Brasil - Abrigo Crianças e Jovens, Analisando o direito à convivência familiar

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM POLÍTICA SOCIAL MESTRADO EM POLÍTICA SOCIAL ANA PAULA GOMES DA SILVA ABRIGO: analisando o direito à convivência familiar DISSERTAÇÃO DE MESTRADO DEPARTAMENTO DE SERVIÇO SOCIAL PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS- GRADUADOS EM POLÍTICA SOCIAL NITERÓI  SETEMBRO/2008  

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    UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

    PROGRAMA DE ESTUDOS PS-GRADUADOS EM POLTICA SOCIAL

    MESTRADO EM POLTICA SOCIAL

    ANA PAULA GOMES DA SILVA

    ABRIGO:

    analisando o direito convivncia familiar

    DISSERTAO DE MESTRADO

    DEPARTAMENTO DE SERVIO SOCIAL

    PROGRAMA DE ESTUDOS PS-

    GRADUADOS EM POLTICA SOCIAL

    NITERI

    SETEMBRO/2008

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    UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

    PROGRAMA DE ESTUDOS PS-GRADUADOS EM POLTICA SOCIAL

    MESTRADO EM POLTICA SOCIAL

    ANA PAULA GOMES DA SILVA

    ABRIGO:

    analisando o direito convivncia familiar

    DISSERTAO DE MESTRADO

    DISSERTAO APRESENTADA AO

    PROGRAMA DE ESTUDOS PS-GRADUADOS

    EM POLTICA SOCIAL DA UFF COMO

    REQUISITO PARCIAL A OBTENO DO

    TTULO DE MESTRE EM POLTICA SOCIAL

    ORIENTADORA: Prof NVIA VALENA BARROS

    NITERI

    SETEMBRO/2008

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    UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

    PROGRAMA DE ESTUDOS PS-GRADUADOS EM POLTICA SOCIAL

    MESTRADO EM POLTICA SOCIAL

    ANA PAULA GOMES DA SILVA

    ABRIGO:

    analisando o direito convivncia familiar

    DISSERTAO DE MESTRADO

    DISSERTAO APRESENTADA AO

    PROGRAMA DE ESTUDOS PS-

    GRADUADOS EM POLTICA SOCIAL DA UFF

    COMO REQUISITO PARCIAL A OBTENO

    DO TTULO DE MESTRE EM POLTICA

    SOCIAL APROVADA PELA COMISSO

    EXAMINADORA ABAIXO ASSINADA.

    ORIENTADORA: Prof NVIA VALENA BARROS

    BANCA EXAMINADORA:

    Prof.Dr. MARIA EUCHARES MOTTA

    Prof.Dr. RITA DE CSSIA FREITAS

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    Todos os direitos reservados. proibida a reproduo total ou parcial do

    trabalho sem autorizao da universidade, da autora e do orientador.

    Ficha Catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoat

    S586 Silva, Ana Paula Gomes da.Abrigo: analisando o direito convivncia familiar / Ana Paula

    Gomes da Silva. 2008.

    152 f.

    Orientador: Nvia Valena Barros.

    Dissertao (Mestrado em Poltica Social) Universidade FederalFluminense, Escola de Servio Social, 2008.

    Bibliografia: f. 126-133.

    1. Infncia e juventude. 2. Famlia. 3. Poltica Social. 4. Abrigo.

    I. Barros, Nvia Valena. II. Universidade Federal Fluminense. III. Ttulo.

    CDD 301.45

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    DEUS,

    que sempre ilumina meus passos.

    Ao meu marido Marcos,

    Companheiro, amor, amigo de todas as horas

    que me ensina a ser forte e no desistir nunca.

    A minha av Conceio, minha me, meu porto seguro

    que me ensina a ser corajosa.

    A meus pais, Jorge e Rosngela,

    que me deram grandes exemplos de luta e superao.

    A meus sogros, Aldima e Adelino,

    sempre carinhosos e presentes.

    s minhas irms, Juliana e Rosana,

    pela presena sempre marcante em minha vida.

    A amiga Carol e cunhada Mariana,

    ambas irms de corao

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    AGRADECIMENTOS

    professora Nvia Valena Barros, orientadora deste trabalho, pela forma de

    ateno sempre crtica e enriquecedora.

    Carol, pela leitura crtica e reviso criteriosa deste trabalho.

    Aos professores do Mestrado pelo incentivo e dedicao que disponibilizaram a

    turma.

    Aos alunos do curso de Estudos Ps-Graduados em Poltica Social da UFF, em

    especial, Ariane, Juliana, Liandra, Mariza, Rosana e Tatiana, que participaram

    desta trajetria sempre demonstrando apoio e solidariedade.

    equipe da Casa Abrigo de Itatiaia pela abertura e disponibilidade em fornecer

    subsdios nossa pesquisa, assim como aos profissionais da SecretariaMunicipal de Promoo Social de Itatiaia.

    Ao Conselho Tutelar de Itatiaia, tambm pela abertura, disponibilidade e

    ateno.

    Aos companheiros da Rede Municipal de Ateno Criana e Adolescente de

    Itatiaia pelos momentos de fervorosa discusso sobre a temtica.

    E, especialmente, s crianas e adolescentes que exercitam seu poder de luta

    a cada dia numa instituio de abrigo.

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    RESUMO:

    A infncia e juventude viveram historicamente uma prtica de

    institucionalizao que se mantm at os dias atuais. O direito convivncia

    familiar de crianas e adolescentes que vivem em abrigos um fato ainda

    muito discutido, mas pouco implementado de fato devido precarizao scio-

    historica de polticas sociais voltadas para esta parcela da populao e para

    suas famlias. Aliam-se a este fato a precria capacitao e o pouco

    conhecimento das legislaes e determinaes legais sobre esta temtica por

    parte das instituies e seus profissionais. Desta forma o presente estudo

    busca analisar como vem se desenvolvendo o direito convivncia familiar das

    crianas e adolescentes institucionalizadas sob medida de proteo a partir da

    perspectiva profissional e das crianas e adolescentes envolvidos e da anlise

    scio-histrica das prticas de institucionalizao e da poltica scio-

    assistencial para esta parcela da populao.

    Palavras-Chave: Infncia e Juventude, Famlia, Poltica Social, Abrigo

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    ABSTRACT:

    Childhood and adolescence have lived, historically, an institutionalization

    practice up to at the present time. Family living rights of sheltered children and

    adolescents is a fact much discussed, but not really implemented due to the

    socio-historical precariousness of social policies addressed to this part of the

    population and their families. Along with part of the institutions and

    professionals, the precarious capacitating and the low knowledge about legal

    legislation and requirements about this theme goes with it. Therefore, the

    present study seems to analyze the way children and adolescent right of the

    institutionalized ones as protection measures from professional and children

    and adolescents perspective and the socio-historical analysis of

    institutionalization and social-populist politic directed to this part of the

    populations have been developing.

    Key Words:childhood and youth, family, social politics, refuge

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    A compreenso da problemtica em jogo, das

    relaes sociais, das foras em presena, da

    conjuntura, dos espaos institucionais, da contra-

    hegemonia, o que pode transformar o trabalho

    social num movimento real.

    (Vicente de Paula Faleiros)

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    LISTA DE SIGLAS

    ASG Auxiliar de Servios Gerais

    CMDCA Conselho Municipal de Direitos da Criana e do

    Adolescente

    CRAS Centro de Referncia de Assistncia Social

    CREAS Centro de Referncia Especializado de Assistncia Social

    CT Conselho Tutelar

    ECA Estatuto da Criana e do Adolescente

    LOAS Lei Orgnica da Assistncia Social

    PNAS Poltica Nacional de Assistncia Social

    PNCFC Plano Nacional de Convivncia Familiar e Comunitria

    SGD Sistema de Garantias de Direitos

    SUAS Sistema nico de Assistncia Social

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    LISTA DE QUADROS E TABELAS

    Brasil: distribuio de volunt. por funo desempenhada nos abrigos 44

    Mudanas ideolgicas trazidas pelo Paradigma da Proteo Integral 77

    Eixos estratgicos do PNCFC 78

    Principais atribuies e limites do Conselho Tutelar 93

    Responsabilidade Compartilhada 123

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    SUMRIO

    Introduo 13

    1.Famlia e Infncia: trajetrias e desafios 15

    1.1 Polticas Pblicas e Famlia: trajetria e limites 15

    1.2 A Prtica de Institucionalizao de Crianas: coisa do passado? 29

    1.3 A (Re) Construo atual da prtica de institucionalizao de crianas:

    alguns dados 36

    2. As Polticas Sociais para Infncia e Juventude na Contemporaneidade:

    Institucionalizao e Mudana de Paradigma 53

    2.1 Polticas Sociais para Crianas e Adolescentes institucionalizados:

    Evoluo da Poltica de Infncia e Juventude e a Mudana do Paradigma

    Legal no Brasil 53

    2.2 Polticas de Famlia e Assist. Social caractersticas e objetivos 65

    2.3 Uma nova tentativa: O Plano Nacional de Promoo, Proteo e

    Defesa do Direito de Crianas e Adolescentes Conv. Familiar e

    Comunitria 76

    3. O direito a convivncia familia nos abrigos em dados: a experincia de

    Itatiaia 84

    3.1 Trajetria Metodolgica 84

    3.2 O municpio de Itatiaia: contextualizao histrica e desenv. 89

    3.3 O direito a convivncia familiar no contexto histrico e local de Itatiaia

    a partir de alguns indicadores de anlise 95

    3.3.1. O direito a convivncia familiar pela tica dos profissionais 95

    3.3.2. O direito a convivncia familiar pela tica das crianas e

    adolescentes institucionalizados 117

    Consideraes Finais 122

    Referncias Bibliogrficas 126

    Anexos 134

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    INTRODUO

    A institucionalizao de crianas e adolescentes uma questo

    recorrente, ao menos, no ltimo sculo. Historicamente esta prtica se

    desenvolveu como medida assistencialista e autoritria impetrada contra as

    famlias pobres que, sob a justificativa da pobreza, tinham seus filhos

    separados de sua origem.

    Na atualidade, a prtica de institucionalizao de crianas e

    adolescentes ainda se mantm, ignorando-se o direito convivncia familiar,

    preconizado pela Constituio Federal e pelo Estatuto da Criana e do

    Adolescente. Muitas das motivaes para a institucionalizao permanecem as

    mesmas, girando em torno da pobreza, da falta de condies econmicas das

    famlias para cuidar de suas crianas.

    A partir das reflexes acerca desta temtica que se constri este

    estudo onde se procura enfocar como se processa o desenvolvimento e

    integrao social das crianas e adolescentes em situao de abrigo com suas

    famlias

    A iniciativa deste estudo parte de minha experincia profissional como

    assistente social junto Vara nica da Comarca de Itatiaia, onde atuo, entre

    outras, na Vara da Infncia e Juventude. Tal experincia com aes que

    envolviam crianas e adolescentes institucionalizados suscitou o desejo de

    estudar a forma como se desenvolvia e garantia o direito convivncia familiar

    no abrigo do municpio devido ao longo perodo de institucionalizao

    observado por mim nos estudos sociais realizados junto a esta demanda.

    Sendo assim, buscamos realizar um estudo/pesquisa que trouxesse a tona

    dados da realidade local junto demanda com o devido embasamento terico-

    metodolgico que permitisse uma leitura adequada desta realidade.

    Assim, no primeiro captulo buscou-se realizar uma pesquisa

    bibliogrfica a respeito do tema onde, inicialmente, procurou-se fazer um breve

    estudo dos conceitos e das polticas sociais desenvolvidas em torno dasquestes relativas famlia at ento formuladas e implementadas no pas. A

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    seguir foi realizada uma pesquisa bibliogrfica a respeito do tema

    institucionalizao de crianas e adolescentes onde se busca traar uma

    trajetria poltico-cultural desta prtica no pas, assim como foi trazida uma

    anlise em mbito nacional acerca do tema institucionalizao de crianas e

    adolescentes no pas.

    No segundo captulo buscou-se realizar uma discusso em torno das

    atuais polticas sociais para crianas e adolescentes, polticas de famlia e

    assistncia social, em especial luz do Plano Nacional de Promoo, Proteo

    e Defesa do Direito de Crianas e Adolescentes Convivncia Familiar e

    Comunitria formulado pelo governo federal e de suas metas, e do Estatuto da

    Criana e do Adolescente.

    O terceiro captulo abrange a pesquisa e avaliao dos dados coletados

    no abrigo do municpio de Itatiaia, regio sul-fluminense do estado, gerido pelo

    governo municipal, e no Conselho Tutelar deste municpio.

    Esta pesquisa qualitativa buscou analisar como vem se implementando

    o direito a convivncia familiar nos abrigos. Inicialmente, pretendamos realizar

    entrevistas com os profissionais do abrigo (equipe tcnica e coordenao) e

    com as crianas e adolescentes que se encontravam abrigados buscando dar

    voz aos anseios e desejos queles que se destina o direito a convivncia

    familiar. Entretanto, aps realizadas algumas entrevistas, notamos a ausncia

    de um ator importantssimo nesta discusso, o Conselho Tutelar, j que este

    em muito interage nos procedimentos de abrigamento no municpio. Sendo

    assim, realizamos tambm entrevistas com alguns representantes do Conselho

    Tutelar do Municpio de Itatiaia.

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    CAPTULO I

    FAMLIA E INFNCIA: TRAJETRIAS E DESAFIOS

    1.1 Polticas Pblicas e Famlia: trajetria e limites

    Ao discutir o tema famlia, pode-se observar que ao longo dos sculos

    foram traadas diversas concepes de famlia, e, conforme aponta ries

    (1981), principalmente, a partir do sculo XIX, as configuraes em torno da

    construo scio-histrica familiar vem assumindo diversas caractersticas, que

    vo do modelo padronizado de famlia burguesa nos moldes europeus, at

    outros tantos arranjos, vigentes em todo o mundo.

    O modelo europeu familiar de ncleo patriarcal foi importado ao longo

    das dcadas, chegando e se desenvolvendo nos pases perifricos de acordo

    com as caractersticas especficas de cada pas.

    No Brasil, este modelo de famlia nuclear chega como forte iderio a ser

    seguido. Entretanto, considerando a famlia nuclear burguesa, no podemos

    afirmar que este iderio tenha sido incorporado de fato, dadas as

    caractersticas do pas, de sua cultura e costumes j instalados e incorporados

    pela populao brasileira.

    Em nosso pas, as famlias podiam, at recentemente, ser

    caracterizadas, de forma geral, como patriarcais. O patriarcalismo foi uma das

    caractersticas de famlia que perdurou por muito tempo, e ainda se encontra

    presente, em diversos arranjos familiares. Este fator constitui uma das vrias

    dificuldades, em um cenrio complexo, para se conceituar as famlias

    brasileiras como em um nico modelo de padronizao

    a famlia patriarcal de que estamos falando uma espcie dematriz que permeia todas as esferas do social, a da poltica,

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    atravs do clientelismo e do populismo; a das relaes de trabalho

    e de poder, onde o favor e a alternativa da violncia preponderam

    nos contratos de trabalho e na formao dos feudos polticos,

    muito mais que a idia de direitos universais do cidado; e por fim,

    nas prprias relaes interpessoais em que a personalidadecordial do brasileiro impe pela intimidade e desrespeita a

    privacidade e a independncia do indivduo. Alm disso a matriz da

    famlia patriarcal, com sua tica implcita dominante, espraiou-se

    por todas as outras formas concretas de organizao familiar, seja

    a famlia dos escravos e dos homens livres no passado, seja a

    famlia conjugal mais recente.(ALMEIDA, 1987: 55)

    Nas famlias mais empobrecidas, a posio do homem provedor fora,muitas vezes, dividida com as mulheres, encaradas tambm como mo-de-

    obra, dividindo, ou seno, assumindo o papel de provedoras da casa e do

    sustento dos filhos. As crianas, em diversos perodos histricos, no

    necessariamente eram criadas no seio de sua famlia de origem, podendo ser

    criadas por toda uma comunidade atravs de laos de parentesco ou afinidade,

    passando de lar em lar durante sua infncia caracterizando o que Fonseca

    (1990) chama de circulao de crianas e, quando, no raramente, entravam

    precocemente no mercado de trabalho remunerado ou no.

    A circulao de crianas nos permite identificar o que alguns autores

    contemporneos1 conceituam como famlia na atualidade, onde se

    descaracteriza o lao consangneo como nica forma de identificao familiar.

    Segundo bibliografia pesquisada2, podemos identificar inmeros

    conceitos de famlia trabalhados. Entretanto, considerando sua utilizao na

    implementao de polticas pblicas, baseamo-nos no conceito de famlia

    trabalhado por Helosa Szymanski (2002: 9) onde compreende-se como

    famlia, uma associao de pessoas que escolhe conviver por razes afetivas e

    assume um compromisso de cuidado mtuo e, se houver, com crianas,

    adolescentes e adultos, podendo ter ou no laos de parentesco.

    Esta definio engloba inmeras possibilidades de arranjos e rearranjos

    familiares no sentido de incentivar a discusso e mudana do que, oficialmente,

    para fins de incluso em polticas pblicas, se considera famlia.

    1Ver: Brant de Carvalho, 2003; Freitas, 2000; Mioto, 1997.

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    Considerando a realidade brasileira, podemos observar a utilizao do

    conceito de famlia nuclear pelas polticas pblicas como uma ao pouco

    democrtica, j que nossa realidade familiar no est restrita a tal conceito.

    Mas tal conceituao encontra-se presente em diversos e diferentes contextos

    histricos do pas, que retrata um perfil societrio hierrquico e centralizador.

    Tendo como ponto de partida a Proclamao da Repblica, o Brasil

    herda uma tradio cvica pouco encorajadora (CARVALHO, 2006) aps

    sculos de colonizao, que deixaram, entre outras coisas, analfabetismo e

    escravido. A Primeira Repblica introduz um modelo federativo

    descentralizado, o que facilitou a formao de oligarquias estaduais,

    especialmente com a aproximao com as elites locais, que gera um re-

    ordenamento na estrutura de gesto estatal. A Primeira Repblica traz em seu

    contexto poltico-social a influncia do coronelismo que, segundo Carvalho era

    a aliana desses chefes polticos locais com os presidentes dos estados e

    desses com o presidente da Repblica (2006: 41). Esta relao de dominao

    exercida pelos coronis vinha carregada de uma legitimidade implcita,

    considerando-se os aspectos paternalistas existentes nas relaes de

    reciprocidade e de obrigaes mtuas inerentes a tais processos.

    Desta forma, ainda conforme Carvalho, no houve no Brasil, at 1930,

    movimentos populares exigindo maior participao eleitoral (2006: 42),

    situao influenciada, entre outras coisas, pelo lento e gradual processo de

    aprendizado democrtico que mantinha tenso o embate contra o

    conservadorismo e o colonialismo.

    Durante a Primeira Repblica (...) eram os chefes de polcia queinterferiam em casos de conflito, e sua atuao no era

    exatamente equilibrada. Ficou famosa a afirmao de um

    candidato presidncia da Repblica de que a questo social

    nome genrico com que se designava o problema operrio era

    questo de polcia. (CARVALHO, 2006: 63)

    Seguindo a tendncia mundial e os impactos dessas mudanas na

    2Ver: Sarti, 2003; Mioto, 1997; Brant de Carvalho, 2003; Almeida, 1987.

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    ordem poltica interna do pas, o Brasil comea a desenvolver seu sistema de

    proteo social que, segundo Pereira (2006:125) pode ser tipificada como um

    sistema de bem-estar perifrico, j que no trouxe como caractersticas

    fundamentais a poltica do pleno emprego, o universalismo dos servios sociais

    e o impedimento da queda e da reproduo da pobreza.

    Considerando a conjuntura poltico-social do Brasil, a mesma no seguiu

    a risca o modelo de polticas sociais nos pases capitalistas avanados, tendo

    seus momentos de expanso especialmente durante os regimes autoritrios e

    conservadores.

    Este fato denota, em parte, a influncia poltica que as prticas

    coronelistas e clientelistas tiveram e, ainda tm, em nossa cultura poltica.

    Demonstra ainda a dificuldade de organizao e mobilizao das classes

    trabalhadoras e mais pauperizadas da populao, tendo em vista que as

    medidas de desmobilizao dessas classes j eram postas em prtica desde o

    incio do sculo XX, e que durante o perodo de governo do ento Presidente

    Getlio Vargas (1930 - 1945) h a cooptao dos sindicatos dos trabalhadores

    e a criao os institutos profissionais, que vem gerar imensa estratificao da

    classe trabalhadora, alm de manter excludos os trabalhadores informais e os

    sem emprego.

    Assim, a proteo social no Brasil teve como perfil a regulao poltica,

    econmica e social. A partir da Revoluo de 1930, a poltica social era,

    especialmente, conquistada atravs de barganhas populistas entre o Estado e

    parcelas da sociedade, caracterstica que permaneceria imbricada nas polticas

    sociais at os dias atuais.

    Especialmente na Ditadura Vargas, implementou-se aes estatais

    bastante diferentes das anteriormente aplicadas, que eram baseadas no

    liberalismo econmico. Com Vargas, o Estado torna-se amplamente

    paternalista, transmutando a noo de direito, at ento pouco divulgada na

    sociedade, em benesse, dificultando, assim, a transformao do favor em

    direito, dificuldade ainda maior de mudana de mentalidade poltica, no s da

    classe poltica como tambm da populao beneficiada por estes favores.

    Ainda nos dias atuais, tal mentalidade permanece camuflada no

    desenvolvimento e implementao de polticas sociais, em especial as de nvellocal.

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    Aps o primeiro governo de Vargas, a meta do Estado passa a ser o

    desenvolvimento nacional, com nfase no aspecto econmico, como forma de

    impulsionar o crescimento do pas. Neste sentido, a poltica social passa a ter

    como objetivo central do governo, o desenvolvimento humano, assim como a

    incluso da questo da educao na agenda poltica, j que a necessidade de

    mo-de-obra qualificada era emergente. A, novamente, desvirtuando o objetivo

    das polticas sociais como direito, j que a motivao para o aumento do foco

    poltico na educao no a aceitao deste como um direito, mas sim uma

    necessidade de crescimento econmico.

    Conforme aponta Santos pode-se concluir que permanece a noo de

    cidadania destituda de qualquer conotao pblica e universal. Grande parteda populao pr-cvica e nela no se encontra intrnseca nenhuma pauta

    fundamental de direitos (SANTOS, 1987: 78).

    Dados os objetivos de modernizar aceleradamente a economia e

    aumentar as taxas de acumulao, nas dcadas de 1960 e 1970, as polticas

    governamentais no se propuseram a alterar significativamente a desigualdade

    social no pas. Passam, ao contrrio, a agir atravs de polticas compensatrias

    no sentido de amenizar os problemas sociais, sem o intuito, contudo, deinterferir na gnese destes problemas.

    As duas dcadas acima citadas foram marcadas internacionalmente,

    pelo desenvolvimento do padro do Welfare State, que nos pases mais

    desenvolvidos iniciou-se j nas dcadas de 1940 e 1950. Considerando todo o

    atraso e as distores da questo de direitos no Brasil, alguns autores, como

    Santos (1987), Carvalho (2006), Vianna (1998), Pereira (2006), entre outros,

    consideram que no pas tivemos um Estado de Bem Estar apenas perifrico, jque no desenvolvemos os direitos essenciais ao Welfare State, como em

    alguns pases europeus. Nestes, desenvolveu-se o Estado de Bem Estar

    denominado social-democrata, que trazia como principais caractersticas o

    rompimento com a determinao do mercado, o desenvolvimento de polticas

    sociais redistributivas e universalidade de acesso aos bens.

    Esta nova perspectiva poltico-ideolgica revela uma nova forma de

    relao entre Estado e mercado, com o Estado intervindo mais na economia e

    na rea social, atuando como provedor de bens e servios sociais. Este modelo

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    de Estado inaugura uma nova forma de entender e tratar das necessidades

    bsicas da sociedade, no considerando apenas os mnimos sociais, mas

    tendo como base os ideais de cidadania.

    O Estado passa a tratar no somente

    de polticas de manuteno de renda geralmente sob a forma de

    uma rede de segurana impeditiva do resvalo de cidados social e

    economicamente vulnerveis para baixo da linha da pobreza

    legitimada pela sociedade -, como outros mecanismos adicionais

    de proteo social como: servios sociais universais, proteo ao

    trabalho (em apoio ao pleno emprego) e garantia do acesso a

    esses bens e servios (PEREIRA, 2006: 112)

    No Brasil, a poltica social, independente das influncias do Welfare

    State internacional, manteve-se, em diversos contextos histricos, dependente

    da poltica econmica que acarretava um grande negligenciamento das efetivas

    garantias de suprir as necessidades bsicas da populao.

    O sistema de bem-estar brasileiro, diferentemente dos pases

    capitalistas avanados que surgiram longe de forte dependncia econmica ecolonialista, expressou as limitaes decorrentes destas dependncias,

    distanciando-se, em grande parte, das referncias do pleno emprego e dos

    servios sociais universalizantes.

    No Brasil, conforme apontam estudiosos da questo3, nunca se

    implementou de fato o Welfare State, como na Europa. Aqui, as estruturas e a

    cultura poltica dificultaram, se no impediram, que o Welfare State se

    desenvolvesse conforme se previa originalmente.

    O contexto poltico brasileiro na poca da implementao e

    desenvolvimento do Welfare State na Europa encontrava-se impregnado de

    uma cultura paternalista e clientelista que j vinha imbricada nas aes

    governamentais do Estado brasileiro,

    o caso brasileiro afigura-se como um misto ou combinao de

    elementos presentes na classificao de Esping-Andersen (1991),

    3Ver: Santos, 1987; Fleury, 1994.

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    a saber: intervenes pblicas tpicas e seletivas prprias dos

    modelos liberais -; adoo de medidas autoritrias e

    desmobilizadoras dos conflitos sociais tpicas dos modelos

    conservadores -; e, ainda, estabelecimento de esquemas

    universais e no contributivos de distribuio de benefcios eservios caractersticos dos regimes social-democratas. E tudo

    isso foi mesclado s prticas clientelistas, populistas, paternalistas

    e de patronagem poltica, de larga tradio no pas. (PEREIRA,

    2002: 127)

    Segundo nos aponta Draibe (1998), o contexto poltico nacional sempre

    apresentou tensas contradies em sua dinmica. Estas especialmente devido

    ao envolvimento de interesses de diversas categorias que, num sistema poltico

    que aliava movimentos to conservadores como o populismo, clientelismo e

    patrimonialismo, dificilmente seriam capazes de impedir a reproduo das

    distores que se apresentavam no desenvolvimento do Welfare State

    brasileiro.

    J na dcada de 1970, o Estado passa a intervir mais na criao e

    consolidao de polticas sociais como forma estratgica de responder a

    insatisfao da sociedade civil, como forma de reaproximar o Estado da

    sociedade. E no visando as satisfaes das necessidades bsicas, mas sim

    como meio poltico de manuteno do poder e das altas taxas de crescimento

    econmico.

    Neste perodo de mudanas polticas e estruturais h, visivelmente,

    alteraes no papel e na responsabilidade das famlias com relao proteo

    social de seus membros. A, se inicia um processo onde o Estado passa a se

    retirar do foco da proteo social, transferindo responsabilidades sociais para a

    sociedade e para as famlias.

    Tomando como foco o contexto mundial do ps-Welfare State pode-se

    identificar a famlia como um imprescindvel espao de proteo social, uma

    vez que o Estado vem se desresponsabilizando deste papel no sentido de

    comear a transformar-se no Estado Mnimo posteriormente consolidado.

    Considerando as mobilizaes da sociedade com o fim da ditadura

    militar, as polticas de proteo social tiveram grande visibilidade na dcada de1980, tendo pauta garantida nas discusses da agenda poltica que

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    determinaram a promulgao da Constituio Federal de 1988.

    Os conceitos de direitos sociais, seguridade social,

    universalizao, equidade, descentralizao poltico-

    administrativa, controle democrtico, mnimos sociais, dentre

    outros, passaram, de fato, a constituir categorias-chave

    norteadoras da constituio de um novo padro de poltica social a

    ser adotada no pas. (PEREIRA, 2006: 152)

    As inovaes trazidas pela Constituio Federal de 1988 trazem em seu

    bojo o carter redistributivista das polticas sociais, alm de maior

    responsabilidade pblica na sua regulao, produo e operao. Como coloca

    Draibe (1998: 16),

    a Constituio de 1988 registra:

    a ampliao e extenso dos direitos sociais;

    a concepo de seguridade social como forma mais

    abrangente de proteo;

    um certo afrouxamento do vnculo contributivo como princpio

    estruturante do sistema;

    a universalizao do acesso e a expanso da cobertura;

    a recuperao e redefinio de patamares mnimos comuns

    dos valores dos benefcios sociais e, enfim,

    um maior comprometimento do estado, projetando mesmo um

    acentuado grau de proviso estatal pblica de bens e servios

    sociais.

    Diante desta nova realidade trazida pela Constituio Federal, onde se

    viam garantidos os direitos bsicos da sociedade, os setores ligados ao

    neoliberalismo, em mbito internacional, trouxeram questionamentos quanto

    liberdade de mercado e superposio do Estado em relao garantia das

    necessidades bsicas.

    Este novo iderio traz, em mbito nacional, a incorporao das

    determinaes externas de mudanas polticas e econmicas, submetendo as

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    questes sociais a estas, levantando a bandeira da globalizao, da

    flexibilizao e da privatizao. Esta nova forma de gerir a poltica social no

    pas traz alteraes significativas na articulao entre Estado e sociedade no

    que se refere ao processo de proteo social, significando a diminuio do que

    se considera qualidade de vida e padres de cidadania para determinadas

    parcelas da populao.

    Este modelo adotado pelo Estado inicia um processo de grandes

    mudanas no pensamento poltico e econmico, passando a priorizar a

    promoo de polticas de liberdade econmica e individualismo, que traz em

    seu bojo aes de minimizao de benefcios sociais, degradao de servios

    pblicos, desregulamentao do mercado de trabalho, entre outros,

    o neoliberalismo descobre os perigosos efeitos do

    Welfare State. So eles: a desmotivao, a concorrncia

    desleal (porque protegida), a baixa produtividade, a

    burocratizao, a sobrecarga de demandas, o excesso de

    expectativas. O perigo est especialmente no impulso aos

    movimentos sociais em torno de suas demandas. E a

    concluso : mais mercado livre e menos Estado social.

    (BEHRING, 2003:58)

    No processo de constituio deste novo modelo poltico-econmico e

    ideolgico, o Estado tem sua condio de provedor de polticas sociais limitada,

    restringindo-se a tornar os territrios nacionais mais atrativos s inverses

    estrangeiras (BEHRING, 2003:59). relevante destacar tambm o surgimento

    do discurso da crise fiscal do Estado que vem a justificar o corte dos gastos

    sociais.

    Neste sentido, a famlia, como espao de proteo social, ganha novas

    responsabilidades e demandas. Porm, sem estrutura institucional que lhe

    embase as aes e necessidades,

    notrio o crescente interesse pela questo da famlia, asmudanas internas que vm sofrendo, suas funes e

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    configuraes, a redefinio dos papis dos seus membros, as

    relaes de gnero, assim como o reconhecimento de sua

    importncia na gesto e superao da crise de (mal) bem-estar em

    que se vive hoje. (FREITAS, 2000)

    Assim, pensar a famlia na contemporaneidade requer considerar os

    fatores relevantes de reestruturao produtiva, assim como o processo de

    retrao das aes sociais do Estado, que desloca a responsabilidade por suas

    aes a terceiros, ou seja, famlia e sociedade.

    Considerando o processo atual de reestruturao do trabalho, de

    extrema relevncia a manuteno dos vnculos com as redes primrias,

    sobretudo porque a famlia valoriza-se como espao de acolhimento,

    segurana e cuidado, de transmisso da cultura e valores, de garantia de

    educao (RIBEIRO, 2004: 660).

    Entretanto, podemos observar que, dadas as transformaes

    econmicas das ltimas dcadas, as comunidades vm sofrendo com um

    esgaramento dos vnculos familiares resultado do processo de

    empobrecimento e miserabilidade a que esto expostas s famlias no pas.Neste sentido, inclui-se a esta situao o processo ideologizante da cultura do

    individualismo, que prejudica ou interrompe o ciclo de solidariedade entre as

    redes primrias que se estabelecem entre famlias e comunidades,

    o Estado e a famlia desempenham papis similares, em seus

    respectivos mbitos de atuao: regulam, normatizam, impem

    direitos de propriedade, poder e deveres de proteo e assistncia.Tanto famlia quanto Estado funcionam de modo similar, como

    filtros redistributivos de bem-estar, trabalho e recursos. (BRANT

    DE CARVALHO 2005:268 APUD SOUZA 2000)

    Influenciado pelo iderio neoliberal que, j desde a dcada de 1980 se

    desenvolvia nos pases capitalistas avanados, o Estado brasileiro incorpora a

    noo de que a sociedade e a famlia deveriam partilhar com eleresponsabilidades antes exclusivas dos poderes pblicos,

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    mesmo sem se ter claro quem na sociedade deveria assumir

    responsabilidades antes pertencentes ao Estado, quem e com

    que meios financiaria a proviso social, e que formas de

    articulao seriam estabelecidas entre Estado e sociedade no

    processo de satisfao de necessidades sociais, foram concebidas

    frmulas que exigiam da sociedade e da famlia considervel

    comprometimento (PEREIRA, 2004: 31)

    Entretanto, a despeito do que se pretende com a poltica neoliberal,

    existem alguns limites aos quais a famlia encontra-se submetida, tais como o

    carter contraditrio dela mesma. No h, consenso em seu interior, ao

    contrrio, momentos de tenses e controvrsias que no a caracterizam como

    ambiente de proteo constante e linear.

    Conforme aponta Pereira (2004: 38) uma outra dificuldade, ao se eleger

    a famlia como fonte privilegiada de proteo social quanto s mudanas na

    sua organizao, gesto e estrutura.

    De acordo com o que j fora discutido inicialmente, existem vrios tipose conceitos de famlia, no podendo este complexo conceitual ser tratado e

    analisado homogeneamente.

    Neste sentido, o papel da proteo social para as famlias deveria ser o

    de oferecer-lhes alternativas realistas de participao cidad (PEREIRA,

    2004: 40) tendo em vista a multiplicidade de arranjos familiares e condies

    scio-econmicas reais em detrimento de exigir que as famlias assumam

    responsabilidades que extrapolam suas potencialidades.

    Segundo Sarti (2005), a famlia pobre no se constri como um ncleo,

    mas como uma rede, com ramificaes que envolvem a rede de parentescos

    como um todo configurando obrigaes morais e dificultando a

    individualizao. Desta forma, podemos entender que, no pas, dificilmente

    tenha se caracterizado o modelo de famlia nuclear j que a cultura e a

    situao econmica dificultavam este processo de individualizao necessrio

    caracterizao de tal modelo burgus.

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    Neste sentido, a importncia da famlia para os pobres est relacionada

    s caractersticas de nossas instituies pblicas, incapazes de substituir as

    funes privadas da famlia.

    Contexto caracterstico da dcada de 1990, onde as condieseconmicas, de reestruturao produtiva do trabalho e funcionamento do

    mercado trazem repercusses srias para as famlias afetando sua

    sobrevivncia material e alterando as redes de sociabilidade, identidades e

    representaes sociais existentes,

    no Brasil o processo de acirramento da desigualdade social

    expressa no empobrecimento da classe trabalhadora aliado a um

    quadro de desemprego, de desqualificao, precariedade e

    informalidade do trabalho reproduz a excluso social destes

    segmentos que, por sua condio de sujeito em desenvolvimento,

    depende essencialmente de sua famlia. (...) Na verdade, as

    condies sociais e econmicas refundam uma tendncia j

    historicamente predominante na sociedade brasileira, qual seja, a

    de resolver na esfera privada questes de ordem pblica. Na

    ausncia de direitos sociais na famlia que os indivduos tendem a

    buscar recursos para lidar com as circunstncias adversas. Dessa

    forma, as mais diversas situaes de precariedade social,

    desemprego, doena, velhice tenderam a ser solucionados na

    famlia, como responsabilidade de seus membros. (ALENCAR,

    2000: 73)

    Assim, permanece a tendncia de repassar quase exclusivamente

    responsabilidades para a famlia em situaes de vulnerabilidades sociais e oEstado tende a se desobrigar da reproduo social sob o discurso da

    solidariedade e da descentralizao.

    Neste contexto de repasse de responsabilidade, inclui-se tambm o

    processo poltico-ideolgico de individualizao da sociedade a que esto

    expostas as famlias atravs do trabalho e do incentivo ao consumo estimulado

    pelos meios de comunicao,

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    bom lembrar que tanto a famlia quanto o Estado so

    instituies imprescindveis ao bom funcionamento das sociedades

    capitalistas. Os indivduos que vivem em sociedade necessitam

    consumir, alm de bens e mercadorias, servios que no podem

    ser obtidos pela via do mercado. (BRANT DE CARVALHO, 2005:268)

    As aes das polticas sociais tm o objetivo de trabalhar com o resgate

    das competncias familiares, sendo autonomizadoras do ser humano. Porm,

    as polticas pblicas vm trabalhando numa perspectiva substitutiva.

    Esta cultura poltica de total descompromisso com os servios pblicos e

    sociais acarreta uma quase que total desassistncia populao que passa a

    enfrentar critrios cada vez mais rgidos de miserabilidade na tentativa de

    garantir seu direito de acesso aos programas sociais.

    As transformaes societrias vm afetando ideologicamente

    identidades, modos de vida e formas de sociabilidade, com as quais os mais

    prejudicados so a populao mais carente, a parcela mais excluda dos bens

    e servios da populao.

    Tenta-se, hoje, estabelecer uma parceria entre famlia, Estado e

    sociedade e para Pereira (1994),

    tal parceria s ser promissora se a famlia no substituir o

    Estado nas responsabilidades que lhe cabem, nem o Estado e a

    sociedade continuarem fazendo de conta que a famlia no mudou.

    Neste caso, para que a solidariedade informal dentro da famlia

    seja preservada, o Estado tem que fazer a sua parte, suprindo

    tradicionais deficincias das polticas pblicas com relao a

    membros especficos da famlia (...). O objetivo da participao dos

    Estados nacionais, como subsistemas das sociedades globais, no

    processo de valorizao da famlia deve, portanto, ser de

    incentivar a solidariedade familiar e a proteo primria que s a

    famlia pode oferecer no importa a configurao que tenha

    assumido , mas preservando sempre a margem de manobra e o

    desenvolvimento pessoal de todos os seus membros para podercompetir em p de igualdade no novo cenrio mundial ora em

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    evidncia. (PEREIRA, 1994: 112)

    O papel da famlia como espao de proteo primria historicamente

    dificilmente fora incentivado poltica e socialmente. Neste sentido, tivemos uma

    longa trajetria de um processo de institucionalizao de crianas e

    adolescentes, uma vez que suas famlias no eram consideradas aptas a

    exercer uma paternidade adequada e considerada responsvel. Assim, o Brasil

    conta com uma histria de prtica de atendimento institucional que j dura

    longos sculos.

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    1.2 A Prtica de Institucionalizao de Crianas: coisa do passado?

    Quando tratamos da institucionalizao de crianas no nosso pas como

    uma prtica recorrente durante mais de um sculo atrs, observamos, atravs

    de documentos e bibliografia especializada, que esta sempre foi uma prtica

    aplicada aos filhos de famlias pobres que necessitavam do auxlio do Estado.

    Nesta trajetria verificamos at os dias atuais prticas recorrentes que

    caracterizam as aes de atendimento infncia pobre no incio do sculo XX,

    que muitas vezes se desdobram em idias e prticas atuais no tocante ao

    atendimento institucional criana e ao adolescente.

    A questo central do abandono, e a conseqente institucionalizao de

    crianas e adolescentes, assim como no passado, se apresenta pelo fato de

    as normas, as leis e as prticas assistenciais, que alm de

    estigmatizarem os pobres com acusaes de irresponsabilidade e

    de desamor em relao prole, deram origem a uma perversidade

    institucional que sobrevive at nossos dias: paradoxalmente,desde os sculos XVIII e XIX, a nica forma de as famlias pobres

    conseguirem apoio pblico para a criao de seus filhos era

    abandonando-os. (VENNCIO, 1999:13).

    Se analisarmos as diversas formas de abandono de crianas e

    adolescentes, tambm, nos dias atuais, pelas formas de gesto poltica,

    justifica-se com culpabilizao, responsabilizao das famlias pelo abandono

    de sua prole. Todavia, tal abandono se inicia, em muitos dos casos, pela

    ausncia ou falta de efetividade de polticas pblicas. Segundo Barros (2005:

    112) o procedimento de abandono da criana no Brasil, desde sua

    colonizao, pode ser considerado como um processo freqente e continuado.

    Durante os sculos XIX e XX, crianas e adolescentes eram colocados

    em asilos e orfanatos sob a justificativa da pobreza ou orfandade, muito

    embora a maioria destas crianas tivesse famlia. Na trajetria de construo

    de direitos sociais e de polticas pblicas as demandas que levaram umnmero inestimvel de crianas brasileiras aos internatos dos sculos XIX e XX

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    no foram devidamente enfrentadas ao nvel das polticas pblicas (RIZZINI,

    2004: 14). Tal contexto contribuiu ainda mais para a to enraizada prtica de

    institucionalizao de crianas. A reverso de tal quadro encontra inmeras

    barreiras poltico-ideolgicas, que caminham para a tendncia de segregao,

    excluso e miserabilidade que se encontra submetida grande parte da

    populao brasileira.

    Neste sentido, com relao s famlias que abriam mo de seus filhos

    como forma de cuidado, as definies legais e regimentais estigmatizavam os

    protagonistas do abandono (VENNCIO, 1999: 17). Com o passar do tempo a

    prpria noo do abandono se altera, especialmente, com a criao de

    instituies de assistncia quando

    se, num primeiro perodo, o gesto de enjeitar o filho podia ser

    assimilado ao infanticdio, em outro, significava enviar a criana a

    uma instituio que cobria os gastos com roupas, medicamentos e

    contratao de ama-de-leite, sugerindo assim que o ato decorria

    da preocupao paterna ou materna em relao ao destino da

    prole (VENNCIO, 1999: 18)

    Assim, a opo poltica em no trabalhar a necessidade humana e sim

    criar mecanismos de controle da populao pauperizada marca a poltica

    assistencial da poca. A criao de abrigos para enjeitados cumpria assim um

    dupla funo crist: evitava o infanticdio e possibilitava que os cristos

    exercessem a caridade e o amor ao prximo (VENNCIO, 1999: 24).

    Conforme observamos na bibliografia especializada da poca, sculo

    XIX, havia determinao de

    que todos os meninos e meninas desamparados fossem

    assimilados condio de enjeitados. Embora a lei fizesse

    referncia a reentrega da criana aos respectivos pais, sem nus

    para estes ltimos, no deixa de ser trgico reconhecer que toda e

    qualquer criana pobre, para ser socorrida, era obrigada a entrar

    no circuito do abandono (...)

    No perodo ps-independncia, o padro indiferenciado da

    assistncia foi mantido no Brasil. Toda e qualquer criana pobre,

    para ser socorrida pelo hospital, devia ser registrada como

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    enjeitada. (VENNCIO, 1999: 34)

    A opo pelo modelo asilar de atendimento infncia no Brasil, desde o

    sculo XIX se pauta, especialmente, sobre a necessidade de prestar

    assistncia, porm com o objetivo de controle social da populao pobre, no

    muito diferente de outras pocas quando se tratava esta populao como

    perigosa.

    a ampla categoria jurdica dos menores de idade (provenientes

    das classes pauperizadas) assume, a partir da segunda metade do

    sculo XIX, um carter eminentemente social e poltico. Osmenores passam a ser alvo especfico da interveno

    formadora/reformadora do Estado e de outros setores da

    sociedade, como as instituies religiosas e filantrpicas.

    (RIZZINI, 2004: 22)

    Desta forma, a prtica de recolhimento de crianas em instituies se

    desenvolveu como principal instrumento de assistncia infncia no Brasil.Com o passar dos anos a categoria de internatos caiu em desuso para a

    populao mais abastada, para os filhos de ricos. Entretanto, permanece como

    prtica recorrente para a populao pobre, at hoje considerados como no

    sculo XIX, como ameaadores da ordem social, da sociedade.

    O incio do sculo XX foi marcado por diversas iniciativas, como a

    atuao do Estado no planejamento e implementao de polticas e aes

    voltadas causa do menor abandonado. Foi neste perodo que se deu acriao do 1 Juzo de Menores do pas e a aprovao do Cdigo de Menores,

    em 1927.

    O Juzo de Menores, na pessoa de Mello de Mattos, estruturou

    um modelo de atuao que manteria ao longo da histria da

    assistncia pblica no pas at meados da dcada de 1980,

    funcionando como rgo centralizador do atendimento oficial ao

    menor no Distrito Federal, fosse ele recolhido nas ruas ou levadopela famlia. O juzo tinha diversas funes relativas vigilncia,

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    regulamentao e interveno direta sobre esta parcela da

    populao, mas a internao de menores abandonados e

    delinqentes que atraiu a ateno da imprensa carioca, abrindo

    espao para vrias matrias em sua defesa, o que, sem dvida,

    contribuiu para a disseminao e aceitao do modelo. Pelacrescente demanda por internaes desde a primeira fase do juzo,

    percebe-se que a temtica popularizou-se tambm entre as

    classes populares, tornando-se uma alternativa de cuidados e

    educao para os pobres, particularmente para as famlias

    constitudas de mes e filhos (RIZZINI, 2004: 29 e 30).

    Entretanto estas famlias eram representadas de forma negativa pela

    poltica de assistncia infncia, consideradas incapazes de manter seusmembros junto a si, de educar e disciplinar seus filhos. Este mito de

    desorganizao familiar dos pobres se constri paralelamente a constituio da

    assistncia social no pas por parte do Estado, tendo por prtica a

    desqualificao pessoal e familiar em suas aes e atendimentos sociais aos

    necessitados.

    Legalmente, com o passar dos anos, o Estado permanece a confirmar e

    reforar a concepo que julga incapazes as famlias pobres de educar seus

    filhos, haja visto o Cdigo de Menores promulgado em 1979 que cria a

    denominao menor em situao irregular, vindo a to somente manter a

    concepo at ento vigente no antigo Cdigo de 1927 que submetia as

    famlias pobres a interveno desmedida do Estado.

    Todavia, esta legislao trouxe muitos questionamentos, especialmente,

    dada a conjuntura desta poca. Conforme j apontado anteriormente, o pas

    vivia intensa contestao poltica e social, especialmente com os movimentos

    pr-democracia que exigiam o fim da ditadura militar. Neste bojo,

    crescia o entendimento de que o tema era cercado de mitos,

    como o de que as crianas denominadas de menores

    institucionalizadas ou nas ruas eram abandonadas; o mito de

    que se encontravam em situao irregular (Cdigo de Menores:

    1979), ou de que a grande maioria fosse composta por

    delinqentes (RIZZINI e RIZZINI, 1991: 75).

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    E tomava corpo a compreenso de que o foco deveria recair sobre as

    causas estruturais ligadas s razes histricas do processo de desenvolvimento

    poltico-econmico do pas, tais como a m distribuio de renda e a

    desigualdade social.

    Diante desta conjuntura que trazia uma abertura poltica, contando ainda

    com intensa participao da sociedade civil atravs de organizaes no-

    governamentais, que se criam as bases para a implementao da nova lei

    que entraria em vigor o Estatuto da Criana e do Adolescente. O que

    promove um processo de abertura das imensas instituies de internao de

    crianas e adolescentes na comunidade, resultado de um incio de mudana na

    forma de atendimento infncia no Brasil que priorizavam a manuteno da

    criana em meio social, em suas famlias.

    Os anos trouxeram o empenho e a dificuldade na implementao do

    ECA. Este trazia considerveis mudanas a respeito da internao de crianas

    e adolescentes de acordo com a medida aplicada. O abrigo passa a ser uma

    medida de carter provisrio e excepcional, aplicado como forma de proteo

    criana e ao adolescente em situao considerada de risco pessoal e social; e

    a internao, somente para adolescentes, como uma medida de carter scio-

    educativo de privao de liberdade.

    A dificuldade na implementao do ECA quanto questo da

    institucionalizao se d, em certa medida, a em uma tendncia social em

    fazer crer que os ndices de violncia e criminalidade diminuiriam atravs do

    recolhimento e confinamento de jovens e crianas considerandos em situao

    de risco em instituies, descaracterizando a provisoriedade e

    excepcionalidade da medida de abrigo.

    Neste sentido, a sociedade passa a cobrar medidas, ditas mais

    enrgicas, do Estado com vistas a livr-los do incmodo que traz a infncia

    pobre. Isto porque, segundo dados do IPEA, as crianas e adolescentes que se

    encontram abrigados no pas so, prioritariamente, pobres, estando inclusive

    nesta situao sob a justificativa da pobreza. Porm, tal viso negligencia

    assim o disposto no art. 23 do ECA, onde se afirma que a falta de condies

    econmicas no caracteriza motivo para o afastamento do convvio familiar de

    crianas e adolescentes.O ECA traz dispositivos que garantem o convvio familiar e comunitrio

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    onde afirma que:

    As entidades que desenvolvem programas de abrigo devero

    adotar os seguintes princpios: I preservao dos vnculos

    familiares; II integrao em famlia substituta, quando esgotados

    os recursos de manuteno na famlia de origem; III atendimento

    personalizado e em pequenos grupos; IV desenvolvimento de

    atividades em regime de co-educao; V no desmembramento

    de grupo de irmos; VI evitar, sempre que possvel, a

    transferncia para outras entidades de crianas e adolescentes

    abrigados; VII participao na vida da comunidade local; VIII

    preparao gradativa para o desligamento; IX participao de

    pessoas da comunidade no processo educativo. (ECA, artigo 92)

    Entretanto, a realidade pode no estar de acordo com o determinado

    pela legislao anteriormente citada. Observada a inexistncia de dados

    referentes s instituies de abrigamento e populao atendida,

    acredita-se que a maior parte dos grandes internatos

    conhecidos como orfanatos tenha sido desativada. No se sabeao certo se esta informao verdadeira. Em seminrios e

    debates, ocorridos em diferentes estados, ouve-se falar que

    diversas instituies mantm o tipo de atendimento asilar do

    passado, embora sejam denominadas de abrigos. (RIZZINI,

    2004: 49)

    Conforme podemos observar, a questo da prtica de abrigamento de

    crianas e adolescentes encontra-se em meio a inmeras dificuldades, como asituao de pobreza e conflitos familiares que, na realidade, impedem o

    convvio familiar de crianas e adolescentes; os problemas das entidades como

    a superlotao, a alta rotatividade dos abrigados, a falta de continuidade no

    atendimento de crianas e adolescentes e suas famlias, entre outras.

    Desta forma, a instituio que oferece medida de abrigo como medida

    temporria de afastamento da famlia resultantes de situaes consideradas de

    risco, permanece com atuao semelhante aos antigos internatos que nunca

    tiveram carter de poltica pblica e nem to pouco visavam a reintegrao

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    familiar. Consideravam a famlia inapta, culpada pela situao de misria e

    pobreza vivenciada pelas crianas e adolescentes, conforme hoje,

    recorrentemente, observamos nas instituies de abrigo.

    As caractersticas assistencialistas e autoritrias que fundaram a poltica

    de infncia no Brasil permanecem de forma histrico-cultural confrontando-se

    diariamente com a poltica contempornea que visa garantir a promoo do

    desenvolvimento integral de crianas e adolescentes.

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    1.3 A (Re) Construo atual da prtica de institucionalizao de crianas:

    alguns dados

    Diante da histrica prtica de institucionalizao de crianas e

    adolescentes no Brasil, o Estatuto da Criana e do Adolescente surge em meio

    s mobilizaes pr-democracia do final da dcada de 1980, que trazem em

    seu bojo as discusses de mudana e aprovao da Constituio Federal de

    1988. Neste sentido, tanto a Constituio Federal quanto o ECA asseguram

    como direitos fundamentais de crianas e adolescentes a convivncia familiar4,

    oferecendo, nos casos de abrigamento, incentivo manuteno e

    fortalecimento dos vnculos familiares e, quando no for possvel, promover a

    insero em famlia substituta o mais breve possvel.

    Estas duas legislaes iniciam um processo de intensas mudanas e

    reviso das prticas adotadas no desenvolvimento das aes para crianas e

    adolescentes no pas. Entretanto, este processo, passados 17 anos da

    promulgao do ECA e 18 anos da Constituio Federal, ainda no se

    consolidou, no conseguindo impor a reordenao das aes necessrias

    implementao da lei, de fato.

    O Estatuto da Criana e do Adolescente, em seu art. 101, pargrafo

    nico, define a medida de abrigo como medida provisria e excepcional,

    utilizvel como forma de transio para colocao em famlia substituta, no

    implicando privao de liberdade.

    Na busca pela reordenao exigida pela lei, nos casos do atendimento

    em instituies que oferecem medida de abrigo, h que se considerar alguns

    princpios como, por exemplo, a substituio da tendncia assistencialista por

    propostas de carter scio-educativo e emancipatrio; prioridade manuteno

    da criana e do adolescente na famlia e na comunidade, buscando-se prevenir

    o abandono; garantia do pleno desenvolvimento fsico, mental, moral e social

    s crianas e aos adolescentes em condies de liberdade e dignidade;

    garantia de que o abrigo seja de fato uma medida de proteo social

    4Art. 227 da Constituio Federal e art. 4 e 19 do Estatuto da Criana e do Adolescente.

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    caracterizada pela provisoriedade.

    Buscando avaliar tais medidas no pas, foi realizado no ano de 2002 o

    Levantamento Nacional dos Abrigos para Crianas e Adolescentes da Rede

    de Servio de Ao Continuada5.

    Este levantamento examina a situao de instituies que tm a

    responsabilidade de cuidar de uma parte das crianas e

    adolescentes do Brasil (...) O que se analisa nesta pesquisa so as

    condies do atendimento nessas instituies, luz dos princpios

    do ECA, com nfase na garantia do direito convivncia familiar e

    comunitria (SILVA, 2004: 17 e 18)

    Este Levantamento coloca-se diante de inmeras dificuldades. Uma

    delas refere-se tendncia nacional em avaliar os objetivos de programas e

    projetos, limitando a avaliao a um conjunto de medidas de aferio de

    objetivos com baixa referncia social ou poltica (LOBATO, 2004: 96), em

    detrimento da utilizao da avaliao como um poderoso instrumento de

    melhoria das condies de exerccio da coisa pblica (...), um mecanismo

    privilegiado nas relaes entre Estado e sociedade (LOBATO, 2004: 96).

    Segundo coloca Souza (2003), este trabalho, o Levantamento Nacional

    dos Abrigos para Crianas e Adolescentes da Rede de Servio de Ao

    Continuada, busca no se limitar exclusivamente aos fracassos da poltica,

    mas procuro centrar esforos para uma avaliao em que pesem as questes

    polticas de deciso, elaborao e implementao da poltica de proteo social

    infncia e adolescncia no Brasil, especialmente, as medidas de abrigo.

    Neste levantamento foram avaliadas quinhentas e oitenta e nove

    instituies que oferecem medida de abrigo vinculadas Rede SAC no pas,

    que, no momento da pesquisa, abrigavam 19.373 crianas e adolescentes.

    Partindo dos dados levantados pelo Levantamento Nacional dos

    Abrigos para Crianas e Adolescentes da Rede SAC, buscamos avaliar em

    5A Rede de Servios de Ao Continuada (SAC) uma ao da esfera federal na rea deassistncia social, incluindo-se na modalidade servios assistenciais, juntamente com oatendimento de crianas em creches (SAC/Creche), com os servios de habilitao e

    reabilitao de pessoas portadoras de deficincias (SAC/PPD) e com atendimento a idosos emasilos ou em meio aberto (SAC/Idosos). As caractersticas bsicas destes servios so oatendimento continuado e a definio de recursos em valoresper capit.

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    que medida as entidades que oferecem medida de abrigo priorizam a

    convivncia familiar segundo as orientaes do ECA, a partir de alguns

    indicadores de avaliao baseados nos dados da referida pesquisa.

    Os indicadores utilizados neste trabalho limitam-se a uma breve

    avaliao de como vem se dando o incentivo convivncia familiar nos abrigos

    pesquisados, no utilizando, portanto, todos os indicadores em que se baseia a

    referida pesquisa. Os indicadores utilizados foram: nmero de crianas e

    adolescentes abrigados, idade, grau de escolarizao, motivos apontados para

    o abrigamento, tempo de permanncia na instituio, situao familiar e

    jurdica, definio do conceito de famlia, atuao dos recursos humanos na

    instituio, incentivo a manuteno do vnculo familiar, conhecimento do

    Estatuto da Criana e do Adolescente, e, por ltimo, dificuldades apontadas na

    reinsero familiar.

    Considerando o perfil da populao brasileira, temos que 34% desta

    composta de crianas e adolescentes, cerca de 57,1 milhes de pessoas.

    Segundo dados do IBGE, aproximadamente metade destas crianas e

    adolescentes pode ser considerada pobre ou miservel, utilizando como critrio

    rendaper capitainferior a meio salrio mnimo.

    Referindo-se pesquisa realizada pelo IPEA, existiam nos 589 abrigos

    pesquisados, no ano de 2002, cerca de 20.000 crianas e adolescentes

    abrigadas em todo o pas na Rede SAC. Com relao idade, mostrou-se que

    mais da metade das crianas e adolescentes tm entre 7 e 15 anos de idade,

    estando em idade escolar de nvel fundamental.

    Este dado pode demonstrar as dificuldades enfrentadas pelas famlias no

    acesso a equipamentos pblicos de apoio s mes e aos pais trabalhadores,

    que oferecem proteo e cuidados a crianas a partir de 7 anos, servios que

    s so oferecidos nas creches para crianas de 0 a 6 anos, que, aliada a

    outras condies, pode gerar situaes consideradas negligentes com a

    criana e o adolescente.

    Tendo em vista o estigma interposto sobre as famlias pobres brasileiras de

    no ter condies de cuidar de seus filhos, justifica-se o no direito a manter

    vnculos com seus filhos, devido situao de vulnerabilidade a que esto

    circunscritos. Entretanto, como observa Faleiros (2004), no possveldissociar o padro de convivncia familiar das questes mais amplas de

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    frustrao, humilhao, reduo dos direitos sociais e privao causadas pelo

    desemprego e pela diminuio do papel do Estado na garantia da

    sobrevivncia das famlias por meio da proviso de polticas sociais.

    Diante das dificuldades estruturais que as famlias pobres vivenciam, de grande

    violncia estrutural, observa-se uma transferncia de responsabilidade para a

    esfera privada (da famlia) das responsabilidades at ento assumidas pela

    esfera pblica, num avano social que trouxe inmeras conquistas.

    (...) a famlia se encontra muito mais na posio de um sujeito

    ameaado do que de instituio provedora esperada. E

    considerando sua diversidade, tanto em termos de classes sociais

    como de diferenas entre os membros que a compem e de suasrelaes, o que temos uma instncia sobrecarregada, fragilizada

    e que se enfraquece ainda mais quando lhe atribumos tarefas

    maiores que a sua capacidade de realiz- la. (CAMPOS e MIOTO,

    1998: 37)

    Neste bojo que se remete o tradicional atendimento institucional a

    crianas e adolescentes em situao de vulnerabilidade, baseado na

    desqualificao da parcela da populao a que pertencem suas famlias.

    Entre os principais motivos do abrigamento de crianas e adolescentes

    pesquisados esto: carncia de recursos materiais da famlia (24,1%);

    abandono pelos pais ou responsveis (18,8%); violncia domstica (11,6%);

    dependncia qumica de pais ou responsveis (11,3%); a vivncia da rua

    (7,0%); a orfandade (5,2%); a priso dos pais ou responsveis (3,5%) e o

    abuso sexual praticado pelos pais ou responsveis (3,3%).

    Pelo menos quatro dos fatores acima citados esto relacionados pobreza, contrariando o disposto no ECA, que em seu art. 23, pargrafo nico,

    determina que condio financeira no ser critrio para perda ou suspenso

    do poder familiar. Esta constatao leva ao

    questionamento sobre os limites das instituies em seu papel de

    incentivar o retorno da criana convivncia familiar e em fazer

    cumprir o princpio da brevidade da medida de abrigo. Isto porque,se o empobrecimento das famlias est na raiz da medida de

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    abrigo, difcil supor que intervenes pontuais famlia ou ao

    violador de direitos possam estancar os problemas que levaram a

    criana ou adolescente ao abrigo. (SILVA, 2004)

    Desta forma, a equao do problema pode estar no desenvolvimento depolticas pblicas abrangentes voltadas famlia conforme j dispunha a

    Constituio Federal em seu art. 266 quando afirma que o Estado assegurar a

    assistncia famlia na pessoa de cada um dos que a integram, criando

    mecanismos para coibir a violncia no mbito de suas relaes.

    Entretanto, a partir dos anos 1990, contrariamente ao que determina

    nossa Constituio Federal, no processo de constituio de um novo modelo

    poltico-econmico e ideolgico, o Estado tem sua condio de provedor depolticas sociais limitada, restringindo-se a tornar os territrios nacionais mais

    atrativos s inverses estrangeiras (BEHRING, 2003:59). Com o surgimento

    do discurso da crise fiscal do Estado, onde se buscou diminuir os gastos

    sociais encobrindo as reais intenes de diminuio do custo do trabalho em

    funo da redistribuio destes gastos em prol do empresariado.

    Quando se trata do tempo de permanncia nas instituies, observa-se

    que mais da metade das crianas e adolescentes encontra-se nas instituiesh mais de 2 anos, estando 32,9 % institucionalizados entre 2 e cinco anos,

    13,3 % esto nos abrigos entre 6 e 10 anos e 6,4 % h mais de 10 anos

    abrigados.

    Como podemos observar, o fato de mais da metade das crianas e

    adolescentes institucionalizados estar h mais de dois anos nesta situao

    denota a existncia de alguns fatores determinantes, como o acolhimento nos

    abrigos sem deciso judicial; a falta de uma fiscalizao mais contundente porparte do Judicirio, do Ministrio Pblico e dos Conselhos Tutelares; a

    inexistncia, muitas vezes, de profissionais capacitados para realizar

    intervenes no ambiente familiar dos abrigados; a colocao de crianas e

    adolescentes em abrigos fora de seus municpios; o entendimento equivocado

    de alguns profissionais de que o abrigo o melhor lugar para as crianas e

    adolescentes; ausncia de polticas pblicas ou apoio s famlias; utilizao

    indiscriminada da medida de abrigamento pelo Conselho Tutelar.Ainda segundo o Levantamento Nacional, apenas 54,6% das crianas e

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    adolescentes institucionalizados tinha processo nas Varas da Justia, isto

    quando o art. 93 do Estatuto da Criana e do Adolescente determina que as

    instituies que oferecem medida de abrigo devem comunicar Justia sobre

    crianas e adolescentes acolhidos em seus programas sem medida judicial em

    at 2 dias teis.

    Neste sentido devemos observar que, na aplicao destas medidas, os

    rgos competentes devem considerar que a mesma tem como objetivo a

    proteo da criana ou adolescente podendo ser aplicada de maneira isolada

    ou cumulativamente, ou vrias medidas ao mesmo tempo, com o intuito de

    proteo e de sanar a situao de risco a que as crianas e adolescentes

    estavam sendo submetidas.

    Com relao situao familiar, a pesquisa demonstrou que 87% das

    crianas e adolescentes pesquisados tm famlia, sendo que 58,2 % mantm

    vnculo com seus familiares, que os visitam periodicamente. 22,7% no

    mantm vnculo constante, a famlia aparece para visitas esporadicamente.

    Segundo a pesquisa, apenas 11,3 % do total das crianas e adolescentes

    pesquisados no tm famlia ou a mesma encontra-se desaparecida.

    Neste contexto, considerando que as medidas de abrigo so medidas de

    proteo e devem, de acordo com a necessidade, ser aplicadas juntamente

    com outras medidas sociais, no podemos afirmar que tal trabalho de proteo

    e resgate de direitos esteja sendo realizado de forma adequada j que a maior

    parte das crianas e adolescentes tm famlia, mas permanecem abrigadas. As

    situaes de pobreza e das condies econmicas, presentes nas situaes de

    abrigamento evidenciam a ausncia de uma estrutura de proteo social mais

    efetiva que d conta, minimamente, de gerar condies sociais bsicas

    necessrias manuteno das crianas e adolescentes em seus lares.

    Diante de tal avaliao deve ser considerado um outro ponto pesquisado

    neste Levantamento Nacional de bastante relevncia na atuao das

    instituies que oferecem medida de abrigo que com relao aos

    profissionais atuantes nestas e a forma de atuao destes considerando os

    modelos de famlia adotados no trabalho nos abrigos

    At fins do sculo XIX a ateno infncia e adolescncia

    desamparados, como eram caracterizados, era feita atravs de entidadesreligiosas e beneficentes. J no sculo XX surge a necessidade de maior

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    controle sobre as aes que no partiam do governo, transformando-as em

    aes estatais. Assim, comearam a ser introduzidos critrios tcnico-

    cientficos no atendimento s crianas e adolescentes.

    Com a consolidao do Estatuto da Criana e do Adolescente e as

    mudanas estimuladas pelos movimentos sociais, surge na agenda de

    discusso da questo da garantia de direitos infncia e adolescncia,

    exigindo novas estratgias na preveno ao abandono e colocando na pauta a

    necessidade de as medidas de abrigo acontecerem de forma aberta e

    promotora de cidados, priorizando a garantia do direito a convivncia familiar

    e comunitria.

    Segundo considerou a pesquisa,

    os profissionais das entidades que oferecem programas de

    abrigo passam a ter o papel de educadores, o que requer no

    apenas profissionalizao na rea, mas tambm a existncia de

    uma poltica de Recursos Humanos que envolva seleo

    adequada; capacitao permanente, considerando as

    peculiaridades e dificuldades do trabalho desenvolvido; incentivos

    e valorizao, o que tambm inclui uma remunerao adequada.

    (SILVA E MELLO, 2004: 103)

    Assim, considerando o papel estratgico das instituies de abrigo na

    implementao de uma parte da poltica destinada s crianas e adolescentes

    que necessitam de proteo, imprescindvel conhecer e avaliar o trabalho dos

    profissionais que atuam nestas instituies.

    Com relao aos dirigentes das instituies, a pesquisa revelou que

    60,4% so mulheres e 38,9% so homens, ambos com mdia de 48,6 anos de

    idade. No que se refere escolaridade observou-se que 42,8% deles tm

    ensino superior completo; 18% cursaram ps-graduao e 9,2% no

    concluram o ensino superior. Dentre os demais, 21,4% concluram o ensino

    mdio, sendo que apenas 7,6% possuem escolaridade inferior ao ensino mdio

    completo.

    Quanto ao tipo de profisso/ocupao dos dirigentes pesquisados

    constatou-se que 24,8% possui formao ou ocupao no mbito das cinciassociais ou humanas, destacando-se os assistentes, que correspondem a 10,7%

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    do total. Os profissionais do ensino correspondem a 22,8% do total de

    dirigentes e os profissionais que se auto denominaram religiosos correspondem

    a 11,7% do total de dirigentes.

    Considerando a peculiar situao das crianas e adolescentes em

    situao de abrigo, as instituies que oferecem tal medida devem contar com

    profissionais necessrios para o atendimento cotidiano dos abrigados. Tendo

    em vista as diretrizes do ECA, o atendimento em regime de abrigo requer trs

    grupos bsicos de recursos humanos.

    1 Equipe tcnica de carter multidisciplinar;

    2 Responsveis pelo cuidado direto e cotidiano das crianas e

    adolescentes abrigados;

    3 Pessoal de apoio operacional que desempenha as atividades de

    organizao diria e manuteno do abrigo.

    De acordo com o Levantamento Nacional, foram encontrados 16.432

    profissionais nas instituies pesquisadas. Destes, 25,5% eram responsveis

    pelos cuidados diretos com as crianas e adolescentes; 21,2% eram de apoio

    operacional e 11,3% faziam parte da equipe tcnica. Os 42% restante estavam

    identificados com atividades de administrao institucional, servios

    especializados e servios complementares.

    Em relao ao vnculo empregatcio, 59,2% do quadro de funcionrios

    dos prprios abrigos, enquanto 25,3% so voluntrios e 15,5% atuam por meio

    de convnios ou parcerias. Como principal motivao para trabalhar no abrigo,

    a humanitria foi citada por 44,3% dos dirigentes pesquisados.

    Neste ponto da avaliao realizada pelo IPEA cabe uma anlise da

    insero do voluntariado nos abrigos considerando o dado de granderelevncia anteriormente exposto.

    Segundo revelou a pesquisa, 64% dos abrigos pesquisados declararam

    trabalhar com servio voluntrio, estando 58% deste total na regio sudeste do

    pas, regio que mais recorre ao trabalho no-remunerado. Notamos tambm

    que 88% destas instituies so no-governamentais, sendo que, com relao

    religio, 78% declararam possuir laos com instituies confessionais,

    estando 44% inspiradas na religio catlica, 14% na religio evanglica e 11%baseadas na doutrina esprita.

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    Os voluntrios que atuam nas instituies de abrigo no pas somam 35%

    do total de trabalhadores destas instituies, prestando, assim, servios

    gratuitamente.

    A tabela a seguir nos mostra um pouco da dimenso do trabalhovoluntrio nos abrigos do pas:

    Brasil: distribuio dos voluntrios por funo desempenhada nos

    abrigos

    Funo desempenhada no abrigo

    N de

    voluntrios

    (A) Percentual

    Total de

    Profissionais

    (B)

    Percentual

    (A/B)

    Equipe tcnica 462 11,2% 1.325 34,9%

    Assistente social 84 2,0% 361 23,3%

    Coordenador tcnico 30 0,7% 171 17,5%

    Nutricionista 82 2,0% 126 65,1%

    Pedagogo 81 2,0% 231 35,1%

    Psiclogo 184 4,5% 431 42,7%

    Assessor de coordenao - 0,0% 1 0,0%Psicopedagogo 1 0,0% 3 33,3%

    Tcnico em nutrio - 0,0% 1 0,0%

    Cuidado direto 286 6,9% 2541 11,3%

    Educador/ monitor/ pajem/ cuidador 227 5,5% 2258 10,1%

    Pai/ me social 59 1,4% 283 20,8%

    Apoio operacional 213 5,2% 2.308 9,2%

    Auxiliar de servios gerais (faxineiro,zelador,jardineiro, auxiliar de limpeza

    etc.) 90 2,2% 1.236 7,3%

    Cozinheiro 39 0,9% 571 6,8%

    Motorista 66 1,6% 277 23,8%

    Segurana/ vigia 18 0,4% 223 8,1%

    Coordenador de servios gerais - 0,0% 1 0,0%

    Administrao institucional 1.053 25,5% 2.054 51,3%

    Administrador/ gerente 278 6,7% 515 54,0%

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    Advogado 219 5,3% 259 84,6%

    Auxiliar administrativo (secretria,

    digitador,office-boy, telefonista etc.) 88 2,1% 502 17,5%

    Captador de recursos 352 8,5% 485 72,6%

    Contador 109 2,6% 261 41,8%Almoxarife 0 0,0% 3 0,0%

    Assistente contbil - 0,0% 1 0,0%

    Bibliotecrio 1 0,0% 1 100,0%

    Cobrador 0 0,0% 10 0,0%

    Recepcionista - 0,0% 2 0,0%

    Coordenador de lares - 0,0% 6 0,0%

    Coordenador de servios - 0,0% 1 0,0%

    Coodenador de almoxarifado 1 0,0% 1 100,0%

    Coordenador de estoque de alimentos 1 0,0% 1 100,0%

    Jornalista 3 0,1% 3 100,0%

    Supervisor das casas-lares - 0,0% 1 0,0%

    Tcnico em seguranao do trabalho - 0,0% 1 0,0%

    Tradutor 1 0,0% 1 100,0%

    Servios especializados 1.108 26,8% 2.113 52,4%

    Dentista 370 9,0% 470 78,7%

    Enfermeiro 46 1,1% 85 54,1%Fisioterapeuta 53 1,3% 86 61,6%

    Fonoaudilogo 74 1,8% 118 62,7%

    Mdico clnico 140 3,4% 194 72,2%

    Mdico pediatra 170 4,1% 243 70,0%

    Mdico psiquiatra 42 1,0% 78 53,8%

    Professor de educao fsica - 148

    Professor de ensino regular 47 1,1% 380 12,4%

    Tcnico em enfermagem (auxiliar) 38 0,9% 197 19,3%

    Terapeuta ocupacional 26 0,6% 53 49,1%Coordenador de atividades agrcolas - 0,0% 1 0,0%

    Coordenador da rea de sade 5 0,1% 5 100,0%

    Engenheiro civil 1 0,0% 1 100,0%

    Eqoterapeuta 1 0,0% 1 100,0%

    Instrutor de profissionalizao 16 0,4% 49 32,7%

    Musicoterapeuta 1 0,0% 1 100,0%

    Professor de educao especial - 0,0% 2 0,0%

    Tetapeuta comportamental 1 0,0% 1 100,0%

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    Servios Complementares 969 23,4% 1.537 63,0%

    Estagirio 323 7,8% 577 56,0%

    Professor de reforo escolar 236 5,7% 432 54,6%

    Recreador 297 7,2% 372 79,8%

    Acompanhantes em passeios 15 0,4% 15 100,0%Cabeleleiro 2 0,0% 2 100,0%

    Costureiro 14 0,3% 20 70,0%

    Estimulao precoce 8 0,2% 8 100,0%

    Professor de atividades complementares 52 1,3% 85 61,2%

    Massagista 1 0,0% 1 100,0%

    Monitores de atividades ocupacionais:

    tric,croch, pintura em tecido, bordado

    a mo,tapearia, costuras, brech 10 0,2% 11 90,9%

    Orientador espiritual/religioso 9 0,2% 12 75,0%

    Tcnica reiki 2 0,0% 2 100,0%

    Outros 43 1,0% 61 70,5%

    TOTAL 4.134 100,0% 11.939 34,6%

    Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianas e Adolescentes da RedeSAC.

    Conforme podemos notar atravs dos dados apresentados, o trabalho

    voluntrio no se constitui apenas em atividade complementar ao programa de

    abrigo, ao contrrio, vem atuando em funes essenciais ao atendimento de

    crianas e adolescentes em situao de abrigo, diferentemente do que dispe

    o ECA. A pesquisa apontou ainda que 59% das 589 instituies pesquisadas

    so dirigidas por voluntrios. Notamos ainda que destes dirigentes voluntrios,

    59% declararam faz-lo por questes humanitrias e 42% por razes de cunho

    religioso.

    Com relao aos servios especializados notamos que estes somam

    27% do total de voluntrios nas instituies, com especial enfoque nos servios

    de sade.

    Ainda que, em menor proporo, observa-se igualmente a

    presena de trabalhadores no remunerados nas equipes tcnicas,

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    isto , entre os profissionais que so responsveis pelo programa

    e que orientam o atendimento personalizado s crianas e aos

    adolescentes. Assim, somando-se os coordenadores tcnicos,

    assistentes sociais, pedagogos e psicopedagogos, psiclogos,

    nutricionistas e tcnicos em nutrio tm-se um total de 1.325profissionais, sendo 462 voluntrios, o que corresponde a 35%.

    Aqui pode-se formular duas hipteses: a primeira que o exerccio

    no-remunerado dessas aes deve ser predominantemente

    motivado por questes religiosas, uma vez que se trata de

    atividades que exigem muita ateno e que, se mal prestadas,

    podem resultar em desgaste fsico, mental e emocional. Assim, a

    ncora da f deve ser central para a prestao voluntria desses

    servios. Em segundo lugar, por mais dedicados que sejam os

    voluntrios, de maneira geral no devem dispor do tempo

    necessrio ao atendimento satisfatrio das crianas e dos

    adolescentes abrigados, j que cumprem funes que so

    essenciais no programa de abrigo. Dessa forma, a rotina do abrigo

    pode estar comprometida. (BEGHIN e PELIANO, 2004: 265)

    Neste sentido, considerando os dados apresentados pela pesquisa com

    relao ao direito a convivncia familiar, notamos que somente 5% dos abrigosdirigidos por voluntrios atendem aos critrios de apoio as famlias dos

    abrigados com o intuito de incentivar a convivncia, e evitam a separao de

    grupo de irmos. Este percentual se mostra inferior os abrigos governamentais

    que somam o percentual de 8%.

    Com relao s aes realizadas junto s famlias no sentido de auxiliar

    os responsveis das crianas e adolescentes a superarem as dificuldades que

    determinaram o afastamento destes do lar, observamos que somente 13% dasinstituies dirigidas por trabalhadores no-remunerados preencheram todos

    os critrios considerados na pesquisa (realizao de visita s famlias,

    organizao de grupos de apoio, articulao com programas governamentais

    ou comunitrios de auxlio s famlias).

    O incentivo convivncia com outras famlias tambm foi um aspecto

    importante apontado pela pesquisa. Com relao a esta notamos que um

    pouco mais de 25% dos abrigos dirigidos por voluntrios atendem aos critrios

    elencados pela pesquisa. Neste caso a proporo superior de instituies

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    governamentais, que somam 18%.

    Conforme podemos avaliar, a insero do voluntariado nos abrigos

    pesquisados bastante significativa, sendo a maior parte dirigida por pessoas

    que exercem esta atividade voluntariamente, estando a religio como principaljustificativa para a realizao destas atividades associada questo da

    caridade.

    Neste sentido, no podemos garantir que estas atividades estejam

    vinculadas compreenso trazida pelo ECA, j que motivaes religiosas e

    caritativas podem tender a descambar para o assistencialismo, contrariando a

    noo do direito social que traz a poltica pblica.

    Nossa trajetria poltica de assistncia social historicamente no se

    associa emancipao dos sujeitos e sim, visualiza uma solidariedade

    hierarquizada e moralista, de manuteno do status quo (BEGHIN e

    PELIANO, 2004: 283), no conseguindo o Estado assegurar, na forma de um

    direito social, o atendimento de crianas e adolescentes em situao de risco

    social e pessoal inseridos em instituies de abrigo.

    A parceria entre Estado e sociedade civil se coloca como fundamental

    para o desenvolvimento de uma atuao mais digna e democrtica junto a

    crianas e adolescentes em situao de risco. Entretanto, a participao da

    sociedade civil no deve eximir o Estado de suas responsabilidades sociais,

    sobretudo na realizao e manuteno dos direitos de crianas e adolescentes,

    em especial do direito a convivncia familiar. Cabe ressaltar ainda a

    importncia do respeito diversidade cultural de casa criana e adolescente

    institucionalizado, incluindo-se a questo religiosa.

    Para avaliar o esforo dos programas de abrigo em promover a

    preservao dos vnculos familiares foram considerados dois grupos de aes

    desenvolvidas pelas instituies:

    1 aes de incentivo convivncia das crianas e adolescentes com

    suas famlias de origem;

    2 aes referentes ao no-desmembramento de grupos de irmos

    abrigados.

    Referente ao primeiro grupo de aes, pesquisa revelou que 79,8% das

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    instituies mantm informaes sistematizadas sobre as famlias dos

    abrigados; 65,9% promovem visitas das crianas e adolescentes aos lares de

    suas famlias; 41,4% permitem a visitao livre das famlias ao abrigo sem

    datas e horrios preestabelecidos. Entretanto, quando considerando as

    instituies que praticam os trs critrios conjuntamente, o percentual se reduz

    para apenas 25,5%.

    Com relao ao segundo grupo, o no-desmembramento do grupo de

    irmos um dos princpios para o atendimento em instituies de abrigo

    considerando que a separao entre eles pode agravar a sensao de

    abandono e rompimento vivenciados pelas crianas e adolescentes afastadas

    de suas famlias.Neste sentido, a pesquisa revelou que 63,8% das instituies afirmaram

    priorizar a manuteno ou a reconstituio de grupo de irmos, enquanto

    62,1% adotam o modelo de agrupamento vertical6, predominando uma

    diferena superior a 10 anos entre a maior e a menor idade. 62,3% oferecem

    atendimento misto, atendendo a meninos e meninas.

    Assim como a manuteno dos vnculos afetivos entre abrigados e

    familiares, outro ponto importante para a garantia do direito convivncia

    familiar o desenvolvimento de condies, por parte das famlias, para receber

    seus filhos de volta, superadas as dificuldades que determinaram o

    afastamento. Considerando que as entidades de abrigo podem realizar aes

    de valorizao da famlia, alm de buscar estabelecer a conexo e a insero

    dos familiares na rede de proteo social disponvel e nas demais polticas

    pblicas existentes, o Levantamento Nacional revelou que, dentre as aes

    desenvolvidas neste sentido, 78,1% das instituies realizam visitas

    domiciliares s famlias; 65,5% fazem acompanhamento social destas famlias;

    34,5% organizam reunies ou grupos de discusso e de apoio para as famlias

    dos abrigados; 31,6% encaminham as famlias para insero em programas

    oficiais ou comunitrios de auxlio/proteo famlia.

    Quando tratamos de colocao em famlia substituta como opo

    importante frente prtica de institucionalizao de crianas e adolescentes

    em situao de risco, observamos que 22,1% das instituies pesquisadas

    6Definio de limites de idade que os abrigos adotaram como critrio para institucionalizao

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    desenvolvem aes como o incentivo integrao em famlia substituta, a

    elaborao e envio de relatrios peridicos para as Varas da Infncia e

    Juventude e a implementao de programas de apadrinhamento.

    Neste sentido, o modelo de famlia tradicionalmente adotado no pas

    de famlia nuclear burguesa, representado por pai, me e filhos. Entretanto,

    temos que admitir que coexistam uma diversidade de outros arranjos familiares

    que, muitas vezes, so desqualificados, ou at mesmo no considerados, por

    no corresponderem ao modelo familiar socialmente valorizado por padres

    culturais mais rgidos. Estas prticas discursivas e de posturas, quando

    desenvolvida, especialmente por profissionais de instituies que oferecem