Boteco: rangos e papos

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16 Campus 21 de junho a 4 de julho de 2007 Marcus V. F. Lacerda Mayra Gonçalves "Mas de onde vem a palavra 'boteco'?", pergunta um freqüen- tador entre as garrafas de cerveja. Magicamente, todos à mesa tor- nam-se verdadeiros catedráticos do assunto. Assim é uma conversa de boteco: todo mundo entende de tudo, dos pontos corridos do Campeonato Brasileiro, passando pelo conflito árabe-israelense, chegando às grandes dúvidas da filosofia e da física quântica. A arte da discussão em boteco consiste em não ter razão e procu- rar lançar os argumentos e dados ao vento, quanto mais duvidáveis melhor. "A palavra vem do alemão 'botechish'", fala um na mesa le- vantando o dedo. "A expressão 'boteco' tem um cunho pejorativo e preconceituoso. O termo correto é 'estabelecimento carente de re- quinte'", retruca outro. Na verdade, a palavra deriva do lusitano "botica" e do espanhol "bodega", que por sua vez tem origem no grego apothéke, que significa “depósito”. No Rio, os botecos são conhecidos como "pés-sujos" e em Belo Horizonte como "copos-sujos". O aspecto tosco é típico e tornou-se uma característica deste ambiente que, afinal, é a última opção para um encontro romântico. Além disso, ele é diferente do bar, onde as mesas são cobertas por toalhas e há máquinas de car- tão de crédito. A versão mais a- conchegante do bar, o barzinho, geralmente tem alguém tocando bossa nova ou MPB ao estilo "um banquinho e um violão". E mais: a melhor diferença entre o boteco e os outros é a cerveja barata e, claro, a tradicional gastronomia. A comida típica de boteco é gor- durosa e pesada, ideal para sus- tentar noites regadas a cerveja e cachaça. Os clássicos da culinária botequeira vão da rabada e caldo de mocotó até os exóticos pes- coço de peru, fígado acebolado com jiló (bastante popular em Mi- nas Gerais) e o famoso torresmo coberto de pêlos. O Bar do Codorna (antigo "Ma- né das Codornas - o rei da codor- na"), na 403 Norte, mantém um cardápio bastante diversificado. "O pessoal vem aqui mais para comer", informa o gerente Carlos Lúcio Martins, reagindo ao senso comum de que boteco é lugar barra pesada. "Aqui quase não acontece briga. O máximo que já teve foram dois velhos discutindo na eleição", assegura Carlos. Perto dali há um outro estabe- lecimento do gênero, com preços em placas de plástico, salgados fritos repousando numa estufa, uma parede cheia de pôsteres do Botafogo e três TVs para reunir os torcedores do time. É o Só Drinks, bar mais antigo da Asa Norte, aberto em 1975 e comprado em 1984 por Nilton Novanto. "Nos di- as de jogo sai gente pelo ladrão", afirma o orgulhoso proprietário. Assim como o concorrente de dois blocos abaixo, Nilton preocu- pa-se com a segurança do lugar. "Quando alguém começa a causar confusão a gente fala com o cara e depois pára de servir", explica ele. Ele serve petiscos variados e bara- tos, mas a cerveja é um pouco mais salgada. "Eu prefiro botar a cerveja mais cara para não dar muita gente. Não vale a pena", justifica Nilton, que prefere os clientes mais velhos e mais fiéis aos jovens barulhentos. O lugar dos jovens é a 408 Norte, onde há um verdadeiro complexo de botecos. A clientela arranja al- guns problemas para Alonzio Fi- lho, dono do Pôr do Sol - principal bar da quadra. "Apesar de o som de carro ser proibido, eles batu- cam nas mesas", reclama. Além do ambiente descontraído e informal, o local conta com a famosa porção de carne de sol com mandioca regada à manteiga de garrafa trazida especialmente da fazenda de um amigo de Alon- zio. A receita da iguaria, segundo o dono, tem um segredo. "A carne de sol é pré-assada na brasa e de- pois passada na chapa, e a man- dioca é cozida em banho-maria". Para quem não gosta do baru- lho dos bares da 408 Norte ou do aspecto do Só Drinks, existe o Mercado Municipal na 509 Sul. Inspirado nos botequins da Lapa e no Mercado Municipal de São Paulo, ele reúne a descontração típica dos botecos com um gene- roso toque de requinte. No lugar do copo americano engordurado ou, muitas vezes, molhado da lavagem feita ali mesmo na sua frente, copos lon- gos, tulipas e taças ocupam as mesas. No cardápio, pratos típicos de boteco, como torresmo e pas- téis, dividem espaço com ostras e tábuas de frios, ao lado da "am- bígua" Punheta de Bacalhau (pei- xe cru e desfiado, com azeite e salsinha acompanhado de pães). O estoque da popular cachaça Seleta e do conhaque Napoleon VSOP (R$14,00 a dose) são contro- lados por um sistema computa- dorizado, que aposentou a clássi- ca caneta atrás da orelha, o blo- quinho de papel amarelado e a dose chorada na base do "bota mais um pouquinho". Junto ao "bar-boteco" há um empório on- de se vende diversas especiarias, frios, castanhas, queijos, bacalhau e, para destoar de vez dos bote- cos-tradição, vinhos. Há quem considere o lugar uma perversão da essência do boteco enquanto manifestação popular. Ou que isso já foi feito há muito tempo na Nova Zelândia. Mas, ho- je em dia, a própria discussão de boteco começa a perder o sentido. Afinal, sempre tem um sujeito pronto para interromper os entu- siasmados filósofos de bar e suas teorias com uma frase broxante. "Chegando em casa a gente vê isso no Google!". Mateus Gandara

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Crônica sobre alguns botecos de Brasília. Um texto leve e humorístico que disseca os diferentes cardápios dos lugares requintados aos fiéis “pé-sujos”.

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16 Campus 21 de junho a 4 de julho de 2007

Marcus V. F. LacerdaMayra Gonçalves

"Mas de onde vem a palavra'boteco'?", pergunta um freqüen-tador entre as garrafas de cerveja.Magicamente, todos à mesa tor-nam-se verdadeiros catedráticosdo assunto. Assim é uma conversade boteco: todo mundo entendede tudo, dos pontos corridos doCampeonato Brasileiro, passandopelo conflito árabe-israelense,chegando às grandes dúvidas dafilosofia e da física quântica.

A arte da discussão em botecoconsiste em não ter razão e procu-rar lançar os argumentos e dadosao vento, quanto mais duvidáveismelhor. "A palavra vem do alemão'botechish'", fala um na mesa le-vantando o dedo. "A expressão'boteco' tem um cunho pejorativoe preconceituoso. O termo corretoé 'estabelecimento carente de re-quinte'", retruca outro.

Na verdade, a palavra deriva dolusitano "botica" e do espanhol"bodega", que por sua vez temorigem no grego apothéke, quesignifica “depósito”. No Rio, osbotecos são conhecidos como"pés-sujos" e em Belo Horizontecomo "copos-sujos". O aspectotosco é típico e tornou-se umacaracterística deste ambiente que,afinal, é a última opção para umencontro romântico.

Além disso, ele é diferente dobar, onde as mesas são cobertaspor toalhas e há máquinas de car-

tão de crédito. A versão mais a-conchegante do bar, o barzinho,geralmente tem alguém tocandobossa nova ou MPB ao estilo "umbanquinho e um violão". E mais: amelhor diferença entre o boteco eos outros é a cerveja barata e,claro, a tradicional gastronomia.

A comida típica de boteco é gor-durosa e pesada, ideal para sus-tentar noites regadas a cerveja ecachaça. Os clássicos da culináriabotequeira vão da rabada e caldode mocotó até os exóticos pes-coço de peru, fígado aceboladocom jiló (bastante popular em Mi-nas Gerais) e o famoso torresmocoberto de pêlos.

O Bar do Codorna (antigo "Ma-né das Codornas - o rei da codor-na"), na 403 Norte, mantém umcardápio bastante diversificado."O pessoal vem aqui mais paracomer", informa o gerente CarlosLúcio Martins, reagindo ao sensocomum de que boteco é lugarbarra pesada. "Aqui quase nãoacontece briga. O máximo que játeve foram dois velhos discutindona eleição", assegura Carlos.

Perto dali há um outro estabe-lecimento do gênero, com preçosem placas de plástico, salgadosfritos repousando numa estufa,uma parede cheia de pôsteres doBotafogo e três TVs para reunir ostorcedores do time. É o Só Drinks,bar mais antigo da Asa Norte,aberto em 1975 e comprado em1984 por Nilton Novanto. "Nos di-as de jogo sai gente pelo ladrão",

afirma o orgulhoso proprietário. Assim como o concorrente de

dois blocos abaixo, Nilton preocu-pa-se com a segurança do lugar."Quando alguém começa a causarconfusão a gente fala com o cara edepois pára de servir", explica ele.Ele serve petiscos variados e bara-tos, mas a cerveja é um poucomais salgada. "Eu prefiro botar acerveja mais cara para não darmuita gente. Não vale a pena",justifica Nilton, que prefere osclientes mais velhos e mais fiéisaos jovens barulhentos.

O lugar dos jovens é a 408 Norte,onde há um verdadeiro complexode botecos. A clientela arranja al-guns problemas para Alonzio Fi-lho, dono do Pôr do Sol - principalbar da quadra. "Apesar de o somde carro ser proibido, eles batu-cam nas mesas", reclama.

Além do ambiente descontraídoe informal, o local conta com afamosa porção de carne de solcom mandioca regada à manteigade garrafa trazida especialmenteda fazenda de um amigo de Alon-zio. A receita da iguaria, segundoo dono, tem um segredo. "A carnede sol é pré-assada na brasa e de-pois passada na chapa, e a man-dioca é cozida em banho-maria".

Para quem não gosta do baru-lho dos bares da 408 Norte ou doaspecto do Só Drinks, existe oMercado Municipal na 509 Sul.Inspirado nos botequins da Lapae no Mercado Municipal de SãoPaulo, ele reúne a descontração

típica dos botecos com um gene-roso toque de requinte.

No lugar do copo americanoengordurado ou, muitas vezes,molhado da lavagem feita alimesmo na sua frente, copos lon-gos, tulipas e taças ocupam asmesas. No cardápio, pratos típicosde boteco, como torresmo e pas-téis, dividem espaço com ostras etábuas de frios, ao lado da "am-bígua" Punheta de Bacalhau (pei-xe cru e desfiado, com azeite esalsinha acompanhado de pães).

O estoque da popular cachaçaSeleta e do conhaque NapoleonVSOP (R$14,00 a dose) são contro-lados por um sistema computa-dorizado, que aposentou a clássi-ca caneta atrás da orelha, o blo-quinho de papel amarelado e adose chorada na base do "botamais um pouquinho". Junto ao"bar-boteco" há um empório on-de se vende diversas especiarias,frios, castanhas, queijos, bacalhaue, para destoar de vez dos bote-cos-tradição, vinhos.

Há quem considere o lugar umaperversão da essência do botecoenquanto manifestação popular.Ou que isso já foi feito há muitotempo na Nova Zelândia. Mas, ho-je em dia, a própria discussão deboteco começa a perder o sentido.Afinal, sempre tem um sujeitopronto para interromper os entu-siasmados filósofos de bar e suasteorias com uma frase broxante."Chegando em casa a gente vêisso no Google!".

Mateu

s Gan

dara