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  • KARINA SCHMIDT BRANCHER

    Entre a forja e a bigorna: a escrita de singularizao do

    psicanalista Gilberto Safra

    So Paulo

    2012

  • KARINA SCHMIDT BRANCHER

    Entre a forja e a bigorna: a escrita de singularizao do

    psicanalista Gilberto Safra (Verso original)

    Dissertao apresentada ao Instituto de Psicologia da

    Universidade de So Paulo para a obteno do ttulo de

    mestre em Psicologia.

    rea de concentrao: Psicologia Experimental

    Orientador: Prof. Dr. Luis Cludio Figueiredo

    So Paulo

    2012

  • Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrnico, para fins de estudo e

    pesquisa, desde que citada a fonte.

    Catalogao na publicao

    Biblioteca Dante Moreira Leite Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo

    Brancher, Karina Schmidt. Entre a forja e a bigorna: a escrita de singularizao do psicanalista

    Gilberto Safra / Karina Schmidt Brancher; orientador Lus Cludio Figueiredo. -- So Paulo, 2012.

    90 f. Dissertao (Mestrado Programa de Ps-Graduao em

    Psicologia. rea de Concentrao: Psicologia Experimental) Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo.

    1. Psicanlise 2. Safra,Gilberto 3. Winnicott, Donald Woods,

    1896-1971 4. Desconstruo I. Ttulo.

    RC504

  • Nome: BRANCHER, Karina Schmidt Ttulo: Entre a forja e a bigorna: a escrita de singularizao do

    psicanalista Gilberto Safra

    Dissertao apresentada ao Instituto de Psicologia da

    Universidade de So Paulo para a obteno do ttulo de

    mestre em Psicologia.

    rea de concentrao: Psicologia Experimental

    Orientador: Prof. Dr. Luis Cludio Figueiredo

    Aprovado em: ____________

    Banca Examinadora

    ______________________________________

    Nome: Prof. Dr. Luis Cludio M. Figueiredo

    ______________________________________

    Nome: Prof. Dr. Andrs Eduardo A. Antunez

    ______________________________________

    Nome: Dra. Ftima R. F. C. De A. Graa

  • Aos meus pais, Celito e Ursula, com imensa gratido pelo exemplo de amor, dedicao, pacincia e coragem na criao de seus filhos.

  • Agradecimentos Agradeo

    Ao Lus Cludio Figueiredo, que me ensinou, dentre muitas outras valiosas coisas, que o mestrado importante, mas vida muito mais, indiscutivelmente mais, impreterivelmente mais.

    Ao Gilberto Safra, que me ensinou a amar minhas perguntas. Ao Daniel Kupermann, que me ensinou que os analistas que adoecem so

    os melhores. Ao Jos Moura Gonalves Filho, o Zeca, que me ensinou a cultivar minhas

    virtudes porque cultiva as suas. Ao Andrs Eduardo Aguirre Antunez, que me ensinou que a simplicidade

    do humano o mais profundo. Ftima Flrido, que me ensinou que as palavras entram e saem. Ao Rafael Alves Lima, que me ensinou que a amizade um amor que

    nunca morre. Mara Mamud Godi Mouro, que me ensinou que a solido pode ser

    compartilhada. Thas Mariana Arantes, que me ensinou que o perdo coisa de gente

    grande. Renata Pinotti Alves, que me ensinou a acreditar no poder das coisas que

    no existem. Ao Wilson Franco, que me ensinou que minha escrita acompanhada de

    angstia, leno e lgrima. Ao Juliano Pessanha, que me ensinou que possvel ter eco embaixo

    dgua.

  • Cristina Machado, que me ensinou que carregar nossa cruz no precisa ser um trabalho solitrio.

    Ao Tales AbSber, que me ensinou que um giz pode virar psicanlise. Aos amigos da Psico USP, que me ensinaram que a psicologia muito mais

    que uma cincia, um estilo de ser. Aos funcionrios da Psico USP, que me ensinaram que o cotidiano o que

    no salva. Aos amigos da Clnica da Alves, que me ensinaram que as diferenas so o

    que nos fazem prximos. Ao meus amigos do grupo de orientao, que me ensinaram que o rigor

    pode ser banhado cachaa e amizade. Aos meus pais, irmo e nona, que me ensinaram que a nossa famlia a

    casa que levamos para sempre dentro de ns. Aos meus pacientes, que me ensinaram a acreditar em meus sonhos,

    acreditando nos deles. Ao Anderson, meu Lindo, que me ensinou que o amor pode ser praticado,

    alm de sonhado. Snia, secretria do departamento de psicologia experimental, que me

    ensinou sobre disciplina. Capes, pela concesso da bolsa de pesquisa que possibilitou a feitura

    dessa dissertao

  • O senhor to moo, to aqum de todo comear que rogo, como melhor posso, ter pacincia com tudo o que h para resolver em seu corao e procurar amar as prprias perguntas como quartos fechados ou livros escritos num idioma muito estrangeiro. No busque por enquanto respostas que no lhe podem ser dadas, porque no as poderia viver. Pois trata-se precisamente de viver tudo. Viva por enquanto as perguntas. Talvez depois, aos poucos, sem que o perceba, num dia longnquo, consiga viver a resposta. Rainer Maria Rilke, Cartas a um jovem poeta, p. 43

  • Resumo

    Brancher, K. S. (2012) Entre a forja e a bigorna: a escrita de singularizao do psicanalista Gilberto Safra. Dissertao de mestrado, Instituto de Psicologia, Universidade de So Paulo, So Paulo.

    Ao longo da dissertao, para dar forma e legitimidade intuio e

    experincia emocional e intelectiva que a autora teve com a obra do psicanalista

    brasileiro Gilberto Safra, foi empreendido o esforo de fabricar uma

    interpretao que acontecesse como reposta a esta obra. Para tanto, propusemos

    uma leitura pormenorizada (o que inclui a leitura sistemtica e a leitura prxima

    desconstrutiva) de dois livros de Safra: Momentos Mutativos em Psicanlise, sua

    tese de doutorado e A Face Esttica do Self, sua tese de livre docncia. Este

    recorte da obra se ancorou na hiptese de que haveria algo na construo do

    pensamento psicanaltico de Safra que se modificou consideravelmente entre

    estes dois momentos de sua trajetria pessoal, autoral e na sua formao como

    analista. Em resposta a estas questes, uma leitura entrelaada das teses que

    compem seu pensamento psicanaltico com suas condies de possibilidade nos

    levou a compreender que a escrita de Safra deixa entrever o tortuoso movimento

    de busca de um analista por sua morada conceitual, tica e esttica. O que est

    em jogo sempre o processo de singularizao: do analista, do paciente e das

    possibilidades de se fazer teoria e clnica psicanalticas nos tempos atuais.

    Palavras-chave: Psicanlise, Gilberto Safra, D. W. Winnicott, Desconstruo.

  • Abstract

    Brancher, K. S. (2012) Between the forge and the anvil: the singularization writing of psychoanalyst Gilberto Safra. Masters Dissertation, Instituto de Psicologia, Universidade de So Paulo, So Paulo.

    This dissertation, in order to shape and legitimize the authors intuition, and

    emotional and intellectual experience with the works of Brazilian psychoanalyst

    Gilberto Safra, strived to create an interpretation that could stand as answer to

    said works. As such, we proposed a detailed reading (which includes a

    systematic and then deconstructive reading) of two of Safras books: Mutative

    Moments in Psychoanalysis, his doctoral thesis, and The Aesthetic Face of the

    Self, his associate professorship thesis. This partial selection of his work is

    anchored on the hypothesis that there would be something in the construction of

    Safras psychoanalytical thinking which had been considerably altered between

    these two points in his personal and authorial trajectory, and his training as an

    analyst. In response to these questions, an interwoven reading of these theses

    which make up his psychoanalytical thought, with their conditions of possibility,

    led us to understand that Safras writing allows us to glimpse an analysts

    tortuous path in search of his conceptual, ethical and aesthetic references. Whats

    at stake is always the singularization process: of the analyst, the patient and the

    possibilities of creating psychoanalytical theory and doing psychoanalytical

    clinic work in current times.

    Key words: Psychoanalysis, Gilberto Safra, D. W. Winnicott, Deconstruction.

  • Sumrio

    1. Introduo - informaes introdutrias sobre Gilberto Safra ...................................... 13 - a histria do meu contato inicial com a obra e minhas afetaes por ela ....... 16 2. Justificativa do projeto - a fabricao do estranho, ou como transformar a paixo em amor ................ 21 3. Consideraes Metodolgicas - a construo da plataforma de leitura: os pressupostos da desconstruo ....... 26 - a escolha do recorte da obra ........................................................................... 30 4. Lendo Momentos Mutativos em Psicanlise - leitura sistemtica .......................................................................................... 32 - leitura prxima desconstrutiva ....................................................................... 44 5. Lendo A Face Esttica do Self - Leitura sistemtica ........................................................................................ 52 - Leitura prxima desconstrutiva ...................................................................... 74 6. Consideraes (ou Reconstrues) Finais - Gilberto Safra Suas Teses .......................................................................... 80 - Gilberto Safra Seu Estilo ............................................................................. 84 - E eu? .......................................................................................................... 87 7. Referncias Bibliogrficas ........................................................................... 88

  • 11

    1.Introduo

  • 12

    Informaes introdutrias sobre Gilberto Safra

    Gilberto Safra um psicanalista brasileiro que vive atualmente em So Paulo.

    professor titular do instituto de psicologia da Universidade de So Paulo (USP), desde 1984 e

    docente no Programa de Estudos Ps-Graduados em Psicologia Clnica da Pontifcia

    Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP), desde 1990.

    Graduou-se em Psicologia no Instituto de Psicologia da USP (IPUSP) em 1975. Iniciou

    seu percurso como clnico em 1977 (afirma isso em sua tese de doutorado, mas em seu

    penltimo livro afirma que iniciou este percurso em 1972, como estagirio do Servio de

    Higiene mental em So Paulo). Em 1984 conclui seu Mestrado em Psicologia Clnica na

    mesma instituio, sob orientao do professor Luis Carlos Nogueira. Em 1990 concluiu seu

    Doutorado em Psicologia Clnica, tambm no IPUSP, sob orientao do professor Ryad

    Simon. Por fim, sua tese de Livre Docncia foi defendida em 1999, na mesma instituio.

    Depois deste percurso feito dentro dos moldes e muros da academia, escreveu mais quatro

    livros, os dois ltimos datando de 2006. Fez sua anlise bioniana (com o analista Manoel

    Lauriano Salgado de Castro, da SBPSP) por um perodo longo de tempo (aproximadamente 20

    anos).

    Em 1995 criou o LET, Laboratrio de Estudos da Transicionalidade. Configura-se, nas

    palavras da prpria organizao do laboratrio, como um espao multidisplinar de estudos,

    debates e pesquisas voltado para o desenvolvimento do pensamento clnico. Acontece na

    forma de seminrios mensais sobre temas de vanguarda que so objeto da anlise de Safra,

    aberto gratuitamente a quem interessar.

    Em 2005 foi um dos fundadores das Edies Sobornost. De acordo com a nota dos

    editores de seu livro Curando com histrias (2005): Sobornost um projeto editorial que

    nasceu de um sonho dos alunos, colegas e amigos de Gilberto Safra o sonho de ver o

    contedo de seus cursos e reflexes clnicas reunido to logo quanto possvel sob a forma de

    livros. (...) Espontaneamente, os alunos j vinham gravando em udio os cursos e conferncias

    de Gilberto Safra desde 1994. A partir de agosto de 2002 um grupo bastante dedicado assumiu

    os custos de gravar todas as aulas tambm em vdeo, o que resultou na organizao de um

    Acervo Professor Gilberto Safra, que disponibiliza para consulta as fitas de vdeo nas

  • 13

    bibliotecas do IPUSP e da PUC-SP. Fazem parte do projeto editorial duas colees: Cursos

    de Gilberto Safra, constituda por livros organizados a partir da transcrio dos cursos

    acadmicos de graduao e ps-graduao do professor, e Pensamento Clnico de Gilberto

    Safra, constituda por livros com idias originais deste psicanalista atento s exigncias da

    contemporaneidade frente ao trabalho clnico. Atravs desta editora publicou tambm mais

    de 250 ttulos sob a forma de DVDs e CDs-MP3, que acompanham livretos.

    Em 2006 fundou o Instituto Sobornost, que oferece cursos e programas de formao

    continuada (PROFOCO), a partir de sua perspectiva clnica, endereados a terapeutas,

    profissionais, estudantes e estudiosos da rea de sade e de cincias humanas de uma forma

    geral. Objetiva a formao e reciclagem de clnicos num setting mais flexvel, mais malevel

    e mais amplo que o das faculdades e institutos convencionais de formao clnica, mas no

    menos rigoroso e consequente.

    Gilberto Safra autor de 7 livros:

    - Momentos mutativos em psicanlise: uma abordagem Winnicottiana. 1 ed. So

    Paulo: Casa do Psiclogo, 1995. v. 1. 213p. (originalmente sua tese de doutorado).

    - A face esttica do self. 1 ed. So Paulo: Unimarco. 1999. v. 1. 164p / A face esttica

    do self: teoria e clnica. 3 ed. So Paulo: Idias e Letras. 2005. v.1. 174p./ A Face

    Esttica do Self. 5. ed. Aparecida: Idias e Letras. 2009. 174 p. (Originalmente sua

    tese de Livre Docncia).

    - A p-tica na clnica contempornea. So Paulo: Idias e Letras. 2004. v. 1. 160p.

    - Revisitando Piggle: um caso de psicanlise segundo a demanda. 1 ed. So Paulo:

    Sobornost. 2005. v. 1. 179p.

    - Curando com histrias: a incluso de pais na consulta teraputica das crianas. 1 ed.

    So Paulo: Sobornost. 2005. v. 1. 98p. (Originalmente sua tese de mestrado)

    - Desvelando a memria do humano: o brincar, o narrar, o corpo, o sagrado e o

    silncio. 1 ed. So Paulo: Sobornost. 2006. v. 1. 80p.

    - Hermenutica na situao clnica: o desvelar da singularidade pelo idioma pessoal. 1

    ed. So Paulo: Sobornost. 2006. v. 1. 169p.

  • 14

    Sua obra recente, iniciou-se h 25 anos, na dcada de 80. Trs de seus livros so fruto

    de trabalhos academicamente originados e endereados. autor de diversos artigos e captulos

    de livros. Seu pensamento, porm, como afirmado anteriormente, tem sido registrado de

    diversas outras maneiras que no s pelas suas prprias mos (videoconferncias e

    transcries transformadas em livros).

    Gilberto um autor-psicanalista contemporneo que tem ocupado um espao importante

    e cada vez mais notado dentro do campo psicanaltico, principalmente o que trata

    especificamente da clnica psicanaltica. Sua insero no campo tem sido feita de maneira

    diversificada, como atesta seu percurso.

    considerado uma referncia importante para aqueles que querem estudar a obra de

    Winnicott e, segundo as informaes trazidas em seu site, um exemplo de integrao de

    elementos dspares (integra idias de filsofos contemporneos como Husserl, Edith Stein e

    Simone Weil, de msticos como Santa Teresa e Dionsio Aropagita, de telogos russos como

    Soloviev e Florensky, de escritores como Dostoievski e Clarice Lispector e de poetas como

    Adlia Prado, Rubem Alves e Fernando Pessoa) a uma proposta que pretende expandir e

    redimensionar a teoria e prtica psicanalticas.

  • 15

    A histria do meu contato inicial com a obra e minhas afetaes por ela

    ...De que modo vou abrir a janela, se no for doida? Como a fecharei, se no for santa?

    Adlia Prado

    Eu me apaixonei por algo que Gilberto Safra tenta comunicar.

    Pensei em muitas outras formas de dar incio a esta histria, mas nenhuma me pareceu

    to honesta e correta quanto essa. Porque, comeando desse jeito, deixo claro que se trata do

    testemunho de uma relao, do qual no se pode esperar, de antemo, imparcialidade e

    objetividade.

    Este objeto de interesse tomou forma a partir do meu contato com os textos de Safra e

    com suas aulas e cursos, ainda na graduao em Psicologia, na Universidade de So Paulo,

    quando fui sua aluna. Li dois de seus livros e comecei a assistir algumas de suas aulas na ps-

    graduao e alguns cursos no chamado PROFOCO, do Instituto Sobornost. J havia

    encontrado a obra do psicanalista Donald W. Winnicott em meu caminho de formao (um

    levou ao outro e o outro levou ao um, de maneira cruzada e sem forma lgica). J havia,

    tambm, encontrado os pacientes e a clnica em meu caminho de vocao.

    Vivi crises de choros incontornveis quando da leitura de seu livro A face esttica do

    self, e a experincia se repetiu quando da escuta de algumas de suas falas nos cursos. Fiquei

    assustada. Passei por experincias emocionais to intensas que, hoje sei, exigiram um trabalho

    de elaborao, de simbolizao... precisei dar lugar, nome, sentido quilo. Traduzir em

    palavras. Precisei fazer um mestrado!

    Fazer um mestrado para tentar compreender o objeto de minha paixo. Mas, para tanto,

    seria preciso (e eu no sabia disso) transformar a paixo em amor. Eu estava profundamente

    identificada com o texto de Safra, com a proposta teraputica ali delineada, com uma clnica

    que eu procurava h tempos e pela qual eu acreditava poder me curar. E, para poder pensar,

    precisei me deslocar (tinha escrito descolar, ato falho interessante), tive que engendrar um

    processo de intimidade e distanciamento, de diferenciao.

  • 16

    A desidealizao necessria para entender que um texto, um autor, um analista, uma

    clnica no nascem prontos e so, necessariamente, uma construo, que carrega em si suas

    imperfeies, incongruncias e paradoxos, foi muito dolorida, trabalho de luto, trabalho de

    desconstruo (tambm de mim mesma).

    Lendo o artigo da Ins Loureiro (in Queiroz e Silva, 2002), Sobre algumas disposies

    metodolgicas de inspirao Freudiana, encontrei ali um alvio e um lugar. Consegui nomear

    o momento em que, por muito tempo, me encontrei na travessia do deslocamento que foi

    minha pesquisa (momento mutativo, sim, mas num sentido bem diferente do proposto por

    Gilberto, que quando a necessidade encontra o objeto), momento de perda de si, frustrao e

    decepo; passividade.

    Transcrevo aqui uma citao do Lus Cludio Figueiredo, que ela usa em seu ensaio:

    Por isso, a pesquisa cientfica acaba sempre, paradoxalmente, dependendo de

    acontecimentos e movimentos que escapam posio terica e sua racionalidade. Os

    avanos cientficos acabam dependendo de fatores do acaso, surpresa, susto, decepo,

    frustrao etc. Em outras palavras, mesmo que a atividade cientfica exija razo e

    planejamento, estas dimenses por si ss no garantem aquela autonomia e exterioridade do

    objeto necessrias para dar cincia sua razo de ser como desejo e procura do desconhecido.

    O pesquisador que age assentado apenas na posio terica dirige-se somente ao que j

    conhece ou pressente, em busca de confirmaes. A autonomia e a exterioridade do objeto

    precisam, portanto, ser reencontradas pela via do que escapa procura racional, pela via dos

    afetos aparentados surpresa e ao espanto, frustrao e decepo. S por esta trilha no

    pavimentada e cheia de acidentes a pesquisa progride e exige remanejamentos tericos

    profundos e significativos que, por sua vez, abalam a segurana narcisista do pesquisador e lhe

    impem momentos dolorosos e desestruturantes. H, nestes casos, tanto uma perda de si como

    sujeito soberano da razo e da vontade, como uma perda de objetos que se supunha estivessem

    sob o controle da teoria. Quem no est psiquicamente apto a experimentar e a suportar a

    perda e a frustrao no pode ser um bom pesquisador, embora possa ser um fiel e meticuloso

    funcionrio burocrtico do establishment acadmico e cientfico.

    Eu sei que, durante muito tempo, estive perdida (de mim mesma e do objeto), e por isso

    a coisa foi bastante desestruturante. O momento de assumir, seguindo o argumento da

    autora, uma disposio mais ativa, segurar firmes as rdeas do processo, uma posio que

  • 17

    respondesse tanto aos padres de apresentao e comunicabilidade prprias aos saberes

    universitrios e aos prazos acadmicos demorou a chegar.

    Andei mais prxima dos meus abalos narcsicos que do meu objeto. No ele que

    ofereceu resistncia, pensando melhor agora. Ou, melhor ainda, talvez o que tenha me

    assustado muito que meu objeto, durante o percurso, parece ter mudado.

    Eu acabei, na trilha no pavimentada e cheia de acidentes, por engendrar uma

    interpretao completamente nova para a minha pesquisa, comecei a olh-la por um ngulo

    totalmente novo. A grande maioria das coisas que estudei e escrevi, at o momento da

    qualificao, foram sobre a metodologia de leitura, sobre a posio subjetiva necessria a

    partir da qual se pode interpretar eficazmente, sobre o mtodo de acesso ao objeto. Eu percebi

    que o que eu julgava que era figura central em minha pesquisa (o texto de Safra), aos poucos

    foi tornando-se pano de fundo, e cada vez este pano estava mais imperceptvel, mais tnue, foi

    virando moldura.

    E por qu? Por qu? Talvez pela dificuldade, prpria ao texto do Safra, e prpria a minha

    postura psquica em relao ao texto e ao que ele significa na minha histria de vida, de

    habitar um espao paradoxal em relao a esta questo. Meu objeto transformacional,

    (usando o conceito de Bollas (1992)), talvez tenha sido, por muito tempo e profundamente, as

    idias do Gilberto (e do Winnicott) sobre o que possa ser o encontro psicanaltico. E agora,

    desde o incio do mestrado, isso tem cado por terra. Fui obrigada a migrar, sair daquela

    instalao confortabilssima, e me colocar deriva.

    Eu ainda estava deriva, em relao quele objeto perdido...o susto que levei nestes

    tempos foi o de perceber que eu j tinha achado uma outra casa, estava h tempos me

    instalando neste outro objeto transformacional, que o campo das condies de possibilidade

    de se construir uma plataforma de leitura, um lugar de interpretao, um lugar de

    diferenciao, um lugar para pensar (e o Winnicott que fala que o beb comea a pensar

    quando a me comea a falhar...).

    E essa mudana de posio deixou consequncias. Eu me desapaixonei profundamente

    pela obra do Gilberto, esta a verdade. Ainda no tinha conseguido transform-la em amor.

    Acho que cheguei a odi-la. No conseguia mais voltar quele lugar (inicial) sem uma

    sensao de que fui muito ingnua, de que acreditei cedo demais, de que a promessa de cura

    no a cura, que a estrada nunca completamente lisa, sem obstculos, e, se for,

  • 18

    provavelmente o pedgio muito caro... (por que algum no quer deixar sua estrada ter as

    marcas do terreno que a sustenta, sempre tortuoso?).

    Eu me desiludi. E, falando assim, percebi que estava iludida. Eu precisei dessa iluso

    (bem aos termos winnicottianos), para poder continuar a ter esperana, continuar a caminhar.

    Mas ento eu escolhi (por meio deste mestrado) trilhar um caminho que buscasse a

    descortinao desta iluso, deste encantamento, desta ingenuidade? Busquei as irregularidades

    do terreno por baixo da estrada perfeita? Por que quis tanto pensar?

    Talvez, como afirmei antes, para me diferenciar (e, ento, poder amar). Mas, para isso,

    percebi (a duras penas) que o dio estgio obrigatrio, fora necessria para produzir

    transformao. A posio de estrangeirismo e a falta de lugar enraizado (o desamparo) so

    vizinhos deste dio e amigos do processo de separao.

    A histria da minha transferncia com o texto do Gilberto bem mais profunda do que

    eu supunha, e talvez eu tenha feito muita fora para deix-la em um lugar subterrneo. A

    paixo s vezes eclodiu com toda a fora, exigiu passagem, cobrou sua legitimao. Isto no

    s um texto, a representao de um lugar de salvao!... Era, ao menos.

    A dificuldade de habitar um lugar nmade, desamparado, frustante, como dizia o artigo

    da Ins citando Figueiredo, me fez sofrer as dores deste caminhar. Precisei construir uma

    ponte lugar transicional de onde falar. Deixar viver o estrangeiro (em mim e no texto)

    saber amar. A transformao subjetiva aconteceu, a sustentao deste processo foi bastante

    difcil, por isso trago estas questes a pblico, pedindo hospitalidade e um pouco de amparo.

    Um trabalho focado no mtodo (de leitura e interpretao) um trabalho que versa sobre

    o encontro com a alteridade, mais que um trabalho que verse sobre a tica - espao de

    existncia comum. E sobre isso que eu acho que (tambm) pesquisei, como que se

    transforma a paixo em amor, como que podemos nos diferenciar e viver separados sem nos

    perder um do outro? Um trabalho para chegar a habitar a Terra, a precria segurana da

    Terra, caminhando na contramo do encontro com o cu, tentando no cair no inferno,

    penando para no ficar aprisionada no limbo...

    A nfase desse percurso precisou ser direcionada para a construo das plataformas de

    leitura, para a dificuldade de se habitar um lugar paradoxal em relao obra deste autor:

    facilmente causa adeso ou repulsa. Assim, entendi, no se pode (facilmente) usar a obra,

    profan-la, o mais simples ador-la ou destru-la, como a um cone.

  • 19

    2. Da justificativa do projeto

  • 20

    A fabricao do estranho,

    ou como transformar a paixo em amor

    Gilberto Safra e sua obra tm causado grande impacto no campo psicanaltico nacional,

    instigando tanto reaes de encantamento como de repulsa. muito citado como referncia de

    trabalhos acadmicos, existe um grupo de estudiosos que o acompanha h muitos anos e

    escreve sobre sua obra em um site, alm do fato de o prprio Safra escrever um tanto em seus

    livros sobre as razes e sentidos de seu projeto intelectual. Porm, sua obra, como objeto de

    interpretao possvel, ainda muito pouco usada fora do crculo mais prximo do autor.

    At o momento, o que foi feito e registrado uma resenha de seu livro A p-tica da

    clnica contempornea, feita por Lus Cludio Figueiredo, publicada na revista Psych (ano

    IX, n 15, jan/jun/2005), o prefcio de seu livro Momentos mutativos em psicanlise, feita

    por Manuel Lauriano Salgado de Castro, o prefcio de seu livro Curando com histrias, feita

    por Kleber Duarte Barretto, a apresentao de seu livro A face esttica do self (1999),

    tambm feita por Figueiredo e o prefcio de seu livro A p-tica na clnica contempornea

    (2004), feito por Tales A. M. AbSber. As respostas diretas a sua obra podem ser

    consideradas, apesar de potentes, tmidas e escassas, alm de terem sido, todas elas,

    encomendadas, de certa forma. Este movimento em torno da obra dificulta e auxilia este

    projeto, denunciando seu carter inaugural e eminentemente acadmico.

    A justificativa desta caminhada de investigao no simples, muito menos bvia. Um

    ponto preliminar ao qual seria justo adentrar, ento, a resposta pergunta do por que algum

    resolve (e pode) estudar ou engendrar num processo de interpretao a obra de um autor

    que ainda no tem sua importncia fortemente marcada na histria do pensamento

    psicanaltico.

    Curiosamente, o primeiro texto sugerido a mim pelo orientador dessa pesquisa, Lus

    Cludio Figueiredo, chama-se A fabricao do estranho: notas sobre uma hermenutica

    negativa, de sua autoria. Imediatamente atinei com o apontamento de uma situao bvia,

    mas no totalmente consciente at o momento: eu provavelmente estava por demais

  • 21

    familiarizada com a obra deste autor, e isso poderia ser um problema, ou um indcio de

    caminho a ser percorrido (questo tratada na introduo deste texto).

    Bom, fui ao texto e l encontrei matria fecunda que me deu o que pensar. Explico.

    Tratando da interpretao, suas definies, funes, dimenses e alcances, Figueiredo (1994)

    aponta para uma concepo de interpretao diferente de outras duas, consideradas bsicas, a

    saber, a da interpretao como uma espcie de juzo reprodutivo ou como uma espcie de

    criao, que seria a interpretao entendida como resposta.

    Esta concepo advoga uma superao da relao sujeito-objeto, posicionando a

    interpretao como realizao de sentido, ideia que se pretende distanciar da concepo de

    reproduo objetiva e de criao subjetiva de sentido, contidas nas definies de interpretao

    como juzo reprodutivo e como criao, respectivamente.

    Responder ao texto, realizando um sentido. Mas antes deste confronto, para tanto,

    necessrio, segundo o autor, que a obra j tenha feito seu prprio caminho na constituio do

    sujeito, deve t-lo afetado, deve ter-se imposto a ele e nele engendrado experincias novas,

    surpreendentes, inquietantes, estimulantes, fascinantes e sedutoras, talvez dilacerantes, quem

    sabe angustiantes. Estas experincias com a obra exigiriam traduo, e culminariam em uma

    interpretao que responde obra, fala a obra, realiza a obra. solicitada ao intrprete pois

    este teve de fato uma experincia propiciada pela obra. Torna-se exigncia ao intrprete e,

    portanto, tem uma dimenso existencial. Esta irrupo experiencial do contato com a obra

    designada pelo autor como interpretao existencial, tem pouco (e provoca pouco)

    distanciamento e anlises objetivantes.

    Sem dvida meu contato com a obra de Safra operou em mim este tipo de experincia

    prenhe de afetao. Adjetivos como novo, surpreendente, inquietante, sedutor fazem

    coro minha vivncia quando do encontro com este modo de pensar, compreender e

    interpretar a psicanlise. Mas Figueiredo adverte dos riscos deste tipo de contato com a obra,

    esta interpretao existencial: sua dinmica pode ser defensiva.

    Seguindo este percurso, pode-se cair em uma hermenutica da pura aproximao:

    tentar trazer o outro muito precocemente para perto, dissolvendo a alteridade do outro de

    forma a integr-la ao quadro de referncias do intrprete, evitando, assim, o contato e os afetos

    com a obra na sua alteridade mesma. Ou, ainda, tentar transportar-se emotivamente at o

    outro, podendo ser assimilado por ele, ocasionando a dissoluo do prprio intrprete na obra

  • 22

    e do encontro com a alteridade, novamente. Esta dinmica defensiva da interpretao mais

    inadequada quando no incio h um excesso de familiaridade. Nas palavras do autor: como

    interpretar um autor ou uma obra que participaram da minha prpria constituio, que esto

    impregnados na minha sensibilidade e modelaram meu entendimento, por exemplo?.

    A interpretao como acontecimento propiciaria que a fala interpretativa fosse

    efetivamente da ordem de uma resposta obra. Um encontro em campo comum, onde

    intrprete e obra deixaram-se fazer um pelo outro, acolhendo e ressoando alteridades prprias

    e alheias, permitiria ao intrprete deixar-se fazer pela obra e, ao responder a ela, interpreta,

    realizando um sentido da obra at ento desconhecido. Isto feito, a interpretao converter-

    se-ia em acontecimento, momento significativo da histria do intrprete e da obra, pela

    possibilidade de rompimento dos quadros de ligaes e referncias previamente estabelecidas

    entre intrprete e obra e posterior emergncia de novas configuraes.

    A fabricao do estranho seria insgnia de boa interpretao, aquela que no reduz nem

    defensiva. Aquela que seria capaz de conservar a estranheza da experincia que ela tentou

    traduzir e se esforasse em ampliar as distncias, operando desfamiliarizao entre obra e

    intrprete e cada um de si mesmo, ao mesmo tempo.

    Voltando tentativa de responder/justificar as razes para se empreender a caminhada

    rumo ao estudo da obra do psicanalista brasileiro, penso poder afirmar que fui tomada pela

    premncia de uma exigncia de traduo, de forjar uma reposta que responde obra, fala a

    obra, realiza a obra. Separar-me, continuando, ainda assim, junto.

    Por (tudo) isso ento, por acreditar que a influncia do pensamento de Safra muito

    mais ampla e profunda do que as referncias explcitas a ele deixariam supor, por dar crdito

    experincia que de fato tive da obra e que me moveu at esta pesquisa, pelos poucos, mas

    grandes, psicanalistas que escreveram e afirmaram a positividade da contribuio de Safra em

    nosso campo, e, tambm e antes, por acreditar que a psicanlise brasileira e contempornea

    pode e deve ser vista e ouvida na legitimidade e concretude do lugar que ocupa na histria

    desta disciplina, me autorizei a escolher este objeto como objeto de pesquisa.

    A resposta mais sucinta seria talvez essa: porque existe uma obra e um intrprete. Ou,

    porque existe um pesquisador em psicanlise.

    Assim, como consequncia esperada, aos leitores (demais intrpretes) dada a chance de

    aprofundar seu conhecimento da histria da psicanlise (o que, de acordo com Ulhoa Cintra e

  • 23

    Figueiredo (2004), permite compreender melhor como se do os progressos em psicanlise,

    como os conceitos e prticas clnicas em psicanlise podem se transformar sem se diluir e

    perverter, mas tambm sem se estratificarem dogmaticamente), e de, se assim desejarem,

    temperar a sua prpria capacidade de psicanalisar com as idias deste psicanalista brasileiro e

    contemporneo muito original.

  • 24

    3. Das consideraes metodolgicas do projeto

  • 25

    A construo da plataforma de leitura: os pressupostos da desconstruo

    Agora vamos construir um caminho, de forma nova (...). Ento voc pega uma p, uma britadeira, um grampo de cabelo. Se s tiver um grampo, mais nada, pegue-o e comece a cavar. Voc cava em todas as direes: pra l e pra c, pra dentro, vai para o lado de fora, para a esquerda, para a direita. Em linha reta, no. Nada que natural ou interessante segue uma linha reta. Na verdade, o meio mais rpido de chegar ao lugar errado. Tem mais, (...) no finja que sabe para onde vai. Pois, se sabe para onde vai, quer dizer que j esteve l antes e, no fim, vai chegar exatamente ao ponto de partida.

    Anderson, S. R. e Hopkins, P. O Jardim sagrado, p. 277.

    Como dar forma e legitimidade a uma intuio e a uma experincia emocional e

    intelectiva?, pergunta feita por Lus Cludio Figueiredo no prefcio do livro de Dany Kanaan

    (2002), Escuta e Subjetivao: a escritura de pertencimento de Clarice Lispector.

    Para iniciar a tentativa de resposta a esta pergunta, trago aqui as reflexes sensveis de

    Ins Loureiro, sobre os percalos que acompanham as disposies metodolgicas da feitura de

    uma pesquisa acadmica em psicanlise, em especial as pesquisas de tipo terico, como esta

    que estou a empreender:

    Tomo como ponto de partida a convico de que, analogamente clnica

    psicanaltica, cada dissertao ou tese em psicanlise presta-se a ser

    pensada como um verdadeiro caso metodolgico, materializao e pice de

    um percurso irredutivelmente singular. Uma dissertao ou tese traz,

    embutida em suas entrelinhas, uma histria, um processo repleto de

    conflitos e de reviravoltas, resqucios de transferncias mais ou menos

    intensas com o(s) autor(es) estudado(s), com o orientador da pesquisa e/ou

    com a instituio em que foi feita, sem mencionar os efeitos de todo o tipo

    de ideais e de fantasias envolvidos na consecuo de um trabalho como este

  • 26

    que invariavelmente implica considervel investimento de tempo,

    dinheiro e, sobretudo, de energia psquica (libidinal, para usar o termo

    freudiano) (Loureiro, I. Sobre algumas disposies metodolgicas de

    inspirao freudiana, p. 145, grifo do autor).1

    Neste meu caso metodolgico, como vimos, seria preciso, ento, no decurso deste meu

    enfrentamento de um segundo momento da interpretao, fabricar um estado de

    estranhamento em relao obra de Gilberto Safra e em relao a mim mesma e s primeiras

    tradues que fiz de minhas fortes experincias emocionais e intelectivas geradas pelo contato

    com a obra, para, por e com isso, interpret-la eficazmente (como na boa experincia da

    clnica psicanaltica).

    Esta fabricao do estranho, esta desfamiliarizao, pede por pressupostos

    metodolgicos. Pede por tcnica e teoria da tcnica. Voltando questo de Figueiredo, como

    interpretar? Ou melhor, como colocar em marcha uma boa interpretao?

    Esta tcnica, modo de proceder quando da feitura de um trabalho, no caso trabalho de

    leitura, pode ser empenhada de diversas maneiras. Entramos aqui no campo da problemtica

    hermenutica, ou seja, nas diferentes concepes da linguagem e da fala e de como estas

    diferentes concepes determinam diferentes modelos de elaborar e legitimar procedimentos

    interpretativos. Tal problemtica exige uma reflexo epistemolgica, acerca dos

    procedimentos de produo de saber, e ontolgica, acerca do estatuto destes objetos de

    conhecimento.

    Por ser uma discusso um tanto longa, e que nos obrigaria a fazer um desvio

    considervel no caminho de nosso propsito, vou afirmar que, situando-nos dentro desta

    problemtica acerca das questes bsicas relativas s atividades de interpretar, vou descrever e

    justificar aqui a modalidade de leitura que escolhi para trabalhar.

    De acordo com Ulhoa Cintra e Figueiredo (2004),

    A obra de um grande psicanalista deve ser conhecida no s pelas teses,

    teorias e conceitos que elabora e prope, e tampouco apenas pelas 1 In: Queiroz, Edilene Freire de & Silva, Antonio Ricardo R. da. (orgs). Pesquisa em psicopatologia fundamental. So Paulo: Escuta, 2002.

  • 27

    inovaes tcnicas que introduz. (...) h um plano no qual o pensamento

    psicanaltico de cada um, na sua singularidade, precisa ser captado, se

    quisermos efetivamente entrar no mundo que prprio a cada autor: o

    plano do estilo e das estratgias retricas. Muitas simpatias e antipatias,

    acolhimentos e rejeies se do a partir desse nvel.(p. 49).

    Este plano do qual Ulhoa Cintra e Figueiredo do notcia pode vir a ser denunciado por

    um modo de empreender a leitura de textos (no s) psicanalticos. Essa modalidade de leitura

    chama-se leitura prxima desconstrutiva.

    Vou me utilizar das consideraes feitas por Figueiredo (1999), no captulo intitulado

    Consideraes metodolgicas preliminares, de seu livro Palavras cruzadas entre Freud e

    Ferenczi, a fim de trazer luz aqui, de uma forma resumida, o que considero uma

    apresentao clara e didtica deste tipo de trabalho com o texto.

    De acordo com o autor, existem as leituras sistemticas e/ou historicizantes, em que o

    intento seria o de procurar as teses do texto no contexto da rea, da obra e/ou do

    desenvolvimento do pensamento de um autor. Estas leituras procurariam estancar os

    deslizamentos e ordenar a rede em torno de um lugar ideal: um conceito chave, uma

    necessidade ou um impulso interno inerente ao pensamento examinado em sua evoluo,

    por exemplo. Estas leituras so movidas pela crena em uma precedncia da unidade sobre a

    diferena, tentam separar o essencial (proposies teolgicas, filosficas e cientficas na sua

    idealidade) do retrico (o ornamental, acidental, literrio, circunstancial etc), ou seja, do

    textual.

    Estas leituras sistemticas podem, facilmente, produzir efeitos dogmatizantes, o que, no

    bom sentido resultam na exposio clara, concisa e justificada das teses do texto. E, no mau

    sentido, resultam na reduo, fixao e esterilizao das possibilidades de sentido, perdem

    muito no entendimento do movimento das teses para alm e aqum de suas exposies. O

    movimento de sentido do texto, aquele que no chega a se fixar em teses e que, ao contrrio,

    lana permanentemente as teses para alm e para aqum de si mesmas, pode passar em

    branco.

    As leituras sistemticas, segundo a anlise de Figueiredo, porque pressupem,

    perseguem e constroem a identidade de sentido do texto e eliminam os elementos

  • 28

    heterogneos (as alteridades do texto), teriam, respectivamente, um carter identificatrio e

    autoprotetor.

    O problema que a se coloca seria o do como entrar em contato com a alteridade do

    texto, com sua novidade, com a sua estranheza? Como no o submeter a um exame que o

    reduza a uma homogeneidade de sentido, a uma compreenso globalizante?

    A resposta de Figueiredo seria a aposta numa dupla leitura, uma prxima e sistemtica

    (contextualizante) e outra prxima e desconstrutiva, aquela que exploraria as tenses, as trilhas

    perdidas, as pequenas aberturas do texto que a leitura clssica tende a fechar, atentando para as

    impurezas, irregularidades e as fraturas do/no texto.

    A leitura desconstrutiva implicaria a colocao do texto no intervalo entre as intenes

    do autor e seus produtos no intencionais, assumindo que o texto outro para si mesmo.

    Intervalo entre uma homogeneidade perseguida e construda pela leitura sistemtica e as

    heterogeneidades que esta recalca, omite, esquece, exclui, expulsa, marginaliza, ignora etc., ou

    seja, nos elementos deslegitimados que compem o texto. Os traos diferenciais que o texto

    mobiliza sem poder controlar, e que permanecem como fundo invisvel nas leituras

    sistemticas, mas sem os quais nenhuma tese se forma.

    O pressuposto da desconstruo que na produo controlada de sentido (a ambio de

    quem escreve) so necessrios recursos e expedientes que extrapolam o sentido controlado. A

    tarefa da reconstruo de uma lgica no-identitria seria a de entrelaar as teses com suas

    condies de possibilidade. Quando este tipo de leitura d voz e eficcia aos elementos de

    desconstruo j em atividade no texto, pe em marcha um tipo de produo de sentido que

    instabiliza e temporaliza o sentido constitudo em uma leitura sistemtica e, assim, d mais

    vida e mais tempo ao texto.

    A atividade de leitura que estar em marcha neste projeto, objetivando mergulhar (sem

    se afogar) nas profundezas polissmicas da escritura de Gilberto Safra, tentar colocar suas

    ncoras neste tipo de posio interpretativa.

  • 29

    A escolha do recorte da obra

    O meu contato inicial com os escritos de Gilberto foi atravs da leitura da A Face

    Esttica do Self. Meu encantamento com algo que eu senti ser comunicado pelo autor se deu

    com este texto. A leitura do livro Momentos Mutativos em Psicanlise foi posterior a este

    momento, e o impacto desta outra leitura foi de ordem bem diferente do produzido pela

    primeira. Eu no sabia bem qual era a diferena entre os dois textos, e nem o que que tinha

    me encantado tanto no primeiro livro que li. Mas agora me propus a tentar saber e comunicar

    isso na forma deste texto-mestrado.

    Ento, para dar conta da proposta de trabalho, fizemos a escolha de recortar a obra de

    Safra em dois momentos: fazer a leitura sistemtica e a leitura prxima da sua tese de

    doutorado e de sua tese de livre docncia.

    Este recorte se justifica pela hiptese, levantada pela autora, de que h algo na

    construo do pensamento psicanaltico de Safra que se modificou consideravelmente entre

    estes dois momentos de sua trajetria pessoal, autoral e na sua formao como analista. Esta

    hiptese tambm se fortalece em impresses afirmadas na leitura que Figueiredo fez (na

    apresentao) do livro A face esttica do self, e na leitura que Tales A. M. AbSber fez (no

    prefcio) do livro A p-tica na clnica contempornea.

    Figueiredo trata de uma certa novidade que Gilberto Safra apresenta naquele texto, a

    saber, a nfase nas dimenses materiais e sensoriais da existncia, como contedo principal

    de sua tese, e a a singularidade na clnica psicanaltica e a singularidade do psicanalista,

    como questo, como fonte de impulso da escrita de Gilberto.

    AbSaber afirma: Em poucos anos, aqueles que separam a publicao de seu primeiro

    livro, Momentos Mutativos em Psicanlise, do segundo, A Face Esttica do Self, deu-se, no

    analista Gilberto Safra, uma mudana profunda, que pode ser percebida ao compararmos os

    dois trabalhos. No primeiro livro Gilberto faz uma acurada leitura da obra de Winnicott, mas

    ainda no se sentia em casa. Na viso do prefaciador, o que Safra constri com seu segundo

    livro o rumo da prpria morada conceitual, de sua terra mais verdadeira, equivalente ao que

    j criara com seu prprio consultrio. Este texto seria o primeiro representante da passagem

    mutativa humana vivida pelo prprio analista.

  • 30

    4. Lendo Momentos Mutativos em Psicanlise

  • 31

    Leitura sistemtica Momentos mutativos na psicoterapia psicanaltica foi a tese de doutorado em

    psicologia clnica defendida por Gilberto Safra no IPUSP em 1990. Feita sob orientao do

    professor doutor Ryad Simon, cinco anos mais tarde veio a se tornar livro, numa edio

    revisitada, intitulado Momentos mutativos em psicanlise: uma viso Winnicottiana.

    Neste segundo trabalho, Safra apresenta a tese de que na experincia do processo

    psicoterpico h dois movimentos distintos, um deles seria proporcionado pelo trabalho, a

    cada sesso, com as angstias, defesas e com a transferncia, e as transformaes e insights

    conseguidos somam-se durante longos perodos de trabalho. Este movimento foi chamado de

    perodos mutativos. O outro movimento distinguido seria quando h certa confiana j

    estabelecida no processo, e o paciente consegue expor uma busca na relao teraputica de

    uma necessidade psquica que no pde ser satisfeita ao longo de seu desenvolvimento

    emocional. Quando o encontro da necessidade psquica do paciente com a funo

    proporcionada pelo analista produz profunda modificao na maneira como o paciente v a si

    e o mundo, e no padro de suas relaes objetais, deu-se o que foi chamado por ele de

    momentos mutativos. O foco do trabalho recair sobre este tipo de movimento, explicitando

    suas condies de possibilidade na relao analtica, tanto do lado do paciente quanto, e

    principalmente, no do analista.

    A tese composta de cinco captulos, alm da introduo e concluso. O primeiro

    captulo trata da relao analtica e a possibilidade da emergncia dos momentos mutativos. O

    segundo trata da regresso e do aparecimento dos momentos mutativos. O terceiro da busca do

    objeto e sua relao com o momento mutativo, tendo dois subitens, um sobre algumas

    necessidades psquicas bsicas e outro sobre a busca e a lio de objeto. O quarto captulo vai

    tratar da resistncia, do Acting Out e sua relao com os momentos mutativos. Por fim, o

    captulo quinto e ltimo vem tratar da interpretao e sua relao com os momentos mutativos.

    H uma citao inaugurando o texto, apresentando o trabalho que vai ser lido, numa

    espcie de tom sintetizante daquilo que vai ser dito. Desta feita, Safra j traz Winnicott para

    dar esse tom primeiro de abertura de seu texto: Quando olho, sou visto, logo existo. Agora

    tenho condies de olhar e ver. Agora olho criativamente, e o que eu apercebo eu tambm

    percebo. Na verdade, tomo cuidado para no ver o que no existe para ser visto.

    Essa mxima Winnicottiana aponta o valor fundamental dado pelo autor para a

  • 32

    experincia de reconhecimento do self do beb pela me, que a ocupa o lugar do outro

    fundamental que traz o beb ao mundo dos que existem, dos que podero um dia tambm

    olhar, mas olhar para ver o mundo de maneira criativa. O valor do encontro com o outro que

    permite o desenvolvimento emocional e a insero do ser no mundo so temas caros a

    Winnicott. As contribuies de Winnicott, que apareciam como inaugurantes de um modo

    de se trabalhar na clnica quando da feitura de sua dissertao de mestrado, agora so tratadas

    como pontos cruciais de referncia do embate/jogo clnico com os pacientes; explcita a

    insero de Safra neste modo de pensar a psicanlise.

    Aqui a psicanlise que o autor faz e defende clara, sua vinculao a uma certa tradio

    psicanaltica aparece claramente . Por exemplo, quando vai tratar dos objetivos do estudo e seu

    modo de realizao, afirma: A abordagem terica empregada a psicanaltica (Freud, Klein,

    Bion, Winnicott etc...). O mtodo utilizado o psicanaltico que procura estudar o campo

    psquico atravs da observao da relao paciente-analista (transferncia-

    contratransferncia), delimitada pelo enquadre estabelecido (p. 11). Afirma ainda que o

    trabalho fruto da observao de processos psicoterpicos psicanalticos com pacientes de

    diferentes idades e quadros psicopatolgicos ao longo de doze anos de trabalho. Mas curioso

    observarmos o fato de que quando a tese publicada em forma de livro, revisitada anos mais

    tarde, no ttulo a nomeao psicoterapia psicanaltica substituda por psicanlise e

    acrescentada a frase uma viso winnicottiana (parece que acontece algum tipo de libertao

    quando a tese j foi feita, defendida e aceita nos meios acadmicos, e ento levada a um

    pblico muito maior, na forma de livro).

    J na primeira frase da introduo de sua tese, Safra afirma que o trabalho

    psicoterpico, de abordagem psicanaltica, segundo meu ponto de vista (grifo meu), visa no

    s buscar a recuperao da verdade do sujeito, mas tambm oferecer a ele a possibilidade de

    evoluo daqueles aspectos da vida psquica que jamais puderam se manifestar ou ser

    simbolizados (p. 01). Assim ele, logo de incio, nos informa que o que ele vai argumentar

    como tese algo que sustenta como ponto de vista seu, sustentado por sua vez em sua prtica

    clnica e no modo como a interpreta e significa. Seu trabalho textual ser elaborado na direo

    da justificao deste ponto de vista, tomado como plausvel desde essa posio tomada

    priori.

    Tendo marcado sua posio como autor desta tese desde o primeiro incio, Safra inicia

  • 33

    sua caminhada em direo defesa e ilustrao dos caminhos que seu pensamento percorreu

    para chegar a este lugar de fala enunciado j no incio. O que quer que seja que acontea em

    uma anlise, tanto a busca da verdade como a evoluo e simbolizao da vida psquica do

    indivduo, o que importa que isso s ser possvel atravs do vnculo com um outro ser

    humano (grifo meu). Este outro ser humano, no caso, o analista. Este vrtice do processo

    analtico um ponto sobre o qual o autor faz questo de parar e descer em profundidade,

    fazendo a anlise detalhada de sua posio frente ao modo de conduzir o processo

    psicanaltico, destrinchando os detalhes da conduo tcnica do processo em que esse vnculo

    vai poder se dar.

    O desenvolvimento positivo deste processo de vnculo, ou seja, o encontro com a

    verdade ou a evoluo e simbolizao da vida psquica do paciente, segundo o autor,

    determinado pelo modo de compreenso por parte do psicoterapeuta do que ocorre nos

    dinamismos do vnculo paciente-terapeuta e de como isto levado a cabo nas sesses que

    compem o processo complexo e, na maioria das vezes, longo de uma anlise.

    Sua introduo caminha no sentido de refazer o processo histrico (de maneira breve)

    segundo o qual a relao analista-analisando passou a ser vista como fator bsico de

    transformao do psiquismo do paciente, ou seja, vai tratando da histria do fenmeno da

    transferncia-contratransferncia.

    Neste caminho faz uma aluso decisiva em seu posicionamento neste campo, quando diz

    que Nas ltimas duas dcadas ao lado dos estudos sobre contratransferncia houve tambm

    um aprofundamento dos conhecimentos sobre o desenvolvimento do ego, do self, das relaes

    objetais, e o relacionamento me-beb, etc...O processo psicoterpico passa a ser visto no s

    como meio de alcanar o insight, mas tambm com a preocupao de restaurao do self do

    paciente. H uma mudana no enfoque dos objetivos da anlise, do conceito de cura passa-se

    ao de evoluo da personalidade (p. 2). Aqui o autor se filia escola de pensamento em

    psicanlise que acredita nesta mudana de enfoque e nesta concepo sobre o que sejam os

    objetivos de uma anlise, como claramente o faz Winnicott. Ento, se os objetivos do

    tratamento analtico esto claramente posicionados para Safra, ele vai adiante. No se

    preocupa, neste momento, em dar justificativa ao seu posicionamento, levando em conta

    outras formas de pensar a cura ou de, ao menos, coloc-las em voga para sustentar sua

    concluso.

  • 34

    Reconhece que o trabalho psicoterpico visa elaborao dos conflitos intrapsquicos e

    o fornecimento ao paciente das funes que no foram proporcionadas pelo meio ambiente ao

    longo de seu desenvolvimento. Sendo assim, vai apresentando os autores que, na literatura

    psicanaltica, preocuparam-se de forma mais clara com o trabalho psicoterpico feito nestas

    duas dimenses, fazendo uso ento de Ferenczi, Balint, Khan, Margaret Little e Winnicott.

    A partir de ento, indica sua concordncia com Little (1966) quando esta discute a

    tcnica da anlise da transferncia em pacientes borderlines, descrevendo trs escolas de

    pensamento do ponto de vista da tcnica. A primeira seria a clssica, com predomnio do uso

    da interpretao e que tendem a considerar como no analisveis os pacientes que no se

    adaptam tcnica empregada; a segunda acredita que uma experincia corretiva necessita ser

    suprida ao pacientes, para que suplante as experincias originais do paciente, sem um trabalho

    verbal, no sendo necessrio ligar a experincia emocional com a cognitiva. Para Little, seria

    terapia, mas no psicanlise (grifo meu); a terceira, com a qual Safra estar de acordo,

    acredita que alguns pacientes apresentam um cuidado materno que no foi suficientemente

    bom, no incio de seu desenvolvimento, e essas reas no so acessveis somente com o uso da

    interpretao verbal. O analista precisa suprir funes semelhantes quelas proporcionadas

    pela me suficientemente boa ao beb, antes que o ego possa utilizar-se de interpretaes

    verbais, o que ser necessrio como meio de promover a integrao do paciente. Os analistas

    deste grupo permitiriam ao paciente a liberdade para direcionarem a anlise de forma que suas

    necessidades pessoais possam ser supridas e trabalhadas.

    Esta necessidade que pode ser suprida usa do fenmeno da regresso para poder

    aparecer e ser atendida. Safra aqui vai usar Winnicott quando este menciona que os pacientes

    que precisam regredir encontraro no setting as funes que lhes permitiro resgatar os

    aspectos do self que ficaram detidos em seu desenvolvimento. Este uso especfico do setting

    indica que a abordagem clnica escolhida a que considera fundamental a participao do

    meio ambiente na estruturao da personalidade do paciente (grifo meu). Para tratar do

    setting, Safra recorre a Freud, Milner e Bleger.

    Ento, com Winnicott, se o paciente est regredido, haveria duas pessoas na sala,

    paciente-beb e analista-me. Nestes casos o setting representaria a me, na medida em que

    transmite segurana pelas funes que ir desempenhar e representar ao longo do processo. As

    funes seriam o holding, a manipulao e a apresentao de objetos. De acordo com Safra,

  • 35

    dentro do processo psicoterpico analtico, essas funes seriam exercidas pela conjugao do

    manejo com o trabalho de interpretao. Ento o que se sucede so explicaes mais

    pormenorizadas sobre o que seria o manejo, o holding, a manipulao e a apresentao do

    objeto.

    H tambm consideraes sobre o setting numa situao onde o paciente no estaria to

    regredido e o vnculo da sesso seria triangular, onde o enquadre representaria ento o pai. E

    ainda consideraes sobre o setting quando a regresso profunda, a ponto de s existir uma

    pessoa na sesso, sendo o analista objeto subjetivo do paciente.

    Ento, dentro da introduo, h o subitem Objetivos do estudo e Modo de realizao.

    Safra parte do pressuposto que dentro do processo psicoterpico existem dois movimentos

    ajudando na mobilizao, transformao e evoluo da personalidade do paciente. O primeiro

    seria os perodos mutativos, proporcionado pelo trabalho, a cada sesso, com as angstias,

    defesas, transferncia. o trabalho feito no decorrer de longo perodo, onde os insights e

    transformaes conseguidos somam-se ao longo do tempo. O segundo seria os momentos

    mutativos, quando j h certa confiana estabelecida, o paciente sente que o analista lhe d o

    holding necessrio, e o paciente buscar expor nesta nova relao uma necessidade que no

    pde ser satisfeita em seu desenvolvimento, na esperana de que o analista o compreenda,

    satisfazendo assim, de forma simblica, o que busca compreender para completar a evoluo

    de sua personalidade. O momento mutativo seria o encontro desta necessidade com o objeto.

    O trabalho da tese procura enfocar e esclarecer os dinamismos na relao paciente-

    analista que favorecem o aparecimento do fenmeno do momento mutativo. Safra cr que a

    compreenso deste fenmeno pode favorecer a ampliao de nosso trabalho com nossos

    pacientes de forma a ser possvel acompanharmos a busca que empreendem de completar o

    seu desenvolvimento psquico. Seu doutorado visa esclarecer o que quer dizer e apresentar

    sobre isso, refazendo para tanto os caminhos tericos-argumentativos dos autores que seguiu e

    deixando as claras quilo com o que concordou e descordou, e, quando preciso, deixando

    esclarecido o seu ponto de vista, o que realmente acredita, independente do que foi dito

    anteriormente.

    A abordagem terica a psicanaltica (Freud, Klein, Bion, Winnicott etc...) e o mtodo

    utilizado o psicanaltico, onde o campo psquico estudado atravs da observao da relao

    paciente-analista (transferncia-contratransferncia), delimitada pelo enquadre estabelecido.

  • 36

    Afirma qual seria sua concepo de cura: o trmino do processo realizado de comum

    acordo, quando se considera que os objetivos do trabalho foram alcanados (maior tolerncia

    depresso, capacidade de reparao, maior contato com a vida interior, prazer de usufruir a

    vida e estabelecer vnculos significativos, maior capacidade de auto anlise, etc...) (p. 11).

    Afirma que os captulos da tese so maneiras de abordar o fenmeno dos momentos

    mutativos sob a luz de alguns conceitos fundamentais da tcnica psicanaltica (transferncia-

    contratransferncia, regresso, busca do objeto, resistncia e interpretao). E diz que vai usar

    os casos clnicos (so dez ao todo, e sete so dele prprio, os outros so de Winnicott, Hanna

    Segal e Racker) para permitir a observao dos conceitos discutidos na prtica clnica.

    No captulo 1 vai tratar da relao analtica e das possibilidades da emergncia dos

    momentos mutativos. Comea recorrendo a Freud e criao e evoluo do conceito de

    transferncia. Vai usar Ferenczi logo em seguida, acompanhado no decorrer da argumentao

    por Melanie Klein, Ana Freud, Lagache, Bion e Winnicott. Quando chega em Winnicott,

    tratando de seu modo de entender a transferncia, faz uma digresso para fazer compreender o

    que seria a funo de me suficientemente boa no desenvolvimento do beb.

    Feito este caminho e tendo claramente alado ncoras nos conceitos de rverie de Bion

    e no de me suficientemente boa de Winnicott, caminha na direo da argumentao da

    importncia da instrumentalizao da personalidade do analista para que o processo

    psicanaltico progrida de maneira satisfatria, e para isso, preciso levar em conta a questo

    da constratransferncia. Para tanto recorre novamente Freud, passando por Theodor Reik,

    Paula Heiman, Racker, Leon Grinberg, Bion, Klein, Money Kyrle, Green e Winnicott. Afirma

    que pensa que o essencial parece ser que o analista possa, graas a sua anlise pessoal,

    observar as suas vivncias contratransferenciais e auto-analis-las, para que possa

    compreender mais amplamente o seu paciente.

    Ento faz uma questo pertinente ao seu modo de conceber a transferncia-

    contratransferncia: O que possibilita ao analista funcionar em seu trabalho como a me

    suficientemente boa, para que possa fornecer ao seu paciente intervenes e interpretaes

    adequadas ao seu momento psquico? (p. 21). Sua resposta interessante e indicativa,

    novamente, de seu jeito de fazer psicanlise, como disse anteriormente. Vale transcrever a

    resposta na ntegra:

    A anlise pessoal do analista deve ter proporcionado a ele o estabelecimento de uma

  • 37

    confiana no s no mtodo que emprega, mas tambm na importncia e benefcio conseguido

    com o aumento do seu contato com a sua realidade psquica. Talvez sejam esses aspectos que

    contribuam para o estabelecimento daquilo que Bion chamou de f. O analista, atravs desta

    confiana ou f, busca persistentemente a verdade psquica de seu paciente, com a conscincia

    de que isto que ele pode oferecer de bom e enriquecedor quele que o procura. O vnculo

    com o seu paciente estar marcado pela solidariedade, pelo reconhecimento do sofrimento

    psquico que ele conheceu e conhece, frente ao qual se instrumentalizou pela elaborao das

    ansiedades primitivas conseguida em sua anlise pessoal.(...). o fato de poder estar em

    contato com o beb que j foi e com os objetos que foram introjetados ao longo dos anos, que

    contriburam com cuidados das mais diversas formas para que esse beb chegasse a sofrer uma

    evoluo. Este aspecto, bastante importante, combinado com os demais, permite que o analista

    possa fornecer ao paciente as interpretaes necessitadas por ele de uma forma que permita

    que ele as assimile (p. 21 e 22).

    Parodia Winnicott afirmando que poder-se-ia dizer que o analista suficientemente

    bom necessita ter confiana no seu mtodo, f na verdade, ser solidrio a seu paciente e estar

    em contnuo contato com os fundamentos de seu psiquismo, para que todos esses princpios

    possam ser usados em funo do seu trabalho (p. 22).

    No decorrer do captulo vai adentrando na teoria Winnicottiana para tratar do interjogo

    transferncia-contratransferncia, trazendo o conceito de espao potencial, espao

    transicional, bom objeto e o brincar, tanto do paciente quanto do analista.

    Apresenta ento um caso clnico para ilustrar uma experincia de impasse vivido no

    interjogo transferncia-contratransferncia seguido de momentos mutativos, onde o

    surgimento do espao potencial mudou os rumos do trabalho que estava sendo feito. Termina

    o captulo citando Rosenfeld, falando da importncia dada por este autor ao fato do analista

    precisar estar realmente em contato com o seu paciente para que possa recriar a sua tcnica, a

    fim de que ela se adeque s necessidades do paciente, estando cnscio de como o prprio

    setting e a sua tcnica possam exercer efeito mortalizador (!).

    No captulo 2 vai tratar da regresso e do aparecimento dos momentos mutativos.

    Comea novamente com Freud, acompanhando a concepo e evoluo do conceito de

    regresso. Passa para Ferenczi, afirmando que este autor parece ter indicado toda uma via de

    investigao em Psicanlise seguida por vrios autores, tais como: Winnicott, Balint, Khan,

  • 38

    Mahler, Milner etc...

    Passa para Kris, Knapp, Ana Freud, Grinberg, Langer, Liberman e Rodrigu, Winnicott

    e Balint. Apresenta ento dois casos clnicos a fim de discutir a discriminao feita por Balint

    das regresses benignas (objetivo o resgate de aspectos da personalidade) e malignas.

    No fim do captulo afirma que do acompanhamento de processos de trabalho com

    diversos pacientes, entre eles os casos descritos no prprio captulo, poderia-se postular dois

    movimentos no trabalho teraputico, o dos perodos mutativos e o dos momentos mutativos.

    Aqui aparece, a meu ver, a definio mais cuidadosa dos momentos mutativos, a saber:

    Seriam momentos onde o paciente aps um trabalho de perodos mutativos, sente-se

    confiante de regredir e buscar na figura do analista um objeto com quem possa estabelecer

    uma experincia prototpica, que no havia sido possvel no passado do paciente. Esta nova

    experincia no s muda a viso que o paciente tinha do mundo, das relaes objetais, e de si

    mesmo, mas tambm reintegra no seu psiquismo aspectos que at ento se encontravam

    dissociados. Trata-se de resgates de aspectos do eu que nunca antes haviam sido

    experimentados como algo positivo. H uma mudana no self do paciente. (p. 55).

    Esta nova forma de vivenciar o seu eu acontecer se o paciente sentir a possibilidade de

    usar o analista como um novo objeto que o ajude a resgatar aspectos do prprio eu que nunca

    antes foram integrados e vivenciados de forma positiva. Este processo ocorre dentro do

    fenmeno da regresso, que fornece as condies necessrias para que o objeto necessitado

    possa ser encontrado e ofertado. A busca deste objeto o tema do captulo terceiro.

    Neste terceiro captulo da tese, Safra vai tratar da busca do objeto e sua relao com os

    momentos mutativos. Repete tambm aqui o movimento de iniciar a concepo e evoluo do

    conceito de noo de objeto em psicanlise a partir de Freud. Seguindo, passa por Fairbain,

    Winnicott, Klein e Dolto. Mas afirma categoricamente que em minha opinio no h funo e

    estrutura psquica que no nasa da relao com um objeto(p. 59). A partir deste

    posicionamento pergunta-se: quais seriam as necessidades psquicas que um objeto precisaria

    atender ao indivduo para que este possa estruturar-se e fazer evoluir a sua personalidade? (p.

    60). Na tentativa de responder a esta questo abre os subtitens A- algumas necessidades

    psquicas bsicas e B- A busca e a Lio de objeto.

    Neste item A afirma que fazer um levantamento das necessidades psquicas que o objeto

    precisa satisfazer para que haja a evoluo da personalidade seria tarefa despropositada para o

  • 39

    fim a que se justifica o trabalho, e, em sendo assim, acha mais legtimo tentar abordar algumas

    dessas necessidades para clarear o fenmeno que se est estudando (os momentos mutativos).

    Enumera e discorre sobre seis necessidades. So elas:

    1. Necessidade do beb e do paciente de encontrar um continente para as suas vivncias

    psquicas. Para a argumentao deste item traz a contribuio de Bion.

    2. Necessidade de sustentao ou holding, como funo materna necessria ao

    desenvolvimento. Para a argumentao deste item traz a teorizao de Winnicott.

    3. Necessidade de manipulao ou lidar, do que decorre o processo de personalizao.

    Para tanto Winnicott quem fornece o ambiente terico, mas faz referncia a Bick e Anzieu.

    4. Necessidade da funo de espelho da me. Para tanto recorre a Lacan, Winnicott e

    Kohut, mas o tom de suas elaboraes Winnicottiano.

    5. Necessidade da apresentao de objetos, o que faz com que a criana se sinta real e

    consiga relacionar-se com um mundo concreto de objetos e fenmenos. Para tal argumentao

    tambm traz as teorizaes de Winnicott.

    6. Necessidade de que as pulses pr-genitais sejam interditadas e que um novo destino

    seja dado pulso para que a evoluo psicolgica da criana possa acontecer. Usa um caso

    clnico para exemplificar a funo do objeto terceiro, interdito.

    No item B Safra vai tratar especificamente da conceitualizao winnicottiana sobre o

    fenmeno da busca de um objeto. Trabalha ento com a construo terica e suas derivaes

    para a prtica clnica advindas do jogo da esptula, com os perodos de hesitao, de posse e

    de emergncia da agressividade. A experincia completa com o objeto, ou seja, ousar querer e

    pegar a esptula, tomar posse dela sem alterar a estabilidade do meio ambiente, age como

    lio de objeto. Da deriva a afirmao que vem mais adiante de que O momento mutativo

    aproxima-se bastante do que foi descrito no jogo da esptula(p. 73).

    A seguir descreve dois casos onde podem ser observados os momentos mutativos de que

    trata a tese, resultado do encontro da necessidade psquica com o objeto. Um caso do

    prprio Safra e o outro de Hanna Segal. Parece usar o caso relatado por um outro autor em

    psicanlise para demonstrar que inmeras vezes o fenmeno dos momentos mutativos so

    descritos na literatura psicanaltica, mas apesar destes elementos aparecerem com freqncia,

    no so habitualmente abordados e conceitualizados a fim de poderem ser integrados dentro

    da tcnica empregada na conduo dos tratamentos.

  • 40

    No captulo quarto vai tratar da resistncia, do Acting Out e sua relao com os

    momentos mutativos. O movimento de retornar a Freud repetido quando vai pensar a

    concepo e conceitualizao da resistncia. Mas passa por Reich e Anna Freud. Ento vai

    afunilando a noo de resistncia chegando na manobra especial da resistncia que

    conhecida na literatura com o nome de atuao. Nesta reviso vai a Freud, Fenichel,

    Greenacre, Rosenfeld, Lagache, Bion, Rangell, Khan e Winnicott.

    Sua concluso de que preciso discriminar a atuao como forma de descarga, de

    ataque ao aparelho psquico, do ato que expressa um acontecimento da histria psquica do

    indivduo que no pode alcanar o nvel da representao plstica ou verbal. H tambm o ato

    simbolizante, que seria o ato realizado pelo sujeito dentro de um contexto que modifica a

    maneira do indivduo ver a si mesmo e ao mundo. O importante que este ato surge frente a

    um objeto (presena psquica do objeto) que capaz de reconhecer a importncia daquele

    movimento (seria a lio de objeto descrita anteriormente).

    Dois casos so descritos para ilustrar a maneira como Safra enxerga o uso que pode ser

    feito da resistncia. Cito sua sntese:

    A resistncia s vezes forma silenciosa de comunicao, a atuao alm de

    comunicao pode ser tambm momento simbolizante. Os aspectos positivos destes

    fenmenos s podero ser utilizados produtivamente se o analista puder resgatar o sentido do

    ato, recolocando-o dentro do contexto da histria de vida do sujeito e da busca do

    desenvolvimento pelo paciente atravs daquele fenmeno. Se este momento simbolizante for

    interpretado como ato destrutivo (...), teremos perdido um elemento frtil para a expanso da

    conscincia do paciente e do contato consigo mesmo (p. 97).

    No captulo 5 o autor vai tratar da interpretao e de sua relao com os momentos

    mutativos. Aqui ele no retorna a Freud, vai direto a Winnicott e sua conceitualizao da

    noo de apresentao de objeto.

    Antes de iniciar o caminho com Winnicott, afirma que nos captulos anteriores abordou

    as questes e os princpios que considera fundamentais para nortear o trabalho de

    interpretao de forma satisfatria. Oferece sua prpria maneira de conceber esses princpios,

    que penso valer a pena transcrever na ntegra:

    a) a importncia de no trabalho de anlise dos objetos internos discriminarmos o que

    resultado das distores e ataques do paciente daquilo que foi contribuio de um meio

  • 41

    ambiente deficiente de determinada rea.

    b) levar em conta a psicologia psicanaltica evolutiva para observar o que o paciente

    necessita, o que desejo compulsivamente repetido, e que angstias o ameaam ou paralisam.

    c) nfase no fato que o indivduo desenvolve-se em um meio ambiente e que o enquadre

    psicoterpico tambm um novo meio ambiente, que graas ao processo transferencial pode

    ser utilizado pelo paciente de forma simblica para o resgate de novos aspectos da

    personalidade, e para o estabelecimento de estruturas que no havia anteriormente sido

    possvel adquirir. (p. 99).

    Ento ele vai relatar um caso de Winnicott, retirado do livro Holding and

    Interpretation (1986). Faz este movimento acreditando que a sesso exemplifica de maneira

    clara a tcnica de interveno e interpretao naquelas situaes onde surge a possibilidade do

    encontro da necessidade com o objeto procurado, o que est chamando de momentos

    mutativos. Neste momento vai trazer algumas contribuies de Racker, Klein e Alvarez de

    Toledo sobre diferentes formas de interpretar e de conceber a interpretao na clnica. Ento

    traz um caso descrito por Racker.

    Por fim vem seu esforo de concluso da tese. Seu primeiro pargrafo j aponta um tom

    que comparece em toda a sua argumentao. Afirma que os fenmenos que acontecem na

    anlise dependem no s das caractersticas psicolgicas do paciente, mas tambm das

    caractersticas psquicas do analista.

    Este analista est presente com sua pessoalidade durante todo o processo, ou seja, traz

    consigo suas experincias de vida, sua anlise pessoal, sua viso de mundo e de homem e seus

    conceitos tericos, elaborados ao longo de sua prtica como clnico. O trabalho da tese visa,

    segundo o autor, instrumentalizar a personalidade do analista, trazendo contribuies acerca

    da melhor compreenso da psicologia do desenvolvimento e da participao do meio ambiente

    na evoluo psquica do indivduo. Estas noes complementam o conhecimento acumulado

    pelas observaes de diversos autores sobre os dinamismos intrapsquicos.

    Porm ele cr que no foram integrados de forma suficiente na tcnica analtica os

    conhecimentos sobre as funes exercidas pelo meio ambiente no desenvolvimento do

    indivduo. Acredita que uma maneira de fornecer ao profissional um referencial interno sobre

    o desenvolvimento do psiquismo em interao com o meio ambiente, permitindo ao

    profissional uma maior compreenso das necessidades de seus pacientes a prtica clnica

  • 42

    com crianas. Esta afirmao curiosa, aponta sutilmente para o fato de que se andarmos mais

    prximos das crianas, mais prximos estaremos de alguns conhecimentos que no so

    necessariamente formulados e transmitidos pelas teorizaes clssicas sobre a anlise com

    adultos... Safra afirma que podemos adquirir este conhecimento sendo ns mesmos analistas

    de crianas, e no seguindo dogmaticamente escolas de formao em psicanlise.

    O analista, frisa Safra, deve estar em contato com o paciente, compreendendo as

    flutuaes psquicas deste. O analista no deve apegar-se excessivamente a uma teoria ou

    tcnica psicanaltica, isto o faz perder em flexibilidade, o que no o permite adaptar-se s

    caractersticas do paciente, a fim de poder efetivamente realizar o trabalho que precisa ser

    feito em funo do paciente e no de uma teoria especfica. O analista precisa poder recriar a

    sua tcnica para que ela se adapte s caractersticas psquicas apresentadas pelo seu paciente

    naquele momento especfico da sesso.

    Ele trata das vicissitudes do fenmeno do momento mutativo, fazendo um apanhado

    geral do que levantou e tratou em sua tese. Analisa as condies de possibilidade para este tipo

    de trabalho ocorrer, no analista de forma privilegiada, no paciente, de forma bem menos detida

    e no desenvolvimento do processo de vnculo da dupla.

    O momento mutativo seria um processo que acontece em anlise quando o analista pode

    sustent-lo junto ao seu paciente. Seria de caractersticas generalizveis, processo comum a

    diversos pacientes desde que se tenha olhos para ver e ouvidos para escutar o que ali est

    sendo pedido como experincia. Este ver e ouvir se d pelo aprendizado de alguns pontos da

    teoria e tcnicas psicanalticas que Safra vem querendo demonstrar neste trabalho. A

    instrumentalizao da personalidade do analista, para que este possa sensibilizar-se com este

    tipo de manifestao clnica e de forma de atuar na clnica tambm o objetivo do seu

    trabalho.

  • 43

    Leitura prxima desconstrutiva

    Gilberto Safra escreve uma tese de doutorado. No decurso de sua formao acadmica,

    este gesto faz sentido. Acompanhando seu movimento aparentemente lgico, em escalada

    crescente, do mestrado ao doutorado, um desenvolvimento do contexto de problemas,

    argumentos, base de sustentao terica e formas de anlise do objeto percebido sem

    grandes esforos.

    A descrio desses movimentos da tese pode ser feita de um modo simples, seguindo a

    evoluo aparentemente coerente do texto, em sua suposta costura discursiva unitria.

    Movimento de acompanhamento que j foi engendrado anteriormente. Mais de uma dezena de

    vezes. E, estranhamente, pode ser feito de uma forma repetitiva, estril, milhares de vezes,

    numa roda interpretativa idntica a si mesma.

    Uma lgica aparente o que salta aos olhos. A lgica que aparentemente se deixa ver.

    Aqui percebo que uso metforas da viso para tentar me fazer entender, ou dar corpo ao que

    quero transmitir. O que salta aos olhos no necessariamente capturvel pelo ouvido... Ficar

    em silncio, um silncio prprio da escuta, poderia me fazer encontrar outras trilhas

    interpretativas, no repetitivas, dar lugar de passagem a um outro movimento possvel que se

    delinearia, tambm, naquela tentativa de produo de sentido e organizao da realidade que

    o texto de um doutorado.

    Falar da dimenso da escuta me permite dizer que um (outro) procedimento de anlise

    entra em curso. Uma outra plataforma de leitura se deixa habitar. E ficando l um tanto,

    prestando ateno de uma maneira flutuante, de um modo menos comprometido com o que

    manifestadamente est sendo dito no discurso, de um modo menos preconceituoso, de um

    modo atento aos detalhes, outro horizonte de criao se deixa delinear.

    E eu precisava deste outro lugar, de um lugar vazio, capaz de ser fecundado. Esse

    movimento de disponibilidade ao novo, ao irrelevante, ao inesperado, ao contraditrio, ao

    diferente, ao invisvel, a um ainda no nomeado, a um vazio, ao no saber, ao estrangeiro,

    um movimento tico em reverncia ao outro, mas exige daquele que quer ser um visitante uma

    disposio para a desterritorializao, para o desenraizamento.

    Ento coloquemos assim, vou sair de mim para visitar uma terra estrangeira. Preciso ir

    de mochila vazia para essa viajem. Se no for, volto de l sem quase nada do outro. Mas vou

  • 44

    comigo mesma, e essa minha bagagem, essa que j meu corpo, no pode ficar em casa. Ela

    me faz poder estar em relao ao mundo. Ao menos a mochila-corpo-eu precisa vir de minha

    terra natal. Ento tambm vou com meus instrumentos de captao da realidade. como se o

    tempo da viagem se dividisse em trs momentos: o da procura imediata por identificaes, o

    do estranhamento (de si e do outro), e o do retorno para casa, com uma modelagem nova, feita

    de idntico e diferente, mundo antigo fecundado pelo novo. Mochila velha carregando novas

    bagagens.

    Gilberto Safra escreve uma tese de doutorado. E eu quero entender o que isso significa.

    Para ele. Para mim. Para alm da propaganda que foi feita, produto de uma viso de sobrevoo

    por aquele territrio, sem muita perspectiva crtica. Eu preciso viajar para dentro deste mundo

    que ele criou. Preciso habit-lo. Preciso fazer morada l por um tempo. E mais, preciso dar

    notcia, nesse meu dirio dirio de terra, fruto de uma observao participante, do que

    pude ver e ouvir, dos climas e atmosferas aos quais me submeti, das trilhas inesperadas por

    onde andei, alm das j conhecidas estradas reais. Preciso conseguir dizer qual foi minha

    experincia com aquele territrio construdo, como pude desintegr-lo para interpret-lo, ou

    interpret-lo para desintegr-lo e, enfim, recri-lo, no mais repetindo uma ladainha.

    * * *

    Na minha viagem (que na verdade a conjuno de muitas formas de viajar para esta

    terra), ento, levei junto um dirio. As anotaes dispersas que fiz foram reorganizadas para

    gerar um sentido argumentativo um tanto mais coerente, de um modo em que o leitor possa

    me acompanhar.

    Fui ao texto do doutorado de Gilberto depois de j o ter visitado muitas vezes. No tinha

    lido o texto de acordo com instruo prvia, uma vez que este texto no tinha sido interpretado

    antes por ningum que quisesse ter deixado este feito registrado formalmente.

    Minto. H um pequeno manual de viagem para este texto, o prefcio do analista de

    Safra, Manoel Lauriano Salgado de Castro. Detalhe: s sabemos que o prefaciador foi seu

    analista quando consultamos a tese original disponvel na biblioteca do IPUSP, onde consta,

    nos agradecimentos, uma meno a Manoel: Ao Dr. Manoel Lauriano Salgado de Castro,

    meu analista, a quem devo a minha formao, por ter me acompanhado durante tanto tempo

    com sua dedicao e disciplina, permitindo-me encontrar a pessoa que sou. Na verso

    publicada em forma de livro, essa informao omitida, ou melhor, no est explcita.

  • 45

    Este um detalhe. Aparentemente irrelevante.

    Nas minhas leituras anteriores, esse detalhe tinha passado despercebido, em marcha

    rpida fui seguindo a linha argumentativa das elucidaes s quais Manuel se deteve. um

    prefcio longo, de quatorze pginas, muito detalhado.

    Mochila cheia de mim (captura narcsica?), vida por devastar a terra estrangeira e traz-

    la logo para os meus domnios, no quis saber muita coisa do prefcio. Aquilo devia ser s a

    ante-sala do texto, queria pular. Queria ir logo ao que interessava, ao texto do Gilberto.

    Mochila esvaziada a duras penas, com o passar do tempo, das diversas leituras do

    mestrado, da investigao sobre mtodos de leitura e interpretao de textos, e com as

    frustraes acumuladas pelo (bom) confronto com o grupo de orientao e orientador (outra

    terra estrangeira), que me fizeram compreender existencialmente que correr ao encontro do

    texto de Gilberto, como quem quer um osis, pode dar em iluso de gua ou em deserto,

    comecei a prestar mais ateno aos detalhes.

    Estava lendo o texto como um todo coerente (fluido e harmnico, como, alis, o

    qualifica Manoel), com comeo, meio e fim... nas palavras do prefaciador: um texto

    progressivamente elucidativo e direcionado meta proposta(p.7, Safra, 1995). Como uma

    histria que s pudesse ser contada de um jeito. E, assim sendo, o prefcio era s a ante-sala

    do texto.

    Ser que este texto poderia ser uma histria a ser contada? E se , por que Safra chama

    seu analista para contar a histria de seu doutorado?

    Sei que nesse meu dirio, o prefcio ganhou lugar de destaque. Ele se transformou em

    um detalhe extremamente relevante.

    Olhei e li, ou escutei, no silncio daquele arcabouo bem construdo nos moldes

    acadmicos, um movimento do paciente-analista Gilberto Safra em relao ao seu analista e ao

    seu processo de formao em psicanlise. Precisei fazer a pergunta: por que Gilberto chamou

    seu analista para fazer o prefcio de seu primeiro livro publicado? Estaria a em curso a

    histria silenciosa de um processo de constituio do lugar dele de analista?

    * * *

    Ento, fui ler o texto de novo, pelo ponto de vista deste detalhe que ganhou relevncia.

    Fiquei chocada, nunca tinha concebido/percebido aquele texto, ou a obra de Safra, podendo

    ser lida como um longo e rduo processo de autorizao de seu lugar de analista, com todo o

  • 46

    potencial de novos sentidos e destinos que esta perspectiva propicia. Eu ouvi um narrador-

    paciente.

    Havia ali uma lgica inaparente?

    O texto comeou a desmoronar...

    O ttulo do livro j havia comeado a piscar de um modo diferente. Porque ele estava

    de fato diferente quando a tese virou livro. Na verso da defesa da tese de doutorado, o ttulo

    era Momentos Mutativos na Psicoterapia Psicanaltica, na verso para publicao o ttulo

    passa a conter a palavra psicanlise, sendo agora Momentos Mutativos em Psicanlise:

    uma viso Winnicottiana. Como se pode notar, alm da afirmao da psicanlise, h a

    nomeao de uma linhagem bem especfica dentro da psicanlise. Que no exatamente o tipo

    de psicanlise feita pelo seu analista, nem o tipo de psicologia clnica feita por seu orientador

    de doutorado (Ryad Simon especialista em psicoterapia psicanaltica).

    A histria do texto de Gilberto pode ser lida (ou contada) como sendo, nas palavras de

    AbSber j citadas anteriormente, a histria de sua revoluo winnicottiana, uma

    arquitetura construda a servio da apropriao de um lugar mais prprio. A histria de um

    paciente-analista que quer forjar uma morada prpria, diferente da encontrada em sua anlise-

    natal.

    Penso que seu texto pode ser entendido como um texto-testemunho, uma tentativa de

    dizer, fora da anlise, mas ainda dentro dela (chama seu analista para compartilhar seu dizer)

    que est tentando se emancipar, tentando se diferenciar, tentando virar analista em sua prpria

    casa.

    Presta reverncia a muitas autoridades (orientador, analista, Klein...), mas o faz de modo

    rebelde, d espao ao outro e, ainda assim, afirma, de modo enftico (mas silencioso),

    enrustido, seu prprio espao. Demonstra que tem algumas dificuldades para se firmar, parece

    que seu processo de autorizao bem penoso, mas, apesar e por causa de seu analista e de

    sua anlise, ele vai conseguindo construir seu texto-lugar.

    O prefcio de seu analista muitas vezes visa traduzir o texto de Gilberto para uma

    linguagem kleino-bioniana, alm de acrescentar contedos externos ao tema do livro. No

    dedica o texto ao Gilberto, e sim ao leitor, que, segundo sua classificao, provavelmente

    um estudante ou um jovem profissional vido por desenvolvimento, o qual no sabe sequer o

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    que a transferncia. um texto bastante professoral (no mau sentido do termo), que deixa a

    impresso de infantilizao do leitor.

    De acordo com essa perspectiva, este texto-testemunho-lugar feito por Gilberto Safra

    um texto endereado aos clnicos e clnica psicanaltica. Concentra-se e enraza-se no campo

    das experincias clnicas. um texto tcnico, um texto sobre ensinamentos de tcnica

    psicanaltica, sem dvida. Um texto para analistas que querem aprender as condies para

    estar no consultrio, palavras de AbSber em seu prefcio.

    Gilberto tematiza sobre o encontro psicanaltico, sobre as dimenses da

    intersubjetividade, sobre a arquitetura das relaes fundamentais para a construo do

    psiquismo. Trata das dimenses intrapsquicas, mas sua nfase recai sobre as relaes de

    objeto.

    quase um apelo ao valor de salvao que h no encontro com o outro, desde que esse

    ou