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Brasil, qual é o teu negócio?
Alita Tortello CAIUBY1
Resumo
Procurando explorar a questão da identidade no momento atual, este artigo traz uma
breve seleção de textos – hinos, poemas e letras de música – que mostram como a
construção da imagem da identidade cultural brasileira, iniciada principalmente na
nossa geração Romântica, foi se alterando ao longo dos anos. A proposta tem como
base o texto de Stuart Hall, A identidade cultural na pós-modernidade, em que o autor
avalia se existe uma crise de identidade cultural na modernidade tardia, além de
examinar aspectos contraditórios do conceito de descentração do sujeito e de seu lugar
no mundo social e cultural.
Palavras-chave: identidade cultural, modernidade, identidade brasileira.
Abstract
Trying to explore the issue of identity in the present moment, this article provides a
brief selection of texts – hymns, poems and lyrics – that show how the construction of
the image of the Brazilian cultural identity – initiated mainly in our Romantic
generation – is changing over the years. The proposal is based on the text of Stuart
Hall, The question of cultural identity, in which the author assesses whether there is a
crisis of cultural identity in late modernity, while examining contradictory aspects of the
concept of decentering of the subject and its place in the social and cultural world.
Keywords: cultural identity, modernity, Brazilian identity.
1 Mestre em Teoria e História Literária pela Unicamp e Doutoranda em Literatura Brasileira na
Universidade Federal do Rio de Janeiro, 20241-040, Rio de Janeiro, RJ, [email protected]
1. Introdução
Os dilemas da contemporaneidade. O homem e sua relação com o mundo.
Nossas letras nacionais têm muito a dizer sobre isso. Vivemos intensas e rápidas
mudanças, e a sociedade passa por um processo de reestruturação de comportamento e
de pensamento, os quais tentam insistentemente se estruturar num terreno movediço.
Uma das questões mais caras atualmente é a da identidade. Dessa forma, o livro
de Stuart Hall, A identidade cultural na pós-modernidade (2002), irá guiar
prioritariamente nosso caminho, mas algumas considerações de outros autores como
Gilles Lipovetsky, Zigmunt Bauman e Benjamin Abdalla aparecerão para contribuir
com essa reflexão.
Nosso objetivo é aproximar as considerações de Hall da realidade nacional,
mostrando como elas aparecem nas produções literárias e como a construção de uma
imagem da identidade cultural iniciada principalmente no Romantismo brasileiro foi se
transmutando até chegar aos tempos atuais. Para isso, fizemos uma enxuta seleção de
textos – hinos, poemas e letras de música – que irão ilustrar, ao longo do artigo,
algumas das percepções do caso brasileiro.
De início, apresentaremos uma compreensão geral do texto de Hall, pois nos
interessa trazer à tona os conceitos de identidade abordados por ele. Em seguida,
dividiremos nosso trabalho em duas etapas. Na primeira, nos deteremos sobre o
Capítulo 3 – “As culturas nacionais como comunidades imaginadas”, que trata do
conceito de nação. Traçaremos um paralelo entre as considerações aí estabelecidas e
alguns textos brasileiros que confirmariam as articulações propostas.
Em outra parte, iremos associar o Capítulo 4 – “Globalização”, a uma noção de
identidade brasileira mais contemporânea, vinculada aos acontecimentos principalmente
advindos do processo de globalização. Neste tópico, além de texto, mostraremos letras
de música nacionais.
Veremos, por fim, que a noção de “comunidade imaginada”, elucidada por Hall,
perdura e dialoga constantemente com os processos da modernidade e
contemporaneidade.
2. Sobre a Identidade
Em seu livro A identidade cultural na pós-modernidade (2002), Stuart Hall
começa explicando que a questão da identidade está sendo cada vez mais discutida, pois
vivemos uma época de “crise de identidade”. O que antes era tido como unificado,
próprio do sujeito integrado, agora se mostra fragmentado, ou descentrado. Como ele
mesmo sugere, a identidade é um tema abordado pelo motivo óbvio de que se apresenta
em crise.
Esse conceito, assinala Hall, é demasiado complexo, sendo, portanto, impossível
fazer afirmações conclusivas a esse respeito. Compete-nos mostrar as três concepções
de identidade cultural apontadas, ou seja, sujeito do Iluminismo, sujeito sociológico e
sujeito pós-moderno. O primeiro seria o sujeito totalmente centrado e unificado, o
segundo começa a mostrar a complexidade do mundo moderno e a consciência da
necessidade de relação com outras pessoas. Mas os outros mundos culturais e as
identidades que eles oferecem acabam por desestruturar esse sujeito, fragmentando-o,
constituindo, enfim, neste último sujeito, o qual não tem uma identidade fixa, essencial
ou permanente.
A esta última identidade lembramos que a noção de incompletude e
descontentamento faz-se presente. Temos essa relação bastante discutida por
Lipovetsky, em Felicidade Paradoxal (2007). Na linha de pensamento de que “o
homem nasce para ser livre e feliz” (2007, p. 285), seu homo felix está constantemente
em busca dessa felicidade e o consumismo vem contribuir com esse processo. Um
consumismo, aliás, mediado pela interação entre as diferentes identidades culturais,
constituídas pela globalização. “Produzimos e consumimos cada vez mais, mas isso não
nos torna mais felizes” (2007, p. 287), afirma Lipovetsky.
Já Bauman, ao dissertar sobre o homo sexualis, em Amor Líquido (2004), reitera
a necessidade de se relacionar do homem, já que este se sente sempre incompleto e
insatisfeito. O autor aponta ainda para as formas de que o indivíduo se utiliza para
acabar com essa insatisfação, tão inerente ao modo de vida contemporâneo. Do sexo ao
celular, Bauman assinala também o gasto descomedido – em uma compreensão mais
ampla – de que trata Lipovetsky. O sexo descompromissado e o consumo desenfreado
são aproximados, mostrando serem recursos dos quais os homens se aproveitariam
nessa busca incansável pela completude.
Ou seja, a fragmentação a que se refere Hall mostra-se coerente com esses
outros dois autores. Este sujeito pós-moderno assumiria diferentes identidades em
momentos diversos, a depender de suas necessidades.
Dessa forma, o esforço de Hall para tratar da identidade na pós-modernidade tem
laços estreitos com as reflexões apontadas por Bauman e Lipovetsky na medida em que
discutem os elementos que acabam por contribuir com essa fragmentação e
desestruturação que constituem o homem da contemporaneidade.
O passo seguinte para Stuart Hall é delinear os estágios a que ele se referiu para
apresentar os diferentes conceitos de sujeito. Ou seja, de como o sujeito passa de um ser
unificado para uma definição mais interativa e, posteriormente, “descentrado” na
modernidade tardia. Nesse caminho, o autor passa por Descartes, Locke, Adam Smith
até chegar ao surgimento do Modernismo com Baudelaire, Walter Benjamin e Kafka.
Neste ponto, basta dizer que Stuart Hall explica essa “descentração”, em cinco
partes, mostrando como quatro autores – Marx, Freud, Saussure, Michel Foulcault – e,
por fim, o movimento feminista, contribuem para formar as identidades “abertas,
contraditórias, inacabadas, fragmentadas, do sujeito pós-moderno”.
Passamos mais rapidamente sobre esses temas, pois queremos tratar
especificamente do conceito seguinte, o da “comunidade imaginada”.
3. Comunidades imaginadas
A proposta do autor é inserir esse “sujeito fragmentado” nos termos das
identidades culturais. Primeiramente, é preciso entender que a identidade é fortemente
influenciada pela cultura. Como explica o filósofo Roger Scruton:
A condição de homem (sic) exige que o indivíduo, embora exista e aja
como um ser autônomo, faça isso somente porque ele pode
primeiramente identificar a si mesmo como algo mais amplo – como
um membro de uma sociedade, grupo, classe, estado ou nação, de
algum arranjo, ao qual ele pode até não dar um nome, mas que ele
reconhece institivamente como seu lar. 2
Ou seja, o homem necessita fazer parte de algo, ter raízes e exaltar sua nação,
mesmo que este grupo ou estado advenha de uma elaboração mais ou menos artificial.
A partir disso, devemos entender que a identidade cultural é uma representação criada,
ou seja, a vida da nação constitui-se em grande parte da imaginação. Isso quer dizer que
a ideia de nação faz-se como um sistema de representação cultural. Como esclarece
Hall, essa concepção de nação tenta se passar como uma unidade homogênea que é
inventada a partir de uma identidade nacional idealizada, ou seja, uma “comunidade
imaginada”.
Seguindo esse conceito de Hall, podemos identificar alguns textos em nossa
literatura que procuram construir essa narrativa da cultura nacional.
O primeiro deles refere-se à narrativa da nação – as histórias nacionais que são
contadas e recontadas, passando por gerações, mostrando as batalhas, os ganhos e as
perdas da pátria, trazendo significado à vida, como se esse instinto nacional sempre
tivesse existido e perdurasse.
Neste sentido, cabe ressaltar uma característica intrínseca aos hinos: o canto
pátrio tem por objetivo justamente glorificar e honrar um povo. Nosso “Hino Nacional”,
com letra de Joaquim Osório Duque Estrada, de 1823, trata precisamente de recontar a
história gloriosa de nossa nação. Veja-se que os dois primeiros versos já fazem alusão à
declaração de independência clamada por Dom Pedro: “Ouviram do Ipiranga as
margens plácidas/ De um povo heroico o brado retumbante (...)” (1823). Mostra ainda
que nossa igualdade foi conquistada com “braço forte”, querendo evidenciar que somos
um povo de honra – “Se o penhor dessa igualdade/ Conseguimos conquistar com braço
forte (...)” (1823), fazendo alusão às supostas batalhas vencidas.
Também o “Hino à Bandeira Nacional” (1906) – escrito por Olavo Bilac –
rememora nosso caminho de triunfos e percalços.
2 Esta citação está no capítulo 3 do livro de Stuart Hall, A identidade cultural na pós-modernidade, trad.
Tomaz Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro, Rio de Janeiro: DP&A, 2002, p. 48.
Sobre a imensa Nação Brasileira,
Nos momentos de festa ou de dor,
Paira sempre, sagrada bandeira,
Pavilhão da Justiça e do Amor! (1906)
A imagem que se constrói lembra um compromisso do brasileiro, firmado aqui
com a pátria. Algo como o famoso dito “na saúde e na doença”, celebrado nos
matrimônios, em que as partes estariam juntas, nesse caso, para lutar por justiça e amor.
Está selada a união permanente da pátria e seus cidadãos.
Nosso hino nacional também serve de exemplo para a formação do segundo
elemento de que trata Hall: a ênfase nas origens, na continuidade, na tradição e na
intemporalidade. Veremos compor-se, então, a ideia de um povo guerreiro, que acredita
na paz e na igualdade, que luta pela justiça em nome de um dever: defender a pátria.
(...) Em teu seio, ó liberdade,
Desafia o nosso peito a própria morte! (...)
(...) E diga o verde-louro dessa flâmula
- "Paz no futuro e glória no passado."
Mas, se ergues da justiça a clava forte,
Verás que um filho teu não foge à luta,
Nem teme, quem te adora, a própria morte. (1823)
E mais uma vez, o “Hino à bandeira nacional” também apresenta essas
características:
Contemplando o teu vulto sagrado,
Compreendemos o nosso dever;
E o Brasil, por seus filhos amado,
Poderoso e feliz há de ser.
Ou seja, independentemente das mudanças e instabilidades da história, os
elementos essenciais do caráter nacional permaneceriam inalterados, os brasileiros
continuariam sendo este povo heroico e guerreiro que defende sua pátria, pois
compreendem sua grandeza. “Está lá desde o nascimento, unificado e contínuo,
“imutável” ao longo de todas as mudanças, eterno” (HALL, 2007, p. 53).
Também esse elemento de origem e tradição se encontra nos nossos textos
românticos. Remontam a mata virgem de Iracema. Centram-se em nossas terras, na
beleza selvagem, na floresta intacta, no paraíso, no lugar da liberdade e do prazer.
Vale ressaltar que a estética romântica no Brasil teve como engrenagem a
tomada de consciência nacional e uma vontade de exprimir na literatura os sentimentos
da nação que acabava de conquistar sua independência, em 1822. Os dois grandes
representantes desse período são José de Alencar e Gonçalves Dias.
O conhecido poema “Canção do Exílio” apresenta esse aspecto. Já nas primeiras
estrofes, a glorificação à natureza constrói-se comparativamente – opondo o local em
que se encontra o poeta àquele que ele gostaria de estar, ou seja, o Brasil.
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.
Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.
Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer eu encontro lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Seu desejo assinala uma idealização, um lugar de fauna e flora perfeito em que
há palmeiras, estrelas, flores, sabiá. Como se esses elementos só existissem aqui,
assumindo um caráter único, especial, raro. Como em:
Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Na última estrofe, o eu lírico chega a pedir a Deus para não morrer antes de
voltar a sua terra natal.
Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que disfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu'inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá. (1843)
Antonio Candido, ao comentar sobre esse período, afirma:
Esta determinação da paisagem, aproximando-a da sensibilidade
pessoal, reforça de algum modo a velha tendência de celebração
nativista, que daí a pouco dará lugar a uma das manifestações centrais
da literatura romântica: a paisagem como estímulo e expressão do
nacionalismo. (1964, p. 209).
Com um poema de elaboração simples e a presença constante de comparações
nas estrofes, Gonçalves Dias inaugura na literatura brasileira uma tradição – a ideia de
que não há nenhum país tão acolhedor como o Brasil. Ele servirá de inspiração para
outros tantos versos.
Podemos citar, por exemplo, a conhecida paráfrase no “Hino Nacional” – “Teus
risonhos, lindos campos têm mais flores;/ "Nossos bosques têm mais vida",/ "Nossa
vida" no teu seio "mais amores"”. A intertextualidade reforça a imagem de país tropical
e agradável. Mas o aspecto mais importante dessa construção é que, por se tratar de um
hino, as características do país tornam-se atemporais, sem necessidade de serem
situadas num tempo preciso, como comenta Hall.
Outro poema romântico aborda os encantos das terras brasileiras também
dialogando abertamente com “Canção do Exílio”. Trata-se do poema “Eu nasci além
dos mares”, de Casimiro de Abreu. Segue um trecho:
Eu nasci além dos mares:
Os meus lares,
Meus amores ficam lá!
— Onde canta nos retiros
Seus suspiros,
Suspiros o sabiá!
Oh que céu, que terra aquela,
Rica e bela
Como o céu de claro anil!
Que seiva, que luz, que galas,
Não exalas
Não exalas, meu Brasil!
Oh! que saudades tamanhas
Das montanhas,
Daqueles campos natais!
Daquele céu de safira
Que se mira,
Que se mira nos cristais!
Não amo a terra do exílio,
Sou bom filho,
Quero a pátria, o meu país,
Quero a terra das mangueiras
E as palmeiras,
E as palmeiras tão gentis!
Como a ave dos palmares
Pelos ares
Fugindo do caçador;
Eu vivo longe do ninho,
Sem carinho;
Sem carinho e sem amor! (1859)
Novamente é nítida a exaltação da pátria, em que o poeta utiliza os mesmos
elementos de Gonçalves Dias para identificá-la – sabiás, palmeiras, aves, céu. Mais uma
vez, verificamos a construção de um espírito nacional. Os poetas românticos, quer
influenciados pelo movimento da independência quer legitimamente intimidados pela
natureza do país, acabaram por construir versos que contribuíam de forma efetiva para
um discurso que enfatiza a origem e a intemporalidade.
Como sabemos, o impacto de “Canção do Exílio” foi tão grande que repercutiu
por décadas em versos (parodiados ou não) de outros poetas. Para citar alguns temos
Juó Bananére, Oswald de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes,
José Paulo Paes e Chico Buarque3.
Mais adiante, Hall aponta para outros dois elementos: o mito fundacional e a
ideia de um povo original. Expliquemos melhor.
No primeiro caso, tenta-se localizar a origem da nação em um passado tão
distante que ele se perde no que o autor chama de tempo “mítico”. Pensando mais uma
vez no Brasil, poderíamos citar o carnaval. Ironicamente, muitos acreditam que nós
criamos a tradição carnavalesca. A festa, no entanto, tem suas raízes na Grécia, sendo
posteriormente recuperada pelo cristianismo em países europeus. Tornou-se um ícone
para nosso povo somente mais tarde quando já estávamos colonizados. O carnaval,
todavia, é tratado como se fizesse parte genuína de nossa história cultural, sendo, na
verdade, mais um dos costumes importados de uma cultura hegemônica ocidental.
Quanto ao povo original, ou seja, um povo também vinculado a uma
temporalidade esquecida, Hall ressalta que é raramente esse povo primordial “que
persiste ou que exercita o poder” (2002, p. 56). Neste caso, a letra de “Aquarela do
Brasil”, de Ary Barroso é um bom exemplo para mostrar esse aspecto e o do mito
fundacional. O texto retrata um Brasil que é creditado especialmente pela cultura do
carnaval e que cria, por consequência, o nosso povo. É dele que surge o gingado, a
manha, o mulato inzoneiro, o bamboleio, a moreninha sestrosa. Selecionamos os versos
em que essas características aparecem:
Brasil, meu Brasil Brasileiro,
Meu mulato inzoneiro,
Vou cantar-te nos meus versos:
O Brasil, samba que dá
3 Existem ainda outros textos que tratam da “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias. Neste trecho, no
entanto, referimo-nos aos poemas “Migna terra tê parmeras” (Juó Bananére), “Canto de regresso à
pátria” (Oswald de Andrade), “Europa, França e Bahia” e “Nova canção do exílio” (Carlos Drummond de
Andrade), “Canção do Exílio” (Murilo Mendes), “Canção do exílio facilitada” (José Paulo Paes) e “Sabiá”
(Chico Buarque).
Bamboleio, que faz gingar;
O Brasil do meu amor,
Terra de Nosso Senhor.
Brasil!... Brasil!... Prá mim!... Prá mim!...
(...)
Brasil, terra boa e gostosa
Da moreninha sestrosa
De olhar indiferente.
(...)
Ô! Esse Brasil lindo e trigueiro
É o meu Brasil Brasileiro,
Terra de samba e pandeiro.
Brasil!... Brasil! (1939)
É importante atentar para a descrição desse povo, que aparece feliz e em clima
de festa, vivendo na terra do samba e do pandeiro. Esse olhar otimista é pouco ou quase
nada molestado pelo certo tom melancólico existente em um trecho da música.
A parte a que nos referimos relembra os tempos difíceis, pedindo que o trovador
cante de novo, deixando subentender a ideia de uma interrupção, em alguma ocasião de
um passado tortuoso:
Ô, abre a cortina do passado;
Tira a mãe preta do cerrado;
Bota o rei congo no congado.
Brasil!... Brasil!...
Deixa cantar de novo o trovador
À merencória à luz da lua
Toda canção do meu amor.
Quero ver essa Dona caminhando
Pelos salões, arrastando
O seu vestido rendado.
Brasil!... Brasil! Prá mim ... Prá mim!... (1959)
E a música acaba no conhecido discurso, denotando novamente as belezas
naturais do país:
O Brasil, verde que dá
Para o mundo admirar.
O Brasil do meu amor,
Terra de Nosso Senhor.
Brasil!... Brasil! Prá mim ... Prá mim!...
Esse coqueiro que dá coco,
Onde eu amarro a minha rede
Nas noites claras de luar.
Ô! Estas fontes murmurantes
Onde eu mato a minha sede
E onde a lua vem brincar. (1959)
O que se percebe, enfim, é a construção da imagem de um povo sempre
contente, superando as adversidades, já que se sente abençoado e, mais ainda, parte de
um povo original, um grupo, uma nação. Sabemos que esse povo – da dança, da festa,
da boemia – não é de fato detentor do poder em nosso país. A rigor, as festividades no
Brasil apenas contribuem para uma maior alienação política e social. E isso não é um
fenômeno recente.
A mesma manifestação é exposta nos versos de Jorge Ben Jor em “País
Tropical”. Neste caso, ele faz uma ressalva com relação a seus bens materiais, mas a
expressão de felicidade por fazer parte deste povo supera essa condição. Segue um
trecho:
Moro num país tropical, abençoado por Deus
E bonito por natureza, mas que beleza
Em fevereiro (em fevereiro)
Tem carnaval (tem carnaval)
Tenho um fusca e um violão
Sou Flamengo
Tenho uma nêga
Chamada Tereza
Sambaby
Sambaby
Sou um menino de mentalidade mediana
Pois é, mas assim mesmo sou feliz da vida
Pois eu não devo nada a ninguém
Pois é, pois eu sou feliz
Muito feliz comigo mesmo (1969)
As músicas e poemas são apenas alguns dos exemplos que podemos trazer para
mostrar, principalmente no que se refere à cultura, como nosso país também está
relacionado a este processo de unificação cultural de que trata Hall. Por meio de
intervenções culturais, vai se construindo um universalismo, em que a nação responde
como um grupo idealizado.
Ocorre, entretanto, que cada indivíduo tenta também inserir seu estilo único,
autêntico, reinventar as diferenças, sendo, portanto, impossível a existência de um
particularismo universal. Está aí o paradoxo da identidade cultural.
Para Hall, as “comunidades imaginadas” constituem-se de três conceitos: “as
memórias do passado, o desejo por viver em conjunto e a perpetuação da esperança”
(2002, p. 58). Esses elementos é que impulsionam para uma unificação, tentando fazer
desaparecer as diferenças dos seus membros que podem ser de classe, gênero ou raça
diversos, mas que respondem a uma mesma identidade cultural.
Porém, com o advento da globalização todos esses elementos de construção da
identidade cultural são colocados à prova. Aqui cabe lembrar-se de Benjamin Abdala,
no que concerne às culturas hegemônicas. A imposição de uma cultura politicamente
mais forte é um instrumento que tenta anular e subordinar as diferenças culturais.
Portanto, lembra Hall, “as nações modernas são, todas, híbridos culturais” (2002, p. 62).
Entramos no dilema de um povo sem o conceito de nação. Muitos da população
trabalhadora circulam por vários países, numa perspectiva multiidentitária, por ter
aquele sentimento, já citado, de que falta alguma coisa.
Abdala elucida essa questão afirmando que
(...) essa perspectiva de fronteiras múltiplas (o homem dividido ou
integralizado em pelo menos duas fronteiras), onde ele se desenraiza
de sua terra de origem sem se enraizar na terra de origem de outros,
coexistindo com grupos sociais migrantes de outras culturas, pode
constituir um hábito crítico. Através desses contatos e ausências,
próprios de uma população nômade, em constante circulação e
deslocamentos, a identidade afirma-se ainda mais como um constante
vir-a-ser, sem um porto de chegada. (ABDALA, 2002, p.19)
A razão desse deslocamento é novamente o sentimento de incompletude. O
homem sente necessidade de ser cidadão de vários países, pois já não consegue
identificar-se. A partir daqui, podemos começar a discutir o próximo capítulo da obra de
Hall.
4. União e quebra
No capítulo 4, “Globalização”, Hall explica como esse processo acabou por
desconstruir as representações culturais que tentavam ir em direção da unidade. Para
ele, há três consequências possíveis: as identidades nacionais se desintegram face ao
crescimento da homogeneização cultural; identidades nacionais e “locais” são
reforçadas pela resistência a globalização; novas identidades híbridas tomam o lugar da
identidade nacional. Essas duas primeiras são mais facilmente observáveis no caso
brasileiro.
Hall alerta que a globalização não é um fenômeno recente. Na verdade, ela é
inerente à modernidade. Basta retomar a tradição instaurada por Gonçalves Dias que
será revisitada pelo modernista Murilo Mendes em sentido diverso. A poesia, também
intitulada “Canção do Exílio”, irá tocar justamente na consequência relacionada à
homogeneização cultural de que trata Hall.
Minha terra tem macieiras da Califórnia
onde cantam gaturamos de Veneza.
Os poetas da minha terra
são pretos que vivem em torres de ametista,
os sargentos do exército são monistas, cubistas,
os filósofos são polacos vendendo a prestações.
A gente não pode dormir
com os oradores e os pernilongos.
Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda.
Eu morro sufocado
em terra estrangeira.
Nossas flores são mais bonitas
nossas frutas mais gostosas
mas custam cem mil réis a dúzia.
Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade
e ouvir um sabiá com certidão de idade! (1930)
As interferências de outras nações aparecem claramente no texto – “Califórnia”,
“Veneza”, “Gioconda”. Mas notamos também o descompasso do eu lírico com o país
em que habita. Ele se sente em terra estrangeira, impotente perante o domínio capitalista
desigual que o impede de comprar as gostosas frutas, pois custam “mil réis a dúzia”.
Não há mais carambola de verdade, nem sabiá, como assentia Gonçalves Dias.
Murilo Mendes, como poeta modernista, reflete também um segundo momento
de nossa literatura, e das artes em geral, em que a identidade brasileira é colocada em
xeque, tornando-se tema central. Sentindo-se “sufocados” – para fazer referência ao
poema – nossos artistas começam a procurar outros recursos em busca de uma
identidade. O incômodo da dominância cultural externa passa, portanto, a fazer parte de
nossas discussões.
A música “Brasil Pandeiro”, de Assis Valente, também retoma essa condição.
No entanto, revela outro traço mencionado por Hall: a resistência à globalização
fortalecendo a identidade nacional.
Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor
Eu fui na Penha, fui pedir ao Padroeiro para me ajudar
Salve o Morro do Vintém, pendura a saia eu quero ver
Eu quero ver o tio Sam tocar pandeiro para o mundo sambar
O Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada
Anda dizendo que o molho da baiana melhorou seu prato
Vai entrar no cuscuz, acarajé e abará.
Na Casa Branca já dançou a batucada de ioiô, iaiá
Brasil, esquentai vossos pandeiros
Iluminai os terreiros que nós queremos sambar
Há quem sambe diferente noutras terras, noutra gente
Num batuque de matar
Batucada, batucada, reunir nossos valores
Pastorinhas e cantores
Expressão que não tem par, ó meu Brasil
Brasil, esquentai vossos pandeiros
Iluminai os terreiros que nós queremos sambar
Ô, ô, sambar, iêiê, sambar...
Queremos sambar, ioiô, queremos sambar, iaiá (1940)
É nítido o orgulho em ser brasileiro, mas a música traz também outro elemento.
O fato de não querer se curvar perante a cultura americana. Versos como “Eu quero ver
o tio Sam tocar pandeiro para o mundo sambar/ O Tio Sam está querendo conhecer a
nossa batucada/ Anda dizendo que o molho da baiana melhorou seu prato” procuram
justamente sugerir o oposto, ou seja, uma submissão dos americanos a nossa
“brasilidade”. Há até um questionamento do poder cultural hegemônico, enquanto
chama o povo para mostrar que temos uma identidade: “Chegou a hora dessa gente
bronzeada mostrar seu valor”. Tal identidade é relembrada pelo samba, pandeiro,
batucada, comidas típicas – temos enfim, nossos valores e uma expressão que não
encontramos em nenhum outro lugar.
Não muito mais tarde, esse questionamento vira insatisfação. O povo brasileiro
parece ter sofrido as consequências da desintegração da identidade – mencionado por
Hall – e em muitos momentos nossos representantes culturais não sentem mais orgulho
de sua nação.
Um exemplo claro aparece na música “Brasil”, do cantor e compositor carioca
Cazuza. Ele questiona quais são, de fato, nossos valores. Retiramos o trecho mais
significativo:
Brasil!
Mostra a tua cara
Quero ver quem paga
Pra gente ficar assim
Brasil!
Qual é o teu negócio?
O nome do teu sócio?
Confia em mim...
Grande pátria
Desimportante
Em nenhum instante
Eu vou te trair
Não, não vou te trair... (1987)
O poeta está perdido em meio à sua própria identidade nacional – “Qual é o teu
negócio?/ O nome do teu sócio?” –, mas quer continuar a se sentir ligado a ela – “Em
nenhum instante/ Eu vou te trair/ Não, não vou te trair”. O que vemos é um processo de
desestruturação da unidade, mas que ao mesmo tempo volta-se para o próprio
imaginário da pátria originária na busca por uma saída. É um movimento interessante,
pois revela que a condição de “comunidade imaginada” deixa resquícios, ainda persiste
de alguma maneira.
Já na letra “Que país é esse?”, de Renato Russo, do grupo Legião Urbana, esta
solução parece não ser mais encontrada:
Nas favelas, no Senado
Sujeira pra todo lado
Ninguém respeita a Constituição
Mas todos acreditam no futuro da nação
Que país é esse?
Que país é esse?
Que país é esse?
No Amazonas, no Araguaia iá, iá,
Na baixada fluminense
Mato grosso, Minas Gerais e no
Nordeste tudo em paz
Na morte o meu descanso, mas o
Sangue anda solto
Manchando os papeis e documentos fieis
Ao descanso do patrão
Que país é esse?
Que país é esse?
Que país é esse?
Que país é esse?
Terceiro mundo, se foi
Piada no exterior
Mas o Brasil vai ficar rico
Vamos faturar um milhão
Quando vendermos todas as almas
Dos nossos índios num leilão
Que país é esse?
Que país é esse?
Que país é esse?
Que país é esse? (1978)
As intervenções estrangeiras, a corrupção, a desigualdade social acabam
minando o orgulho do povo, provocam raiva e grande insatisfação. A letra indica que
não adianta ter as riquezas naturais se não respeitamos nossos próprios concidadãos, ou
seja, os índios. Curiosamente, o mesmo símbolo eleito de nosso Romantismo para
representação e exaltação da pátria.
A identidade cultural nacional está agora se esfacelando. Não há aqui qualquer
assimilação com a “comunidade imaginada” constituída no início do Romantismo.
Nossa noção de identidade nacional está, de fato, sendo questionada, pois os indivíduos
parecem não mais se identificar com os rumos que o país está tomando. Como
sobreviver a essa crise?
5. Conclusão
No jogo das identidades, o advento da globalização é determinante em especial a
partir da década de 1970. Para Hall, a facilidade e rapidez de comunicação entre grandes
distâncias têm influência direta na interação entre as diferentes identidades culturais.
Isso porque o tempo e o espaço têm seus significados alterados na pós-modernidade. As
barreiras estão todas líquidas – se quisermos usar a analogia de Bauman.
Além disso, o consumismo tem também papel importante no contexto da
globalização, na medida em que cria a possibilidade para as identidades partilhadas. Ou
seja, os produtos não são pensados para um povo ou uma nação específica, mas antes
para um grupo de consumidores que estão espalhados por todo o planeta e consomem os
mesmos bens. Os aparelhos eletrônicos, peças de vestuário, cosméticos e outros tantos
produtos podem ser direcionados a uma classe global específica contribuindo para a
formação do que Hall chama de “homogeneização global”.
Há ao mesmo tempo uma tensão entre o “global” e o “local”. Essa dialética
perdura e mostra mais uma vez que estamos definitivamente passando por um processo
de mudança. Podemos retornar às raízes ou incorporar finalmente uma identidade
multifacetada, deslocada, nômade. A resposta à “crise das identidades” não está pronta,
continua acontecendo.
Enfim, nossa proposta foi mostrar como ao longo da história brasileira alguns
textos trazem os aspectos indicados por Hall. Fica claro que nossa seleção é ínfima
perante um corpus tão vasto. Ao que podemos concluir que nossa intenção era de
elucidar a questão, contribuindo para um olhar diferente diante de nossas produções nas
letras. Esperamos, por fim, que nosso esforço tenha mostrado que é possível estabelecer
uma relação entre a produção cultural brasileira e as considerações a respeito das
identidades culturais sugeridas por Stuart Hall.
6. Bibliografia
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