missões. Livro Tombo – Palmeira das Missões – RS.

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205

ENTREVISTAS

- Cláudio Martins da Rocha – Filho de Leonel Rocha, nasceu na Argentina no ano de

1928, durante o exílio de seu pai. A entrevista contou com a participação de seus

irmãos: Silveira, Nelci, Lúcia e Luza, filhos de Leonel Rocha, além do neto Leonel

Estevão Smick da Rocha. Data da entrevista: 21/10/2001, Erechim.

- Januário de Lima e Balbina de Lima – Nascidos em 1920, residiram em Erval Seco,

nas proxidades de Fortaleza. Data da entrevista: 11/09/2001, Palmeira das Missões.

- Ivany de Lima Lorenzoni – Neta de Leonel Rocha. Data da entrevista: 08/09/2001,

Palmeira das Missões

- Luziano Martins da Rocha – Filho de Leonel Rocha, nascido em 1915. Entrevista:

21/10/2001, Erechim.

- Mozart Pereira Soares – Pesquisador e escritor da história do município com diversas

obras obras publicadas, entre elas, Santo Antônio da Palmeira. Entrevistas:

14/01/2002, Porto Alegre; 26/05/2002, Palmeira das Missões.

- Neiva Araújo da Rocha – Viúva de um neto de Leonel Rocha. Entrevista: 09/09/2001,

Palmeira das Missões.

- Silveira Martins da Rocha – Filho de Leonel Rocha, nascido em 1920. Seu nome é

uma homenagem a Gaspar Silveira Martins. Entrevista: 21/10/2001, Erechim.

- Vazulmiro Martins – Nasceu em 1930. Entrevista: 23/10/2001, Palmeira das Missões.

Viveu sua infância e mocidade nas proximidades onde ocorreu o massacre do Boi

Preto.

- Waldemar Gonçalves Sobrinho. Filho e sobrinho de participantes da Revolução de

1923. Entrevista: 10/03/ 2002, Palmeira das Missões.

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ANEXOS

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ANEXO Nº 1

ABAIXO ASSINADO DOS MORADORES DE CAMPO NOVO AO IMPERADOR

D. PEDRO II

“Ante o Augusto Throno de V. M. I. sobem submissos os abaixo assignado

habitantes e moradores do novo Município de Santo Antônio da Palmeira da Comarca de

Santo Angelo e da Província de S. Pedro do Rio Grande do Sul, a prezença de V.M.I. solicitar

remédio aos seos males que os oprimem, como agricultores e fabricantes da herva matte pelas

razoes que passão a expor.

SENHOR

V.M.I. serviu-se por seu beneplácito e magnanima vontade fazer graça pela

lei de 20 de maio de 1861 ao povo fabricante da herva matte, as terras devolutas existentes

naquelle anno de 1861 entre os Rios Turvo, Uruguay i Várzea esta graça que tão liberal

V.M.I., fez com que se conservassem os habitantes em paz passifica, com esse direito até o

anno de 1877, em que foi nomeado Juis commissario para este termo. Acontecendo que este

Juis Commissario que se acha investido do poder para medir e demarcar os terrenos de posse,

nem respeito tem da lei de 1861, já medindo posses tão criminosas, por seos princípios e

contra a disposição da lei Nº 601 de 18 de setembro de 1850, art. 1º, que prohibiu a acquisição

de terras devolutas, já mais podião ser medidas posses de taes ordens, em vista da citada lei e

a concessão feita por V.M.I. e estende suas medições em terras concedidas em commum e que

se achavão no anno de 1861 em mattas virgens, abrangendo os terrenos que então ficarão

pertencendo em commum ao povo, existente dentro do perimetro dos três citados Rios.

Tem os habitantes, que se tem visto prejudicado e que para bem cultivar o

herval na serra geral, fasem suas pequenas moradas pelo favor da propria lei de 1861, levado

a presença do juis Commissario por servidão a citada lei de 20 de maio; qual tem sido a

resposta do Juis Commissario existente Tiburcio Alvares de Siqueira Fortes? tem sido que a

lei de 20 de Maio de 1861, foi revogada? Já não regula mais e que por isso segue a medição e

que é um engano do governo!!! Não contente assim, Senhor, em tomar do povo os ervais que

existião em mattas altas no anno de 1861, ainda manda medir por seu agrimensor

Maximiliano Beschoren, uma sua posse, cuja foi principiada, no anno de 1863 por José

Joaquim Cordeiro cuja posse foi vendida ao Juis Commissario Fortes, cuja medição foi feita

sem assistencia do Juis Commissario ad-hoc, e sim do dito juis Fortes; si é possível assim

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seproceder nas terras por V.M.I. concedidas em comum aos fabricantes da herva matte, então

se verá os pobres subditos na dura necessidade de mendigar o pão para suas famílias no Paíz

estranho, a Patria que os viu nasçer, por que único terreno que na valeroza Provincia de Sào

Pedro do rio Grande do Sul foi concedido para habitação do pobre do povo empregados no

fabrico da herva matte! Esses mesmo são tomados.

SENHOR

Se este povo vive no emprego do fabrico da herva matte, vesse tão opremido

e obrigado por semelhantes medições mal cabida, em huns terreno que lhes foi concedido por

uma graça Imperial é tropelado espulso do pequeno torrão para se estender o domínio do rico

e poderozos do lugar! Tanto que o juis commissario propala que não concente que se derrube

uma só arvore existente dentro do perimetro dos tres rios Turvo, Uruguay e Varge e que fará

gemer ao fabricante que assim praticar contrazel-os a barra do tribunal como um criminoso!

V.M.I. como Pai de um povo pobre e laborioso os abrigou com a lei de vinte

de Maio, por serto não deixará que este povo, que abrigastes de baixo de vossas sabias

energicas leis dando um torrão onde possão obter o recurço necessario para suas pobres e

miseras famílias, fiquem espulsos e seu domecilio como está acontecendo, uns abandonando

suas habitações, outroschamados aos tribunais e outros amiaçados de tudo sofrer.

SENHOR

Os abaixo assignados correm presurosos aos pes de V.M.I. como uma fonte

pura de onde esperão dinamar o remedio para o mal que os aflige para que seja suspenço as

medições dentro dos limites dos três citados Rios Turvo, Uruguay e Varge e que alli no

perimetro seja conservado o direito da Lei de 20 de Maio de 1861 e para que não seja mais

medidas posses que se acubertão com pagar a multa por não ter registro sendo que jamais

poderia obter por seu feito depois dalei que prohibio acquisição de posse.

Os abaixo assignados conscio do zelo e amor que V.M.I. dedica ao seu

povo, descanção serto que seus reclamos será attendiados”.

Palmeira 24 de maio de 1879.

Seguem as assinaturas, em número de 73. São reconhecidas em 30/05/1879

pelo tabelião Claudino Antonio Ferreira da Rocha.

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ANEXO nº 2 – Por que lutou Leonel Rocha?

Por que lutou Leonel Rocha?

Gênero Musical: MilongaLetra: Moisés MenezesMúsica: Juliano JavoskiIntérprete: Nelton Brasil

Não era representantedas elites cavaleiras,em lutas pelo poderna comandância campeira.Não era dos coronéisque armavam revoluções,quando as águas se encrespavamameaçando as posições.

Leonel era roceiroforjado ao cabo da enxada,não tinha domingos largosde churrasco e carreirada.Os braços desbravadoresaravam, semeavam a terrasó largando dessas lides,se os grandes faziam guerra.

Plantava em terras alheiasguerreava quando queria,por que lutou Leonel Rocha?Se o poder não seduzia.Talvez em meio a caudilhosfalsos mitos libertários.Leonel já rezassepelo seu próprio rosário.

Hoje faltam liderançasque aos anseios de vencer,esgrimem verdades clarassem ambições de poder.Por que lutou Leonel Rocha?Desigual entre os iguaisquem sabe por ser ventena,quem sabe por ter ideais.

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ANEXO Nº 3 Oração de Santa Catarina