BUARQUE Chico e Ruy Guerra_Calabar

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Calabar. Peça de teatro de Rui Guerra e Chico Buarque.

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  • Desde 1973. quando meu espetculo foi trado e abortado pela represso cultural, Calabar, de Chico Buarque e Ruy Guerra, me parece um dos instantes mais maduros e mais responsveis da dramaturgia nacional. H sensibilidade e inteligncia na utilizao da matria histrica como instrumento capaz de instaurar uma conseqente reflexo que ultrapassa os limites de determinadas circunstncias poltico-econmicas e amplia o debate ideolgico de forma irnica, provocativa, apoiada em extrema e contagiante teatralidade, usando a postura critica e a desmedida coragem de assumir o grotesco. Calabar desmistifica o conceito de traidor e a noo vazia e abstrata de traio. Questiona valores e revela contradies com visceral humor. E um texto "malcomportado". E por isso estimula a elaborao de um espetculo debochado, capaz de assumir a quase anrquica mas organizada colagem e a justaposio de imagens e pocas. Meu espetculo de agora est bem distante da primeira verso: mudou o pas, mudei eu, mudou o teatro brasileiro, mudou a forma de discutir uma temtica que, infelizmente, permanece atual e vigente: traio e colonizao. Antes eu havia optado por um historicismo critico. Um painel didtico dentro do qual a rede de traies, o que o texto prope, aparecia como centro vital; hoje

  • escolhi a reflexo sobre a Histria a partir de

    uma colagem mais aberta e mais provocante,

    misturando tempo e espao, mergulhando mais

    fundo nas sempre claras contradies internas

    dos personagens, No para tornar o espetculo

    mais intimista, mas, ao contrrio, para torn-

    lo mais exteriorizado, mais teatral, no sentido

    do circo popular, No fundamental, entretanto,

    nossa obstinada crena na libertao nacional

    e na unidade das foras democrticas contra o

    arbtrio e a violncia faz com que nossos

    objetivos permaneam a provocar o debate de

    idias, a revolta dos sentimentos,

    a desconfiana pelo que nos apresentado

    cotidianamente como "normal", "certo",

    "eterno", "rotulado" Sabemos que o interesse

    dos dominadores divulgar a mistificao.

    E desistimos de buscar a verdade, certos de que

    a sociedade precisa ser transformada.

    Com Calabar queremos divertir o pblico,

    espalhando pontos de interrogao, dvidas e

    perplexidades. Surpreendendo pelo atualizado

    deboche critico, fundamentado num confronto

    realista com temas essenciais de nossa

    existncia de nao social-econmica-poltica-

    culturalmente ainda colonizada num tmido

    mas empenhado esforo de construo de uma

    democrtica cultura nacional-popular.

    Fernando Peixoto, 1980

  • Chico Buarque Ruy Guerra

    Calabar O elogio da traio

    LETRAS Chico Buarque e Ruy Guerra MSICA Chico Buarque

    Buarque, Chico; Guerra, Ruy Calabar o elogio da traio Literatura

    CIVILIZAO BRASILEw.

    32* edio

    S B D - F F L C H - U S P

    9 7 2 9 8

    Rio de Janeiro 2006

    L_tl-AUUISlAO PROGRAMA IN 111 l u DO MILNIO - CNPq

  • Sumrio

    A roda viva de Calabar: Dialtica da traio Chico/Ruy 7 Duas vezes Calabar Fernando Peixoto 13 Uma reflexo sobre a traio Fernando Peixoto 17 Ficha tcnica do primeiro espetculo 25 Ficha tcnica da nova verso 27

  • A roda viva de Calabar: Dialtica da traio

    CHICO. H uma diferena de seis anos de Roda viva para Calabar. Para mim, nessa faixa de 20 a quase 30 anos a gente muda muito. Calabar um trabalho bem mais ela-borado. Roda viva foi escrito, assim, em um ms, um ms e pouco, e praticamente remontado e reestruturado. Cala-bar, ns comeamos a fazer em agosto/setembro do ano passado, foi um ano de trabalho, de mudar no meio, co-mear tudo de novo. No que a gente tenha entregado o texto fechadssimo. um trabalho mais denso, e, por ou-tro lado, tambm um trabalho que exigiu pesquisas. um tema histrico. No um tema de televiso como Ro-da vivay um tema de experincia pessoal. E depois, um trabalho feito de parceria, o que j muda muita coisa. um trabalho totalmente diferente. Inclusive a montagem de Fernando Peixoto bastante diferente da do Jos Celso, apesar de o Fernando ter trabalhado muito com ele. outro tipo de teatro: aquele tipo de teatro de agresso no a inteno do Fernando, aquele negcio de entrar no meio do pblico... s tem um boi que voa...

    RUY. A montagem do Fernando uma coisa mais clssica, mas vai desde o Teatro de Revista at Planchon, se quiser. No h um interesse em revolucionar o teatro. Pelo con-trrio, a interpretao marcada num sentido assim bem quadrado.

  • CHICO. E tambm naquela poca alguma coisa era possvel* uma liberdade de improvisao. Tinha horas, em Roja viva, em que o personagem podia fazer o que queria. Ele falava o que bem entendia, dedicava o espetculo a quem queria, xingava os caras, ao Vinicius, por exemplo. Eu quando assistia a pea, era pichado sempre. Ento, hoje no pode mais fazer isso, quer dizer, o sujeito tem que se-guir direitinho o texto. A nica coisa que tem que so duas peas de teatro. Mas eu tambm j trabalhei com o teatro, desde o comeo, desde a msica para o poema de Joo Cabral, e fiz outras msicas para o Oficina. Meu tra-balho sempre foi muito ligado ao teatro.

    RUY. Antes de Calabar, a gente se preocupou mais com a traio; parece que Calabar veio com a preocupao da traio. E a traio um negcio que a gente pode bater em muitos nveis. Pode bater num nvel inteiramente meta-fsico. Pode bater num nvel inteiramente circunstancial. Pode bater num nvel ideolgico. E evidente que, para ns, no interessa discutir a traio de uma forma absolu-ta, porque a traio um tema filosfico. Eu acho que a traio um negcio que est patente no mundo moderno: o conceito de traio, o conceito de fidelidade. Voc pode citar Jane Fonda, pode citar a fidelidade ao poder do Ni-xon (que no quer dar as fitas). Onde que est a traio, no eleitorado dele, ou no?

    CHICO. Inclusive me lembro de que nessa poca eu estava escrevendo. A gente comeou a escrever. Tinha aquele epi-sdio da Jane Fonda, por exemplo, que a gente comentou, at: voc no vai colocar a Jane Fonda na pea, vai? Mas, mais ou menos, foi isso: um senador, no sei que, e quise-ram processar a Jane Fonda por crime de alta traio.

  • RUY. No comportamento dela em relao guerra do Viet-n, no ? Ento a traio... ou a fidelidade, hoje, um negcio que voc encontra em todas as reas de comporta-mento. Se voc quiser debater num nvel at pessoal, voc encontra um conceito de traio. Ento, a partir da, colo-camos a matria. difcil, portanto, de ver a gnese da coisa: se a gente buscou Calabar para debater a traio, ou se o Calabar justamente nos proporcionou o debate. No , pois, uma idia primeira a partir da qual voc desenvol-ve. um conjunto de coisas. O que se debate tambm em Calabar, no explicitamente, mas obrigatoriamente, o conceito de Ptria. Porque coisa fundamental da poca. Quer dizer: naquela poca, tnhamos os brasileiros, os por-tugueses, os espanhis, os holandeses, aquela confuso toda. Havia uma srie de divises internas. Mathias repre-senta toda uma.

    De "Cala Boca, Brbara", entrevista de Chico Buarque e Ruy Guerra, editada pelo DCE-PUC, Rio de Janeiro, 1973.

  • Duas vezes Calabar (datas)

    Pim de junho de 1973: Chico e Ruy me procuram em So Paulo. Trazem o texto de Calabar e a proposta de assumir a direo do espetculo. J havia muitos anos de amizade antes disso, mas partimos para uma verificao cr-tica mtua: Chico e Ruy foram para o Teatro So Pedro assistir um espetculo meu, Frank V de Drrenmatt, enquan-to eu fui para o bar Riviera ler o texto deles. O acerto foi se-lado na Baica. A pea estava liberada pela censura federal desde abril. Nas semanas seguintes, fui para o Rio: acerta-mos os produtores, Fernando Torres e Fernanda Montene-gro, e todos juntos acertamos a equipe de produo.

    Dia 25 de julho conclumos os ltimos detalhes, marca-mos a estria para novembro. Em agosto iniciamos a fase de preparao e escolha de elenco.

    Em setembro e outubro ensaiamos em Ipanema. Dia 30 de outubro entramos no Teatro Joo Caetano, no

    Rio. Trecho de uma anotao de trabalho desse dia: "Mais notcias da represso: Fernando telefona de Braslia avisando que o texto est sendo revisado pelo SNI e o prazo para uma soluo indeterminado. Isso pode paralisar tudo. Fao uma reunio de urgncia, no Museu de Arte Moderna, com Chico e Ruy. Nossa deciso ir at o fim. Na pior das hipteses, fil-mar o espetculo. Proponho tentar uma encenao em Bue-nos Aires, provavelmente com Nacha Guevara. Telefonarei ao Boal para saber das possibilidades e para prevenir Nacha Volto para o teatro. Os maquinistas esto terminando o tra-

  • balho. Ensaio cinco horas. A linguagem visual do espetcul finalmente se define. A estrutura se mantm slida no novo espao. Praticamente todos os atores encontram a equivaln cia entre o que havia sido ensaiado na casa da Vieira Souto H um material fascinante para trabalhar nestes prximos dias. Mas o que me pesa na cabea a quase certeza de q U e este espetculo nunca ser visto por ningum."

    A agonia termina definitivamente dia 13 de novembro depois de fracassarem todas as tentativas dos advogados em Braslia e depois de termos sido proibidos at mesmo de do-cumentar o espetculo (apesar disso, os ltimos trs ensaios foram feitos praticamente de portas abertas e muita gente assistiu; mesmo sem luz e som instalados, tudo funcionava, ainda que o trabalho no estivesse efetivamente concludo-do ltimo ensaio, guardo uma imagem significativa: havia dois garotos vendendo balas e chocolates na platia...): "Pa-rar tudo, no h outra alternativa. Uma definio do gover-no frente cultura: censura econmica. Mandaram dizer que no h proibio: apenas o texto ficar quatro meses preso para reviso. A censura foi censurada, por ordens superiores. O ensaio para a censura no foi autorizado, j que a pea est 'avocada por instncia superior para reexame do texto*. A censura foi desautorizada at mesmo de exercer uma de suas funes, que proibir. E ns estamos definitivamente castrados. Agora resta encontrar o elenco para encerrar tudo. Aguardo a chegada de Fernando, para este encontro. Vim agora do Bar Luiz, onde estive com Chico e Ruy. Uma ltima hiptese: filmar o espetculo em Petrpolis. Mas parece meio utpico. Quem sabe? Antes estivemos na Philips e na Ci-vilizao Brasileira, onde apanhamos os primeiros 50 exem-plares do livro."

    E minha ltima nota, datada de 15 de novembro: "On-tem gravei com Mrio uma conversa sobre o nosso trabalho. Agora, chega. Acabou Calabar

  • Entre 15 e 21 de agosto de 1979, no Rio, retomamos Ca-labar: com Chico e Ruy, anlise crtica e autocrtica do texto, em sua verso original, e do espetculo abortado realizado seis anos antes. O avano e a maturidade das lutas populares e democrticas foram o governo a fazer concesses. Estamos vivendo o princpio da chamada "abertura" e parece possvel conquistarmos novos critrios, certamente mais brandos, para a censura. a ocasio de retomar um projeto que foi inter-rompido nos mais difceis anos de represso. Mas encenar Calabar agora no significa refazer o espetculo anterior. Nem mesmo partir do texto original. Tudo se transformou: o pas, ns mesmos, a linguagem teatral, as exigncias culturais, a forma de encarar a temtica, ainda que esta nos parea vigente e essencial. Revemos o texto, fala por fala, questio-nando personagens e estrutura. Cerca de dez horas de traba-lho. Tudo gravado.

    Dia 14 de setembro, uma possibilidade mais concreta de montagem: Renato Borghi, Martha Overbeck e Othon Bas-tos se interessam pela produo. Fazem contato com Ruy e com Chico. A retomada do trabalho estava praticamente acertada com os mesmos produtores de 73, Fernanda e Fer-nando. Uma questo de datas decide tudo: Fernanda e Fer-nando estudam a programao de sua companhia e no en-contram forma de produzir Calabar nos primeiros meses de 1980. Acreditam na urgncia da montagem e, diante da pro-posta concreta dos novos produtores, abrem mo do espet-culo. Chico e Ruy refazem a estrutura do texto, desenvolven-do conflitos e personagens, esclarecendo trechos demasiado datados ou confusos.

    Dia 7 de janeiro de 1980, no Teatro Joo Caetano (mas de So Paulo), comeam os preparativos para a montagem, que estrear no Teatro So Pedro (onde Frank V estava em cartaz quando, em 73, aceitei a direo), e os ensaios so rea-lizados no Teatro Ruth Escobar (onde, em 1977, num semi-

  • nrio de leituras pblicas de textos proibidos, Calabar foi lid 0 por um grupo de atores sob direo de Mrio Masetti, q U e havia sido o assistente de direo da verso abortada em 73).

    Mais uma data: dia 24 de janeiro de 1980 o texto de Ca-labar liberado (ou anistiado) para menores de 14 anos pelo Conselho Superior de Censura.

    Hoje estou a ms da nova estria. Mais uma vez, com confiana no texto e no espetculo. Mas ainda com irrepri-mvel apreenso diante das impostas e imprevisveis autori-dades, no populares nem democrticas, que impunemente determinam os limites do permissvel.

    FERNANDO PEIXOTO

  • Uma reflcxlo sobre a traio

    1 Trecho de um sermo do Padre Vieira: "Os senhores poucos, os escravos muitos; os senhores rompendo gals, os escravos despidos e nus; os senhores se banquetean-do, os escravos perecendo fome; os senhores nadando em ouro e prata, os escravos carregados de ferros; os senhores tratando-os como brutos, os escravos adorando-os e temen-do-os como deuses; os senhores cm p, apontando para o aoite, como esttuas de soberba e tirania, os escravos pros-trados com as mos atadas atrs, como imagens vilssimas da servido e espetculos de extrema misria."

    o Brasil do sculo XVII, vtima da colonizao portu-guesa. , no perodo que vai de 1630 a 1654, vtima da inva-so holandesa. Um pas dilacerado pela batalha sangrenta entre portugueses e holandeses, reflexo das contradies fun-damentais da poltica internacional da Europa. Por trs das motivaes da luta, freqentemente disfaradas como dispu-tas religiosas, est o objeto bsico da pilhagem: o acar o lucro da produo dos engenhos e canaviais, e o lucro da dis-tribuio nos portos europeus. No existem ainda condies maduras, do ponto de vista social, econmico, nem poltico, para uma opo brasileira, para uma luta de libertao na-cional. Nativos, ndios ou negros, brancos ou mulatos, ma-melucos ou mestios, lutavam de um lado ou de outro. Os ndios tupis, por exemplo, estavam ao lado dos portugueses, enquanto os tapuias aderiram ao exrcito holands, por uma srie de razes. A chamada "resistncia brasileira", a luta de

  • guerrilhas que impede a consolidao da invaso holandesa sobretudo a resistncia do colonialismo portugus.

    Descrevendo a queda do domnio holands, os historia-dores Jos Honrio Rodrigues e Joaquim Ribeiro afirmam categoricamente "que a luta , pois, inegavelmente, um con-flito entre as classes rurais e as classes urbanas, e no um movimento nacional". Citam Barbosa Lima Sobrinho qu e afirma que no "Brasil do sculo XVII no se encontraria ain-da nenhum indcio de conscincia nacional brasileira". Os holandeses foram expulsos por uma luta revolucionria (auxi-liada inclusive pela Inglaterra, interessada em destruir a hege-monia martima da Holanda) estimulada pela situao econ-mica ruinosa dos senhores de engenho (a poltica administra-tiva e econmica dos holandeses no Brasil produziu a deca-dncia do patriarcado rural e o aparecimento de uma burgue-sia mercantil nos centros urbanos, aguando a contradio entre a cidade e o campo): com os holandeses no poder, os se-nhores de engenho no mais dominam a vida econmica e poltica da colnia; engenhos, escravos e instrumentos de tra-balho no mais pertencem a seus antigos proprietrios; os grandes senhores da vida colonial so os mercadores. A revol-ta a nica sada para os senhores de engenho. A batalha travada em nome da libertao do pas e da defesa do catoli-cismo. Na verdade travada pelo poder, pelo lucro. Aos bra-sileiros restava a possibilidade de escolher um lado ou outro. Os interesses econmicos determinavam as opes. Traio era uma atitude cotidiana, alis implcita na prpria coloca-o do problema: defender Portugal ou defender a Holanda significava uma traio ao Brasil. Trocar de lado era um hbi-to constante. De toda esta confuso, restou um bode expiat-rio: Calabar. Desde os bancos de escola primria nos ensinam que Calabar foi um traidor. Nada mais lgico, j que nossa histria oficial defende o ponto de vista da colonizao portu-guesa. Para os holandeses, entretanto, Calabar um heri.

  • Na verdade, ao contrrio de muitos delatores ou mercen-rios, Calabar fez uma opo. Sua chamada "traio" s pode ser compreendida no seio desta opo, que ele manteve at suas ltimas conseqncias: foi morto e esquartejado. Acre-ditou que os holandeses pudessem trazer ao pas um governo mais livre e mais humano, menos opressivo e escravizador que a colonizao portuguesa. Na dramaturgia moderna, Brecht, mais do que ningum, desmistificou de forma irrever-svel o conceito de heri. Em Calabar O elogio da traio (a referncia ao Elogio da loucura de Erasmo, no subttulo da pea, no gratuita, mas sim fruto de uma postura lcida e irnica), Ruy Guerra e Chico Buarque de Holanda desmistifi-cam, com inteligncia e sensibilidade, o conceito de traidor. E o conceito, vazio e abstrato, de "traio".

    2. Infeliz o pas que tem necessidade de heris, afirma Brecht em Galileu Galilei. Em certo sentido, o texto de Calabar parece afirmar: infeliz o pas que tem necessidade de traido-res. Mas no interessou a Ruy Guerra e Chico Buarque rea-bilitar a figura "maldita" de Calabar. Nem conden-lo. O texto no pretende ser uma pea histrica, ou seja, reconsti-tuio minuciosa de uma poca, suas motivaes, contradi-es etc. A Histria utilizada como matria para uma refle-xo que ultrapassa os limites de determinadas circunstncias poltico-econmicas j superadas.

    Em ltima anlise, todos os personagens so histricos (com exceo de Anna de Amsterd, mas mesmo ela uma sntese, em certo sentido, de tantas prostitutas importadas nos navios holandeses) e todos os fatos so histricos. Mas na pea servem apenas de ponto de partida para uma criao livre, espontnea, criativa e pessoal. O passado revisto com a lucidez de quem vive o presente: com a conscincia de quem mergulha na Histria em busca de uma compreenso do mundo de hoje. Calabari neste sentido, uma reflexo

  • aberta, irnica e provocativa, teatral e musical, grotesca e crtica, existencial e materialista, sobre o significado, tornado relativo, portanto passvel de interpretao, do problema e do significado da traio. 3. A Companhia das ndias Ocidentais, sociedade por aes, organizada na Holanda em 1621, visando multiplicar a acu-mulao de capital, justificada e apoiada pelo calvinismo, utiliza a pilhagem e o assassinato, o saque e a pirataria no momento em que o capitalismo d seus primeiros passos no continente europeu , procura invadir o Brasil em 1624, atacando a Bahia, mas sofre violenta derrota. O ano de 1621 marca o fim da trgua entre Holanda e Espanha (que domina Portugal, que, por sua vez, domina o Brasil). Para os comer-ciantes holandeses torna-se imprescindvel a conquista de nova rea de produo. O alvo Pernambuco. Em outras palavras, o alvo o acar, a produo dos engenhos e dos canaviais. Para os invasores, entretanto, interessa conquistar o territrio, mas manter intato o sistema de produo. As tro-pas holandesas desembarcam em 1630, mas no conseguem expandir seu domnio com muita facilidade: os portugueses resistem, sobretudo no Arraial de Bom Jesus, chefiados por Mathias de Albuquerque, auxiliado por um negro embran-quecido, Henrique Dias, e por um ndio cristianizado, Felipe Camaro. E por um guerrilheiro quase invencvel, Calabar.

    No dia 20 de abril de 1632, quando a luta est numa es-pcie de empate, Calabar muda de lado. E os holandeses co-meam a triunfar, ganhar territrio, expulsar os portugueses. Para transformar o Brasil numa Nova Holanda, os conquis-tadores holandeses enviam Maurcio de Nassau, uma das personalidades mais fascinantes e contraditrias da histria do Brasil. Trazendo uma corte de artistas e cientistas, Nassau estabelece o choque entre o importado do humanismo renas-centista europeu e o primitivo missioneirismo medieval en-

  • carnado pela Companhia de Jesus. Nassau transforma a pai* sagem e concilia os choques de classes. Estabelece a lei como igual para todos, sejam quais forem os protegidos ou puni-dos. Concede medidas de tratamento mais humano para os negros, organiza uma cmara com igual nmero de represen-tantes holandeses e brasileiros, permite, dentro de medidas, a liberdade de culto: preciso no esquecer que os protestantes so os membros de seu governo e seus chefes, os catlicos so os senhores de engenho a produo, e os judeus repre-sentam o comrcio, o capital. Por trs de uma poltica de conciliao aparentemente liberal existe o planejamento estu-dado de um estadista hbil: paz significa maior produo, maior produo significa maior lucro. Mas Nassau no se descuida tambm de aes militares, mantendo viva a guerra de conquista. Acaba, entretanto, destitudo de seu posto, por suas prprias contradies. Sua administrao no era vista com bons olhos pelos duros dirigentes da Companhia das n-dias Ocidentais, que no estava interessada em suas obras de jardinagem ou urbanizao, construo de pontes ou pal-cios. Internamente tambm as contradies se aguam: Nassau ataca a monocultura do acar e chega mesmo, timi-damente, a ameaar a estrutura do latifndio. Em seu gover-no as cidades crescem, os senhores de engenho perdem seu domnio econmico e poltico. Assim mesmo, Nassau faz as moendas funcionarem na produo do valioso p branco: de 166 engenhos da regio, ao menos 120 voltam a produzir. Muitos so confiscados e colocados em leilo. A resistncia portuguesa no cessa, mas a figura de Nassau assegura um momento de festa.

    Um dos principais lderes da expulso dos holandeses, Jos Fernandes Vieira, s assumir esta postura poltica aps o afastamento de Nassau: no perodo nassoviano no s admira como colabora com os holandeses. Em certo sentido, Nassau assume o sonho de Calabar: o utpico sonho de um

  • pas mais livre. Mas a pacificao e a colonizao liberal no poderiam ser um fim para os vidos abutres da CIO. Em se testamento poltico, quando deixa o Brasil, que tanto amou em 1644, Nassau afirma: "Eu continuo um homem de armas* E um humanista. E essa combinao difcil em qualquer & culo. E porque conquistei mas no fui cego no exerccio do po. dei; porque das armas e da represso no fiz a minha ltima paixo, dizem agora que errei. A mesma Companhia que me trouxe, me leva." Na pea, vigiado constantemente por um enigmtico e fleumtico agente da CIO, Nassau compreende suas contradies e, impotente diante da fora, renuncia.

    4. A estrutura de Calabar profundamente teatral na medida em que escapa s regras habituais da dramaturgia bem-com-portada. Existe uma unidade que se manifesta justamente na descontinuidade quase cinematogrfica do relato. Cada cena se exprime livremente, independente das demais, em termos de estrutura, Mas o todo conserva uma linha dramtica con-seqente, lgica, objetiva. No princpio, inesperadamente, um personagem se dirige ao pblico e pede ateno: 4 4No a aten-o que costumais prestar aos oradores sacros. Mas a que prestais aos charlates, aos intrujes e aos bobos da rua." quase uma declarao de princpios: o texto popular, na me-dida em que a histria revista segundo uma perspectiva transformadora, desmistificadora, e se resolve cenicamente em termos de comdia e de teatro musical, apesar dos momentos em que o texto deliberadamente mergulha na anlise dos mo-vimentos mais ntimos e escondidos da alma dos personagens.

    Para o espetculo, o primeiro problema a solucionar encontrar a dosagem entre um realismo crtico distanciado e um psicologismo existencial, exposto com vigor e penetra-o. Mas todos os recursos so vlidos para desvendar esta rede de traies. A cada instante, em cada momento, os per-sonagens traem. Traem alguma coisa, algum, alguma idia,

  • ou traem a si mesmos. Para um personagem, num espasmo de lucidez, em determinado momento o simples fato de conti-nuar vivo uma traio. Para Brbara, a mulher de Calabar, a traio uma obsesso que ela procura desvendar em suas ltimas conseqncias, entregue de corpo e alma a uma ten-tativa desesperada de compreenso. No personagem Sebas-tio de Souto, a traio inicialmente cotidiana e mesquinha se transforma, conscientizada quase atravs de um processo de enlouquecimento irracional e lcido, num ato final de en-trega, num suicdio anrquico e individual que ao mesmo tempo no est isento de uma conotao trgico-grotesca, de uma ltima e derradeira forma de compreenso e ao. O que interessa ao texto o comportamento dos homens entre si, observados numa determinada circunstncia histrica. Es-ta postura traz o texto at nossos dias. Faz de Calabar uma reflexo sobre o hoje e o aqui, sobre a responsabilidade, a tica, a opo e os possveis destinos do homem num mundo de guerra e paz. A parbola parte da realidade para chegar ao espectador de forma ntida, num convite reflexo sobre a transformao desta realidade. Todos os personagens vi-vem na lama da traio e esto perdidos numa selva de trai-dores. Mas no so motivados: vivem suas contradies de forma vital, humana, profunda.

    Mathias de Albuquerque chefia a resistncia portuguesa sonhando com um Brasil portugus: "Ah, esta terra ainda vai cumprir seu ideal / Ainda vai tornar-se um imenso Portugal." Mas ele mesmo afirma que quando tortura ou mata, no fun-do um sentimental e chora: "E se a sentena se anuncia bruta / Mais que depressa a mo cega executa / Pois que se-no o corao perdoa." No momento de se retirar do pas (ser preso em Portugal e responsabilizado pela entrega de Pernambuco aos holandeses), um homem em crise que con-fessa ao Frei (que um homem que est sempre de todos os lados, e ao mesmo tempo de nenhum, encarnao viva da

  • traio permanente) seu grande pecado: s vezes chegou a pensar mais no Brasil do que em Portugal e, no momento d e mandar executar Calabar, teme se deixar levar pela tenta0 de libertar um homem que fez sua opo e que teve a dignida% de de agir por conta prpria. Nassau ( proposital e funda-mental, no espetculo, que Mathias e Nassau sejam interpre-tados por um mesmo ator: ambos significam a mesma coisa como vassalos do colonialismo, e ambos sofrem quase que o mesmo processo interior, ainda que em circunstncias diver-sas) chega ao pas afirmando que Calabar no morreu em vo. Mas, no final, trai o sonho de Calabar e regressa Holanda, com lgrimas nos olhos, carregado nos braos dos ndios. Sai cantando seu sonho colonialista: "Porque esta terra ainda vai cumprir seu ideal / Ainda vai tornar-se um imenso canavial."

    Em Calabar compreender o peso e contedo da traio de cada um, ou das inmeras traies de cada um, um pri-meiro passo para a compreenso do enunciado de um teore-ma complexo, contraditrio, fascinante e provocante, lrico e feroz, escrito com paixo e sentido crtico por Ruy Guerra e Chico Buarque. Cabe ao espectador observar homens agin-do, pesar suas aes e alternativas, ver o que fizeram, onde foram omissos ou responsveis. O texto no encerra uma soluo dogmtica, nem o espetculo pretende fechar as cha-ves de entendimento dos fatos. Cabe ao espectador, diante dos caminhos oferecidos sua sensibilidade e inteligncia omitir-se ou escolher sua forma de pensar. O espectador diante do espetculo, livre. O que importa o dilogo pai co-platia. A realidade, a ser transformada, est fora do tea tro. O palco no quer entregar ao pblico nenhuma verdade nenhuma certeza. Ao contrrio, quer provocar dvidas, des confiana e perplexidade.

    FERNANDO PEIXOTO

  • Ficha tcnica d o p r i m e i r o e s p e t c u l o

    PRODUO DIREO DIRETORES-ASSISTENTES DIREO DE PRODUO ASSISTENTE DE PRODUO DIREO MUSICAL ORQUESTRAO COREOGRAFIA CENRIOS FIGURINOS ILUMINAO SONOPLASTIA DIVULGAO ELENCO

    Fernando Torres Diverses Fernando Peixoto Mrio Masetti e Zdenek Hampl Cac Teixeira Renato Laforet e Leda Borges Dori Caymmi Edu Lobo Zdenek Hampl Hlio Eichbauer Rosa Magalhes e Hlio Eichbauer Antnio Pedro M. S. 2001 Leda Borges Tet Medina, Betty Faria, Hlio Ari, Antnio Ganzarolli, Lutero Lus, Flvio So-Tiago, Perfeito Fortuna, Deoclides Gouva, Odilon Wagner e mais: Ana Maria Vianna, ngelo de Mar eus, Antnio Pompeu, An-selmo di Vasconcelos, Belara Guidi, Carlos Alberto Santana, Dirce Mo-rais, Dulcilene Morais, Imara dos Reis Ferreira, Ivens Godinho, Jos Roberto Mendes, Katia D'ngelo, Lincoln dos Santos, Mrcio Augus-to, Maria Alves, Maria do Carmo,

  • e R U Y G U E R R A CHICO BUARQU* i Milton Brando, Nina de Pd^ Octvio Csar, Paschoal Villabo^ Paulo Afonso Gregrio, Paulo Tarso, Terra, Suzanne M 0 t a /jcofr, Tato Costa, Thelmo ^ ques, Viliam, Wladimir Gonalves. Danilo Caymmi, Dori Caymmi, Msicos ^ O Palma, Maurcio Mendon^ Tenrio Jr.

  • Ficha tcnica da nova verso

    PERSONAGENS E INTRPRETES:

    FREI MANOEL DO SALVADOR MATHIAS DE ALBUQUERQUE E MAURCIO DE NASSAU BRBARA ANNA DE AMSTERD OFICIAL HOLANDS SEBASTIO DO SOUTO HENRIQUE DIAS E PAPAGAIO OBA FELIPE CAMARO E ESCRIVO AGENTE DA CIO E A PARTICIPAO EM DIVERSOS PERSONAGENS DOS ATORES:

    Srgio Mamberti

    Othon Bastos Tnia Alves Martha Overbeck Osmar di Pieri Renato Borghi

    Gsio Amadeu Miguel Ramos Elias Andreato

    Ariel Moshe Dada Cyrino dsel Britto Ina Rodrigues Luiz Braga Luiz Carlos Gomes Mercedes de Sousa Mnica Brant Samuel Santiago

  • Wilson Rabelo Zdenek Hampl

    DIREAO-GERAL DIREO MUSICAL, ARRANJOS E MUSICA DE CENA CENOGRAFIA E FIGURINOS COREOGRAFIA DIRETOR-ASSISTENTE

    SCIA-GERENTE ASSESSORIA ADMINISTRATIVA DIVULGAO PRODUO EXECUTIVA SONOPLASTIA ILUMINAO FOTOGRAFIAS CARTAZ PROGRAMA

    Fernando Peixoto Marcus Vincius Hlio Eichbauer Zdenek Hampl Wagner de Paula Regina de Souza Malheiros Joo Luiz Rossi Srgio Ascoly Eliane Bandeira Cac Mrio Masetti Jos Rodrigues Elifas Andreato Alexandre Huzak

    DIRETOR DE CENA CAMAREIRA MAQUINISTA CENOTCNICO OPERADOR DE LUZ COSTUREIRA

    Paulo Carrera Helena Lima da Silva Paschoal Landi Joo Tereza Adolfo Santana Alice Corra

    MSICOS:

    BATERIA E PERCUSSO CONTRABAIXO E VIOLO VIOLO, GUITARRA E BANDOLIM FLAUTA, SAX-SOPRANO E SAX-TENOR FLAUTA E SAX-ALTO TROMPETE

    Magno Bissoli Siqueira Joo Carlos Mouro Fernando (Mu) Mrcio Werneck Muniz Zeymar Dagmar

  • Primeiro ato

    Abre o pano. Escurido completa. Sininho de sacristia. FREI. Agnus Dei qui tollit peccata mundi... MORADORES. Miserere nobis. FREI. Agnus Dei qui tollit peccata mundi... MORADORES. Miserere nobis. FREI. Agnus Dei qui tollit peccata mundi...

    Moradores cantam: Miserere nobis Miserere nobis Miser 'ren Bis Miser Renobis Misererenobis.

    Luz em crescendo sobre MATHIAS DE ALBUQUERQUE, que se bar-beia. Um ESCRIVO a seus ps. Um vulto num instrumento de tor-tura. Gemidos e coro de moradores, no escuro, sublinham o ser-

    mo do FREI. FREI. Era o Brasil, antes da chegada dos holandeses, a mais

    deliciosa, prspera, abundante, e no sei se me adiantarei muito se disser a mais rica de quantas ultramarinhas o Reino de Portugal tem debaixo de sua coroa e cetro.

    MATHIAS, rosto ensaboado, navalha na mo e bandeira rubro-verde servindo-lhe de babador. Um vassalo segura um espelho

  • que o reflete de corpo inteiro. Mais adiante, o ESCRivAo de pato na mo. Noutro canto, dois soldados garroteiarn ^

    prisioneiro louro, qwe solta um grito lancinante. Soldado ^ adormecidos, fuzis ensarilhados. Tudo sugere um

    acampamento militar. FREI. . . . o o u r o e a p r a t a e ra s e m n m e r o e quase no se e

    t i m a v a ; o acar , t a n t o q u e n o h a v i a embarcaes p a r * o c a r r e g a r . . .

    MATHIAS (Apontando a navalha para o ESCRIVO^. Enderece Vila de Porto Calvo... Calabar.

    FREI. ... o fausto e aparato das casas eram excessivos, POR. que por mui pobre e miservel era tido o que no tinha seu servio de prata...

    MATHIAS. No! Capito Domingos Fernandes Calabar! (5. tala a lngua.) Ponha major.

    ESCRIVO (Anotando). Major Calabar, na Vila de Porto Calvo. FREI. ... as mulheres andavam to lous e to custosas que

    no se contentavam com os tafets, chamalotes, veludos, e outras sedas, seno que arrojavam as finas telas e ricos bordados...

    MATHIAS. Arraial do Bom Jesus. Ano da Graa de 1635... FREI. ... e eram tantas as jias com que se adornavam que

    pareciam chovidas em suas cabeas. MATHIAS. Mestre-de-campo. Mestre-de-Campo Domingos Fer-

    nandes Calabar. Eu, Mathias de Albuquerque, Governa-dor de Pernambuco, muitos avisos vos tenho feito que no vos fieis nesses malditos luteranos e calvinistas. E repito: a ltima vez que vos escrevo! Prefiro no consi-derar as respostas negativas que me destes noutras oca-sies, certo de que aceitareis a mo que ora vos estendo. At porque no se me apagam da memria as provas da bravura e da lealdade que vs me dedicastes no passado, especialmente na resistncia ao invasor holands, neste mesmo Arraial do Bom Jesus onde me encontro, quando

  • logramos encur ra la r o inimigo cont ra o litoral. E, quando vol tardes aos servios d 'El Rey, honras e bens vos sero devolvidos, pecados e dvidas vos sero perdoados. (En-cara o torturado como se se dirigisse a Calabar.) Tendes a minha palavra . . . coronel .

    FREI. T u d o e ram delcias... MATHIAS. P o r q u e q u e e le f o i p r a l? FREI. . . . e no parecia esta terra seno um retrato do terreal

    paraso. MATHIAS. P o r q u e q u e e le f o i p r a l? FREI. Prolas, rubis. . . esmeraldas. . . d iamantes . . . MATHIAS. P o r q u e q u e e le f o i p r a l ?

    Era um mula to al to, plo ruivo, sarar . Guerre i ro c o m o ele no sei mais se haver. O n d e p u n h a o olho, p u n h a a bala. Lia nas estrelas e no vento. Sabia dos caminhos escondidos, S sabidos dos bichos desta terra De nome esquisito de falar. Eu lhe dei minha conf iana Em matr ia de navios e de guerra E ainda me pergunto , Sem resposta p ra me dar : Por que que ele foi pra l? Era um mameluco louco, plo brabo , pixaim, C o m dois o lhos claros de assustar. Cap i t o aqui , l fez-se major . Levou o seu saber pa ra os f lamengos E nem sei se cobrou o que era de cobrar. Eu lhe ofereci o meu pe rdo Em ouro , engenhos e pa tente Se quisesse voltar. E, afoi to , o rebelde, em lngua de serpente, M a n d o u - m e recusar.

  • Como um bicho esquisito destas terras Que pensa dum jeito impossvel de pensar. Por que que ele foi pra l?

    Corte brusco na msica religiosa. Primeiros acordes dolentes para uma nova cano. Luz isolando a silhueta de uma mulher, cujos

    gestos simulam o ato do amor. FREI. Nesse tempo estava metido com os holandeses um

    mestio mui atrevido e perigoso chamado Calabar. Co-nhecedor de caminhos singulares nesses matos, mangues e vrzeas, levou o inimigo por esta terra adentro, rom-pendo o cerco lusitano, para desgraa e humilhao do comandante Mathias de Albuquerque. Esse Calabar car-regava consigo uma mameluca, chamada Brbara, e an-dava com ela amancebado.

    Plenamente iluminada, BRBARA levanta-se e veste-se, calmamente. BRBARA canta Cala a boca, Brbara.

    Ele sabe dos caminhos Dessa minha terra. No meu corpo se escondeu, Minhas matas percorreu, Os meus rios, Os meus braos. Ele o meu guerreiro Nos colches de terra. Nas bandeiras, bons lenis, Nas trincheiras, quantos ais, ai. Cala a boca, Olha o fogo, Cala a boca, Olha a relva, Cala a boca, Brbara. Cala a boca, Brbara. Ele sabe dos segredos Que ningum ensina:

  • Onde eu guardo o meu prazer, Em que pntanos beber As vazantes, As correntes. Nos colches de ferro Ele o meu parceiro, Nas campanhas, nos currais, Nas entranhas, quantos ais, ai. Cala a boca, Olha a noite, Cala a boca, Olha o frio, Cala a boca, Brbara. Cala a boca, Brbara.

    Terminada a canao, BRBARA encara o pblico. BRBARA. Se os senhores quiserem saber por que me apre-

    sento assim, de maneira to extravagante, vo ficar sa-bendo em seguida, se tiverem a gentileza de me prestar ateno. No a ateno que costumam prestar aos s-bios, aos oradores, aos governantes Mas a que se presta aos charlates, aos intrujes e aos bobos de rua. Um banquete com vinhos, manjares de Holanda e ANNA DE

    AMSTERD sobre a mesa. O banquete uma orgia muda durante a fala do FREI.

    FREI. Com os flamengos, entrou nesta terra de Pernambuco o pecado. Os moradores dela foram-se esquecendo de Deus e deram entrada aos vcios, e sucedeu-lhes o mesmo que aos que viveram no tempo de No, que os afogaram as guas do universal dilvio, e como a Sodoma e Go-morra, que foram abrasadas com fogo dos cus. Explode um barulho bacanalesco, no qual se sobressai uma

    estridente gargalhada de ANNA DE AMSTERD. Na cabeceira da mesa desponta a figura do chefe holands.

    HOLANDS. Ave, Frei Manoel do Salvador. Fico imensamente grato pela sua permanncia em Porto Calvo, dando assis-

  • tncia s almas de suas ovelhas. E sua presena nesta s me honra, juro, em nome da Holanda e da Co ^ nhia das ndias Ocidentais. ^

    ANNA E CORO. Esperando que o bom colquio Seja um prenuncio de paz.

    HOLANDS. Por favor, no tome minhas palavras por sobe ba de holands. Mas o Arraial do Bom Jesus, ltimo f 0 c de resistncia portuguesa em Pernambuco, acaba de cair Mathias de Albuquerque escapou com o rabo entre as pernas... Sem contar a meia dzia de gatos pingados l do Sergipe, todo esse litoral, Alagoas, Maranho, est sob o nosso controle. Por isso, Frei Manoel, chegada a hora de encararmos o futuro sem ressentimentos.

    ANNA E CORO. Nessa terra to fecunda, Mandioca, aipim, car, Abric e a prpria bunda Se plantar, com jeito, d.

    HOLANDS. A cana, por exemplo. Sem a qual no h razo para nenhum de ns estar aqui. No so os holandeses que esto queimando os canaviais, mas alguns desespera-dos compatriotas seus, que Vossa Merc possivelmente conhece. Ora, isso mau para os negcios, principalmen-te para os honestos plantadores portugueses, porque a Companhia das ndias no vai investir seus florins num pas que vive pegando fogo.

    ANNA E CORO. Nessa guerra sem sentido No h nacionalidade. S queremos garantido O direito propriedade.

    HOLANDS. Ningum aqui quer expulsar ningum. Muito pelo contrrio, queremos que o portugus continue culti-vando a cana como s ele sabe, extraindo o retame, o mascavado, o acar branco. Ns, da Companhia, entra-mos com o transporte, as refinarias e a nossa nobre clien-

  • tela da Europa. Precisamos uns dos outros, somos pulgas do mesmo cachorro. Unidos, enriqueceremos.

    ANNA E CORO. E se a lio foi aprendida A vitria no ser v. Neste Brasil Holands Tem lugar pro portugus E pro Banco de Amsterd.

    HOLANDS. E s a Holanda pode conseguir tal milagre. Por-que unindo os seus Estados protestantes, libertou-se da obedincia ao Papa, meu caro Frei, que por interesses menores dividiu o mundo colonial entre Portugal e Es-panha. Hoje a Holanda domina os mares. E j no neces-sita de intermedirios para negociar com os demais euro-peus radicados no Novo Mundo. Portanto, estamos em condies de garantir: liberdade a quem quiser produzir; bons impostos; compradores certos; direito de ir e vir e et? porte de armas aos senhores de plantao, com a condi- o 1 o desse fogo ser s para fins de conter incendirio e es- Q. : cravo fujo. E o padre at pode rezar a sua missa catlica, O < que eu fecho os olhos. Tudo isso de vulto, mas eu firmo Q* embaixo e endosso... 5

    ANNA E CORO. Pois o mais importante culto ^ o acar, que nosso. m

    Os moradores aplaudem o discurso com entusiasmo. Um soldado se aproxima do HOLANDS com um clice.

    HOLANDS. Brindemos ao Brasil e Companhia das ndias Ocidentais!

    Os moradores brindam com euforia. (Levantando-se) Senhor Comandante! Maior agravo e in-justia no se pode fazer aos catlicos romanos: o profa-nar os vasos sagrados nos quais se consagra o sangue de Cristo no sacrifcio da missa. Basta essa s injria para que os moradores no tenham por firme vossa amizade e promessas.

  • O HOLANDS joga fora o vinho, toma o clice pelo p e beija-o depositando-o em seguida na mesa, respeitosamente.

    HOLANDS. Frei, perdo. Que fique entre ns dois, mas eu mesmo sou catlico romano e, se sirvo ao holands na guerra, apenas por convenincia. Entenda, se oculto a minha verdadeira religio para no perder meu cargo E, se me fao de protestante, porque ainda me devem muito do meu soldo. Mas assim que me pagarem tudo hei de ir a Roma buscar o perdo do Santo Papa Urbano VIII pela culpa em que ca.

    Entra SOUTO, afobado. SOUTO. Comandante, ele est chegando! Mathias de Albu-

    querque est a poucas lguas! FREI. Sua Excelncia, o Governador de Pernambuco! HOLANDS. Ex-governador. SOUTO. Mathias abandonou tudo e v e m d e s p e n c a n d o pro

    sul, rumo Bahia. FREI. Ento tem que passar por Porto Calvo. SOUTO. Evidente! J est a! HOLANDS. Pretende atacar? SOUTO. Acho difcil, senhor. Esto em frangalhos. Apenas

    alguns soldados desgarrados. Quase que s mulheres, crianas e bois. Vo querer passar por fora , de gatinhas, na surdina da noite...

    HOLANDS. Voc falou em bois? SOUTO. Ah, sim, bois gordos e suculentos! E carruagens, se-

    nhor, carregadas de muita riqueza! (Para o FRElj E ho-mens armados at os dentes, ndios, negros, peixeiras, ca-nhes... (Para o HOLANDS,) Presa fcil.

    HOLANDS. Ouro? SOUTO. E prata. HOLANDS. Mantimentos de boca? SOUTO. Queijo, batata, salame, cerveja, manteiga e p o . HOLANDS. Eu comando a expedio.

  • SOUTO (Para o FREI^. Frei, diga ao governador que o servio est feito.

    HOLANDS. Levo dois destacamentos. o suficiente, no? SOUTO. Mais que suficiente. um luxo! (Para o FREL^ Dois

    destacamentos. HOLANDS. Trs ficam na cidade para o que der e vier. SOUTO. Magnfico! E Calabar? HOLANDS. Calabar fica guardando Porto Calvo. SOUTO (Para o FREI,). Mathias de Albuquerque vai gostar de

    saber disso. (Para o HOLANDS^ Senhor, peo permisso para o acompanhar.

    HOLANDS. Concedida. SOUTO (Para o FREI,). Frei, no perca tempo. V dizer ao go-

    vernador que Porto Calvo ser dele novamente. E, com Porto Calvo, Calabar.

    Black-out. Luz em MATHIAS, que esfrega as mos. MATHIAS (As gargalhadas). Um ano de fracassos consecuti-

    vos. Perdi Igarau, Itamarac, a Paraba, meu Arraial do Bom Jesus, me chutaram a bunda em Nazar, estou sendo enxotado para a Bahia, donde vou ser recambiado para a metrpole, onde me fazem uma devassa. Que carreira! E para me substituir, como se no bastasse, vo mandar um espanhol! (Subitamente srio) E dizer que tudo comeou com aquele desertor. E dizer que um mulato pernstico mudou o curso da Histria. E dizer que cansei de escrever quele mulato, s me faltou implorar para que ele voltasse s nossas fileiras, s me faltou lamber o saco daquele mulato. Ofereci-lhe anistia, vencimentos atrasados, hon-ras, mundos e fundos, chamei-o de patriota, chamei-o de general... Mas Deus no permitir que eu morra sem antes encarar o Calabar! (Tira o pergaminho do peito) E faz-lo engolir a ltima resposta que me mandou!

    Guitarra portuguesa sublinha a fala de MATHIAS, que tem o olhar fixo nas prprias mos.

  • MATHIAS. Alegria, minhas mos, alegria, Que a vingana acaba de acenar Com a promessa de vosso dia, Que a noite de Calabar. Abri em flor, mos cerradas Em punhos de pedra contra o cu. Mos de pluma de pato, cansadas De escrever cartas ao lu. Mos de vem-c sem resposta, Mos-de-ferro, mos de bosta, Mos feitas pro necessrio, Mos vazias, de repente Mos de escravo e de maestro, Predicado independente De um sujeito ambicanhestro. Mos do vcio solitrio, De afagos de segunda mo. Mos de seda e de garrote, Mos obra, mos de bote! Minhas mos, fazei justia Com as vossas prprias mos! Saciai vossa cobia Na garganta da traio.

    No final da fala, MATHIAS est sentado mesa com o FREI, DIAS e CAMARO. Estende a mo e espeta um pedao de bacalhau.

    MATHIAS. Mas vem c... esse traidor.. FREI. Calabar? MATHIAS. No, no, o outro. O nosso. O que est com eles.

    Quero dizer, o que nos mandou esse recado... FREI. Ah, sim, Sebastio do Souto. MATHIAS. Ele de plena confiana? FREI. Bem... um jovem assaz flutuante, excelncia. J andou

    conosco, j andou com os flamengos... Mas esta tarde ele me pareceu especialmente sincero e prenhe de civismo.

  • MATHIAS. Como q u e ele se d com o Calabar? FREI. Seguia-o como um apstolo. Mas, agora, acho que o

    odeia. MATHIAS (Garfo tio ar cofft bacalhau). Terra engraada, esta.

    Em nenhuma outra parte vers tantos sorrisos. Tantos sorrisos e tantas trapaas. Muito engraada, esta guerra. Tantas raas, tantos idiomas, mas s se entendem clara-mente as palavras da traio. (Leva o bacalhau boca) Magro!

    FREI. O qu? Eu? MATHIAS. O bacalhau... Magro, insosso e mofado! (Afasta o

    prato) DIAS (Tomando o prato que MATHIAS rejeitou). Senhor, se me

    permite... (D uma garfada e continua a falar de boca cheia) Esse plano, seja de quem for, me parece seguro. O Holands vem trazendo duas companhias na bandeja.

    FREI. Isso fato. CAMARO (Servindo-se de vinho). De minha parte perfeito.

    Onde o Holands pensa que h meia dzia, tenho duzen-tos ndios. Duzentos ndios na emboscada, que morram cem... (D um gole e continua) Estamos a para isso mes-mo ainda sobram cem para o cerco a Porto Calvo.

    FREI (Beliscando o prato de DlAS^. Com apenas trs compa-nhias em Porto Calvo, Calabar ter que se render s suas tropas, Governador.

    DIAS. Isso fato, Governador. MATHIAS. Calabar! Calabar! Calabar!

    Esfregai-vos, minhas mos de orgia! Ejaculai, oh, mos de estrangular! Alegria, minhas mos, dia Que noite de Calabar!

    Sublinhando a gargalhada e a fala de MATHIAS, melosas guitarras portuguesas. A gargalhada confunde-se com soluos. MATHIAS

    canta Fado Tropical:

  • I 1 C H I C O B U A R Q U E E R U Y G U E R R A

    Oh, musa do meu fado, Oh, minha me gentil, Te deixo, consternado, No primeiro abril. Mas no s to ingrata, No esquece quem te amou E em tua densa mata Se perdeu e se encontrou. Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal, Ainda vai tornar-se um imenso Portugal.

    MATHIAS (Falando com emoo, guitarras ao fundo). Sabe, no fundo eu sou um sentimental. Todos ns herdamos no sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo. Alm da sfilis, claro. Mesmo quando as minhas mos esto ocu-padas em torturar, esganar, trucidar, meu corao fecha os olhos e, sinceramente, chora.

    Cantando: Com avencas na caatinga, Alecrins no canavial, Licores na moringa, Um vinho tropical. E a linda mulata, Com rendas de Alentejo, De quem, numa bravata, Arrebato um beijo. Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal, Ainda vai tornar-se um imenso Portugal.

    Recitando: Meu corao tem um sereno jeito E as minhas mos o golpe duro e presto De tal maneira que, depois de feito, Desencontrado, eu mesmo me contesto.

  • Se trago as mos distantes do meu peito, que h distncia entre inteno e gesto. E, se meu corao nas mos estreito, Me assombra a sbita impresso de incesto. Quando me encontro no calor da luta Ostento a aguda empunhadura proa, Mas o meu peito se desabotoa. E, se a sentena se anuncia, bruta, Mais que depressa a mo cega executa Pois que seno o corao perdoa.

    No decorrer do soneto, MATHIAS foi desabotoando as calas e arriando-as. Agora, para a ltima parte do fado, ele vai-se sentando na latrina ao lado do HOLANDS, que permanece

    no escuro.

    Cantando: Guitarras e sanfonas, Jasmins, coqueiros, fontes, Sardinhas, mandioca, Num suave azulejo.

    0 rio Amazonas Que corre trs-os-montes E, numa pororoca, Desgua no Tejo.

    Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal, Ainda vai tornar-se um imenso Portugal. Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal, Ainda vai tornar-se um Imprio Colonial.

  • Luz sobre os dois. MATHIAS usa uma ceroula vermelha com fa* verde. O HOLANDS empunha uma bandeira branca espetada ***

    bambu. Suas ceroulas so listradas de azul e vermelho. HOLANDS. Excelncia... MATHIAS (Contorcendo-se em elicas). Um momento..,

    Mathias caga. Aliviado, solta um longo suspiro. HOLANDS. Sente-se melhor? MATHIAS. Melhor? Vossa Excelncia no faz idia do Q

    seja... HOLANDS. Bondade sua. Saiba que estou nesta campanha

    h tanto tempo quanto Vossa Excelncia, Governador. MATHIAS (Solidrio). Tambm pegou? HOLANDS. J trouxe das ndias Orientais. MATHIAS. . Parece que so terrveis por l. HOLANDS. A bem da verdade, a minha j um resultado

    meio hbrido. s vezes a indiana que me ataca. Bem ce-dinho. A brasileira geralmente investe quanto a outra es-t de recesso. (Comea a se contorcer) Falou no bicho? (Caga)

    MATHIAS (Olhando no vaso do outro). Das boas... HOLANDS (Conferindo). Costuma ser mais amarelada... MATHIAS. Tem vrios matizes. A minha um arco-ris. HOLANDS. Que sorte. MATHIAS. Sorte? HOLANDS. Onde h cor nem tudo est perdido. (Evocativo)

    Vossa Excelncia j esteve na Holanda? MATHIAS. N o . HOLANDS. Ento no sabe o que um campo de tulipas ao

    cair da tarde. MATHIAS. E Vossa Excelncia j viu as amendoeiras em flor?

    (O HOLANDS faz que no com a cabea) Parece um cam-po de neve! Essa a imagem de Portugal que eu trago dentro de mim: as amendoeiras em flor! (Sente uma pon-tada na barriga)

  • HOLANDS. Pensando bem, talvez seja um tanto montono.. . MATHIAS. Sbrio. No montono. Nem de mau gosto. HOLANDS. Est se referindo s tulipas? MATHIAS. Entenda como quiser. No quero abusar da minha

    condio de vencedor, mas acho que Vossa Excelncia no est em condies de me contrariar.

    HOLANDS, , , , devagar... Seus homens venceram essa batalha, mas a guerra continua.

    MATHIAS. Foi uma bela vitria das cores de Portugal. HOLANDS. A servio da Espanha. MATHIAS. A servio de Dom Sebastio! HOLANDS (Levantando-se rapidamente). Sebastio? MATHIAS. Dom Sebastio! HOLANDS. Aquele filho da puta. . . (Senta-se.) MATHIAS (Levantando-se, indignado). Dom Sebastio, o De-

    sejado? O que no morreu em Alccer Quibir? HOLANDS. Sei l da vida dele. S sei que Sebastio do

    Souto. MATHIAS. Ah, bom. (Senta-se) Esse! HOLANDS. Quem diria, com aquela cara, com aquelas

    mesuras, e de cochicho com aquele padreco que vem a ser outro bom filho duma gua! Canalhas! Corja de trai-dores!

    MATHIAS. Em matria de traio, vocs no tm muito do que se queixar.

    HOLANDS. No estou entendendo. MATHIAS. Porque no lhe convm. Estou falando de Calabar,

    j percebeu? C-a-l-a-b-a-r! HOLANDS. No aceito imposies. MATHIAS. Aceita sim. E eu imponho que Calabar me seja

    entregue, mos e ps atados, como despojo de guerra. Essa a clusula um da rendio de Porto Calvo.

    HOLANDS. Ora, o cerco est apenas comeando. E Porto Calvo ainda tem trs companhias de soldados.

  • MATHIAS, Tudo esfomeado. HOLANDS* Estamos habituados a comer qualquer coita

    Porto Calvo tem cachorros, gato, cada rato deste tama-nho.*,

    MATHIAS (Enojado). PfffffffiiiiiiL. HOLANDS. No to ruim assim. Depende do jeito de prc.

    parar. Uma ratazana brasileira, com dend, farofa, pi. mentnha...

    MATHIAS. Um raminho de coentro... HOLANDS. Ta, no tem nada a ver, coentro. Onde que j

    se viu rato com coentro? MATHIAS. Vossa Excelncia pode ser muito bom de cozinha,

    mas como militar Vossa Excelncia uma compota de merda.

    HOLANDS (Levantando-se). Governador! Pensei que tivesse vindo parlamentar com um gentil-homem, mas vejo que me enganei! (Joga longe a bandeira branca )

    MATHIAS. Pois bem... Eu queria evitar mais derramamento de sangue, mas Vossa Excelncia me obriga a isso. (Le-vanta-se) Vou ordenar imediatamente o ataque a Porto Calvo...

    HOLANDS. Um momento... (Apanha a bandeira) Em nome da Companhia das ndias Orientais...

    MATHIAS. Que na verdade quem manda na Holanda, con-fessa. Vocs no tm um rei, mas uma quadrilha de qui-tandeiros testa do Estado e um exrcito de caixeiros-viajantes.

    HOLANDS. Ah, foi bom falar nisso. Eu tenho aqui comigo algumas aes da Companhia. Se Vossa Excelncia se interessar...

    mathias. Como disse? HOLANDS. Cada ao est cotada a 3 mil florins. Eu posso

    lhe confidenciar que a Companhia pretende investir 2 mi-lhes e meio na conquista do Brasil, sendo que a previso

  • de retirada da ordem dos 8 milhes de florins anuais. Logo, fazendo os clculos rapidamente...

    MATHIAS. Vossa Excelncia tem noo do que esta me pro-pondo?

    HOLANDS. Perfeitamente. Vossa Excelncia estar jogando no par e no mpar, no vermelho e no preto ao mesmo tempo. Vitorioso na guerra, ser um heri com dficit. Em caso de derrota, ficar simplesmente milionrio.

    MATHIAS. Saiba Vossa Excelncia que eu sou um general a servio da Coroa de Portugal e Castela!

    HOLANDS. Sim, mas no importa. Somos uma sociedade annima e no alimentamos preconceito algum.

    MATHIAS. Ora, milionrio... Vossa Excelncia disse... milio-nrio?

    HOLANDS. Bem, no faz muito tempo a Companhia pagou 75% de dividendos a seus acionistas...

    Entra o FREI, carregando folhas de bananeiras. FREI. Terminaram? MATHIAS. Humm... Me entrega o traidor e parte com seus

    oficiais, bandeiras, insgnias e todas as honrarias. HOLANDS. Um momento... MATHIAS. Trata-se de um ultimatum. HOLANDS. Que merda... Que que os historiadores vo

    dizer de mim se eu entrego Calabar? MATHIAS. Que o entregou a um homem de uma s palavra.

    A um fidalgo portugus. As minhas barbas como penhor. ( O HOLANDS fita MATHIAS que, imberbe, logo acrescenta) Fica bonito! Um dos meus antepassados fez isso nas n-dias... o Afonso.

    HOLANDS. A h , b o m . MATHIAS. difcil estar sempre inventando frases novas. No

    fim das contas, o passado deve servir pra alguma coisa... E ento?

    HOLANDS. merc d'El Rey Dom Felipe de Espanha e Por-tugal.

  • MATHIAS. Q u e q u e isso? HOLANDS. En t rego C a l a b a r m e r c d ' E I Rey. Os senho

    enviam o caso d o M a j o r C a l a b a r E s p a n h a onde de ** bea fria e dis tncia d o s a c o n t e c i m e n t o s , o rei Dom Fe lipe saber di tar a sentena mais jus ta .

    MATHIAS (Resmungando). merc d ' E I Rey... merc d*EL Rey... Sabe que isso pode c r ia r um impasse nas nossa negociaes?

    HOLANDS. N o volto a t rs . MATHIAS. Preciso... (Comea a se contorcer em elicas) cagar. HOLANDS. A Histria pode esperar. MATHIAS (Olha as prprias fezes). Sangnea. . . Disenteria

    sangnea. HOLANDS. Ah, a Rood loopl Temos coisa melhor. MATHIAS. Melhor? Duvido e fao pouco . HOLANDS. Meus soldados tm uma cegueira noturna que

    chegam a tostar as pestanas luz de velas. MATHIAS. Hemeralopia? Besteira. J ouviu falar em escorbuto? HOLANDS. Perdo, dois pontos. Sherbuik. At a palavra vem

    do flamengo. Portanto a primazia nossa. MATHIAS. Huumm, grandes coisas... N s temos tripanosso-

    mase. HOLANDS. Esquistossomose. MATHIAS. Tifo. HOLANDS. Cancro mole. MATHIAS. Priapismo ortogonal. HOLANDS. Lepra. MATHIAS. Disenteria bacilar. HOLANDS. Leptospirose icteroemorrgica. MATHIAS. Turalamia. HOLANDS. Hemiteria. MATHIAS. Furunculose. HOLANDS. Hemorridas. MATHIAS. No vale. Hemorridas voc j disse.

  • HOLANDS. Disse nada. MATHIAS. Disse sim. HOLANDS. Pra de roubar. MATHIAS. Voc que t roubando. HOLANDS. Malria. MATHIAS. Agora eu no quero mais, p.

    Os dois suspiram exaustos, apoiados um contra o outro. FREL Terminaram? HOLANDS. Calabar fica entregue merc D'E1 Rey de Es-

    panha... MATHIAS. Bem... de acordo. HOLANDS. Terminamos. MATHIAS. Quando contarem estes desafortunados fatos,

    Falem de mim como eu sou... HOLANDS. Nada acrescentando ou omitindo,

    Nem pondo nenhuma malcia. MATHIAS. Falem de algum que sofreu

    No sabiamente. HOLANDS. ... mas demasiado

    E que, tomado de clera, os DOIS. Jogou o inimigo na desgraa

    E na desgraa ele mesmo mergulhou. Os dois trocam as folhas secas, cerimoniosamente, e se limpam.

    FREI. Morram as tiranias e viva a liberdade! Ao toque de caixa, o HOLANDS levanta-se, faz uma banana para o

    FREI e sai. Entram DIAS, CAMARO e SOUTO, arrastando ANNA pelos cabelos. Soldados holandeses depositam armas. MATHIAS dirige-se ao centro da movimentao. Entram em cena barricas

    de vinho e outros despojos de guerra. Vivas e morras. Grito estridente de ANNA, atirada ao solo por SOUTO. MATHIAS bolina

    ANNA com os ps. CAMARO (Garrafa na mo). Viva o Papa! DIAS. Morram os flamengos! FREI. Viva Dom Felipe, rei de Portugal e Espanha!

  • f

    MATHIAS. (Impondo um sbito silncio.) Viva El R e y ^ 1 Sebastio de Portugal! I

    FREI. (Fazendo o sinal-da-cruz) Q u e Deus o tenha. I MATHIAS. E que esta vitria sirva de exemplo nob r I

    lusitana, aqueles palhaos que aderiram ao j g 0 I Espanha.

    FREI. Excelncia... MATHIAS. O que ? | FREI. Se algum o ouve f a l a r a s s i m . . . I MATHIAS. Portugal e Espanha esto unidos pela dinastia d 0 s I

    Felipe, est certo. Mas eu, brasileiro, de sangue nobre I portugus, digo e repito que quem manda no Brasil ainda I Portugal e no a Espanha.

    FREI. Cuidado, Governador. As paredes tm ouvidos. I MATHIAS. Pois que ouam! Esto me ouvindo, paredes? Esta I

    vitria minha e eu a dedico a quem bem entender. P 0 r I que que vou dedic-la Espanha, hein? O Brasil nunca I lhes interessou. O Brasil, para eles, uma cortina de cana I para esconder dos holandeses a pra ta do Peru. Cad os I navios que me prometeram? Cad as notcias? Os ca- I nhes? Os remdios? Nada . M a n d a m um... um espanhol I para me substituir! Merda! E voc, que que t parado I a com essa cara?

    SOUTO. Sebastio do Souto, s suas ordens. I MATHIAS. Ah, sim, j sei, voc o traidor. Parabns, belo I

    servio, rapaz. Voc tem futuro! CAMARO (Brincando). sade do nosso traidor! I FREI. No. Quem trai a Holanda protestante n o trai o

    Papa. CAMARO. Traidor que trai traidor tem cem anos de louvor. FREI. Traidor quem trai a Espanha. MATHIAS. Traidor quem trai Portugal, Frei! FREI. Sutilezas histricas, Excelncia.

  • S me resta esperar e at querer Que tudo fie fino. E se mando matar Domingos Fernandes Calaba moo r a , nc | a porque uso o tino, Uma vez que o tutano De t io podre no merece um ou t ro osso. E se vocs rirem de mim, Se eu for alvo de chacotas e chalaas, Se for ridculo na jaqueta de veludo Ou nas ceroulas de brim, Ou porque falo tanto de caganeira e bacalhau, bom pensarem duas vezes, porque, ainda mesmo assim Com lombrigas danando dentro da barriga, Com a Holanda, a Espanha e toda a intriga, Eu sou aquele que, custe o que custar, Acerta o lao e tece o fio Que enforca Calabar.

    MATHIAS (Para o FREIJ. Mas antes v confess-lo, Frei Ma- | noel, e o encaminhe para que no perca a a lma, pois com tanta infmia j perdeu a vida. (O FREI vai saindo) Um momento, Frei. Antes ou depois da confisso, ou mesmo durante, procure assegurar-se de que ele no carrega para o tmulo alguma informao do interesse geral, que eu represento.

    FREI. O segredo da confisso inviolvel, Governador! MATHIAS. E como tal ser respeitado. A Deus, as coisas da

    alma, ao Estado as informaes de guerra. Alm d o mais, Frei Manoel, a sua piedosa colaborao vai evitar os su-plcios de uma dispensvel tortura.

    FREI. Entendido. (Sai) MATHIAS. E vocs... SOUTO. Alferes Sebastio do Souto. MATHIAS. Mandem preparar o cadafalso. ( s o u r o sai.) Que ro

    ficar sozinho para meditar... Porque neste Pernambuco eu

  • sou Dom Felipe, rei de Portugal e Algarves, da Espanha, de Npoles, da Siclia e da Sardenha...

    ANNA (Acordando). E eu sou Anna de Amsterd. De aqum e de alm-mar em frica, Cabo Verde, Aores, Angola e Moambique.

    ANNA. Anna da Rua Larga. MATHIAS. Goa, Damo e Diu; Timor, Ormuz e Macau; Gui-

    n, Madeira, Sumatra, Malaca e Molucas! ANNA. Anna do beco sem sada. MATHIAS. Maranho, Paraba, Piau. ANNA. Pepe, Man, Giovanni, Henri... MATHIAS (Desanimando). Porto Calvo, Porto Alegre... Nite-

    ri... A N N A canta Anna de Amsterd:

    Sou Anna do dique e das docas, Da compra, da venda, das trocas, das pernas, Dos braos, das bocas, do lixo, dos bichos, das fichas. Sou Anna das loucas. At amanh Sou Anna Da cama, da cana, fulana, sacana, Sou Anna de Amsterd. Eu cruzei um oceano Na esperana de casar. Fiz mil bocas pra Solano, Fui beijada por Gaspar. Sou Anna de cabo a tenente, Sou Anna de toda patente das ndias. Sou Anna do Oriente, Ocidente, acidente, gelada. Sou Anna, obrigada. At amanh Sou Anna Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos, Sou Anna de Amsterd.

  • Arrisquei muita braada Na esperana de outro mar, Hoje sou carta marcada, Hoje sou jogo de azar. Sou Anna de vinte minutos, Sou Anna da brasa dos brutos na coxa Que apaga charutos, sou Anna dos dentes rangendo E dos olhos enxutos. At amanh Sou Anna Das marcas, das maas, das vacas, das pratas, Sou Anna de Amsterd

    MATHIAS, que durante a cano ensaiava com ANNA alguns passos obscenos, i surpreendido pela chegada do FREI.

    MATHIAS. E ento? Esteve com o homem? FREI. Vi-o pela manh e lhe disse o que impor tava para sua

    salvao e que se preparasse para confessar, visto que ho-je teria que dar contas a Deus. E depois o deixei s por uma hora para que ele se aparelhasse como convinha.

    MATHIAS. E ele confessou? FREI. Por trs horas. Com muitas lgrimas e compuno de

    esprito. N o meu entender, com muito e verdadeiro arre pendimento de seus pecados, segundo o que o juzo humano pode alcanar.

    MATHIAS. merda com o juzo humano. Quero saber se Calabar apontou nomes.

    FREI. Bem, fez certos apontamentos de dvidas e obrigaes, e de boa quantia que os holandeses lhe devem do seu sol-do e de algumas peas de ouro e prata, e alfaias de seda que no Arrecife tem, para que dali se paguem algumas dvidas em que est obrigado.

    MATHIAS. Os nomes? FREI. E me mandou que entregasse esses apontamentos a sua

    me, ngela Alvres, o que eu pontualmente farei.

  • MATHIAS. Frei, o que eu quero saber... FREI. S trs horas da tarde se tornou a reconciliar com as

    mesmas lgrimas e mostras de arrependimento. Foi quan-do o ouvidor, na minha presena e na do escrivo, lhe perguntou se sabia que alguns portugueses haviam sido traidores e tratavam com o inimigo secretamente, levan-do-lhe ou mandando-lhe avisos do que entre ns se fazia. Ao que ele respondeu que muito sabia e tinha visto nessa matria.

    MATHIAS. E deu os nomes? FREI. N o . MATHIAS. Como no? FREI. Disse que de presente no se atrevia a furtar o tempo

    que lhe restava de vida a ocupar-se a fazer autos e denun-ciaes por mo de escrivo.

    MATHIAS. Isso veremos. FREI. Excelncia, cuidado. Segundo o que me disse Calabar,

    os grandes culpados no esto na arraia-mida. O que ele me deu licena que lhe contasse so coisas pesadas que eu gostaria de tratar consigo em particular.

    Os dois se encaminham para um canto escuro. Os moradores entoam o refro do Miserere nobis. BRBARA vai-se destacando

    dos moradores. O traidor se chama Calabar. Outros tero levado segredos, Outros tero levado propinas, Mas esses sabem se portar. Outros tero se sujado as calas, Outros tero delatado amigos, Mas esses voltam pra jantar. Outros iro vender sua terra, A casa, a cama, a alma, a me, os filhos, O povo, os rios, as rvores e os frutos. Mas, Calabar, voc nunca foi burro.

  • O traidor se chama Calabar. Claro, claro, claro, claro. O melhor traidor o que se escala, Corpo pronto para a bala, Se encurrala, se apunhala E se espeta numa vala. Se amarrota e no estala E cabe dentro da mala, Se despeja numa vala E no se fala na sala.

    Luz em MATHIAS e no FREL MATHIAS. Frei, que no se toque mais nas indiscries desse

    traidor para no levantar poeira, porque muitos desgos-tos e trabalhos podem vir da. Isto j so assuntos de Estado e no da Igreja. |

    FREI. Certo, Governador. MATHIAS. Frei Manoel, amanh no estarei mais aqui .

    provvel que nunca mais nos vejamos nestas terras. Portanto, antes de partir quero me confessar. (Ajoelha-se) Eu, Mathias, de sangue e nome portugus, mas brasileiro por nascimento e afeio, s vezes tenho pensado neste meu pas.

    FREI. Que Deus o perdoe. MATHIAS. E em meus devaneios, imagino-me co locando o

    amor terra em que nasci acima dos interesses d o rei que me governa.

    FREI. Que Deus o perdoe. MATHIAS. E nesses devaneios minha terra no suporta m a i s

    as trevas e a opresso de Espanha e Portugal. A terra pul-sa, blasfema e se debate dentro do meu peito. E para sua redeno, parece que qualquer caminho legtimo. At mesmo uma aliana com os hereges holandeses...

    FREI. Oh, Excelncia! Que Deus... MATHIAS. Me perdoe. Caso contrrio, eu no seria digno de

  • nforcar um homem, brasileiro c o m o eu , m a s t o insen-sato quanto os meus devaneios.

    OFICIAL (Entrando). Excelncia. MATHIAS (Levantando-se). Hum. . . Sim... Bem, v a m o s a b a n -

    donar Porto Calvo dentro de poucas ho ras . Q u e antes se queime tudo o que possa vir a servir a o in imigo e que Calabar seja executado em praa pbl ica , pa ra que sua punio sirva de exemplo. C o m barao e p rego , pa ra que ningum falte ao espetculo, e a o som de t a m b o r e s , para que palavras perniciosas n o sejam escutadas . que Deus e os homens nos perdoem por nossos caminhos se terem cruzado assim.

    FREI. Deus certamente perdoa. E a memria dos homens curta. (D a absolvio em latim) Ego te absoluum... etc...

    MATHIAS (Vara o oficial). Podem dar incio execuo. (Sai) Subitamente iluminada, BRBARA canta Tatuagem, enquanto se ouvem, entremeados na cano, a sentena do OFICIAL e o rufar

    dos tambores. Em claro-escuro, soldados trazem um homem para a execuo.

    BRBARA. Quero ficar no teu corpo feito tatuagem Que pra te dar coragem Pra seguir viagem Quando a noite vem. E tambm pra me perpetuar Em tua escrava Que voc pea, esfrega, nega Mas no lava.

    OFICIAL. ... Que seja morto de morte natural para sempre na forca... (Rufos) ...por traidor e aleivoso sua Ptria e ao seu Rei e Senhor... (Rufos) ...e seu corpo esquartejado, salgado e jogado aos quatro cantos.. . (Rufos)

    BRBARA. Quero brincar no teu corpo feito bailarina Que logo te alucina, Salta e se ilumina

  • Quando a noite vem. E nos msculos exaustos Do teu brao Repousar frouxa, murcha, farta, Morta de cansao.

    OFICIAL. ... Para que sirva de exemplo... (Rufos) ...e casa seja derrubada pedra por pedra e salgado o seu cbT para que nele no cresam mais ervas daninha* (Rufos)... "

    BRBARA. Quero pesar feito cruz nas tuas costas Que te retalha em postas, Mas no fundo gostas, Quando a noite vem. Quero ser a cicatriz risonha e corrosiva, Marcada a frio, A ferro e fogo Em carne viva.

    OFICIAL. ... E seus bens confiscados e seus descendente! declarados infames at a quinta gerao... (Rufos)... para que no perdurem na memria... (Rufos)

    BRBARA. Corao de me, arpes, Sereias e serpentes Que te rabiscam o corpo todo Mas no sentes.

    ltimo rufar de tambor misturado ao grito lancinante de BRBARA. FREI (Fazendo o sinal-da-cruz). Viremos a pgina e tratemos

    de nos mirar no exemplo dos grandes heris da nossaj Ptria.

    Acordes lentos e solenes do tema Vence na vida quem diz sim acompanham a entrada de SOUTO, DIAS e CAMARO.

    DIAS. O meu nome Henrique Dias E sou capito-do-mato. Toco fogo nos quilombos, Pra catar preto e mulato.

  • Ganhei f o r o de f ida lgo, prata, pa t r imn io e pa tente . Eu tenho uma a lma t o b ranca Que j f icou t r ansparen te .

    Pgg. Este sim, um gnio da raa. Trocou um olho por uma medalha e um brao por uma vitria. Negro na cor, porm branco nas obras e no esforo. Tenho at notado que ele est ficando um pouco mais claro.

    CAMARAO. Minha graa Camaro. Em tupi, Poti me chamo. Mas do novo Deus cristo Fiz minha rede e meu amo. Bebo, espirro, mato e esfolo No ramerro desta guerra. E se eu morrer no me amolo, Que um ndio bom nunca berra.

    FREI. Vejam bem. Este ndio nasceu entre os selvagens ta-puias, que so uns analfabetos e antropfagos e hereges e traidores, e hoje o mais leal soldado que El Rey tem nesta guerra. Recebeu o ttulo de Dom e o nome batismal de Antnio Felipe Camaro, Cavaleiro do Hbito de Cristo.

    SOUTO. Me chamam Sebastio Souto E algumas coisas mais. Quando dei por mim, j era Tarde pra voltar atrs. Minha histria to medonha E de to repelente memria Que a Histria at tem vergonha De pr meu nome na Histria.

    FREI. Bem, desse falaremos mais tarde. Enquanto BRBARA olha fixamente os trs heris, ANNA entra e

    canta a primeira estrofe de Vence na vida quem diz sim. ANNA. Vence na vida quem diz sim.

    Vence na vida quem diz sim.

  • Se te di o corpo, Diz que sim. Torcem mais um pouco, Diz que sim. Se te do um soco, Diz que sim. Se te deixam louco, Diz que sim. Se te babam no cangote, Mordem o decote, Se te alisam com o chicote, Olha bem pra mim. Vence na vida quem diz sim, Vence na vida quem diz sim.

    DIAS. Eu acabei de chegar. N o vi n a d a . CAMARO. Do que que voc est falando? Eu tambm no

    ouvi nada. SOUTO. Eu gostaria de poder dizer a l g u m a co i sa , mas no

    sei o qu. ANNA. Vem Brbara, eles no podem te ajudar. DIAS. A guerra tem todos os direitos. s o que h para

    dizer. CAMARO. Meus olhos cansaram de ver... Os ndios, eles

    caem de repente. De bala, de gripe, de bebedeira, decapi-tados, mas sempre de repente... Como se Deus dissesse: pral

    SOUTO. Brbara... ANNA. O que que voc quer com ela? Deixa ela em paz . SOUTO. Eu gostaria de saber o que ela est pensando... ANNA. O que que voc acha? No macho dela, claro. CAMARO. O morto.. . DIAS (Irnico). O major holands. SOUTO. Calabar... CAMARO. Mas um homem morrer assim, com annc io de

  • tambor e hora marcada... sempre desconcertante... Os olhos cansam de ver, mas o estmago no se acostuma.

    DIAS. Se morreu assim foi porque merecia. ANNA. E voc no tem medo de morrer assim? DIAS. Eu no tenho medo de nada. ANNA. Mas que falta de imaginao! SOUTO. O que me assusta na morte que o nico momen-

    to em que o homem est verdadeiramente sozinho. essa solido a verdadeira definio do medo.

    CAMARO. O que me assusta na morte o cheiro que ela vai trazendo ao corpo. Essa podrido a definio da carne.

    DIAS. Bobagens... O que pode assustar na morte a prpria morte. Mas quando ela chega j no tem definio.

    ANNA canta a segunda estrofe de Vence na vida quem diz sim: ANNA. Vence na vida quem diz sim.

    Vence na vida quem diz sim. Se te jogam lama, Diz que sim. Pra que tanto drama, Diz que sim. Te deitam na cama, Diz que sim. Se te criam fama, Diz que sim. Se te chamam vagabunda, Montam na cacunda, Se te largam moribunda, Olha bem pra mim. Vence na vida quem diz sim, Vence na vida quem diz sim. Brbara, vamos embora. BRBARA parece despertar do torpor em que se encontrava.

    BRBARA. Eu conheo voc... DIAS. Meu nome Henrique Dias, Governador dos Pretos,

    Crioulos e Mulatos de Pernambuco.

  • CAMARO. Eu sou Dom Antnio Felipe Camaro, Governa-dor e Capito-mor de Todos os ndios da Costa do Brasil

    BRBARA. E voc... Sebastio do Souto... Vocs todos luta-ram ao lado dele.

    CAMARO. Antes... DIAS. Quando ele lutava ao nosso lado, pela causa certa. BRBARA. Vocs foram amigos... SOUTO. Fomos. BRBARA. E agora vocs o mataram. CAMARO. Ns? SOUTO. Ns somos soldados, s isso... DIAS. Ns no temos nada com essa histria, moa. Se tem

    alguma reclamao, dirija-se ao carrasco, escreva Sua Majestade, o Rei.

    ANNA (Irnica). Eles no tm nada com isso. A culpa do rei e do carrasco. Vamos embora, Brbara...

    BRBARA. Vocs o traram! Todos vocs. DIAS. A guerra tem todos os direitos... BRBARA. No lhe deram nem a satisfao de morrer na

    guerra. Ele morreu na forca. No foi julgado nem nada, no pde reagir, no teve defesa nem foi condenado. Foi executado e ponto final.

    SOUTO. Foi uma cilada. Cilada tambm faz parte da guerra. BRBARA. Havia um acordo. Todo mundo sabe que foi feito

    um acordo para a rendio da cidade. Toda a cidade sabe disso!

    CAMARO. Parece que houve uma contra-ordem, um desa-cordo, no sei.

    BRBARA. O que houve foi um assassinato! Um prisioneiro de guerra morto a sangue-frio! Vocs so soldados e sabem disso muito bem. Tem a um capito-mor no sei de qu, um governador das negas dele, mas no tem um homem pra abrir a boca numa hora dessas. Nem digo abrir a boca pra salvar a vida de ningum. Eu digo abrir

  • boca pra resguardar a prpria dignidade. No tem um homem nesse exrcito!

    MARAO. ... s vezes acontecem uns excessos... E a gente no pode controlar tudo...

    soUTO. A gente no pode saber as razes de tudo o que acontece...

    niAS. Nem deve. Quem sabe mais do que pode s a r ran ja problemas.

    BRBARA (Aps uma pausa). O que que voc sabe, Hen-rique Dias?

    DIAS. EU sei o suficiente. BRBARA. O suficiente para qu? DIAS. Para no ser um desertor, por exemplo. Eu sei qual o

    meu lugar. Sei a quem devo as armas que manejo, os coturnos que calo e tudo o que sou. Eu lutei, matei, per-di um olho, engoli em seco e, de tanto ser comandado, hoje eu sei o suficiente para poder comandar. E o sufi-ciente para no cuspir no prato em que comi.

    BRBARA. O suficiente para n o se impor tar de ser negro? DIAS. Ora, essa. Por que iria me importar de ser negro? BRBARA. Os outros negros so escravos. DIAS. Pois eu no sou, eu sou chefe. A guerra me libertou e

    me engrandeceu. Nesta terra, seja preto, ndio ou alemo, quem no nasce senhor de engenho malnascido. Ento eu estou aqui para provar que h sempre um lugar ao sol para quem levanta cedo.

    BRBARA. E um lugar na forca para quem no pensa do mes-m o jeito.

    DIAS. Escuta, moa. Meus pais foram escravos e eu sofri na carne a chibata e a humilhao. Mas disse que ia vencer e venci. E daqui eu saio pra seguir vencendo, at que no sobre um holands nesta terra de Deus. E quando a guer-ra acabar, bem, a serei um homem respeitado.

    BRBARA. Senhor de muitos engenhos e com seus prprios escravos.

  • DIAS. Por que no? A minha dinastia comea comigo mes-mo. E lhe garanto uma coisa: filho meu no vai conhecer chibata nem humilhao. Meus filhos vo ser quase iguais aos brancos.

    ANNA. Ha-ha-ha-ha-ha-ha... CAMARO. Ele est certo, dona. Sabe, o erro do teu homem

    foi desrespeitar a lei das coisas. As letras que ele apren-deu, os nmeros, a inteligncia, tudo isso foi obra de jesuta portugus. Teu homem recebeu a cama feita e mijou em cima.

    BRBARA. Certo, Dom Camaro. escusado perguntar por que que voc luta ao lado do branco.

    CAMARO. De todos os lados uma guerra de brancos. Mas foi o portugus quem me deu o uniforme, o mantimento e o Evangelho. E daqui eu saio com ele at o fim da guerra.

    BRBARA. Eu sei de ndios que lutam a luta dos ndios. A luta contra os brancos.

    CAMARO. A luta contra o tempo. Minha raa comeou a morrer no dia em que o primeiro civilizado botou o p nas Amricas.

    BRBARA. Isso dito assim, sem mgoa, nem parece sado da boca dum ndio.

    CAMARO. E quem que me obriga a falar feito ndio? Eu tambm posso pensar em portugus, como cristo que sou. Por que que eu vou pra guerra de azagaia, se posso arranjar um mosquete? E quando for pra morrer, pra que que vou querer virar lua, pedra, cachoeira, bicho, raio de luz, se posso arranjar uma alma e ficar de conversa com Jesus Cristo at o fim dos dias?

    BRBARA. Voc tambm um belo exemplo para o seu povo...

    CAMARO. No, acho que no sou. Meu nome no vai en-trar nos contos que o ndio pai conta pro ndio filho e este pro seu curumim, e deste pro curumim do curumim

  • at que no vai ter mais curumim nenhum pra escutar esses contos. No. O meu nome vai ficar nos livros que o branco manda imprimir para sempre.

    ANNA canta a terceira estrofe de Vence na vida quem diz sim: ANNA. Vence na vida quem diz sim.

    Vence na vida quem diz sim. Se te cobrem de ouro, Diz que sim. Se te mandam embora, Diz que sim. Se te puxam o saco, Diz que sim. Se te xingam a raa, Diz que sim. Se te incham a barriga De feto e lombriga, Nem por isso compra a briga, Olha bem pra mim. Vence na vida quem diz sim. Vence na vida quem diz sim... Agora vamos, Brbara...

    BRBARA. E voc, Sebastio do Souto? SOUTO. Eu o qu? Eu vou em frente. O que est feito, est

    feito. BRBARA. Podia ter sido diferente. SOUTO. , podia. Podia Calabar ter suspeitado das minhas

    manobras. Podia o Holands ter evitado o confronto. E quem podia estar pendurado ali era eu.

    BRBARA. Voc est arrependido do que fez. SOUTO. Eu estou sempre arrependido, sem saber por que me

    arrependo a cada instante. Eu queria no ter dvidas. BRBARA. Escuta, Sebastio do Souto, eu preciso entender

    uma coisa. Voc no comandante, no est todo espeta-

  • do de medalhas, no senta mesa das autoridades um subalterno. pouco mais que um menino, tem t ^ ^ vida pela frente. Ento, me explica. Voc que march* 3 com Calabar, conviveu, compreendeu, imitou Calabar viu os sonhos dele, que motivo o levou a trair Calabar*

    SOUTO. Motivo? Motivo, como? BRBARA. Tem que haver um motivo muito forte. Mais q U e

    uma recompensa, uma honra ao mrito, uma ambio... SOUTO. Motivo forte? Eu? Eu no tenho um motivo sequer

    para estar nesta guerra. Quando eu me dei por gente, j era um praa do exrcito holands combatendo na Para-ba. Por que holands? No sei. Vai ver que gostei do co-lorido. E sempre fiz o que vi ser feito, sem perguntar nada. Saques, massacres, emboscadas, sempre achei tudo normal na guerra, mesmo porque no conheo outra ofi-cina. Achei normal me bandear, com todo um batalho de flamengos, pro lado dos portugueses, porque os portu-gueses estavam pagando em dia. Um ano depois, quando o mesmo batalho desertou de volta pros holandeses, a troco de perdo e de um soldo dobrado, achei normal voltar tambm. Tornei a mudar outras vezes, por acaso, por carne-de-sol, por dvida de jogos, por questo de mu-lher. De repente eu era um sargento portugus. E achei que seria normal executar 200 ndios tapuias porque, sendo aliados dos flamengos, eram hereges. Depois exe-cutamos outros 120 ndios, batizados, e eu achei muito normal. Combati normalmente sob as ordens de chefes espanhis, franceses, italianos, polacos, alemes, que tambm achavam normal lutar pela bandeira que pagasse mais. Falaram em religio, acreditei. No perguntei nada, mas disseram que era a luta entre Deus e os diabos. De-pois desconfiei que se matava e morria pelo comrcio do acar, do sal, pelo ouro e pela prata, pelo trfico de es-cravos de Angola e da Guin, pelo domnio dos mares,

    IIBBU^mI i i ri fluiu i A

  • j CAlAB AR

    ansporte da pimenta, da cochonilha, da noz-mos-p a f a do pau-brasil, e aceitei. Achei bem normal que as

    des naes disputassem o mundo entre si, que alian-g e dessem e se desmanchassem, contanto que os fio-

    a S Q S escudos, as libras e as pesetas continuassem dan-n do nos cofres da nobreza, dos acionistas, dos agiotas,

    dos grandes soberanos dessas naes. E continuo achando normal que, qualquer que seja o resultado de todas as guerras, no lixo dessas guerras sobrem escravos e miser-veis, gente sem juzo e gente sem princpios, subalternos desleais, como eu, e visionrios como ele, na forca.

    BRBARA. Ah, agora est explicado. Voc nunca entendeu a luta de Calabar. Nem podia entender, porque voc est louco.

    SOUTO. No, a minha loucura a lucidez. Louco quem faz perguntas que no pode responder. Ou porque no sabe a resposta, ou porque o preo da resposta certa o preo da prpria vida. Se tem um louco nesta histria, o seu nome Domingos Fernandes Calabar.

    BRBARA. Basta! Voc est proibido de pronunciar esse nome!

    SOUTO. Louco, sim! Calabar era um louco! Porque de uma dvida ele fez uma certeza!

    BRBARA. Cala essa boca! Passam em retirada as tropas de MATHIAS DE ALBUQUERQUE. DIAS e CAMARO juntam-se soldadesca. SOUTO vai por ltimo depois de

    cantar Eu vou voltar. Vou voltar Quando souber acreditar Que h porqu, no qu acreditar. Ento vou estar pronto pra voltar. Vou provar a dor atroz Que faz um animal falar vou calar.

  • Orgulhoso, triunfal, Trado, estropiado, sim Eu vou voltar.

    Vou sangrar Quando tiver por quem e a quem sangrar. E, se no cu, Alguma estrela duvidar Aquela estrela eu trato de apagar, eu vou voltar E espalhar O espanto, o pranto, o luto, o horror Em cada alqueire E ver que flor inda capaz de dar No banho bruto da tapera Eu vou voltar. Vou trazer a flor brejeira Do serto em primavera E uma constelao inteira em meu olhar. Vou, eu vou te arregalar meus olhos Cegos de tanta quimera. Me espera, Espera, Eu vou voltar.

    BRBARA. Esto todos proibidos de pronunciar esse nome! Fora, covardes! Fora!

    Amparada por ANNA, BRBARA senta-se e remexe o sangue de Calabar numa bacia.

    ANNA. Brbara! BRBARA olha a holandesa, depois desvia o olhar para a bacia.

    ANNA. Foi todo mundo embora... Voc no pode ficar aqui sozinha!

    BRBARA, mansamente, como que gemendo, entoa lentamente Cala a boca, Brbara, que serve de fundo s palavras de ANNA.

    ANNA. Se eu me lembrasse ainda do que senti, quando perdi

    uBHlifll^HKall

  • ela primeira vez o homem que eu amei, talvez pudesse te dizer alguma coisa... Mas foi h tanto tempo... triste dizer isso, mas nem tenho mais a certeza da cor dos seus olhos. E, no entanto, eu estremecia de prazer cada vez que ele me olhava. Como estremeo agora, mas s de safadeza... Puxa, eu nem te conheo direito... Mas talvez seja melhor assim... Seno a gente ia ter que lembrar jun-to umas coisas que agora voc precisa esquecer.

    BRBARA. EU no vou esquecer.. ANNA. Ele morreu. BRBARA. N o f a l a a s s i m . ANNA. Ele morreu de morte matada, estrebuchou e tudo, as

    vsceras saindo pela boca... BRBARA. Chega! ANNA. E quando o n fechou, o pau ficou duro. sempre

    assim. BRBARA. Eles no eram capazes de matar Calabar... Ca-

    labar era mais esperto e mais forte que todos esses exrci-tos juntos... Calabar no se mata assim to fcil, como um animal qualquer... Eu no deixo!

    ANNA. Vamos para casa. BRBARA. Eu no tenho casa. ANNA. Vem comigo. BRBARA sacode a cabea, como se quisesse afastar para longe uma

    idia que teimasse em domin-la. Depois encara a holandesa. BRBARA. Voc casada? ANNA (Ri). Eu, hein? De onde que voc tirou isso? BRBARA. Eu sim. Voc ama algum? ANNA. Amo. Eu amo quem me paga. BRBARA. Eu amo Calabar. ANNA. O r a , isso eu j sei. BRBARA. Qual o seu nome? ANNA. Xi, eu tenho tantos... Mas pra voc eu sou Anna. S Anna.

  • BRBARA (Como se pronunciasse uma palavra Anna...

    ANNA. Uma amiga. BRBARA. Uma amiga... Anna, eu vou contar uma cois

    pra voc. Sabe, at bom eles pensarem que matar S Calabar. Esquartejaram Calabar e espalharam por a seus pedaos. Mas Calabar no um monte de sebo, n 0 Eu sei que Calabar deixou uma idia derramada na terra A gente da terra sabe dessa idia, colhe essa idia e gosta dela, mesmo que ande com ela escondida, bem guardada feito um mingau esquentando por dentro. A idia dessa gente. Os que no gostam da idia, esses vo se coar vo fazer pouco dela, vo achar que um bicho-do-p. Depois essa idia maldita vai comear a aperrear e aper-rear o pensamento desses senhores, vai acordar esses senhores no meio da noite. Eles vo dizer: que porra de idia essa? Eles ento vo querer matar a idia a pau. Vo amarrar a idia pelos ps e pelas mos, vo pendurar a idia num poste, vo querer partir a espinha dessa idia. Mas nem adianta esquartejar a idia e espalhar seus pedaos por a, porque ela feito cobra-de-vidro. E o povo sabe e jura que a cobra-de vidro uma espcie de lagarto, que quando se corta em dois, trs, mil pedaos, facilmente se refaz.

    BRBARA canta Cobra-de-Vidro: BRBARA. Aos quatro cantos o seu corpo

    Partido, banido. Aos quatro ventos os seus quartos, Seus cacos de vidro. O seu veneno incomodando A tua honra, o teu vero. Presta ateno! Presta ateno! Aos quatro cantos suas tripas,

    es

  • De graa, de sobra, A os quatro ventos os seus quar tos , Seus cacos de c o b r a , 0 seu veneno ar ru inando A tua filha, a plantao. Presta a teno! Presta a tenol Aos quatro cantos seus gemidos, Seu grito medonho, Aos quatro cantos os seus quartos, Seus cacos de sonho, O seu veneno temperando A tua veia, o teu fei jo. Presta ateno! Presta atenol Presta atenol Presta ateno! Ao som de Cobra-de-vidro, BRBARA dirige-se ao pblico:

    BRBARA. N o posso deixar nesse momento de manifestar um grande desprezo , n o sei se pela ingratido, pela covardia o u pe lo f ing imento dos mortais .

    Intervalo.

  • Segundo ato

    Primeiros acordes do hino holands. Sobe o pano. NASSAU (Off). Tu no morreste em vo.

    Eis, talvez, um estranho epitfio dirigido a estranha gente de um estranho continente de contorno incerto num mapa de imaginao. Tu no morreste em vo, repito, aqui deste meu porto como um gesto de conforto a algum estranho heri de contorno incerto no porto de um povo de imaginao.

    A luz descobre NASSAU. NASSAU. Eu, Maurcio de Nassau-Siegen, conde holands da

    mui nobre casa dos Orange, que tantos reis e guerreiros tm dado ao meu pas, embarco neste ano de 1637 a caminho de Pernambuco, em terras do Brasil, como Go-vernador-geral plenipotencirio a servio e mando da Companhia das ndias Ocidentais, carregado de ttulos, armas, idias e um compromisso tcito com o sangue derramado por desconhecidos. Eu, Maurcio de Nassau, num tombadilho sombrio, a bordo de um sonho grandioso,

  • cambaleando entre as ondas, entre norte, sul e tempestades, entre medo e coragem, entre ansiedade e nuseas, entre bbado e sonmbulo, entre fidalgo e corsrio, governante e mercenrio. Eu, Maurcio simplesmente, sem nenhuma testemunha e sem Bblia na mo e sem porra nenhuma na cabea, duvido firmemente, em nome dos Santos Mrtires, que algum dia algum homem n'algum lugar tenha conhecido mor te que n a o fosse va. Mas tu no morreste em vo. Embora seja mais difcil dizer isso quanto mais avisto o teu m u n d o no horizonte verde e vivo e a paisagem definida sem qualquer ressentimento da tua ferida. No, no morreste em vo. Ou ser em vo que rasguei esses trpicos, ser em vo que adivinhei a terra nova, ser em vo que piso a terra nova, que beijo a terra que beijavas, e essas palavras sero vs de um holands sem palavra.

    NASSAU beija o solo. ANNA puxa o frevo No existe pecado ao sul do Equador.

    No existe pecado do lado de baixo do Equador. Vamos fazer um pecado safado debaixo do meu cobertor.

  • Me deixa ser t eu e sc racho , c a p a c h o , t eu c a c h o , Um riacho de amor , Quando l io de escu lacho , o lha i , sai deba ixo , Que eu sou professor . Deixa a tristeza p r a l , vem comer , me j an ta r Sarapatel , caruru, tucupi, tacac. V se me usa, me abusa, lambuza, Que a tua cafuza no pode esperar. Deixa a tristeza pra l, vem comer, me jantar Sarapatel, caruru, tucupi, tacac. V se me esgota, me bota na mesa, Que a tua holandesa no pode esperar. No existe pecado do lado de baixo do Equador. Vamos fazer um pecado, safado, debaixo do meu cobertor. Me deixa ser teu escracho, capacho, teu cacho, diacho, Um riacho de amor, Quando misso de esculacho, olhai, sai debaixo, Eu sou embaixador.

    A orquestra prossegue com o frevo rasgado. NASSAU fortemente aclamado. Acompanha-o um squito de pintores, astrnomos, naturalistas, mdicos etc. Os moradores e senhores de engenho

    portugueses cercam NASSAU. MORADOR. O que que o prncipe achou do Brasil? NASSAU. Un des plus beaux pays du monde! MORADORES. Diz mais alguma coisa! Mais! NASSAU. Pas de pareil... sous le soleil! MORADORES. o maior. poeta! Diz mais! MORADOR. Suas impresses do Recife... NASSAU. C'est... c'est... A Veneza brasileira. CONSULTOR. No exageremos... MORADORES. E a m u l h e r brasileira? E a nossa msica? E as

    n o s s a s praias? NASSAU. Foi para retratar tanta beleza que eu trouxe comigo

    pintores. E arquitetos para construir palcios. E astrno-

  • mos para contar as estrelas. E botnicos para cheirar a matas. E naturalistas para estudar as aves...

    PAPAGAIO. O b a ! NASSAU. Qual o seu nome? PAPAGAIO. Obal NASSAU. Em breve teremos avirios, jardins botnicos e zoo-

    lgicos, orfanatos, hospitais, o primeiro observatrio as-tronmico e meteorolgico do Novo Mundo , que mais... uma universidade...

    CONSULTOR. Prncipe, n o exageremos... NASSAU. Como Governador-geral de Pernambuco a minha

    maior preocupao fazer felizes os seus moradores. Mesmo porque eles so mais da metade da populao do Brasil, e esta regio, com a concentrao dos seus quase 350 engenhos, domina a produo mundial de acar. Alm do mais, nesta disputa entre a Holanda, Portugal e Espanha, quero provar que a colonizao holandesa a mais benfica.

    PAPAGAIO. Obal NASSAU. Minha inteno faz-los felizes... sejam portugue-

    ses, holandeses ou da terra, ricos ou pobres, protestantes ou catlicos romanos... e at mesmo judeus.

    CONSULTOR. Prncipe... NASSAU. O que importa que fique bem claro que no estou

    aqui em nome do Governo holands, embora a Compa-nhia das ndias me d poderes para tanto, mas sim repre-sentando os interesses de todos os pequenos investidores sapateiros, alfaiates, ferreiros, agricultores, gente como muitos de vocs que compraram ess