Brahman e Ananda. Flavia Bianchini

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BRAHMAN É ÃNANDA BIANCHINI, Flávia. Brahman é Ãnanda. Pp. 101-125, in: GNERRE, Maria Lúcia Abaurre; POSSEBON, Fabrício (orgs.). Cultura oriental: língua, filosofia e crença. VoI. 2. João Pessoa: Editora da UFPB, 2012. Flávia Bianchini Especialista em Yoga - UNIBEM Mestranda em Ciências das Religiões - UFPB E-mail: flaviabianchini@gmaiLcom Introdução A compreensão do pensamento filosófico indiano apresenta grandes dificuldades. O presente texto apresenta o conceito de Ãnanda (Bem-Aventurança, Felicidade, Beatitude) e sua relação com Brahman (o Absoluto, Realidade Última, Consciência Suprema). Essas são duas concepções espirituais discutidas nas Upanishads " - uma coletanea de escrituras indianas - também chamadas coletivamente de Vedanta ou o fim do Veda, uma denominação que sugere que elas contêm a essência dos ensinamentos vêdicos (RADAKRISHNAM, 1989, vol. 1, p. 137). Veremos adiante, no texto, estas informações de modo mais sistematizado. Algumas das Upanishads afirmam que Brahman é Sat- Chit-Ãnanda (Verdade Absoluta, Conhecimento ou Consciência Absoluta, Felicidade ou Bem-Aventurança Absoluta). Não pretendo analisar Brahman em relação à sua manifestação enquanto Sat ou Chit - Verdade e Consciência - sendo o presente texto uma análise de Ãnanda enquanto Felicidade Pura, como atributo de Brahman e como essência do próprio Brahman; e é assim que constataremos a relação 32 Costuma-se dizer que as Upanishads são em número de 108. Suas datas, não podem ser fixadas com segurança - a certeza é de que as mais antigas são anteriores ao surgimento do movimento budista (Vivekananda, 1982, pág. 2). Na Upanishad de número 108, que é a Muktika Upanishad (7-14), afirma-se que há 1180 Upanishads (Bimali, Joshi, Trivedi, 2006, vol. 2, pág. 495). 101

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Brahman e Ananda

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BRAHMAN É ÃNANDA

BIANCHINI, Flávia. Brahman é Ãnanda.Pp. 101-125, in: GNERRE, Maria LúciaAbaurre; POSSEBON, Fabrício (orgs.).Cultura oriental: língua, filosofia e crença.VoI. 2. João Pessoa: Editora da UFPB, 2012.

Flávia BianchiniEspecialista em Yoga - UNIBEM

Mestranda em Ciências das Religiões - UFPBE-mail: flaviabianchini@gmaiLcom

Introdução

A compreensão do pensamento filosófico indianoapresenta grandes dificuldades. O presente texto apresenta oconceito de Ãnanda (Bem-Aventurança, Felicidade, Beatitude)e sua relação com Brahman (o Absoluto, Realidade Última,Consciência Suprema). Essas são duas concepções espirituaisdiscutidas nas Upanishads " - uma coletanea de escriturasindianas - também chamadas coletivamente de Vedanta ou ofim do Veda, uma denominação que sugere que elas contêm aessência dos ensinamentos vêdicos (RADAKRISHNAM, 1989,vol. 1, p. 137). Veremos adiante, no texto, estas informações demodo mais sistematizado.

Algumas das Upanishads afirmam que Brahman é Sat-Chit-Ãnanda (Verdade Absoluta, Conhecimento ouConsciência Absoluta, Felicidade ou Bem-AventurançaAbsoluta). Não pretendo analisar Brahman em relação à suamanifestação enquanto Sat ou Chit - Verdade e Consciência -sendo o presente texto uma análise de Ãnanda enquantoFelicidade Pura, como atributo de Brahman e como essência dopróprio Brahman; e é assim que constataremos a relação

32 Costuma-se dizer que as Upanishads são em número de 108. Suas datas,não podem ser fixadas com segurança - a certeza é de que as mais antigassão anteriores ao surgimento do movimento budista (Vivekananda, 1982,pág. 2). Na Upanishad de número 108, que é a Muktika Upanishad (7-14),afirma-se que há 1180 Upanishads (Bimali, Joshi, Trivedi, 2006, vol. 2, pág.495).

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Brahman-Ãnanda em várias passagens de algumas Upanishadsdeste conjunto de textos.Partindo da obra The Philosophy of the Upanishads de PaulDeussen (1966) e também buscando indicações na obra deColonel Jacob, A concordance to the principal Upanisads andBhagavadgita (JACOB, 1999), foi possível localizar asprincipais Upanishads que tratam do tema, como veremos aolongo do desenvolvimento deste texto.

felicidade indistinta flutuando livrementeou qualquer um estado de Bem-Aventurança, ela tem um objeto implícito.(BUITENEM, 1979, p. 32)

Patrick Olivelle, em seu artigo sobre a históriasemântica da palavra Ãnanda, inicia seu texto descrevendo:

Ela [Ãnanda] não é, como poderia parecerà primeira vista, um derivativo nominal daraiz nand com o prefixo ã; o verboãnandate só é registrado muito mais tarde.Em vez disso deve ser considerada comoum substantivo verbal nanda com o prefixoã, e deste modo pertence a um grandegrupo que muitas vezes é ignorado: ã,indica o lugar onde a ação verbal acontece[...] A palavra Ãnanda, deste modo, implicaum lugar: aquilo em que se encontra Bern-Aventurança, seja ele um filho, a realizaçãode um desejo, o conhecimento de Brahman;[...] Ãnanda, então não é apenas uma

Ãnanda é um dos termos mais comuns novocábulário religioso das tradiçõesBrahmânica e Hindu, tanto no sânscritoquanto no vernáculo, tanto nas tradições deinclinação monística, como no AdvaitaVedanta, quanto nas tradições Bhakti. Otermo sinaliza o intenso sentimento dealegria das experiências dos devotos emsua devoção amorosa e serviço a Deus, enos místicos, em seu transe meditativo ouSamadhi. Dentro do Advaita e tradiçõesrelacionadas, ele representa um "atributo"central e essencial de Brahman. [...] Emmuitas das tradições religiosas indianas,Moksha, a meta final da existênciahumana, foi definida como Ãnanda.(OLIVELLE, 2008, p. 75)

o conceito de Ãnanda

A palavra Ãnanda, no dicionário sânscrito-inglês deMonier-Williams, possui os seguintes significados: alegria,felicidade, prazer, prazer sensual, felicidade pura, sendo umdos três atributos de Brahman segundo a Filosofia Vedanta(MONIER-WILLIAMS, 1979, p. 139). No ocidente é comumtraduzir Ãnanda por Bem-Aventurança ou Beatidude. Emalgumas traduções de Upanishads para o inglês e para oportuguês é comum encontrar essa designação, que seráutilizada aqui.

A etimologia da palavra Ãnanda não é muito clara:

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Segundo a pesquisa de Olivelle (2008), ocorreu umaevolução da utilização e significação dada à palavra Ãnanda aolongo da literatura Vêdica. Inicialmente, aparece raramente nosyedas; tanto no Rig Veda quanto no Atharva Veda, a palavraAnanda surge associada à experiência espiritual do ritual doSoma e também associada à sexualidade, fertilidade, prazersexu~l, orgasmo, união, prazer dos Devas (deuses), prazerrelacionado aos objetos, ao corpo, aos órgãos e as suasrespectivas atividades. Posteriormente, no Yajur Veda e emalgumas das primeiras Upanishads, atribui-se a Ãnanda alémdas últimas designações, novas significações, aparecendo nesta

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fase associada aos Devas, ao conhecimento e ao Ãtman (o Eumais interno). O maior desenvolvimento semântico e tambémdo vocabulário teológico da palavra Ãnanda se dá nasUpanishads mais recentes, com o Vedanta em sua fase maisdesenvolvida, onde aparece associada diretamente a Brahman eao êxtase supremo.

Ãnanda ou prazer é a mais elevada fruição,onde o conhecedor, o conhecido e oconhecimento se tomam um. Aqui a buscafilosófica termina, a sugestão é que não hánada mais elevado do que Ãnanda. EsteÃnanda é um desfrute ativo, ou livreexercício de capacidade. Não é afundar nainexistência, mas a perfeição do ser.(RADHAKRlSHNAN, 2006, p. 165)

Um pesquisador importante nesta presente análise é J.van Buitenen, que também estudou o percurso da palavraÃnanda na literatura Vêdica, enfocando principalmente seusentido de prazer. Para Buitenen, a palavra Ãnanda no Vedasindica "alegria, prazer e arrebatamento" nos rituais do Soma;também denota grandeza, vastidão, exuberância, deleite após aingestão do Soma. Ele também associa Ãnanda à Alma, à uniãocom Ãtman e Brahman. Indica uma passagem do Rig Veda(IX. 113. 11) que afirma que obter todos os desejos (=Ãnanda) écondição para a imortalidade. Também aponta passagens emoutros textos e Upanishads em que Ãnanda está associado àgeração, procriação, união, união sexual, alegria elevada efelicidade pura (BUITENEM, 1979).

Ãnanda e Brahman

São importantes algumas considerações apontadas porBuitenen e por Deussen sobre Brahman e Ãnanda, por isso ascitaremos aqui, com o intuido de trazer maior clareza e

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compreensão no desenvolvimento da presente analise. Van. Buitenen (1979) afirma que:

Esta definição de Brahman como Ãnandase tomou central no pensamento posteriordo Vedanta que definia o supremo comosaccidananda, "existência, espírito e Bem-Aventurança". Além disso, quando ocaminho para a libertação da escravidão dokarman na transmigração se tomou vistocomo o caminho do conhecimento deBrahman, a Bem-Aventurança que eraBrahrnan adicionou alto valor positivonesta libertação: pois a libertação não eraapenas uma fuga altamente desejável deescapar das misérias da vida, da morte e dorenascimento, era um estado de Bem-Aventurança por si mesmo, acima e alémde escapar das misérias da escravidão.(BUITENEM, 1979, p. 28)

É importante também esta passagem no final de seu artigo:

Seguindo o caminho da utilização dapalavra Ãnanda, vimos suas pausas nospontos de referência no desenvolvimentoda religião e do pensamento. Foi a altaalegria de beber o Soma e em seuoferecimento, o clímax do ritual deconstrução do universo, a livre alegria dosdeuses, o orgasmo da geração de um filhosemelhante a si próprio como umametáfora para a alto-renovação como umdos deuses, o alegre conhecimento de simesmo e do Brahman primordial, e a Bem-Aventurança que é o Brahrnan e o Ãtman.Isto [Ãnanda] aparece como um valorcompletamente externo ao contexto da

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transmigração, por direito próprio; Isto meparece muito importante. Pois muitas vezesparece como se a alegria que é descrita dequem encontra o Ãtman quando é libertadoda transmigração não é muito mais do quea ausência de miséria causada pela sede devida e da escravidão do karma.(BUITENEM, 1979, p. 35)

Paul Deussen apresentou as seguintes consideraçõessobre Ãnanda:

"O que é diferente dele [Brahman], issoestá cheio de sofrimento". Contrastado comtudo o que é distinto dele, e, portanto,envolvido no sofrimento, Brahman édescrito em uma das passagens em que estafórmula ocorre como aquilo que"ultrapassa a fome e a sede, dor e ilusão,idade velhice e morte" ou, de acordo comoutra~ passagens, como "o Eu (ãtman), sempecado, livre de velhice, livre da morte elivre de sofrimento, sem fome e sem sede"[...] Todas essas descrições se repetem comfrequência e são resumidas na designaçãode Brahman como Ãnanda, "Bem-Aventurança".[...] nas Upanishads, a Bem-Aventurançanão aparece como um atributo ou umestado de Brahman, mas como sua essênciapeculiar. Brahman não é _ anandin,possuidor da felicidade, mas Ananda, afelicidade em si. (DEUSSEN, 1966, p. 141)

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Brahman

No dicionário de Monier- Williams, Brabmansignificava, nos textos vêdicos mais antigos, crescimento,expansão, evolução, desenvolvimento, "aumento/expansão doespírito da alma", "devota efusão ou expressão", derramamentodo coração na adoração aos deuses, oração, a palavra sagrada,o Veda, um texto sagrado, um texto ou mantra usado como umfeitiço. Depois, a palavra passou a significar a sílaba sagradaOm, o conhecimento religioso ou espiritual, o espíritoimpessoal auto-existente, a Alma universal única, ou essênciadivina única e fonte da qual todas as coisas criadas emanam, oucom a qual eles se identificam e a ao qual retomam, o auto-existente, o Absoluto, o Eterno (MONIER-WILLIAMS, 1979,p. 737). Esses últimos significados são os que interessam para acompreensão dos ensinamentos contidos nas Upanishads.

De acordo com o Vedanta, Brabman é tudo o queexiste, é a Verdade Absoluta ou Realidade Suprema. É oAbsoluto, a origem e raiz de toda a criação. Brabman, que éexistência eterna (Sat), consciência (Cit) e beatitude (Ãnanda),é absolutamente "sem-segundo" (Advaya), o que de maneiraliteral significa que todos os objetos de experiência, bem comoa ignorância criadora, que os origina fundamentalmente, nãotêm substancialidade (ZIMMER, 2003, p. 297). Ele pode sercontemplado como princípio divino não personalizado, sematributos, não é masculino nem feminino. A palavra Brabman éderivada da raiz verbal brih, que significa crescer. Denota avastidão inexaurível do Ser Supremo (FEUERSTEIN, 1998,p.172).

O Si Mesmo, a essência da misteriosadoutrina das Upanishads, [...] ofundamento transcendental do universo éidêntico ao âmago mais profundo do serhumano. Essa Suprema Realidade, que éConsciência pura e sem forma, não pode

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ser descrita nem definida. Só pode serrealizada. A realização é a constataçãoimediata, indubitável e permanente de queo Si Mesmo é infinito, eterno, sumamentereal e livre, além de infinitamente bem-aventurado ou feliz (Ãnanda)(FEUERSTEIN, 1998, p. 173).

Aqueles seres que passam por uma transformaçãoespiritual profunda, que conseguem transcender.? ~undo dossentidos e idéias limitados, que tomam consciencia de s~aunidade com a Consciência Suprema, que tomam por aSSImdizer consciência de seu Ãtman, que é internamentecorrespondente ao Brahman que a tudo engloba e permeia,passam por uma profunda !ransfor~ação ~e .sua naturezaíntima, para eles Brahman é Atman e e a essencia de to_dosossujeitos. "Brahman é o meu Ãtman, ele também é o seu Atman,e há um só Ãtman. Fundamentalmente, todos os seres são umsó e são Brahman." (MARTINS, 2008, p. 77). r

, De acordo com Shankaracharya, a Realidade Ultima éÃtman ou Brahman, que é Consciência Pura (jãana-svarupa =sabedoria + natureza ou forma própria). Mas propõe duascategorias para Brahman, a primeira em que ele é destituído detodas as qualidades ou atributos (nirguna ou para-Brahman) ede todas as categorias de intelecto (nirvisesa); e a segunda ocoloca como qualificado (saguna ou apara-Brahman), comopossuidor dos atributos da Verdade, Consciência~ Existênc~a,Infinito, Bem-Aventurança, sem Começo (anadi) sem FIm(ananta), Onipresente, Onisciente; cuja. essência S~t, ~it,Ãnanda o distinguiria do mundo-aparência (maya = ilusão),que é Asat, Acit, Nirananda. Brahman é para Sha~a~acarya,pura consciência eterna e transcendental, destituída dedistinções entre conhecedor (Jfiata), conhecido (Jííeya) econhecimento (Jfiana) (RADHAKRISHNAN, 2006, vol. 2, pp.533-541).

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Assim, quando a pessoa realiza a sua própria natureza,o mundo inteiro se transforma, nunca mais será o mesmomundo. Tudo se toma e se transforma em Sat, Chit, Ananda -existência absoluta, o conhecimento absoluto, felicidadeabsoluta - e estas são as realizações almejadas pela filosofia doAdvaita Vedanta (VIVEKANANDA, 1982, p. 13).

O desenvolvimento da concepção de Brahman e aassociação de Brahman com Ãtman seguiu um percursosemelhante ao uso da palavra Ãnanda ao longo da literaturaVêdica. Nos Vedas, a doutrina do Si Mesmo transcendente nãoé enunciada abertamente em lugar nenhum, embora estejaimplícita em muitas passagens místicas (FEUERSTEIN, 1998,1998). É nas Upanishads que o desenvolvimento dessaconcepção sobre o Ãtman se deu.

As Upanishads e o Vedanta

Até aqui exploramos as concepções de Ãnanda eBrahman, mencionando Upanishads, Vedanta e Vedas. Sendoassim, toma-se necessário dar alguns esclarecimentos sobreessa literatura. Os Vedas compreendem os primeiros textosespirituais da religião indiana, sendo seguidos pela elaboraçãode muitos outros tipos de textos, como Brahmanas, Aranyakase as Upanishads. Não se pode estabelecer um períodocronológico bem definido para cada tipo de texto, mas paramelhor compreensão consideramos que após os Vedas é quesurgem as Upanishads, e as Upanishads mais antigas sãocompreendidas como o Vedanta, ou final do Vedas. Embora apalavra Vedanta também seja utilizada para descrever algumasescolas filosóficas posteriores ", quando falamos aqui de

33 Dois expoentes de escolas do Vedanta foram Shankara (aprox. 788-820d.e.) e Ramanuja (1017-1127 d.e.) (FEUERSTEIN, 1998, p. 116). Não sedeve confundir estas escolas com aquilo que estamos denominando porVedanta: textos e escrituras documentadas no período posterior aos Vedas.Ressaltando que as primeiras e mais antigas Upanishads provavelmente

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[...] upanishad, significa "sentar-se no chãoperto" (upa, "perto, próximo"; ni"embaixo"; shad, "sentar-se") do mestre.[...] A doutrina das upanishads não era doconhecimento geral, e os que queriam ouvi-Ia tinham de aproximar-se dos sábios como respeito e a humildade necessários. [...] Adoutrina das upanishads gira em tomo dequatro eixos conceituais interconectados:Em primeiro lugar, a Realidade suprema douniverso é absolutamente idêntica à nossaíntima essência; Brahman é Ãtman eÃtman é Brahman. Em segundo lugar, só arealização de Brahman/ Ãtman liberta o serdo sofrimento e da necessidade de nascer,viver e morrer. Em terceiro lugar, ospensamentos e ações do ser determinam oseu destino - a lei do karma: cada qual setransforma naquilo com que se identifica.Em quarto lugar, a menos que o ser seliberte e realize a Realidade sem-forma deBrahman/ Ãtman em decorrência dasabedoria superior (jíiana), teránecessariamente de renascer nos mundoscelestes, no mundo humano ou nos mundosinferiores (infernais), dependendo do seukarma (FEUERSTEIN, 1998, pág. 173).

A tendência geral de alguns pesquisadores é a deenfatizar demasiadamente o aspecto que pode ser consideradonegativo ou pessimista do conhecimento transmitido pelasUpanishads, enfatizando a busca por transcendência elibertação da roda de nascimentos à qual todos os seres seencontram atrelados pelo karma. No entanto, podemos ver quesua mensagem é muito mais do que isso; elas transmitem edescrevem os aspectos e atributos positivos conquistados poraqueles que atingem Moksha, a liberdade suprema. Descrevemo estado de perfeita Existência, Realidade, Plenitude,Consciência e infinita Bem-Aventurança que aguarda todoaquele que atingir e penetrar na Realidade Última que éBrahman. Ensinam também os caminhos e meios para atingiressa meta suprema.

Vedanta estamos nos referindo aos textos conhecidos cornoUpanishads, que tratam da discussão e aprofundamento devárias questões filosóficas. Vamos esclarecer alguns pontossobre as Upanishads:

Diferenças de interpretação

Como foi apresentado acima, ao indicar as duas formasde considerar Brahman expostas por Shankaracharya, existemduas opiniões filosóficas divergentes que surgem nas própriasUpanishads ou na interpretação destas. Na primeira propõe-se aimpossibilidade de atribuição de qualquer característica aBrahman por ser ele infinito, indizível, sem atributos. Na outrase diz que Brahman é Sat + Cit + Ãnanda, sendo pura e infinitaBem-A venturança um de seus atributos.

Surgem polêmicas acerca da Realidade Última nãopossuir atributos e por isso impossibilitar a sua estreitaassociação com Ãnanda; no entanto, em muitos textos e mesmono caso das Upanishads, tal associação é feita. Tais conflitos sedão ao longo do desenvolvimento das diversas correntesfilosóficas dentro das várias escolas do Vedanta na Índia, emfunção da experiência e interpretação de seus grandespensadores. Vejamos:

datam do período compreendido entre os anos 700 a 1500 a.c., como porexemplo a Chandogya e a Brihadaraniyaka Upanishad (FEUERSTEIN,1998, pp. 520, nota 2).

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Nós definimos a Realidade como Ãnandae, portanto, contradizemos a afirmaçãofreqüentemente feita de que a realidadeúltima é indefrnivel. Tentativasconstrutivas de obter uma realidadecompreensível geralmente acabam em umtodo concreto. Se, no entanto, tentamosconciliar a realidade definida com oindefinido, o que as upanishads tambémsuportam, então teremos que dizer queÃnanda no presente contexto não é arealidade última, mas apenas a mais altarealidade concebível pelo pensamento dohomem. Não é o absoluto ou o ser eterno,que sempre existe em sua essencialidadeprópria. Para a mente lógica, o todo é real,e dentro dele entra a diversidade do mundo.O ãnanda concreto é pramanika salta, ou oreal revelado ao pensamento, e correspondeao mais elevado Brahman aceito porRamanuja. O puro Brahman livre de todosos predicados é o nirupadhika satta, ounirguna Brahman aceito por Shankara(Radhakrishan, 2006, pág. 166).

Esta diferença de ponto de vistaresultou em uma boa quantidade dediscussão sobre a interpretação de Ãnandana upanishads. [...] Se Ãnanda fosseBrahman não haveria menção separada deBrahman como a ponta de apoio de ãnanda[...] Nós temos muitos casos na mesmaUpanishad onde a palavra Ãnanda é usadacomo sinônimo de realidade final. [...] Éóbvio que toda a controvérsia é devida àdúvida sobre se Ãnanda deve ser encaradocomo o pensamento mais elevado ou comoo ser último. As upanishads não traçaramqualquer linha dura e rápida de distinção

entre a da intuição simples, apoiada porShankara, e a do todo concreto deRamanuja. Se separarmos as duas, toma-seimpossível para nós admitir qualquerdistinção ou valor no mundo da existênciaconcreta. (RADHAKRISHNAN, 2006, pp.167-168)

Essas divergências filosóficas são defendidas pordiferentes pensadores, pois as próprias Upanishads transmitemensinamentos acerca da unidade entre Brahman e Ãnanda,impedindo qualquer distinção em qualquer experiência dessaunidade. As Upanishads revelam ensinamentos de diferentesníveis de conhecimento e consciência, que vão desde os níveisque podemos chamar de "mais densos", próximos ao nossomundo material e à nossa capacidade limitada de percepção,até os mais elevados níveis de consciência pura ou Bern-Aventurança. São esses níveis, e esse desenvolvimento daconcepção de Brahman e Ãtman nas Upanishads, resultandoem pura Bem-Aventurança, que causam conflitos nasinterpretações.

Os pensadores das Upanishadsfundamentaram a realidade de Brahman nofato da experiência espiritual, que vai desdea simples oração até a experiênciailuminada. As distinções que eles fazemsobre a natureza da realidade suprema nãosão meramente lógicas, 'são fatos daexperiência espiritual. Os pensadores dasUpanishads tentaram estabelecer arealidade de Deus a partir da análise dosfatos da natureza e dos fatos da vidainterior (RADHAKRISHNAN, 2009, pág.53).

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Brahman não é algo que possa ser analisado, medido ecomprovado cientificamente, sendo fruto da experiênciarelativa a cada um. Podemos ver que muitos dos filósofosassumem que o mundo é multiplicidade redutível a umarealidade singular e primordial, que se revela em si mesma sobdiferentes formas. Embora Brahman seja impessoal, podetambém se manifestar sob forma pessoal, como o Senhor(Ishvara):

o estudo de Ãnanda, citadas na obra de Colonel Jacob:Kaivalya e Paramahansa (JACOB, 1999, p. 185-186). Outrafonte utilizada para localizar Upanishads em que o conceito deÃnanda aparece foi o comentário de Shankaracharya sobre aBrihadaranyaka Upanishad, em que cita também trechosrelevantes da Taittiriya e da Chandogya Upanishad(SHANKARACARYA, 1950, p. 567-568).

Os textos das Upanishads utilizadas foram extraídos daobra 112 Upanishads: Sanskrit Texts with English Translation(BIMALI, JOSHI, TRIVEDI, 2006). Também foramconsultadas outras traduções contidas nas obras: A Tradição doYoga de Georg Feuerstein (1998), Mundaka Upanishad deRoberto de A. Martins (2008), The Principal Upanishads deSarvepalle Radhakrishnan (2009).

o Brahman supremo ou Ãnanda, ao nívelda Vijfiana ou autoconsciência, toma-se oIshvara pessoal com uma limitaçãovoluntária. Deus ou o Eu é o fundamentoda unidade, e a matéria ou não-Eu se tomao princípio da pluralidade(RADHAKRISHNAN, 2006, pág. 169).

Ãnanda e Brahman nas Upanishads

Fontes de estudo A palavra Ãnanda é utilizada na linguagem usual paradesignar prazer; mas em algumas Upanishads encontramos apalavra Ãnanda = Bem-Aventurança usada como um epíteto deBrahman na expressão "Ele soube que a Bem-Aventurança éBrahman" (Taittiriya 1I.6), "conhecendo a Bem-Aventurançade Brahman" (Taittiriya 1I.7), "Esta é a Suprema Bem-Aventurança" (Chandogya IV.3.32) (SHANKARACARYA,1950, p. 563).

Em outras Upanishads encontramos: "Conhecimento,Bem-A venturança, Brahman, a suprema meta daquele quedistribui as riquezas, bem como daquele que realizou Brahmane vive nele" (Brihadaranyaka 1II.9.28). "Aquilo que é infinito éapenas felicidade. Não há felicidade em qualquer coisa finita.Apenas o infinito é felicidade" (Chandogya VII.23.1). Emoutras partes da Taittiriya-Upanishad também temos:

Concluímos aqui as considerações feitas por algunspesquisadores a respeito de Ãnanda e Brahman, e passaremosagora ao estudo das próprias Upanishads, especificamente àspassagens em que aparecem as concepções de Brahman~ssociado ou identificado a Ãnanda, correlação de Brahman eAtman e demais correlações que se façam necessárias paramelhor entendimento do tema proposto.

Paul Deussen estabeleceu sua análise de Brahman comoÃnanda a partir das seguintes Upanishads: Brihadaranyaka,Kaushitaki, Maitrayani, Tejobindo, Mahanarayana, Taittiriya,Mundaka, Chandogya. Embora tenha apontado a identidade deBrahman com Ãnanda, concentrou-se principalmente em partesdas Upanishads que associam Ãnanda com o Prana, com oDesejo, com o Anandamayakosha - aspectos que não serãodiscutido aqui (DEUSSEN, 1966, pp. 140-146).

Além das Upanishads já citadas na obra de Deussen,encontramos também outras duas Upanishads importantes para

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Se alguém conhece o conhecimento deBrahman, e se não errar nisso, ele

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abandona todos os pecados no corpo edesfruta totalmente de todas as coisasagradáveis. Este [o cognitivo] é realmenteo Eu incorporado do precedente [o mental).Comparado com este corpo cognitivo, háum outro Eu interno constituído pela Bem-Aventurança. (Taittiriya lI.5.1)

nascimento, como também de quem éversado nos Vedas, sem pecado e livre dedesejo. Esta alegria dos deuses pornascimento multiplicada cem vezes fazuma unidade da alegria no mundo dePrajapati (Viraj), bem como aquele que éversado nos Vedas, sem pecado e livre dedesejo. Esta alegria no mundo de Prajapatimultiplicada cem vezes faz uma unidade daalegria no mundo de Brahman(Hiranyagarbha), bem como de quem éversado nos Vedas, sem pecado e livre dedesejo. Esta, de fato, é a felicidadesuprema. Este é o estado de Brahman.(Brihadaranyaka IV.3.33)

A Taittiriya-Upanishad ensina que existem graus defelicidade, que vão desde a simples alegria ou prazer de umavida próspera sobre a terra até a suprema Bem-Aventurança dopróprio Absoluto. O Absoluto não é um estado de aridez, masuma felicidade superconsciente que transcende toda descrição(FEUERSTEIN, 1998, p. 179). Também a BrihadaranyakaUpanishad revela a evolução de Ãnanda de uma felicidadelimitada até o nível infinito de Bem-Aventurança. Vejamos adescrição da própria Upanishad:

Vemos aqui como o conceito do Ãnanda mais elevadose desprende de todos os atributos de prazer ou sensualidade. OÃnanda é um estado em que a pessoa está completa, onde nadafalta, onde não há dualidades ou perturbações. Martins comentasobre essa passagem da Brihadaranyaka Upanishad que:

Aquele que é perfeito de corpo e prósperoentre os homens, o dirigente dos outros, emais ricamente fornecido com todos osprazeres humanos, representa a maioralegria [ãnanda] entre os homens. Estaalegria humana multiplicada cem vezes fazuma unidade da alegria para osantepassados [manes] que ganharam omundo deles. A alegria dessesantepassados que ganharam aquele mundo,multiplicada cem vezes, faz uma unidadeda alegria no mundo dos gandharvas. Estaalegria do mundo dos gandharvasmultiplicada cem vezes faz uma unidade daalegria para os deuses pela ação - aquelesque alcançaram a sua divindade através desuas ações. Esta alegria dos deuses pelaação, multiplicada por cem vezes faz umaunidade da alegria para os deuses por

A Upanishad faz então uma comparaçãoentre vários tipos de Ãnanda. O maiselevado Ãnanda de nivel humano é aquelede um homem saudável, rico, que dominaos outros e que desfruta de todos osdeleites. Mas acima deste Ãnanda de nívelhumano, há outros mais elevados, e aUpanishad descreve o Ãnanda dos espíritosdos antepassados, dos Gandharvas, dosDevas que se tomaram Devas por seuesforço, dos Devas que nasceram Devas,até chegar ao Ãnanda do mundo deBrahman, que é igual ao Ãnanda de umapessoa versada nos Vedas, que não cometefaltas e que não é dominada pelo desejo.Este é o Ãnanda mais elevado.

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(Brihadaranyaka IV.3.33) (MARTINS,2008, p. 90)

Em várias Upanishads encontramos diversas alusões ànatureza do Brahman infinito associado ao conceito de Ãnandapor meio de várias concepções, como podemos ver nasseguintes passagens:

(Aquele que é) impensável, imanifesto, deformas infinitas, o bom, o pacífico, imortal,a origem dos mundos, sem começo, meio, efim, o único, que tudo permeia,Consciência, Bem-A venturança, o informee maravilhoso (Kaivalya 6).Toma-se (transparente) como a água, uno,a testemunha, e sem um segundo. Este é oestado de Brahman, ó Imperador. AssimYajfiavalkya instruiu Janaka: Esta é a suarealização suprema, esta é a sua supremaglória, este é seu mais elevado mundo, estaé a sua felicidade suprema. De umapartícula desta felicidade vivem os outrosseres (Brihadaranyaka IV.3.32).O conhecedor de Brahman atinge o maiselevado. Aqui está um verso pronunciandoesse mesmo fato: Brahman é verdade,conhecimento, e infinito. Aquele queconhece aquele Brahman como existenteno intelecto, alojado no espaço supremo nocoração, desfruta de todas as coisasdesejáveis simultaneamente, identificadocom o Brahman que tudo sabe (TaittiriyaII.1.I).Uma pessoa não fica submetida ao medoem qualquer momento se ela conhece afelicidade que é Brahman, do qual aspalavras, junto com a mente, se afastam,

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por não conseguir atingi-lo (TaittiriyaIIA.I).

Na citação acima, Taittiriya 11.1.1, quando no texto sefaz referência à localização de Brahman no espaço supremo nocoração, tem início a associação (a principio indireta) deBrahman com o Ãtman, e veremos esta associação com mais.clareza no decorrer deste texto. O Ãtman só é realmenteconhecido por aqueles que atingiram este estado de Ãnanda(MARTINS, 2008, p. 86). "Aqueles que discernem vêem peloconhecimento superior o Ãtman que brilha, toda a felicidade eimortalidade" (Mundaka II.8) (RADHAKRISHNAN, 2006, p.165). As Upanishads descrevem as vivências da pessoa queatinge a união com Brahman, enfatizando o aspecto da Bem-Aventurança:

Assim, aqueles que atingiram Atman, [...]Percebendo o Brahman Eterno, ele própriovive nele, com a consciência "Eu sou Ele",Eu sou Aquele que está sempre calmo,imutável, indiviso, que tem a essência doconhecimento-Bem-A venturança. Isso,somente, é a minha verdadeira natureza.(Paramahamsa 2)Percebendo, "Eu sou esse Brahman que é ouno infmito Conhecimento-Bem-Aventurança", ele chega ao fim de seusdesejos, na verdade, ele chega ao fim deseus desejos. (Paramahamsa 4).Aquele que conhece o Ãnanda de Brahmannão teme coisa alguma. Realmente, ele nãoé atormentado pelo pensamento: "Por quenão fiz o bem? Por que fiz o mal?" Aqueleque conhece isto, liberta-se. Ele se libertade ambos, conhecendo isto. (Taittiriya II.9)O homem iluminado não tem medo denada depois de vrvenciar a Bem-

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Aventurança de Brahman, aquele que aspalavras não conseguem atingir e queassim se voltam para a mente. (TaittiriyalI.9.l).

Na Mundaka-Upanishad é dito que o "Ãtman reside nofmnamento, na cidade de Brahma" [...] "reside no alimento, naintimidade do coração. Conhecendo-o os sábios contemplam obrilho do imortal que tem a aparência de Ãnanda" (Mundaka11.2.7) (MARTINS, 2008, p. 86). Ãtman surge em algumaspassagens da Mundaka-Upanishad, na Brhadaranyaka-Upanishad e na Taittirya-Upanishad, associado ao coração,sendo este sua morada. "[ ...] assim como o coração é a sedeúnica de todo conhecimento, assim como as mãos são a sedeúnica de todos os atos, assim como os órgãos genitais são asede única de todo prazer (Ãnanda) [...] assim é este [SiMesmo]" (Brihadaranyaka 2.4.11-12; FEUERSTEIN, 1998, p.175). O coração é a morada, o espaço interno, a morada deBrahman, do Si Mesmo. Essas descrições mostram que oconhecimento de Brahman não é apresentado como umresultado obtido a partir da especulação filosófica e sim a partirde vivências internas. Vejamos também estas outras passagens:

Ele compreendeu a Bem-Aventurançacomo Brahman; pois a partir da Bern-Aventurança, de fato, todos esses seres seoriginam. Tendo nascido, eles sãosustentados pela Bem-Aventurança, eles semovem em direção e se fundem na Bern-Aventurança. Este conhecimentovivenciado por Bhrigu e transmitido porVaruna (começa a partir do alimento e)termina na suprema (Bem-Aventurança),estabelecida na cavidade do coração.(Taittiriya III.6.l)No começo tudo isso era apenas o não-manifesto (Brahman). A partir daí, surgiu o

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manifesto. Aquele Brahman criou a sipróprio por si mesmo. Por isso, é chamadode auto-criador. Aquele que é conhecidocomo o auto-criador é, na verdade, a fontede alegria, porque a pessoa se toma felizpor entrar em contato com essa fonte dealegria. Quem, de fato, irá inalar, e quemirá expirar, se esta Bem-Aventurança nãoestiver lá no espaço supremo [dentro docoração]. (Taittiriya lI.7.l)Novamente quando ele adormeceprofundamente - quando não percebe nada- ele volta ao longo dos 72.000 nervoschamado hita, que se estendem do coraçãopara o pericárdio (corpo inteiro), epermanece no corpo. Como um bebê, ouum imperador, ou um nobre Brahmanvivem, tendo atingido o auge da felicidade,assim ele permanece. (BrihadaranyakalI. 1.19)

Além de ser feita essa associação de Brahman com aessência íntima do seres (Ãtman), de ser declarada a suamorada no coração, na passagem acima da Brihadaranyaka éintroduzida mais uma concepção. Tanto nesta Upanishad comona Kaiva1ya propõe-se que no estado de sono profundo oindividuo pode alcançar a experiência de dissolução e uniãocom Brahman e desse modo se fundir na Bem-Aventurança.

No estado de sonho o Jiva sente prazer edor em uma esfera de existência criada porsua própria Maya ou ignorância. Durante oestado de sono profundo, quando tudo estádissolvido [em seu estado causal], ele édominado por Tamas ou não-manifestaçãoe passa a existir em sua forma de Bem-Aventurança. (Kaivalya 13).

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Novamente, por sua conexão com as açõesrealizadas em nascimentos anteriores, essemesmo Jiva retoma ao estado de sonhos,ou ao estado desperto. O ser que se divertenas três cidades [os três estados: desperto,sonhando, sono profundo] - dele brotoutoda a diversidade. Ele é o substrato, aBem-Aventurança, a consciênciaindivisível, em quem as próprias trêscidades se dissolvem. (Kaivalya 14).

geração, revelando-se na essência do próprio Eu, conformedescreve a Kaushitaki Upanishad:

Prazer, Bem-Aventurança e procriação sãoos seus elementos objetivoscorrelacionados externos. (KaushitakiI1I.5).Com o órgão gerador, montado sobre aconsciência, obtém-se prazer, Bern-Aventurança e procriação (KaushitakiI1I.6).Porque em verdade, sem a consciência oórgão gerador tornaria conhecida qualquerBem-Aventurança, qualquer prazer ouprocriação, em absoluto. "Minha menteestava em outro lugar" diz uma pessoa, "Eunão reconheci a Bem-Aventurança, oprazer e a procriação". (Kaushitaki I1I.7).

Corno vimos em vanas partes, nas diferentesUpanishads supracitadas, Brahman pode ser atingido peloconhecimento, pela vivência, pelo conhecimento de Ãtman,pelo coração, pelo sono profundo e agora veremos que tambémpode ser atingido pela inteligência ou pelo sacrifício, e assim aBem-A venturança é alcançada.

Esse Brahman é alcançado através dopoder da inteligência. Aquela Bern-Aventurança é atingida através do poder dainteligência. A Bem-Aventurança, que é defato Brahman é alcançada através do poderda inteligência (Mahanarayana XXXIX -1).Esse Brahman é alcançado através dopoder do sacrificio. Aquela Bern-Aventurança é atingida através do poder dosacrifício. A Bem-Aventurança, que é defato Brahman, é alcançada através do poderdo sacrifício. (Mahanarayana XXXX -1)

Deve-se conquistar o conhecimento puroda unidade de Brahman e Ãtman. [... ] Oprazer, a delícia e a procriação não são oque se deve procurar conhecer, deve-seconhecer aquele que discerne, discernir oprazer, a delícia e a procriação. [...] Estesopro vital, verdadeiramente, é o Eu dainteligência: é a felicidade [ãnanda], semidade, imortal. Ele não se torna maior pelaboa ação, nem de fato menor pela ação má.[...] Ele é o protetor do mundo, ele é osoberano do mundo, ele é o Senhor detodos. "Ele é meu Eu" - isto deve serconhecido. "Ele é meu Eu" - isto deve serconhecido. (Kaushitaki I1I.8)

Porém, a mesma Upanishad ultrapassa, em seguida, estenível inferior de prazer:

Em várias passagens das Upanishads, Brahman tambémfoi descrito como criador de si mesmo e de tudo, dele emaname nascem todas as criaturas e por ele são mantidos, e, sendoassim ele também está relacionado diretamente com a vida,com o poder gerador; desse modo, a Bem-Aventurança, comodito antes, surge nas escrituras também associada ao prazer e à

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Embora acima em algumas partes da Kaushitaki Upanishadse faça referência ao prazer e bem-aventurança relacionados àprocriação, o mesmo texto termina por indicar que se deve"conquistar o conhecimento puro da unidade de Brahman eÃtman", que se deve "conhecer aquele que discerne" para quede fato se alcance Ãnanda e assim se alcance o Eu mais internoque nas Upanishads é revelado como sendo o Ãtman.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

o presente texto descreveu o significado da palavraÃnanda, sua evolução na literatura Vêdica e seu íntimorelacionamento com Brahman. Fez-se necessário também, dadaa complexidade do tema abordado, contextualizar a naturezados textos utilizados, no caso, as Upanishads.

Por meio dos estudos de diferentes pesquisadores e suasrespectivas orientações filosóficas, foi possível evidenciarmosdiferentes posturas em relação à natureza condicionada eincondicionada de Brahman e à possibilidade ou não dedescrevê-lo. Vimos que as diferentes posições filosóficas sobrea possibilidade de se associar ou não Brahman com Ãnanda,não impediram o desenvolvimento deste texto, visto que naspróprias Upanishads foi possível encontrar passagens em quetal associação se dá.

Nas Upanishads são descritos diferentes tipos ou níveisde Ãnanda, permitindo revelar que ela assim permeia todos osníveis, do mais grosseiro na forma da felicidade sentida pelariqueza ou pelo prazer, até o nível mais sutil, no qual afelicidade é alcançada na união com a Realidade Última. Dessemodo, assim como Brahman, Ãnanda tudo permeia. São assimunidos, um só, na sua própria essência.

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