bom dia senhor Dimas

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Suzo Bianco São Paulo – SP – História originalmente escrita em 2010, editada em 2012 pelo próprio escritor. – BOM DIA SR. DIMAS é um conto de ficção, fruto da imaginação do autor, nenhum acontecimento, personagem ou lugar descrito trata-se de um relato verídico. Qualquer semelhança, que possa haver com a vida real de outrem, é mera coincidência. As ideologias e crenças das personagens não especificamente retratam as do autor. Esta obra não pode ser reproduzida, nem comercializada sem a autorização direta e explícita de Suzo Bianco Evangelista vide a lei que protege os direitos intelectuais e artísticos do autor. Para contato com o autor desta obra: [email protected] ILUSTRAÇÃO DE CAPA: Suzo Bianco

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Suzo Bianco

São Paulo – SP – História originalmente escrita em 2010, editada em 2012 pelo próprio escritor. – BOM DIA SR. DIMAS é um conto de ficção, fruto da imaginação do autor, nenhum acontecimento, personagem ou lugar descrito trata-se de um relato verídico. Qualquer semelhança, que possa haver com a vida real de outrem, é mera coincidência. As ideologias e crenças das personagens não especificamente retratam as do autor. Esta obra não pode ser reproduzida, nem comercializada sem a autorização direta e explícita de Suzo Bianco Evangelista vide a lei que protege os direitos intelectuais e artísticos do autor. Para contato com o autor desta obra: [email protected] ILUSTRAÇÃO DE CAPA: Suzo Bianco

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Um conto de Suzo Bianco

Bom Dia Sr. Dimas!

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Bom Dia Sr. Dimas!

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huta pro gol, seu cambota! – Gritou Lucas para a tevê da sala social. Assistia ao futebol do campeonato brasileiro pela televisão. Um pequeno aparelho pendurado num canto da parede pintada com tinta verde-bebê, que já se descascava em muitos lugares. Alguns de seus amigos o faziam companhia,

não que tivessem escolha, mas de qualquer forma, não era desagradável. Uns riam, num ruído chiado, daqueles gritos eufóricos do torcedor roxo, outros olhavam enfezados, porém ainda existiam aqueles que nem se quer notavam que estavam ali... Ah, a idade... Entre tanto, que a verdade seja dita, futebol era futebol e sempre que podiam, acompanhavam o esporte. Não se tinha muito que fazer naquele inferno de lugar. O chute do atacante foi péssimo. – Ah! Seu mané deteriorado! – Desabafou com um movimento enfezado das mãos enrugadas e manchadas de sardas acumuladas pelo tempo. – Vai ser ruim assim lá na casa do car...

C - Calma Lucão! – Riu Luiz, um velhinho negro e simpático. Usava sempre um chapeuzinho de jogador de golfe e um par de óculos enormes de quatro graus. Uma jaqueta de moletom branca e velha era sua eterna companheira junto a uma calça de mesmo tecido, cinza. Só trocava de camiseta, tinha três e todas listradas. Uma vermelha, outra azul e uma laranja. Todas desbotadas. Luiz ria sempre de qualquer coisa, apesar da boca quase sem dentes... Definitivamente havia abandonado a vaidade há muito tempo, nem se quer ligava muito pra dentaduras. Alguns diziam que não regulava muito bem, porém seus amigos mais chegados pensavam de outro modo... “Ele era o mais sábio dali, talvez...” – Isso é só um jogo velhote. Não vai morrer de enfarte por causa disso. – E riu de novo. - Ora! Vá pro inferno seu velho banguelo! – Descontou, mas também riu junto. Lucas era bem humorado quando podia. Um senhor com seus oitenta e dois anos de vida e com um problema grave... Sofria do coração. Lucão tinha o cabelo branco como neve, mas ainda cheio na cabeça. Não usava óculos e nem bengala, fora um esportista em sua juventude desde antes de ter filhos, os mesmos que o colocaram ali, e hoje colhia os frutos de uma vida regrada e saudável, apesar de tudo. – Se eu não puder nem xingar um perna torta desses, já não vai valer a pena nem se quer ver esta merda! – Comentou sentado em sua cadeira redobrável. Haviam treze idosos sentados assistindo a TV e quatro enfermeiros trajados de branco em pé nos cantos espiando a situação. A maioria dos pacientes nem ligava para o que passava no aparelho, só queria entreter a mente e afastá-la da crua realidade. Eram solitários e carentes. Quase não se via parentes por ali.

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A sala social do asilo era pequena e equipada praticamente apenas por uma janela de vidro granulado que bloqueava boa parte da luz do sol, além das portas que estavam frequentemente abertas. O ar fresco – frio pra eles – circulava sem problemas dando a possibilidade de uma pneumonia a qualquer momento. Já haviam reclamado, não uma nem duas, mas incontáveis vezes. Nada. Nada adiantou. Os enfermeiros não se importavam e o diretor também não, muito menos os parentes que conseguiram se livrar de seus ‘problemas’ familiares. Uma pena. Um descaso. Era o que pensavam... Passeio ao sol era raro. Quase não saiam dali, deviam sempre fazê-lo acompanhados, mas nenhum funcionário se disponibilizava a isso. Uma lástima. Uma droga. Lucas tinha como passa-tempo conversar com o amigo Luiz e vice-versa. Tinham apenas um ao outro. Os outros idosos da Casa de Fátima para Idosos se viravam de modo semelhante, ou nem assim. O exemplo de Dona Julia, sofria de quase todo mal que poderia assolar alguém nos últimos anos de vida. Vivia deitada em seu quarto à espera de seus netos que há muito não a visitavam. Também Jorginho, um velhinho de oitenta e quatro anos que sofria do Mal de Ausaimer, mesmo assim, ou por isso, nunca deixava de visitar a imitação de jardim na ala onde deveria ser o solar do asilo... Alguns diziam que ele fazia essas visitas todos os dias porque se esquecia do fato de tê-las feitas no dia anterior, e de constatar, sempre, que ali as plantas eram de plástico. Péssima brincadeira, mas era o tipo de piada que os enfermeiros faziam o tempo inteiro. Aqueles abutres. Falando-se deles, é bom deixar claro uma coisa; quando se é contratado para cuidar de idosos carentes é preciso, antes de tudo, ter um bom coração e muita paciência. Contudo os miseráveis seres que vigiavam a casa como carcereiros do inferno mal sabiam o que significava ‘paciência’ ou ‘bom coração’. Exato e assim mesmo. Pode parecer exagero qualquer coisa que seja dita aqui, na época em que me contaram tudo isso eu mesmo não pude botar fé, mas aconteceu. Na hora achei que não passava de uma história de um velhote de muita imaginação querendo atenção... Engano meu. Eu mesmo tive a intenção de colocar meu pai naquela casa... Desse modo foi quando conheci o senhor Luiz. Queria conhecer o lugar onde estava pondo meu pai, não seria bom descobrir que seria uma péssima coisa para ele. E essa ideia, deixando bem claro, fora dele. Queria privacidade. Nunca fui muito simpático ao fato de ver meu pai sozinho e sentindo-se abandonado num lugar onde provavelmente apenas os sonhos seriam seus amigos. Mas insistiu... Os enfermeiros me pareceram simpáticos, e eram de fato. Luiz me disse que todo o pessoal foi trocado. Incluindo o antigo diretor. Tudo por causa do que aconteceu. E este acontecimento é o que pretendo contar... Por que? Ora, se eu não disser isso a alguém, vou me sentir como se eu mesmo estivesse vivendo num asilo... Sozinho!

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2 Tudo começou quando o senhor Lucas, o homem que gritava com a tevê, voltou pro seu quarto de noite, sentou-se em seu colchão duro e chorou. Que vida era aquela, depois de tantos anos de trabalho duro na fábrica de barras de aço...? Tudo bem. Seu filho tinha se dado melhor na vida e pôde ter coisas melhores, dinheiro pra esposa e filhos, incluindo poder deixar seu papai ali. Ingrato. Estava naqueles dias em que toda nossa consciência nos cobra alguma atitude para melhorar nossa situação e nos deparamos em completa impotência. Fazer o quê? O que podia ele mesmo fazer para melhorar os dias entediantes naquele asilo? Talvez a visita de seu filho ajudasse, e teria de ser espontânea, caso contrário, do que adiantaria...? Queremos todos ser amados não? Mas nunca acontecia. Simples assim, como a crueldade era. Cruel... O que vocês achariam de viver toda a vida em busca de um futuro bom e confortável, trabalhar em empregos idiotas e desconfortáveis em busca de seus objetivos, conseguir se casar com alguém amável – quando se consegue isso – ter e criar seus filhos. Sustentá-los, e a si próprio. Manter a sanidade intacta com todas as intempéries dos anos a fio e no final ser posto de lado de tudo que construiu, só pelo motivo óbvio e premiado de estar velho? Velho? Velho para quê? Pra viver? Ora se assim fosse já teria morrido. Quem é o ser humano que se diz mais esperto ou sábio do que Deus? Ser idoso é ser incapaz? Tudo era uma grandiosa besteira, uma besteira enorme. Fato. Mas na cabeça da maioria dos enfermeiros da Casa de Fátima, ser idoso significava ser um problema para todos. Mesmo que ganhassem para cuidar deles... Jonathan era o enfermeiro chefe, ou coordenador geral do asilo. Um homem gordo – se seus pacientes eram velhos, não idosos, Jonathan era Gordo para nós, nada de obeso – caucasiano e preguiçoso. Só o que fazia era espiar o serviço de seus subordinados. Era sobrinho do primo do dono do asilo, e isso facilitava sua vida ali. Sua gulosa e sedentária vida. De todos era o mais crápula. Se dependesse dele, queimava aquele lugar inteiro, com os idosos juntos, claro, se com isso recebesse o dinheiro do seguro. Mas era só um funcionário... E dos maus. Uma vez, num dia do qual Luiz não se lembrava muito bem, um paciente jurava ter visto o imbecil conversar despreocupadamente enquanto

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segurava a cadeira de rodas de dona Margarida, que naquele momento parecia sufocar com algo invisível. A mulher colocava a mão frágil e trêmula no peito e ofegava muito. Mas o gordo não parava de tagarelar sorridente com uns dos enfermeiros. Depois de incontáveis minutos desesperados, ele notou o que estava acontecendo. Parou de conversar, se despediu do colega calmamente, ainda fazendo piadas sem sentido, olhou para dona Margarida e disse: - O que é que a senhora quer desta vez? – Repreendendo-a rudemente. Foi para frente dela e apontou-lhe o dedo rechonchudo. – Escute aqui velhinha, se não me ajudar, não vou poder te ajudar, está me entendendo? – A senhora o olhava assustada sem poder falar, agora pressionando o pescoço enrugado pela idade. – O que? – Colocava a mão em concha na orelha e gritava pra ela. – O que? Não sabe falar é? Sua velha escrota... Jonathan voltou a guiá-la pelo corredor desleixadamente até o quarto da paciente. Apenas Arthur, um velhinho melancólico viu a coisa. Ele avisou o diretor, que simplesmente o ignorou. – Está bem, está bem, agora me deixe em paz! – Foi o que o crápula disse. Ninguém mais fez nada, ninguém mais tinha coragem de dizer alguma coisa... O pior foi ouvir Arthur comentar o caso apenas dois dias após a morte, “natural”, de Margarida. Pelas contas do povo, aquilo ocorreu justamente no dia anterior ao seu falecimento. Não podiam provar, e mesmo se pudessem, não tinham com quem reclamar. Como já foi dito, ‘nada de parentes saudosos ali...’ Lucas via este tipo de coisa acontecer com uma frequência desagradável. Nada podia ser pior para almas cansadas do que serem tratados como lixos descartáveis. Ou podia? Não queria sequer cogitar esta ideia. Bem nesta noite, concentrado em seus melancólicos e nostálgicos pensamentos, ele ouviu algo vindo da janela. No escuro do seu quarto foi fácil notar uma silhueta felina do lado de fora da vidraça graças à luminosidade dos postes de luz da rua lá fora. Um gato? Levantou-se preguiçosamente e com um mal estar na coluna a muito inflexível, dirigiu-se à janela de correr e a abriu com certo esforço. “Janelas velhas numa casa velha para senhores velhos... Fazia todo sentido do mundo”. Pensou enfezado... - Ora, ora, ora... – Riu ele ao ver o gatinho negro como piche e de olhos amarelos como ouro incandescente parado ali no parapeito. Seu quarto ficava no segundo andar, nem se perguntou como o bicho conseguiu chegar até ali, gatos eram o que eram. Gatos. Pegou o animal carinhosamente e o colocou encima de sua cama acariciando-o. O bicho estava levemente machucado no focinho e na

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barriga, parecia com medo, pois tremia muito. Mas poderia ser do frio... Ou da dor... Quem sabe? Acendeu a luz do quarto para ver melhor a criaturinha. - Está com medo? – Perguntou Lucas rindo. – Não fique! Não vou lhe fazer mal algum... Vou cuidar de você... Bem... Se você me permitir essa cortesia. O gato apenas miou inerte em seus pensamentos instintivos e fechou os olhos, fez um circulo em si mesmo e deitou-se abatido. Ainda tremendo. - Está cansado... Entendo... Mas acho que não vai poder dormir na minha cama, amigo... – Lucas notou que o gato usava uma coleirinha de couro equipada com um identificador circular de madeira polida e esmaltada. Na peça lia-se: Dimas. - Então seu nome é Dimas?! – Pegou-o no colo mais uma vez e o encostou ao pé de sua cama. Voltou, apanhou um lençol velho que usava para cobrir a escrivaninha e cobriu o animal que já parecia cochilar. – Tome! Assim o senhor vai dormir melhor... Amanhã bem cedo lhe trago algo para comer e beber, está bem assim? Silêncio. O gato parecia ter morrido. Estava mesmo exausto. Era bem provável que tivesse fugido de casa e que seus donos estivessem atrás dele esta hora... Se estivessem mesmo, procurariam pela vizinhança, e o asilo não passaria despercebido. Até lá, Dimas ficaria bem e engordaria se dependesse de Lucas.

3 - Luiz! – Lucão chamou aos sussurros o seu amigo, que comia um pão amanhecido com manteiga, no refeitório. Acordou bem cedo e assim que entrou na sala de alimentação dirigiu-se ao velho negro que ainda parecia com muito sono. Deu-lhe um cutucão. – Luiz! Você não vai acreditar no que vou lhe contar velhote! – Lucas parecia radiante demais para estar ‘normal’ aquele dia. Luiz se virou para ele e apenas acenou para que sentasse à mesa como os demais. Todos que podiam andar estavam lá, e os que não podiam esperavam uma boa alma para levar-lhes o pão ‘quase’ nosso de cada dia entediante. Os enfermeiros deveriam fazer o trabalho, mas desde que deixaram de fazê-lo, os próprios pacientes, os mais saudáveis, tomaram a necessária iniciativa. - Ontem à noite um amigo meu veio me visitar! – Começou assim, olhando para os lados, atento ao corpo de funcionários. Luiz ainda “mastigava” lentamente seu pedaço de pão molhado no café com leite. –

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Um gatinho preto! – Contou simulando o tamanho com as mãos próximas uma da outra. - Um gato preto? – O senhor de óculos deixou o pedaço seco na mesa e apontou-lhe o dedo com a feição preocupada. – Escute Lucão. Gatos pretos dão azar... – Deu um gole na bebida suja de miolos de pão. – Todo mundo sabe disso! - Besteira, velho, não me chateie... – Inclinou-se para o amigo. – E digo isso com certeza. O inacreditável eu ainda não lhe contei... – Voltou-se à posição original, sua coluna reclamou. – Mas antes preciso mostrá-lo para você... Se ele permitir, eu lhe conto... – Levantou-se. - Aonde você vai? – Perguntou entre as tentativas desastrosas de mastigar um pão molhado. - Vou pegar meu café da manhã, já volto. – Lucas foi até a porta da cozinha, onde Tina servia a bandeja com a comida. Logo voltou satisfeito sendo seguido por olhares curiosos de Jonathan. – Pronto! - Me conte... Quem tem que permitir o “quê” pra me contar o que quer me contar? – Isso saiu de uma vez. Luiz quase engasgou com a comida na boca. - Ora, quem mais seria? – Arrancou um naco de seu pão e o enfiou inteiro na boca. Era algum tipo de provocação inconsciente, tanto que Luiz o olhou invejado. – O gato! - O gato? Como assim o gato? - Vou lhe dizer assim que o gato deixar... – Deu de ombros e sorriu. Luiz o encarou com aquele olhar... – Posso parecer louco, mas assim que lhe contar e provar o que me ocorreu você vai entender o que quero... – Parou de repente, interrompido pelo forte tapa na nuca que recebeu, fazendo-o cuspir o que comia. - Está tagarela hoje em velho? – Brincou o gordo, do qual já conhecemos bem os métodos de trabalho. – Vê se para de falar um pouquinho, sua voz está começando a me irritar! – E depois de algumas risadas acompanhadas pelas dos colegas, saiu empertigado do refeitório. Todos os velhinhos encararam Lucas, silenciosos e com olhos incrédulos. Apenas dona Gertrude, que não batia bem das ideias, riu muito daquilo. Com um urso de pelúcia no colo e sentada na sua cadeira de rodas, ao lado da porta, guinchava soluços eufóricos como se tivesse presenciado algo muitíssimo engraçado... Luiz o observava ainda de boca aberta enquanto Lucão olhava para o pedaço mal mastigado do pão na mesa, aquilo deveria estar descendo pela sua garganta. Pequenas gotas de lágrimas brotaram teimosas de seus olhos tímidos... Não queria estar ali. A vergonha e a raiva lhe inundaram a alma como um ‘tsunami’ ataca a costa marinha. Ecos de risinhos ainda soavam pelos cantos vindos das asquerosas bocas dos enfermeiros.

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- Está tudo bem amigo? – Arriscou Luiz estendendo a mão para o parceiro. Mas antes que pudesse alcançá-lo, Lucas se levantou cabisbaixo e se retirou do recinto. Não olhou pra ninguém, não sabia onde enfiar a cara... Luiz nem terminou sua refeição, pegou mais um pão com a cozinheira, outro copo de café, e foi até o quarto do amigo. Bateu na porta. Ninguém respondeu... Entrou mesmo assim. Lucas chorava copiosamente, sentado em sua cama, com as mãos no rosto. Deixando o café da manhã na escrivaninha, Luiz, sentou-se ao lado do velho. - Está tudo bem! – Lhe afagou as costas curvadas e tristes. – Escute. Não fique assim... Isso tudo vai passar... - Quando? – Respondeu Lucas entre soluços constrangedores. – Quando velho? - Não sei... Mas Deus é justo e não deixará que isso prossiga por mais tempo. Algo vai acontecer para punir aquele imbecil. - Não sei não... Este tormento já dura anos. – Encarou o colega. – Se fosse só comigo seria até mais aceitável... Mas todos nós passamos por isso todos os dias. Será que é mesmo o que agente merece depois de envelhecer? Daria tudo que tenho para me tornar jovem e arrebentar aquele escroto! – Socou o lado do colchão com fúria. - Tem razão... Mas vamos mudar de assunto... – Luiz se levantou e pegou o copo de vidro com o café com leite, o pão com manteiga, e ofereceu ao melancólico amigo... – Tome. Vê se come, não vai adiantar nada fazer regime por conta disso! - Não estou com fome agora, deixe por aí... Mais tarde eu como. - Então velho... Me conte sobre o gato... Um tanto a contra gosto Lucas se levantou e foi até um canto do quarto, abaixou-se, e quando se levantou segurava uma tigelinha com restos de leite e pedacinhos de pão. - Olhe aqui o que deixei pra ele hoje de madrugada! - Como conseguiu isso? - Tive que pegar escondido, não quis arriscar a simpatia da cozinheira... Talvez ela contasse para alguém... - Fez bem. Fez bem mesmo... – Olhou repetidas vezes ao redor. - Ele se foi... – Adivinhou o que Luiz procurava. – Não sei se vai voltar. Mas se dependesse de mim, aquele gato não iria embora nunca mais... - É mesmo bom ter um bicho de estimação. Eu mesmo já tive uma cacetada de cachorros. São excelentes amigos. Pode acreditar... - Mas não só por isso velho. – Lucas deixou a tigela onde estava e voltou-se para Luiz. – O que aquele gato é capaz de fazer é inacreditável... Na

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verdade é tão fascinante que eu não ligaria a mínima em ser chamado de louco. - Então me conte homem... – Riu Luiz ajeitando o chapéu. Usando um banquinho de madeira Lucas se sentou à sua frente, e contou-lhe tudo. Desde o aparecimento do gato até o tal fato inacreditável. E se querem minha opinião, quando ouvi a história pela primeira vez, embora a incredulidade, eu quis aquele gato pra mim... Mas se ele realmente existiu... Bem, isso eu não posso garantir... Ainda tenho minhas dúvidas. - Foi quando peguei no sono a coisa toda começou. – Iniciou Lucas o seu relato ao amigo atento. – Me deitei achando que o gato havia há muito dormido. Mas por um acaso escutei um miado agudo assim que preguei os olhos! ... Ergui-me da cama e o espiei. Dava pra ver bem, a luz da rua ilumina bastante aqui de noite. Na hora quase tive um treco. Esfreguei meus olhos tanto que chegou a doer, isso pelo menos me poupou de uma boa beliscada, como dizem... Achei que estava sonhando... Mas juro que não estava. O gato estava abrindo e fechando a gaveta de minha escrivaninha... – Acenou com a cabeça notando o espanto do amigo ouvinte. - Depois disso, além de deixá-la fechada, se dirigiu ao meu guarda roupa e fez o mesmo com as gavetas que alcançava. Eu não conseguia tirar os olhos daquilo. Foi quando eu espirrei. Justamente no momento em que ele voltava pra onde estava. O gato parou e me encarou com aqueles olhos penetrantes. Apesar de espantado, sorri. - Como vai? – Perguntei ainda não acreditando no que meus olhos viam. - Estou bem, obrigado! – Ele respondeu. ‘Ele respondeu...!’ O gato falou! Pensei que iria ter um treco ou algo do tipo, mas não consegui parar de sorrir. Talvez, no fundo no fundo, eu ainda achasse estar dormindo. O bichano subiu na cama e ficou sentado encima das minhas pernas estendidas sob o cobertor. Voltou a falar: - Obrigado por me acolher, meu senhor. Tenho votos que tal boa alma seja gratificada em breve. – E fez uma mesura. Abaixou a cabeça e tornou a me olhar. Gaguejei, mas consegui falar: - Ora. – Ri bastante. – Não há de quê, amiguinho... - Pode chamar-me de Dimas, embora isso não signifique que amigo eu não seja para o senhor! – A voz dele saía limpa e áspera ao mesmo tempo. Não saberia explicar isso melhor. Estava falando, mas ainda assim, era voz de gato. E dos educados... - Tudo bem, Senhor Dimas, se preferir assim... – Disse eu estendendo-lhe a mão.

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Ele a encarou e voltou a me espiar. Retirei a tentativa de cumprimento. Fui um tolo, como ele iria me retribuir aquilo? Estava claro que me achou um idiota na hora. - Este gesto, adoraria poder retribuí-lo, mas como bem vê... – Estendeu a patinha direita. – Não posso. – Fez uma pausa. – Sou um gato! - E que gato heim? – Suspirei e olhei ao redor. Estava mesmo sonhando? - Afinal de contas, isto é um sonho? - Eu tenho quase a mesma qualificação que o senhor para esta pergunta responder! – Olhou ao redor balançando o rabo. – Se fosse de fato um sonho, não conseguiria perceber? - Acho que sim... – Eu iria responder o quê? – Mesmo assim, a ideia de lhe escutar falando... - Lhe causa confusão de percepção do que é real ou não! – Eu apenas concordei com um balançar discreto de cabeça. - Entendo bem isso... Contudo, é bom saber que apenas os humanos possuem este desagradável sentido... A realidade é bem mais ampla e inconsistente do que vocês símios acreditam. - Quem é você? - Eu sou Dimas! Acho que já me apresentei... Corrija-me se eu estiver enganado! - Já sim. Já sim... Mas o que quero dizer é... - O quê sou eu?! – Ergueu-se e andou pelo colchão coberto. Andava como se estivesse se preparando para um monólogo. – Sou um gato! Primeiro ponto... E se posso falar, se é justamente o que lhe perturba, é porque me foi ensinado... - Ensinado? Por quem? – Perguntei. - Pelo Senhor dos Gatos! - E quem é esse? - Perguntas demais! Creio... E irrelevantes para me conhecer, e como acredito, é o que lhe interessa no momento não é mesmo? - Sim, sim... – Pigarreei. – Me desculpa. Continue... - Pois bem... Eu estava andando por aí quando fui atacado por um bando de filhotes humanos, crianças, como vocês as chamam, e quase me exterminaram. Ainda bem que sou mais inteligente do que a média de meus irmãos e consegui fugir. Escalei alguns muros e telhados, parei pra descansar numa janela... Foi quando o senhor me encontrou. - Rápido você pra explicar as coisas não? - Deveria ser mais demorado? - Bem... – “Nunca haviam me perguntado isso”. – Acho que sim. Pelo menos, nós humanos demoramos mais, explicamos mais... - Desculpe-me senhor Lucas, mas acho isto ilógico e típico comportamento de animais de insegurança intelectual. Não há o porquê de explicar-se muito. Quando se pensa, basta pensar e imaginar para se obter a

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resposta correta para as mais variáveis questões que possa nos afligir. Se eu disse o que lhe disse de maneira “rápida”, é porque realmente não havia necessidade alguma de prolongar o assunto! – Ele pigarreou. Juro. – Desculpe-me se tive de ser rude. - Não precisa! Não foi rude não... Só estou encantado com o fato de estar conversando com um gato. - Muita gente faz isso... - Mas só eu obtive resposta! - Xeque! – O gato se aproximou mais ainda de mim. Subiu em meu peito, achei que fosse morder meu nariz. – Gostei de você! - Também gostei de você! - Que bom para mim então... Caso contrário nunca teria falado comigo. – Voltou pra onde estava. – Eu posso sentir a alma das pessoas... Sabia que nós, os gatos, podemos fazer isso? - Desconfiava... - Pois agora saiba! Senti que algo estava errado contigo assim que no colo me pegou. E ainda sinto a coisa... Tem algo de ruim acontecendo por aqui... Não tem? E eu disse tudo pra ele. Sobre a solidão, sobre os maus tratos... - Eu sabia... – Comentou, ele, lambendo a pata. – Me diz uma coisa. Você ainda acha que está sonhando? Seja sincero... - Sim! Mas algo está mudando... - O que seria? - Não sei direito... – Respirei fundo. – Eu consigo puxar a respiração sem acordar, consigo sentir meus músculos e sentir seu cheiro... - E ainda acha que está dormindo? A incompreensão humana às vezes me impressiona. Por que vocês lutam tanto contra o fantástico? - Não sei... – Aquela conversa era irreal, mas eu me permiti prosseguir, talvez porque eu insistia em estar sonhando. - Acho que é pra não desapontar nossos pais... - Me explique melhor isso... - Quando a gente é criança acreditamos em tudo, mas nossos pais vivem nos repreendendo por conta disso. Depois crescemos e a vida nos tira toda a fantasia... Acho que é isso, não tenho certeza, talvez seja o natural do ser humano... Só ter contato com o fantástico quando sonha. - O senhor já parou pra pensar que o ato de sonhar já significa tocar o fantástico? Vocês encaram bem a existência dos sonhos, mas não levam a sério o que vivem nesse estado mental... Isso me parece ilógico. Por que, mesmo em contato com a fantasia, tentam ignorá-la...? Se alguém sonha, este alguém entra em contato com a fantasia, isso é óbvio demais para ser ignorado. O sonho é algo real não é? - Como assim? Real... - O sonho não existe?

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- Sim, claro... - Então, por que o que lhe é mostrado neste estado não é real? - Porque é só um sonho, não faz parte da vida real... - Mas o fato de sonhar não faz parte da realidade? – O gato pareceu irritado naquela hora. Parecia ser mesmo mais velho do que aparentava. – Como vocês, humanos, conseguem ser tão insensatos? Fiquei pasmo. De alguma forma, aquele gato me passava uma certeza monstruosa, impossível de ser contestada. Ora, eu mesmo não estava lá conversando com ele? Ele devia estar miando... Não me dando um sermão. - Vou lhe dizer pela última vez! – Continuou ele. – Eu sou real e o senhor também é... Estamos entendidos? Vamos deixar esta conversa sobre sonhos para outro dia... - Está bem. Também prefiro... - Esteja bem até amanhã cedo então... Se o senhor compreender melhor o fato de poder entrar em contato com o fantástico, vou poder te ajudar. Ao senhor e aos seus amigos... Vou dormir se não se importa! - Não! Fique à vontade, por favor! Simplesmente, ele se deitou como o gato mais comum deste mundo ao lado da cama e dormiu. Eu tornei a cobri-lo com o lençol e também resolvi dormir. Aquilo tudo estava difícil de assimilar, por mais lógico que poderia parecer pro bichano, pra mim era e é coisa de outro mundo. ... A estrondosa risada de Luiz eclodiu no quarto de tal maneira que a antiga melancolia, que até então estava estampada no rosto enrugado de Lucas, sumiu. Riram juntos, tanto que a barriga de ambos chegou a doer. - Não acredita em mim? – Enxugou as lágrimas Lucas, ainda controlando o riso. – Ora seu velho banguelo, eu devia expulsá-lo daqui... - Desculpa Lucão! – O velho negro ajeitava os óculos e ria abertamente. – Que história mais doida é essa! - Eu sabia que não iria acreditar... Mas é a mais pura verdade... - Tudo bem... Pode ser, mas como o gato do seu sonho falou, a realidade é elástica... Ainda mais para nós que já estamos prestes a bater as botas... - Sabe o que vou fazer? – Levantou-se e se serviu do café com leite e do pão... Já havia se esquecido do incidente mais cedo. – Se ele vier aqui hoje... Vou te chamar pra vê-lo... - Isso eu adoraria ver... Pode contar comigo... Vou ficar acordado até meia noite, se até lá não me chamar, pode entrar no meu quarto e me acordar. - E é o que vou fazer. Te acordar de noite seria ótimo...

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- Combinado então. – Luiz se levantou e dirigiu-se à porta. – E quanto ao gordo... Não se aborreça. Ele vai pagar caro estes abusos... Escute o que estou lhe falando. - Depois de hoje... Vou rezar todos os dias para que isso aconteça... - Tudo bem. – Riu mais uma vez. Acenou. – Deixa-me ir... Depois que comer, me encontre na sala... - Uma partida de dama? - Pode ser, pode ser... Até mais, velhote maluco. - Ora, vá pro inferno!

4 Eu adoraria pular para o que interessa, mas infelizmente me vejo na obrigação de relatar o infeliz ocorrido daquela tarde. Dona Quitéria falecera. Ninguém conseguiu assistir televisão e nem jogar dama, todos estavam inertes, assim, não conseguiam tirar a falecida da mente. Perambulavam pela sala da tevê, pelo refeitório e conversavam baixinho. Apenas os enfermeiros, não ocupados na remoção da defunta, assistiam a programação retardada da televisão. - Do que foi que ela morreu? – Perguntou Antonio, um senhor alto de olhos azuis, ex-professor de matemática. – Vocês sabem? - Acho que foi insuficiência respiratória... – Comentou Luiz no meio dos dois. Andavam lentamente pelo corredor que ligava o refeitório à ala do “jardim” coberto. O lugar ficava bem no meio do asilo, e deveria ser descoberto, mas telhas velhas de acrílico impediam boa parte de a luz solar invadir o local. – Mas não tenho certeza. - Foi sim. – Disse Lucas. – Ouvi o gordo resmungar isso para o diretor agorinha há pouco. Ele disse rindo, o miserável... Imitou a moribunda se sufocando... - Crápulas! – Desabafou Antonio. – Como podem ser tão insensíveis? - Se eu soubesse... – Resmungou Lucas. – O pior é que o senhor Augusto apenas ria com ele, como se entendesse bem como era a coisa... Bastardos. Dois malditos bastardos. - A gente devia tomar alguma providência! – Luiz sussurrou. – Estas coisas não podem continuar acontecendo... Simplesmente não podem. - E tem ideia de como podemos fazer isso? – Lucas pareceu áspero com o amigo. – Todos nós estamos de mãos atadas aqui... Não podemos sair e ninguém vem nos visitar. Isso já tem anos... Embora, tudo tenha começado há pouco tempo... Desde que este novo diretor assumiu o asilo.

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- Filho de uma vaca morfética! – Esbravejou Antonio com os olhos vermelhos. - Vou sentir saudades da Quitéria! – Lucas parecia realmente triste. A morte da amiga lhe pegou de surpresa, apenas há uma semana ela vinha mostrando algum sinal de resfriado ou falta de ar... Uma semana. E então... – Tão de repente. - É verdade! – Disseram juntos Luiz e Antonio. Aquele dia foi mais um dos vários. Triste e solitário...

5 A enorme lua prateada navegava no céu púrpuro. Lá, acima das casas baixas e dos prédios cinzentos da vizinhança do asilo. E lá embaixo, encima do telhado cinza da Casa de Fátima, Dimas observava o astro. Sua calda balançava e seus olhos lacrimejavam. Saudades. Algo lhe dizia que mesmo depois de conseguir terminar sua missão, não conseguiria voltar pra Casa dos Gatos em tempo de ver se o Novo Senhor iria mesmo ser derrubado pelo seu original líder. A rebelião de Ciro não poderia dar em boa coisa, mas isso era outra história... Lógico que ele mesmo não poderia contar toda sua história para um idoso humano. Por mais que tivesse a mente aberta, nunca acreditaria... Ele na verdade era mais que um gato. Muito mais. Seria dificílimo explicar isso para um mero homem. Tinha sido incumbido de achar dois gatos maus que escaparam da Casa e eliminá-los. Era uma longa história e nada do que sabia iria adiantar em alguma coisa para o velho Lucas. O bom de tudo é que conseguiu terminar seu objetivo. Não gostava de se ver como um assassino, como seus primos selvagens do mato. Não. Ele era um cavaleiro e se orgulhava disso. No entanto... A sua primeira vítima tinha sumido há vários meses do retiro e andava influenciando pessoas a fazerem escolhas ruins na vida em troca de nada. Por puro prazer de vê-las escorregar em suas tristezas e depressões. Antes de matá-lo, descobriu que seu último ato foi fazer um jovem garoto escolher um anuncio fantasma, do qual nunca veria sem sua ajuda maligna. Era sobre a venda de um computador infectado por um vírus assassino. Um vírus fantasma e letal. Quanto a este computador, não conseguiu descobrir o paradeiro... Bem, isso já não era da sua conta. Aconteciam inúmeras coisas estranhas pelo mundo dos humanos e boa parte era causada por estes demônios de pêlo disfarçados de gatos. Cretinos desalmados que manchavam a imagem de sua raça.

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Quanto a eliminá-los. Isso não era nenhum desprazer. Aquele gato em questão se chamava Thobias, e uma de suas habilidades era fazer com que os humanos o entendessem por simples gestos. E por alguma razão todos sabiam seu nome... Agora só uma carcaça apodrecendo em algum lugar esquecido. Menos um... Seu Senhor ficaria orgulhoso dele. Bem, pelo menos seu Senhor original, não Ciro, aquela besta na Casa dos Gatos. Sua segunda vítima foi mais difícil de eliminar. Lolitha era esperta como o diabo e tinha uma estranha habilidade telepática. Quase adivinhava suas ações antes de atacá-la. A gata era uma das mais perversas criaturas que fugiram do retiro... Só conseguiu pegá-la fatalmente na noite anterior, pouco antes de ser acolhido por Lucas. Não soube nada a respeito de suas más ações, pois ela podia bloquear sua leitura mental. Perversa e esperta, mesmo assim, abatida como o combinado. Existiam outros gatos maus por aí, e outros como ele em seus encalços. Era uma guerra, uma batalha entre os que desejavam seguir Pedro, o Senhor antigo e Ciro, o novo... E isso continuaria até um deles cair para sempre. Até lá, a perseguição continuaria... Vocês devem estar se perguntando como eu consegui saber a respeito destas coisas... O que posso dizer por enquanto é que, quando o senhor Luiz me contou isso, disse que Dimas havia, numa noite qualquer, contado isso e muito mais para o velho Lucão, como ele mesmo o chamava, e que por sua vez seu amigo lhe contara antes de... Antes de tudo terminar. Enfim a coisa toda chegou ao meu ouvido atento na sala de estar nova do asilo. Por mais que eu não entendesse o significado daquelas palavras sobre Dimas, e o que elas significavam de fato, eu me vi curioso como uma criança diante do avô imaginativo. Mentira ou verdade, o velho Luiz conseguiu o que queria, prender completamente minha atenção. Creio que eu não esteja conseguindo nem a metade do que ele conseguiu fazer comigo, também tenho que levar em consideração que uma história repassada sempre perde um pouco de seu impacto inicial, ainda mais, tratando-se de um conto destes. Mesmo assim, contarei o resto...

6 Logo depois de se recompor naquela madrugada fresca, Dimas saltou para o muro que separava o asilo da casa vizinha e pulou novamente para a janela do quarto de Lucas. A janela estava aberta e a lâmpada estava acesa. O impacto inicial quase o fez saltar de novo para fora, mas não adiantaria nada, talvez fosse até melhor encarar o inesperado. O velho não estava só.

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Luiz e Antonio estavam com ele, e conversavam distraídos quando chegou de supetão. Parou, encarou um por um e disse: - Miaaauuu! – Será que adiantaria? Pelo pouco que conhecia dos humanos, Lucas já deveria ter dito tudo para os amigos. Os três idosos pararam de conversar e olharam para o gato. Sorriam. Lucas estava sentado em sua cama ao lado de Antonio e o velho Luiz na cadeira em frente aos dois, bem encostado à porta. Era claro que não queriam ser interrompidos. Pelo menos não eram tão displicentes assim, pensou Dimas. - Então... – Comentou entre dentes Antonio se curvando lentamente e encarando-o. – Este é o seu amiguinho felino do qual nos falou! – Ele sabia. Agora não havia dúvidas. Lucas abrira o bico. Tudo bem... Se estivesse certo, eles não teriam para quem contar... - Bom dia Senhor Dimas! – Cumprimentou Lucas levantando-se da cama e indo à sua direção lentamente. – Como foi seu dia hoje? – Era claro que esperava uma resposta. Não a iria dar, não por enquanto, tinha que ter certeza quanto aos outros. Foi pego no colo. Manteve a postura e o disfarce, sempre... - Acho que seu amigo não quer conversar com a gente Lucão. – Provocou entre risos Luiz. – Deixe-o à vontade! Solte-o... Não vai querer deixá-lo com vergonha, né? – Isso, escute o velho. Pensou Dimas balançando o rabo. - Tem razão! – Lucas o deixou encima de sua cama. – Mas vê se fala mais baixo, se nos descobrirem aqui, vamos ter problemas... - Tudo bem... – Sussurrou Luiz caricaturalmente. - E então? – Começou Antonio olhando para o gato com seus olhos azuis. – Quando ele vai falar? - Bem... – Deu de ombros Lucão acariciando o bichano constrangido. – Não sei. Talvez esteja com medo de vocês... - Medo de dois velhos? – Riu Antonio aparentemente indignado. – O que é isso? - Sei lá... É o que acho. - Não sei não... – Se levantou e dirigiu-se à porta. – Quando ele falar, cantar ou dançar... Vocês me chamam. Está bem? – Era claro a ironia em seu tom de voz. - Pode deixar que a gente te chama, professor! – Luiz apenas ria da situação. Seu amigo estava ficando louco? Provavelmente, assim que Antonio saísse, teria uma boa conversa com Lucas e esclareceria isto. – Até mais... - Até amanhã! – Despediu-se ironicamente, e desapontado, sinceramente. Contudo, assim que a porta se fechou e Luiz se pôs novamente na posição de ilusória segurança, Dimas soltou num alívio:

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- Até que em fim, o intruso se foi! – Lambeu a pata sem se quer notar o espanto claro estampado entre as rugas do idoso negro. Lucas apenas sorria satisfeito como se ele mesmo o tivesse ensinado a façanha. – Não aguentava mais fingir ser um idiota mudo. - Minha mãe do céu Lucão! – Quase gritou o idoso apontando o dedo trêmulo para o gato. – O bicho fala meeeeesmo...! – E riu descontroladamente, mais de nervoso do que se houvesse achado algo engraçado. - Eu te disse... – Comentou Lucas. – Achou que eu estivesse pirando, não foi? - Foi sim... Ih-ih-ih... Agora acho que eu estou pirando junto... – Gargalhou, mas abafou a risada com as mãos enrugadas. – Fascinante. Onde o achou? - Eu já não lhe disse velho gagá? - Sim. Sim, sim...! – Concordou com gestos impacientes da mão. A outra não saía da frente da boca, tentando inutilmente esconder o riso atônito. - Nunca achei que fosse causar tanto furor algum dia, sempre me achei tão baixinho e feio... – Desdenhou o gato sentado encima do cobertor dobrado de Lucas. Este lhe voltou à atenção: - Como foi seu dia? - Não muito bem, tenho que admitir. Poderia ter sido melhor, se eu não tivesse descoberto o que descobri sobre este asilo... E... Infelizmente me vejo na obrigação de falar-lhes a respeito do que vi e ouvi. – Ficaram sérios e preocupados com aquelas palavras. – Aviso-lhes desde já, que não será fácil escutar... - De qualquer modo... Nos diga... - Lucas. Desculpe-me ter que lhe retribuir o favor desta maneira, mas não vejo escolha... Algo muito ruim está para acontecer aqui, e já está em andamento. - Fale logo homem... Quero dizer, gato! – Acelerou-o Luiz impaciente. - Pois bem. Hoje eu fiquei por aqui mesmo, pelos cantos do asilo, vendo e escutando tudo, para confirmar o que o senhor tinha me dito noite anterior. Pois bem... Prosseguiu depois de notar a concordância de Lucas. – Me escondi na sala onde o homem, de uns quarenta anos que parece dirigir tudo aqui, trabalha. A sala é bem clara e arejada, fiquei encima de uma estante repleta de livros. De início não vi nada demais e não precisa ser relatado, mas assim que um homem jovem e obeso entrou... As coisas pioraram. ...

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Esse tal obeso, Jonathan, sentou-se à mesa do que se chama Augusto, se não me engano, e disse: - Está feito Tio! A velha já se foi... - Mesmo? – O homem de óculos e terno não tirava os olhos de uma papelada. Pareciam documentos importantes. – E os parentes? - Nem desconfiam... Como o senhor imaginou, ficaram até satisfeitos de se livrarem da velha. - Não exagere! - Mas foi o que achei, se me permite dizer... - Prossiga! – Girou os dedos impacientes. - Resumindo. Correu tudo muito bem... O problema é que o tal ‘remedinho’ está acabando. Precisamos de mais... - Deixe isto comigo. - Certo. – Coçou a cabeça e em seguida a barriga. – Tem mais... O diretor o encarou, sério, e claramente irritado. - O filho do velho que se chama Lucas, veio aqui de novo... Augusto parou de ler o que estava lendo e pareceu realmente preocupado. Falou num sussurro: - O que tem ele? Ele causou alguma confusão? - Não, eu consegui convencê-lo de que seu pai estava viajando numa excursão do asilo. Nem desconfiou de nada... Só quis avisá-lo. Da próxima vez, não sei qual desculpa vou dar... - Pense em alguma coisa. Ninguém poderá receber visitas, caso contrário vai ficar difícil de convencê-los de que seus pais já apresentavam sintomas da “doença”! – Ele fez um claro sinal de aspas com os dedos quando disse isso. – Está me entendendo? É de mera importância que ninguém receba visitas de ninguém... - Está bem claro! – O gordo suspirou e se inclinou. – Recebemos quanto desta vez? - Não muita coisa... O dinheiro que cobramos para repassar à agência funerária, os custos de velório e as nossas próprias... - As que cobramos por despesas adicionais de cuidados ao doente? - Exato! – Riram muito disso. – Fora o fato que a agência também nos pertença... Foi um lucro razoável. - Que bom... - Falando-se do senhor Lucas... – Comentou o homem de óculos. – Ouvi dizer que você o agrediu ontem... É verdade isso? - Bem... – Jonathan pareceu amedrontado, mas respondeu cabisbaixo. – Não foi bem assim. Apenas lhe dei um tapinha na cabeça, só brincadeira... Nada demais. Por quê? Quem lhe falou disso? - Não lhe interessa! Brincadeira ou não, não quero que isso torne acontecer, está me entendendo? – Pareceu realmente irritado com a atitude do subordinado.

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- Entendi. Não vai acontecer de novo... Mas só me diz quem foi que lhe contou... - Foi o senhor Antonio, o velho alto de olhos azuis... - Ceeerto... – Murmurou. Em minha opinião, o amigo de vocês deveria tomar cuidado, aquele obeso me pareceu bem malévolo. E vingativo. - Não agrida ninguém. Não quero que tudo vá por água a baixo só porque um funcionário meu agredia os pacientes... Fui claro? - Foi sim... Posso ir? - Pode sim... E tome cuidado. As paredes têm ouvidos! – E olhos espertos. Pensei naquele instante. - Pode deixar comigo. Assim que chegar os remedinhos, me avise... O homem apenas voltou aos seus papeis e o gordo se retirou do recinto, com um estranho sorriso nos lábios. ... - Bem... – O gato bocejou. – É isso! Lucas estava pasmo. Aquilo que o gato lhe contara era grave. Muito grave. Nunca, em toda sua estada no asilo, pensou que as coisas estivessem tão sérias. Aquilo era no mínimo maligno. Mau. Perverso. Ia além das provocações e dos maus tratos. Insano. Luiz o acompanhava nos pensamentos. Incrédulos, se mantiveram mudos por alguns minutos até que... - Tem absoluta certeza do que ouviu Dimas? – Foi só o que conseguiu dizer, Lucas, ainda perplexo. – Eu entendi bem o que você me disse? - Infelizmente, de todo meu coração, eu acredito que sim! – O gato pulou para o chão. – Sinto-me um crápula só de passar estas notícias, mas seria ainda pior se eu não as desse... - Se o gato estiver certo Lucão! – Luiz arriscou, se controlando. Ainda tentava conceber a ideia do gato falante, agora aquilo... – A gente corre perigo de vida aqui... – Ele tremia. A verdade em suas palavras era mais pesada do que estava preparado. Sentia, como seu amigo, o fato lhes assombrando como as asas da morte. E no fundo, não deixava de ser. - Felizmente... – Recomeçou o gato. – Existe um jeito de impedi-los! Os dois idosos o encaram. Curiosos e famintos pela possibilidade de virar o jogo. - Só tenho que deixar claro uma coisa. – Dimas encarou um a um por alguns segundos. – A escolha e a solução são definitivas e nem pouco misericordiosas. Se concordarem comigo, terão o sangue dos inimigos em vossas mãos. - Como assim? – Luiz coçou o nariz, incerto. – Sangue? Você está falando em... Matá-los?

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- Exato! – Concordou o gato sem rodeios. – Eliminá-los de uma vez. E não é só isso... Luiz ainda tremia dos pés à cabeça. Sua vida se transformava num passe de mágica. Até alguns segundos atrás era só um homem envelhecendo num asilo, agora se via tentando se proteger de assassinos que se passavam por enfermeiros. Não aguentou e interrompeu o raciocino de Dimas. - Antes, tenho que tirar algumas dúvidas. – Pigarreou e ajeitou os óculos. – Será mesmo que estes ‘remedinhos’ de que falou se trata de venenos? - Acho que não há dúvidas quanto a isso Luiz. – Disse Lucas, parecia transtornado, mas mantinha a aparente calma. – Não escutamos mal o que Dimas disse. Os desgraçados estão nos matando, um por um, por dinheiro. Cruel, mas real... E não temos quem nos ajude além dele... Lucas pensava em seu filho que há muitos meses achava que o tinha esquecido ali. Como podiam fazer aquilo com ele? Sua raiva se acumulara durante anos, e recebendo aquela notícia, infeliz, mas cabível, a última gota d’água de sua paciência transbordou-se. Seria a vez dele... - O que quer dizer com, e não é só isso? – Dirigia-se ao gato. - Que um de vocês terá de desistir da vida que tem... Para sempre. – Esclareceu Dimas. – Vou levar o voluntário para ‘uma outra realidade...’ Os dois idosos ficaram mudos. Aquilo tudo estava indo longe demais. Eles não queriam morrer, droga, o que o gato estava pedindo era quase a mesma coisa. Não? - Podemos pensar a respeito? – Pediu Lucas. - Nem vou pensar, não quero que esta situação continue... – Falou Luiz enxugando os olhos. Já não conseguia se controlar. – Mesmo assim, não sou um assassino e nunca serei... Além disso, estou velho, mas não quero morrer... – Suas lágrimas caíram. - Ele tem razão Dimas... Tem que haver outro jeito... - Desculpe-me Lucas, mas não posso fazer nada, além disso... Sou um gato. Não posso sair pelo mundo pedindo ajuda ou tentando provar algo para suas autoridades. Impossível. - Então... Pelo menos nos dê um tempo para pensar a respeito. - Por mim está ótimo! – Dimas saltou para a cama de Lucas novamente. – Oh! Eu já estava me esquecendo. Tenho coisas boas também... Não sou nenhum presságio de más notícias. - E o que seria? – Perguntou Lucas, enquanto Luiz ainda chorava silenciosamente. - Vocês dois estão dispostos a viajarem comigo agora? - Viajar? Como assim? - Conhecer o lado estreito! - Do que está falando Dimas? - É surpresa... Juro que vai ser bom... Querem ou não? - Bem...

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- Pode ir... – Murmurou Luiz. – Vou ficar aqui e esperá-los. Não tenham pressa... Tenho muito no que pensar por hoje. – E fez um sinal com a mão para irem logo para onde é que fossem. Lucas se levantou sendo seguido pelo olhar atento do bichano negro. - Bem... Acho que não tenho nada a perder! – Decidiu com as mãos na cintura. – Então vamos... – Olhou para o gato, que balançava o rabo inquieto. - Tem certeza de que não quer nos acompanhar senhor Luiz? – Perguntou o gato. - Não, não... Podem ir. – Ensaiou um tímido sorriso. – Vou ficar bem aqui. - Pois bem... Então, vamos senhor Lucas. O gato se virou para a parede e fechou os olhos... O que aconteceu a seguir foi no mínimo fantástico. Um círculo de luz em espiral começou a se formar na parede. Pequenas centelhas luminosas flutuaram cuspidas do núcleo. Um ruído de roda de moinho surgiu junto à coisa... Estavam fascinados pelo portal. “Era um portal mágico, como nas histórias fabulosas de sua infância, na certa.” O centro luminoso se estendeu até não existir traço algum das caudas giratórias que se moviam no início. Apenas um trêmulo círculo de luz. O ruído de folhas ao vento e o aroma de rosas invadiram o recinto... - Vamos Lucas! Não tenha medo... Tenho certeza de que irá adorar... Lucas não disse nada. Apenas deu o primeiro passo, lento e incerto, até se sentir mais confiante e penetrar no portal com as mãos estendidas. Esperava bater na parede... Dimas o seguiu de perto, logo atrás de seus calcanhares... De repente tudo desapareceu. Luiz se viu sozinho e nada no quarto dava sinal de que algo tinha acontecido fora do normal. Ele suspirou, fechou os olhos e esperou.

7 Quando atravessou o portal Lucão sentiu algo estendendo todos os músculos e veias de seu corpo. Era a morte! Sentiu isso... Estava envelhecendo, mas nunca imaginou que sua morte aconteceria daquele jeito. Quem poderia imaginar tal circunstância? Ora, ele havia confiado no gato, havia se entregado para aquela criatura, de corpo e alma. E agora estava morrendo? Tudo escureceu e sua respiração pareceu ausente, não sentiu mais nada de repente... Até que seu campo de visão foi inundado por um mar de luz. Uma luminosidade tão

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forte que por algum segundo acreditou estar no céu... Com os anjos... Pois seu coração se invadiu duma paz perfeita e sua mente de uma compreensão magistral. Do outro lado o que atingiu a visão do idoso foi maravilhoso. Era como se estivesse consciente em um sonho. O sonho mais lindo que tivera em toda sua longa vida. A primeira sensação foi a de nostalgia saciada. Era como se já tivesse passado por ali, mais do que isso, era como se tivesse vivido ali há muitos anos atrás e por muito tempo. Um lugar que conhecia e por alguma razão, esquecera enquanto esteve no asilo, ou mesmo antes disso... Esquecera daquilo tudo enquanto esteve vivo... Caro leitor. Peço que me perdoe pela ineficiência que demonstrarei adiante, pois quando Luiz me contou o que Lucão o havia narrado, também não conseguiu se expressar... Eu tentei passar para estas linhas o máximo possível do que me foi contado. Espero que entendam, pois o fascinante mundo descrito pelos idosos simplesmente se fez impossível de ser descrito à altura. Mesmo assim, é necessário relatá-lo, mesmo que na medida do possível... Os dois encontravam-se numa colina de gramado uniforme e salpicado pelo que achou ser ‘dentes-de-leão’ e inúmeras outras plantinhas que se moviam lentamente. Tudo ali pulsava de vida demais para ser normal. Pequenas luzes coloridas voavam apressadas em direções distintas para onde se olhava. Uma turbulência de seres desconhecidos e perfeitos. De ambos os lados, havia uma série de barracos ornamentados com esculturas e pinturas do lado de fora, tinham cores diversas. Um universo inteiro de obras magníficas enfeitava as moradias. Os telhados eram de formatos inesperados. Uns eram bem íngremes, outros retos, mais alguns relativamente tortos e de lados assimétricos. Todas possuíam chaminés exuberantes e espalhafatosas. Estreitas trilhas de pedras claras riscavam a grama entre a vila mágica sob um ar agradável e irradiante. Prismas dependurados abaixo das soleiras espalhavam cores luminosas em todas as direções, e mais a baixo, ainda na colina, outras casas, de tamanhos diversos, enriqueciam bastante o panorama mágico e surreal. Ainda mais distante e mais embaixo, entre outras colinas e morros, a cidade se estendia até onde a vista alcançava. Porém a vista não poderia ir tão longe, era um vale pequeno, contudo, enorme em sua exuberância e beleza. Árvores de todos os tamanhos e formas cercavam-na como guardiões eternos de sua exuberância conforme subiam as encostas do círculo de montanhas sadias. O céu era “irreal”. Gigantescas engrenagens transparentes semelhantes à mandalas, e/ou cristais de neve, giravam lentamente num movimento uniforme e eterno. Lucas teve certeza de que aquelas coisas tinham sido moldadas diretamente pelas mãos de Deus. Já as nuvens tinham ‘realmente’ variadas formas conhecidas. Animais, pessoas, doces, plantas, carros...

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Tudo. Era como se bastasse imaginar para tornar real. Lucas ficou petrificado, estava em pleno êxtase, visivelmente feliz, enquanto às suas costas o portal se fechava. Olhou para baixo e a surpresa continuou. Dimas estava ereto e usava cartola escarlate e um cetro rubro. O felino olhou pra cima e pareceu sorrir. - O que achou? Lucas tornou a olhar ao redor. Não conseguia responder nada. Achou que nunca mais iria conseguir falar em sua vida, e no fundo, sentia que não queria, não queria nunca mais falar nada... Não precisava daquilo pra ser feliz. Planetóides boiavam além do céu azulado, alguns anelados, outros parecidos com a Terra... - Aquelas coisas... – Apontou para cima. – são planetas de verdade? - São sim! E está vendo aquele parecido com a Terra? O azul com uma lua ao redor? - Estou... – Quase babava de euforia... - Pois bem. O que você me diria se eu lhe dissesse que é a Terra? Lucas o encarou. Não parava de sorrir como uma criança. E era de fato uma, pelo menos no coração. - Anda... Responda-me! - Não pode ser... – Balbuciou. – Não pode ser... Não pode... - Ora senhor Lucas. Estou lhe dizendo. É a Terra. A mesma em que seu amigo está nos esperando... A própria. - Impossível. – Se concentrou em seus pensamentos até conseguir coordenar as ideias. – Além da Terra há o espaço sideral, as estrelas, o vazio escuro... - Mesmo é? – Dimas riu. Sim ele sorria naquele mundo. – E quem foi que lhe disse isso? - Ninguém... Quero dizer. Todo mundo. Meus pais, meus professores, a tevê, os jornais, os... - Tudo bem! – Interrompeu-o. – Os mesmos fulanos que acreditam não existir magia, não é? Que não existe nada disso que você está vendo e vivendo! - Sim... Mas eles possuem provas... - Você já viu alguma? - Sim. Fotos. Fotografias e vídeos... - Você conhece as pessoas que tiraram aquelas fotografias e as que filmaram o espaço? - Não... Mas isso é irrelevante! - Pode ser... Mas se quer um conselho... Acredite apenas em si mesmo e no que seu coração sente. No que seus olhos vêem e reconhecem... Não adianta ver e não saber. É preciso muito saber o que está se vendo, caso

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contrário, sua mente não conseguirá construir a verdadeira imagem em sua mente. Compreende isso? - Não! – Ele simplesmente não parava de olhar para todos os lados. Para a cordilheira esverdeada do panorama. Para os inúmeros planetas, para os quatro astros solares, para as engrenagens... Para as... - Lucas! – Interrompeu seus pensamentos mais uma vez o gato de cartola. – Você existe e isso aqui também. Tudo existe Lucas. Nesta ou em outras realidades, não importa... Tudo o que se imagina e o que não se imagina também. Absolutamente tudo existe em algum lugar. E esta realidade é uma das infinitas... Esta é uma das mais próximas da sua realidade. Tão perto que se nós pudéssemos voar até aquele planeta redondo e azul, você encontraria seu amigo ainda lhe esperando no asilo. Encontraria seu filho e todo o resto... Mas de lá, não poderá ver este lugar... Nem os outros planetas fantásticos e divinos. Cada um deles, falando-se nisso, possui uma espécie inteligente no mesmo grau de evolução a dos humanos. Incrível não? E nenhuma delas sabe da existência da outra... E vivendo tão perto... - Inacreditável... ‘Me desculpe Dimas’. – Lucas começava a se despertar da fascinação. – Mas por mais que eu esteja vendo, chega a doer acreditar no que me diz. - Tudo bem, eu entendo. E só o entendo porque sei bem o grau de evolução humana. Vocês acham que evoluir é construir aparelhos e parafernálias complexas. – Riu asperamente por um segundo. Quase num desdém. – Nada disso. Não mesmo. Os humanos estão evoluindo sim, fato, mas não como pensam... Não serão as naves que os levarão para outros mundos... Será a mente de vocês. A mente humana será livre um dia. E quando este momento chegar, vocês serão livres para irem onde bem entenderem... E para sempre. Por isso vocês morrem e renascem, morrem outra vez e assim por diante. – Suspirou e andou até se por de frente com Lucas. O encarou. – Lucas. Vou lhe dizer algo agora, mesmo sabendo que será impossível de você conceber. Mas a grande verdade é que os homens ainda não existem de verdade. O que vocês chamam de realidade é tão frágil que depende de fatores como, provas lógicas, matéria e dor para sustentar o que vivenciam. E não é só isso. Por mais que você possa não acreditar. Os humanos estão dormindo como um feto. Vocês são apenas embriões do que ainda estão por ser. Vocês só estão sonhando em conjunto... Por isso tudo na Terra parece ser tão real. A grande realidade é isto que você está vendo... E mesmo aqui, sua mente não lhe está captando tudo. Tem muito mais. Você acha que estamos sozinhos nesta colina? – Apontou, com o cetro, para todos os lados. - Onde você acha que estão os moradores destas casas? Além disso, tudo, cada universo, se concebe de uma maneira diferente, mesmo que seja sutil, e cada ser o vive e o nota conforme seu estado de evolução cósmica... Longa história... Fica pra outra ocasião...

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Silêncio. Lucão estava claramente fazendo força para não desmaiar ou entrar em frenesi. Dimas tinha o dom de se fazer compreender, ainda usando palavras tão simples. Mesmo assim o cérebro, às vezes, não o acompanhava. - Lucas! Estamos entre vários seres, tão diferentes e superiores que você, e eu, não conseguimos notá-los... E nem eles a nós. Isso é só a ponta do iceberg. A verdadeira vida é muito além do que estou lhe mostrando. Pode acreditar... Lucas não aguentou. Toda aquela visão, aquelas ideias sobre tudo... Aquela versão alterada do universo... As luzes, os sons suaves, os cheiros perfumados de flores desconhecidas, sua presença real e desperta imersa naquele sonho fantástico... Suas pernas bambearam, e ele cedeu. Desmaiou. - Hm! – Resmungou Dimas. – Até que ele conseguiu suportar por um tempo considerável... – Ajeitou a cartola na cabeça com o cetro e aguardou... - Eu sabia... – Murmurou estirado no chão, ainda de olhos fechados. – Que era só um sonho. - Desculpe ter de discordar do senhor! – Disse o gato lambendo as patas, quase humanas, sentado encima do peito do idoso. – Mas nada do que viu é um sonho! – Lucas abriu os olhos vagarosamente. A luz inundou sua vista. Apenas a silhueta de Dimas encima dele era distinguível, mesmo que os feixes luminosos e multicoloridos dos prismas giratórios, no canto dos olhos, atrapalhassem um pouco. – Pensei que já tivesse entendido isso! O velho fez um movimento brusco. - Não se mova e se concentre em mim. – Falou o gato calmamente. – Não olhe mais para lugar algum, e se quiser manter sua sanidade, feche os olhos e só os abra quando eu disser para abri-los. Compreendeu? Lucas fechou seus olhos imediatamente: - Entendi. Agora posso me levantar? - Claro. – Dimas saltou para o gramado. – Vamos voltar para seu mundo, lá eu te explico qualquer coisa que por um acaso não tenha entendido... Inclusive o porquê de eu ter te trazido para cá! - Por que me trouxe aqui? - Já te disse que te explico isso lá... Não quero correr o risco de te deixar maluco! – Se isso já não fosse tarde demais. Lucas se levantou apoiando-se no chão e ergueu-se lentamente. Sua coluna não doeu, estranhou o fato imediatamente.

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Dimas girou o cetro e automaticamente uma espiral luminosa girou no ar à sua frente. Logo se tornou um círculo de luz incandescente. Atravessaram lentamente até o quarto do idoso, onde Luiz dormia profundamente sentado na mesma cadeira e com a cabeça pendida num dos ombros. A baba escorria inocentemente... - Pode abrir os olhos agora Lucas! – O portal se extinguiu atrás deles. - Acho que demoramos muito... – Comentou Lucas ao notar o amigo dorminhoco. – Que horas devem ser? - Relaxe. Passaram-se apenas alguns segundos aqui... – Dimas voltara a ter a aparência normal de um gatinho preto. – Ele é que dormiu rápido! - Ah? – Balbuciou Luiz se recompondo e tentando disfarçar a soneca. – Já voltaram? - Sim velho! – Lucas se aproximou dele e sentou-se na cama diante do amigo. Dimas correu e pulou encima do colchão e se pôs ao lado de Lucão, que o encarou de maneira esquisita: - Dimas! O que foi aquilo tudo? - Lucas, Lucas... Se você, com todas as minhas explicações, não entendeu, já não sei mais o que dizer! O velho suspirou e Luiz olhava do gato para Lucas e de Lucas para o gato outra vez. - Tudo aquilo que te mostrei só teve um propósito. – Começou Dimas. – Queria saber se você suportava a realidade fora daqui, e se era capaz de compreender o mundo que vive. – Suspirou. – Mas acho que me enganei. Infelizmente. - Se enganou? – Lucas parecia indignado. – O que você achou que iria acontecer? Corri um sério risco de pirar de vez. Sofro do coração Dimas, não sou tão forte quanto na juventude, apesar de ter a mente aberta, certas coisas, por mais maravilhosas que possam ser ainda me assustam... E muito. Fiquei fascinado com tudo aquilo... Encantado. Mas... Mas não sei se estou preparado para encarar aquela realidade! - Aquela realidade é esta Lucas. Só te mostrei o outro lado. Mas isso é uma história muito longa pra lhe contar agora, já lhe disse, em outra ocasião... - Afinal de contas Dimas. Quem é você? Como pode conhecer aquele mundo, atravessar portais de luz, falar...? Isto tudo está dando nó na minha cabeça. - Talvez mais tarde eu te diga. Seria muito mais complicado fazê-lo entender do que o que tentei lhe mostrar agora pouco... Quanto ao trato que propus antes de viajarmos, pense bem. Não terão outra chance se negarem... Lucas não disse nada, manteve-se cabisbaixo e pensativo.

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- Diga alguma coisa Lucão... – Pediu Luiz encantado com o gato e o amigo. Do que eles estavam falando? Parecia ser fantástico... - Me dê mais um dia para pensar! – Decidiu. – Amanhã te dou a resposta. - Está ótimo pra mim... – Dimas saltou para o chão e pulou para a janela, olhou pra trás e falou. – Amanhã de tarde, vou espreitar-me por aí e tentar descobrir mais coisas. Não pra te influenciar, meu objetivo vai ser encontrar alguma solução mais aceitável para os senhores. – Balançou o rabo. – Até mais ver camaradas humanos. – E sumiu nas sombras lá de fora. - Lucão. Lucão... – Luiz esfregou as mãos, ansioso. – Me conte velho! O que foi que aconteceu do outro lado? - Luiz... – Tentou dizer algo, mas começou a rir. Tanto que não parou por uns cinco minutos. Sem saber o que estava acontecendo, Luiz o acompanhou no riso. - Anda! Me diga, está me matando de curiosidade. - Luiz... – Parou de rir um pouco. – Acho que estou sonhando acordado... Acho que estou pirando. Não sei, mas aquilo me fez feliz... Me fez um bem sem tamanho... – E contou tudo como pôde... O que viu e o ouviu do outro lado. Seu amigo ficava atônito com cada descrição fabulosa. Era mesmo inacreditável... Mas depois de ter visto e ouvido um gato falar. Nada mais era impossível para ele, não senhor, não para Luiz. Mal sabiam eles até então que, enquanto conversavam aos sussurros, uma mente diabólica escutava às escondidas toda a história com as orelhas coladas na porta. Jonathan não era tão burro assim...

8 Sua vingança iria começar naquela noite. Independente dos avisos de Augusto. Sabia bem o que precisava ser feito. Depois de satisfazer sua curiosidade, deslizou silenciosamente pelo corredor até o quarto quatorze. O dormitório de Antonio, o professor. Jonathan pretendia dá-lhe uma lição, ensinar ao mestre o que acontece ao dedurar alguém como ele. Seria sua última aprendizagem naquela vida. Abriu a porta lentamente, tomando cuidado para não fazer nenhum ruído e despertar o velho alto que dormia de barriga pra cima. O assoalho rangia um pouco, mas nada que colocasse em risco o silêncio tão bem vindo. Jonathan abriu o guarda-roupa pessoal do idoso e se apossou de um travesseiro bem macio. Dirigiu-se à cama onde a vítima dormia. Sorriu.

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Aqueles dentes amarelos não brilhavam. Apenas seus olhos cintilavam na escuridão do quarto com cheiro de naftalina. Rapidamente, num bote habilidoso, o homem gordo e forte pressionou o travesseiro branco contra o rosto de Antonio, que acordou sobressaltado. Seus olhos se abriram num choque de pânico ao notar que não enxergava nada por causa do objeto, tão inocente, que estava sendo usado como uma arma letal contra sua face. Tentou puxar o ar inutilmente enquanto tentava agarrar os braços fortes de seu assassino. Nada adiantou. As veias de sua cabeça pareciam estourar enquanto seu cérebro doía. Sua garganta latejava e seus músculos perdiam potência. O pânico e a agonia lhe invadiram. A sensação de impotência era terrível. Por mais que lutasse, se debatesse em desespero, nada movia do lugar aquele travesseiro assassino pressionado contra seu rosto. Sufocando-lhe. Causando-lhe dor... Desespero. - Nunca mais vai dedurar ninguém professorzinho de merda! – Xingou Jonathan entre os dentes enquanto vazia ainda mais força contra a face de Antonio que gemia em agonia. – Fale alguma coisa agora! Ande... Por que não grita e chama o diretor pra te proteger agora? Depois de alguns minutos duros e agonizantes, Antonio desistiu de lutar e se entregou aos braços da morte no momento em que o assassino retirava o travesseiro. Seus braços tombaram moles ao lado do corpo. Sua cabeça pendeu pro lado num esgar de desdém sombrio. A pele estava levemente roxa, mas Jonathan não notara isso, levou o travesseiro consigo até seu próprio quarto. Amanhã, pensou, será a vez do outro velho... Ah sim... Com certeza... Contudo, o gordo, concentrado em suas ideias assassinas, nem se quer notou um espião atento aos seus atos suspeitos no corredor escuro. Dimas o observava, quieto, escondido nas trevas. Logo que se viu só, por pura curiosidade, entrou no quarto quatorze que estava com a porta entreaberta e vasculhou o local. Subiu na cama de Antonio e sentiu o cheiro já bem conhecido por ele. O cheiro da morte. O cheiro do fim... Aquela madrugada já tinha ido bem longe para ele...

9

Uma movimentação turbulenta agitou o asilo logo às sete da manhã. Enfermeiros e o pessoal do IML circulavam pelos corredores. Conversavam entre eles enquanto levavam o corpo de Antonio para fora. Augusto preenchia alguns papeis enquanto Jonathan, de braços cruzados, observava o trabalho alheio.

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- Lucão! – Luiz estava sentado à mesa do refeitório acompanhado de Lucas. – Quem foi que morreu desta vez?! Você acredita? - Não pode ser coincidência. – Lucas de frente ao amigo, observava a reação de Jonathan, não parecia à vontade, se comportava como se tivesse comido algo desagradável. – Acho que desta vez ele se superou! Bastardo filho da p... – Terminou de dizer levantando-se de onde estava sentado. - Aonde você vai velho? – Luiz piscava confuso, já imagina o que o amigo estava por fazer. Lucas se dirigiu até um dos responsáveis do IML. - Com licença, senhor! – O homem branco de bigode, vestido de camiseta e calças jeans pareceu nada surpreso. Ele anotava algo em um caderno azul e dispensou sua atenção ao idoso que o interrompera. – Gostaria de falar com o senhor por um minuto, é importante! - Tudo bem! – Fechou o bloco de folhas e depositou a caneta atrás da orelha esquerda. Caminharam até um lugar pouco movimentado, ainda na sala do refeitório. Jonathan os espiava, quieto e atento. - É sobre meu amigo que faleceu! – Lucas olhou para os lados e encontrou o olhar atento do obeso mal encarado. Engoliu em seco, disfarçou por um segundo e prosseguiu. – Acredito que... Pode guardar segredo? É de suma importância... - Sim, claro que não direi a ninguém... No entanto, é bom saber que, o que disser, pode ser usado nas investigações da polícia... - Ótimo! – Pigarreou com as mãos fechadas diante da boca. – Acho que não foi morte natural... Quero dizer. Acredito que ‘tenham’ envenenado ele. O funcionário do IML o olhou atentamente, parecia tentar detectar alguma mentira ou insanidade. - E ‘quem’ o envenenaria? - Ainda não posso provar nada, só gostaria que levassem esta possibilidade seriamente, isto é, que contassem com isso... – Quase gaguejava. Sentia o olhar atento de Jonathan o penetrando. – Pode parecer loucura, mas acho que andam envenenando o pessoal aqui... Só esta semana já foram dois... - Entendo, de qualquer forma, o corpo será enviado ao legista. Depois da autópsia poderemos saber qual foi o motivo da morte de seu amigo. Lamento não poder ajudar mais... Caso tenha alguma suspeita, aconselho o senhor a entrar em contato com a polícia. Eles podem iniciar uma investigação se notarem a necessidade... Eu... Nós só recolhemos mortos. – Sorriu tentando ser simpático. Não conseguiu. - Tudo bem. Mesmo assim... Obrigado por me ouvir. – Lucas não esperou resposta, o homem deu de ombros e tornou ao seu trabalho. Voltou para a mesma cadeira na mesa onde Luiz o olhava atento e curioso.

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- O que foi que você disse? - Disse para ele considerar o fator envenenamento. – Pegou seu copo de vidro e deu um gole no café preto. - Nossa! – Luiz sorriu surpreso. – Fez bem... Mas o balofo não tirou os olhos de vocês... – Apontou discretamente com um leve movimento dos olhos pra cima, indicando Jonathan atrás deles a meia distância. – Tome cuidado. - Vou tomar... - Mudando de assunto! – Engoliu um naco de pão encharcado de leite. – Já se decidiu quanto àquela proposta do gato falan... Do Senhor Dimas? - Ainda não... Mas a morte de Antonio pendeu para um ‘sim’ ao gato. – Passou a mão na testa, impaciente. – Tenho medo Luiz. Medo de morrer. Pode acreditar nisso? - Claro que posso... Todos nós temos. – Afirmou segurando o copo e grifando o que dizia apontando o dedo para Lucas. – Estamos velhos, sim senhor... Mas não queremos morrer. Entendo bem isso... - É... Além disso, por mais que eu goste do bicho, ele me assusta um pouco... - Entendo isto também. – Riu baixinho. - Ele voltou ao meu quarto hoje de madrugada... - Mesmo? – Piscou e enfiou na boca mais um pedaço do pão. – O que ele queria desta vez? - Me dar a noticia do ass... Da morte de Antonio. – Luiz engasgou. Tossiu um pouco e falou exacerbado: - Como é? Dimas sabia? - Xiiiiu homem! – Protestou Lucas com o indicador aos lábios. – Fale baixo... – Luiz deu de ombros e fez sinal com a cabeça para que ele prosseguisse, inclinou-se à frente para ouvir melhor. – Dimas me disse que o gordo saiu do quarto de Antonio com um travesseiro nas mãos. Ele, assim que Jonathan sumiu, entrou no quarto do velho e o viu morto. Gelado, como ele mesmo me falou... - Nossa! – Sussurrou Luiz com os olhos estalados. – Isso é grave. Então, não foi veneno? - Não sei, pode ter sido... Acho particularmente que o travesseiro foi só uma desculpa, no caso de alguém surpreendê-lo no quarto do Antonio. - Entendi... Pode ser mesmo isso... - Dimas também me contou mais ao seu próprio respeito... Por isso me assustei um pouco. Por isso estou meio desconfiado de suas intenções... - O que foi que ele disse? Lucas contou sobre as missões de Dimas pelas noites a fio. Sobre o Senhor dos Gatos e sobre a guerra que estavam travando... - Cada hora que passa fico mais abismado Lucão... Que mundo é este? Quando a gente acha que já sabe tudo, que já viveu de tudo, a gente

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descobre o quanto estamos perdidos nesta Terra. – Estas palavras fizeram Lucas se lembrar do mundo além do portal de Dimas. Balançou a cabeça em concordância. – O que vamos fazer agora? Com tudo isso que está acontecendo? Lucas suspirou, olhou para o café. Matou-o num só gole. Levantou-se e voltou-se para o colega: - Morrer ou matar! - Minha Nossa Senhora... – Rezou o velho. – Que Deus tenha piedade de nossas almas! – Terminou fazendo um apressado sinal da cruz ao peito.

10 Mas o que eles não esperavam, e nem eu quando escutei a história, era que Dimas não mais existia... Jonathan havia encontrado o gato em seu próprio dormitório. Logo de manhã, antes de se levantar para dar “assistência visual” ao IML, Dimas o visitara achando que não seria notado. Porém... O gordo o chamou assim que o notou debaixo da cama, mas não foi correspondido. Tentou outra vez e nada. Dimas apenas o observava quieto. Inerte. Aquele olhar continha uma sabedoria remota e profunda, como se o gato soubesse de tudo que ele, o gordo, vivera até ali, além do que imaginava naquele momento... Contudo, era só uma impressão, caso contrário, tudo terminaria em diferentes modos... Mesmo assim aquele olhar penetrante lhe causou medo. Um medo aterrador e inconsciente em Jonathan; nunca antes tinha sido confrontado de tal maneira por ninguém, muito menos por um animalzinho daqueles. Por um instante, o funcionário do asilo petrificou-se, isso fez com que Dimas tomasse coragem e se aproximasse. Aquele símio era burro, teria alguma chance de resolver tudo num instante. Ficaram se olhando por alguns segundos terríveis. Na mente maligna e rude de Jonathan, vinham sensações de punições inevitáveis num inferno imaginário. Passou pela sua mente imagens dele mesmo sendo torturado e sufocado num quarto escuro com revestimento de madeira podre. O cheiro era tão real que chegou a coçar o nariz. Dimas o olhava nos olhos e não se mexia. Ficou ali sentado no chão diante do enorme homem seminu. Duas criaturas se medindo como dois lutadores num ringue. A tensão era terrível para ambos, um deles teria de ceder mais cedo ou mais tarde. O gato falou:

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- Assassino! – Balançou o rabo enquanto Jonathan esbugalhava os olhos num esgar apavorado. – Você envergonha sua espécie, e justamente, eu, limpo do mundo, seres pegajosos e conturbados... - V-você... – Começou o obeso apontando para o gato como se mais alguém pudesse vê-lo naquela situação inimaginável. – V-você... F-fa-fala?! -...E neste caso, seria você minha próxima vítima. – Dimas exibiu suas garras finas e afiadas. Lambeu-as e saltou contra o inimigo. Jonathan se debateu ferozmente, e por reflexo, apenas pelo puro e simples reflexo, atingiu o gato com um golpe veloz e pesado. Dimas caiu, em pé, mas atordoado. O homem era burro, mas forte, muito forte. O gato olhou para cima novamente, mas já era tarde demais... A aproximação da morte lhe nublou a mente e lhe amorteceu os sentidos. O gordo lhe aplicou um chute certeiro no focinho com toda potência que conseguiu concentrar na perna. Dimas desta vez caiu de lado, cambaleando, tentou se levantar mais uma vez... Resistência inútil. Conseguiu por uns instantes enquanto suas patas tremiam tentando suportar o teimoso peso do corpo. Olhou para trás em tempo de ver o homem correndo em sua direção com o rosto desfigurado pelo que parecia pura ira. - Morra demônio! – Gritou Jonathan pisando-lhe. O barulho dos pequenos ossos se partindo foi espantoso. O pescoço de Dimas sumiu debaixo do pesado pé descalço do gigante que lhe atacava. – Morra! Morra, morra...! – Repetiu o desejo a cada pisada ávida contra o corpo, já inerte, do gato. Finalmente parou quando notou que o bichano não se mexia mais. Ofegou, mais pelo susto do que pelos movimentos bruscos. - Que inferno é você? – Balbuciou para o bicho morto diante de si. Aquele gato falara com ele... O chamara de assassino... Era um sinal. Um sinal de Deus com absoluta certeza. Deus enviara aquele gato para puni-lo. Mas falhou... O que viria depois? Um cão do inferno? Um pássaro falante, como aquele corvo dos contos de Poe que a irmã lia? Ou... Ou simplesmente ele estava enlouquecendo. Simples assim... Depois de anos trabalhando com idosos deveria estar ficando senil como eles. Era bem provável... Não. Besteira... Não estava louco. Lembrou-se do que escutou no quarto do velho Lucas. Estavam falando de um gato. Tinha certeza disso, na hora achou se tratar de uma conversa homossexual, usando sua imaginação depravada. Mas agora... Agora todo aquele papo estranho de gente doida estava fazendo sentido.

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Foi neste momento que teve a ideia. Se o gato fosse um velho conhecido dos idosos malucos, mostraria a eles toda sua crueldade no ato... Mas se nem soubessem da existência do bicho, a brincadeira seria divertida de qualquer maneira. Apanhou Dimas, que estranhamente já estava endurecendo, e frio como gelo... E sorriu. Ele era mesmo o cara. Quando a gente acha que as coisas não podem ficar piores, elas, como se adivinhassem nossos receios mais profundos, ficam. Por um acaso do destino, Lucas sentia frio e queria se agasalhar com uma jaqueta de couro, que guardava no armário para estas ocasiões - era uma de suas peças de roupa prediletas - e acompanhado de Luiz foi até seu quarto no início da noite. Ainda estavam embasbacados com o fato de Antonio ter sido assassinado como seus outros conhecidos. Aquilo foi o estopim... Lucas estava decidido... Iria com o gato para onde ele fosse, para onde tivesse de ir para que pudesse se vingar. Vingar a morte dos idosos indefesos daquele asilo. Vingar a injusta falta de respeito para com eles. Vingar tudo que sofreu ali e em outros lugares antes... Vingar-se da insensatez humana. Da covardia, do absurdo, da ganância e da crueldade. Dimas será seu pastor, e se depender de Deus, nada lhe falhará. Mas Deus foi confuso e deixou que aquilo acontecesse. Ao abrir seu armário velho infestado com cheiro de naftalina, teve uma surpresa desagradável. Ele parou de se mover ainda segurando a portinhola de madeira do móvel. Não era só a naftalina que fedia ali. Carniça também, e infestara, com o desagradável odor, todas suas vestimentas e objetos pessoais que ali guardava. - O que houve Lucão? – Luiz se preocupou ao notar o espantado amigo tremendo dos pés à cabeça. – Viu um fantasma? – Tentou brincar, mas a resposta, por ironia, foi a menos esperada... - Sim Luiz! – Murmurou Lucas deixando seu braço pender ao lado do externo sem força ou vontade. Mesmo sem querer, se afastou para que seu amigo pudesse ver a coisa mais desagradável, para aquela situação, que pudesse vivenciar. - Minha Nossa Senhora, Lucão! – Gemeu Luiz com as mãos na boca que se entreabriu sozinha, pelo espanto e horror do momento. Dimas estava preso pelo pescoço a um barbante amarrado no cabide de madeira onde Lucas pendurava uma de suas calças de moletom. O gato estava com a boca aberta e os olhos opacos e sem vida. O pêlo parecia ser artificial como o próprio corpo duro, balançava lentamente de um lado para o outro. Um macabro pêndulo preparado por Jonathan.

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A brincadeira não parava por ai. Colado com uma fita adesiva suja na coleira de Dimas, estava um bilhete escrito num pedaço tosco de folha de caderno. Lia-se nele em letras tortas e grandes: Não é permitida a presença de animais neste estabelecimento! - Ah! Não! – Desesperou-se Lucas assim que seu cérebro assimilou o ocorrido. – Dimas! – Sua voz embargada deu um nó na garganta de Luiz também. Aquilo era terrível. O gato fora descoberto e morto cruelmente. E com ele jazia também toda a esperança de Lucas e a de Luiz... Ambos choraram. Haviam segurado o pranto desde a noticia do falecimento de Antonio. Mas agora, aquilo tinha ultrapassado toda a quantidade de tristeza e injustiça que poderiam suportar. E naquela noite cada um dormiu em seu quarto escuro... Dois amigos mortos num único dia. E nenhum deles poderia fazer alguma coisa a respeito. Até que Lucas sonhou... Bem, o que eu poderia dizer? Tudo que aconteceu depois daquela noite era algo que, sinceramente - mesmo depois de ouvir tudo que o senhor Luis me contou - seria difícil de engolir. Entre tanto, se eu não repassar isso, a história não teria um fim compreensivo. Primeiro fato; Luiz só soube a razão dos acontecimentos através de um único sonho, mas foi bastante sincero ao me revelar este fator importante. Segundo fato; Ele disse que, a final de contas, desde o início tudo foi possível graças ao entendimento de seu amigo, Lucão, de que nossos sonhos não são só um estado mental que nos possibilita entrar em contato com o fantástico, mas que isso nos trazia poderes. Ora, ele me disse, se não sonhássemos, onde – falando-se de evolução em todos os sentidos – estaríamos agora? Morando em cavernas e espancando abertamente mulheres até hoje. Ou não? Bem que isso não mudara tanto assim... Pensei. Creio que, como disse o senhor Luiz quando retruquei seu raciocínio desta maneira, estas pessoas simplesmente não sonham. Apenas dormem... Bem, de qualquer maneira... Naquela noite, Jonathan havia se deitado relativamente cedo. Pensava na reação que teria o velho Lucas ao ver o gato morto em seu armário. Seria com toda certeza uma cena engraçada. Pena que não poderia acompanhá-la, seu emprego dependia daquilo... Cochilaria um pouquinho antes de dar cabo ao seu plano. Lucas iria embora para sempre de sua vida naquela madrugada. Oh sim! Nunca mais tentaria bisbilhotar assuntos alheios. Não senhor! Velhos estavam velhos ora, ninguém sentiria a falta deles.

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11 A madrugada estava fria e quieta. Apenas o vento insistia em bater na janela do quarto de Lucas, que coberto por inteiro, sonhava com Dimas, seu amigo felino... Um dégradé magenta seguido por rubros e laranjas incandescentes - salpicados por estrelas prateadas - dava cor ao céu daquele lado da realidade. Os inúmeros planetas ainda boiavam meio as nebulosas fabulosas que se condensavam ao ar fresco e inventivo lá encima, sem notarem que, um recém chegado, os apreciava, maravilhado. Sabia que não estava sonhando. Não poderia... Jamais. Sentia seus músculos como antes, seus olhos, seus pêlos pelo corpo, sentia sua língua e o ar que lhe inundava prazerosamente. Aquilo por mais que parecesse um sonho, não era. Pelo menos acreditava nisso. Estava no mesmo local que estivera antes com Dimas, mas de alguma maneira sabia que era o equivalente noturno do lugar. Talvez... Não havia, antes, tantas estrelas no céu, e as lamparinas e postes de luz da vila não estavam acesos como agora. Os três astros solares ainda vigiavam do céu aquele mundo cá embaixo. Mas de alguma forma, a luz emitida por eles, não era tão intensa agora... - Então... – Uma voz já bem conhecida lhe chamou à atenção, lhe tirando do estupor que o frenesi visual lhe proporcionava. – Você voltou. Conseguiu voltar! – Era Dimas... Bem, pelo menos achava ser seu amigo gato. O ser que ali estava à sua frente era diferente. Era humanóide e usava um lindo redingote excêntrico, enfeitado com desenhos esquisitos dos quais não conseguia distinguir formas conhecidas. Uma roupa toda vermelha, incluindo uma longa cartola de mesma cor, aquilo dava uma aparência imponente, entre tanto confusa, ao desconhecido. Seria um humano se não fosse pela cabeça de gato. Um gato preto e sorridente, se é que conseguem conceber a imagem, pois Lucas não conseguiria se ele mesmo não estivesse diante de tal criatura. Uma calda serelepe não parava de balançar por trás do recém chegado, que se apoiava num cetro ornamentado, cuja base onde sustentava as mãos felinas do dono, parecia uma cabeça de gato entalhada num diamante, e aquela peça provocava um lindo efeito prismático. - Por um momento acreditei que não conseguiria... – Sorriu largamente... – Que não encontraria de maneira alguma realizar esta façanha. – Tornou a dizer mexendo nos compridos e curvos bigodes felinos, que pareciam ter sido untados em óleo por estarem grudados em grupos de ambos os lados do focinho. – Minhas mais sinceras e humildes congratulações, senhor Lucas! Seja bem vindo à sua verdadeira existência!

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- Quem é você? – Perguntou um pouco assustado. A voz da criatura era idêntica a de Dimas, mesmo assim, não era prova de alguma coisa... – Dimas? - Sim... – Riu. – E não! Seria você capaz de entender isto? – Respondeu o homem-gato. - Infelizmente não... - Tudo bem... – Interrompeu-o. – Vou lhe explicar. – Parou de falar e apontou para um banco branco perto deles numa parede de uma das casinhas que ali estavam. Os dois se sentaram. – Eu era Dimas! Agora sou mais do que isso e menos do que serei assim que prosseguir viagem. - O que aconteceu? – O velho gesticulava como uma criança. – Você morreu... Como aconteceu? – Havia milhares de perguntas em sua mente, mas sabia que teria respostas só para as urgentes. – Quem lhe matou? - Ninguém me mata a não ser a mata que a mim pertencia ao matar minha sina de matar! Agora compreendo que eu sou imortal e sempre fui desde o início sem começo da eternidade conhecida... O que ocorreu naquela parte da realidade da qual compartilhávamos, você como homem, eu como gato, não é importante agora que sei que a importância dos fatos está no justo decorrer destes mesmos. Sendo assim, quero e espero que entenda que Jonathan foi apenas uma ferramenta grotesca do bizarro, mas sábio, destino que me presenteou com minha formação definitiva de personalidade semidivina. Desencarnei da óbvia carne e nave que me sustentou por tantos presentes atemporais que chamei, um dia, de vida. - Então foi aquele gordo que te matou! – Resmungou Lucas. - Como eu disse, sim, foi ele! – Balançou o cetro e apontou para um círculo luminoso que ondulava no ar. – Está vendo o portal? - Estou. – Viu Lucas. – O que tem ele? - Foi por onde te puxei pra cá! Assim que chegou não conseguiu me enxergar... Mas logo minha preocupação não fez sentido quando me notou. Aqui estamos nós mais uma vez deste lado da razão. Agora entende porque te trouxe aqui antes? Só assim foi possível te salvar agora... O que achou da segunda visita? - Melhor que a primeira... - Tirando os fatos que nos trouxeram! – Completou o novo Dimas. – Bom saber disso! - Está de noite, não está? - Não! Não está! – Riu e olhou ao redor querendo que Lucas o seguisse com os olhos. – Tudo aqui é o que é sempre sem mutações drásticas, ao contrário do que acontece na Terra vivida. O que você notou foi o que não conseguiu enxergar da primeira vez em que aqui esteve. Não me surpreende este fato. Até gostei de saber que sua mente e alma estão se adaptando a esta dimensão. Isto é no mínimo, bom!

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- Bem... – Lucas estava admirado com tudo, até mesmo com a nova forma de Dimas, mas suas preocupações eram outras... O homem-gato notou isso e falou olhando para o horizonte montanhoso da vila. - Está vendo este lugar Lucas? – O idoso confirmou com a cabeça. – Pois bem. Quer morar aqui? Sem rodeios. Dimas sorria e piscava em toda sua calma. - Não sei... – Dúvida. - Antes de me responder quero que saiba que não será pra sempre. - Não? – Não esperava ouvir aquilo. - Não! Viverá apenas o tempo que viveria na Terra se estivesse com a saúde perfeita. Além disso, você voltará a ter a forma normal de um adulto humano, antes de ser atingido pela radiação solar e sem apresentar os efeitos catastróficos da oxidação. Viverá aqui como deveria viver qualquer humano que não fosse assassinado pela natureza cósmica. Terá o que comer a hora que bem entender... Mesmo que não vá precisar fazê-lo com a mesma frequência como lá, e beber apenas se quiser. - Fantástico... – Murmurou não tão convencido como Dimas achou que ficaria. O humano estava realmente evoluindo e não se envolvia mais com tanta facilidade em sua lábia encantada. – Mesmo assim... Prefiro viver do mesmo jeito que me era reservado. Na Terra. E quero envelhecer como um simples humano... Acho que este é meu dever como filho de Deus. - Compreendo! – Falou o felino se levantando. – Então o processo vai ser mais complicado do que imaginei. - Que processo? – Lucas também se levantou, e quando o fez, notou vultos prateados passeando por todo o local, mas esta visão durou apenas alguns míseros segundos. – Do que está falando? - Como estou usando o fato do senhor ter dormido pra te trazer até aqui, não posso mudar o tempo corrido de seu mundo, isto é, se aqui se passar um minuto consciente, lá passará apenas um segundo, mais ou menos, como da última vez... Mesmo que os sonhos durem apenas alguns segundos, temos a sensação de horas... Porém até se chegar a esta condição, a de sonhador, o corpo demora um bom tempo relaxando e se desligando da realidade assistida por olhos conscientes. Resumindo, logo mais você terá que voltar para sua realidade particular... E encarar o que está por vim... - O que quer dizer com tudo isso? - Quero dizer que, se eu estiver certo - e estou modéstia à parte - você não terá um corpo para voltar a partir de... – Pesquisou no seu dourado relógio de bolso. – Agora! – E encarou Lucas de uma maneira constrangedora. Seu olhar dizia mais do que Lucas gostou de entender. Enquanto isto, o portal luminoso se extinguiu num suspiro rouco, como a água empossada faz ao cair espiralando num estreito ralo na pia.

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Ele só estava ali, naquele mundo, porque, de alguma forma que não se lembrava, estava definitivamente para além da eterna alvorada. Para sempre. Lucas havia falecido, e só descobriu isso, depois de morto. Impossível? Como saber? Havia uma maneira, mas apenas Luiz conseguiu... - Você está querendo dizer que estou... - Morto! – Dimas falou de uma vez. – Você foi assassinado pela mesma criatura que me desencarnou. Enquanto dormia. E no último momento, consegui puxá-lo pra cá, antes de perder sua mente consciente para o jardim azul do limbo. – O gato se aproximou em passos lentos e firmes ao notar que o homem chorava. Lucas já sabia de tudo aquilo, só precisava ouvir, e Dimas estava lá para ajudá-lo nisso. – Jonathan lhe aplicou um veneno nas veias assim que dormiu profundamente. Ele sabia sobre mim... E sobre o que você mesmo sabia a respeito dele. Eu lamento... Meus pesamos. – E se abraçaram por um bom tempo. Luiz sonhou com aquilo tudo. E em seus sonhos, chorou também... Lucas realmente começou a mudar... Pelo menos a sentir a mudança. Sua vista ganhou mais contraste, sua pele ficou menos flácida e seus ossos pareciam feitos de mármore. Sua audição melhorou bastante, mas vagarosamente... Pareceu-lhe que sua mente estava apenas esperando o veredicto para se soltar e assumir a nova realidade em que viveria. Nada mais era pecado. Imaginou em sua inocência espiritual... Nem mesmo a vingança... Pensou. - Você deveria se olhar ao espelho Lucas! – Disse Dimas sorrindo e ajeitando a cartola. – Quando me transformei fiquei louco de curiosidade. Afinal de contas, aqui, nosso corpo toma a forma do que imaginamos ser por dentro... A forma de nossa alma, humanizada. Sempre justo... Aqui a justiça é justa, e nem um pouco deturpada como na Terra dos homens. Aproveite sua estada nesta realidade... - Incrível! – Sorriu ao olhar para suas mãos e braços. Passou a mão no cabelo, e podia senti-lo mais firme e cheio do que já estava acostumado, podia notá-los castanhos como na juventude... – Obrigado por tudo Dimas... - Não tem que me agradecer. – O gato piscou lentamente e suspirou. – Não tenho nada quanto a isso. Além do mais, o que vou lhe pedir, não é tão agradável assim... - E o que seria? - Imagino que já saiba! - Vingar nossa morte?

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- A nossa e a de todos os antigos moradores do asilo... Afinal, a sorte está do nosso lado! Pois o destino sussurrou aos ventos prateados que, Jonathan pode ir embora sem mudar o ângulo do pêndulo. O que ele deveria fazer, ele já fez, e nossas mãos podem ser a pá para desenterrá-lo de lá. Compreende? - Acho que entendi sim... – Coçou a cabeça. - Desta vez, parece que minhas ideias estão mais claras, aprendo e entendo como uma criança... Minha mente parece estar limpa. - Exato. Os problemas e as preocupações mundanas já se foram, agora você tem sua existência sob controle... – Balançou o cetro esnobemente. – Mesmo assim, só aproveitará o que tem de aproveitar assim que se livrar das duas últimas coisas que seguram sua mente lá... Seu assassino e seu filho. - E como posso resolver isso? - Podemos trazê-los pra cá da mesma maneira que fiz contigo! – Sorriu abertamente. – Pelos sonhos... O que quer fazer primeiro? - Como assim? – Lucas ainda admirava sua pele lisa e sem rugas, abria e fechava as mãos sem sentir nenhum sinal da artrite que já se anunciava em vida. - Quer ver seu filho ou liquidar seu assassino? - Quero ver meu filho! – Disse com a clareza da razão. Suspirou de olhos fechados. – Quero que ele saiba que estou bem e que ainda o amo muito... - Pois bem... – Dimas andou até um canto, onde duas casas dividiam um jardim de rosas verdes como limão. Parou perto das flores e chamou Lucas com um aceno ávido. – Venha Lucas, não temos muito tempo... Já se esqueceu? O homem que um dia fora um velhinho correu até seu amigo e se pôs à sua frente. - Agora, concentre-se o melhor que puder na imagem de seu filho dormindo... – Virou-se para o jardim. – Melhor...! Já esteve no quarto de seu filho? - Sim... Umas quatro vezes, se não me engano. – Grifou com os dedos e um sorriso aberto. - Excelente. Ao invés de trazê-lo pra cá, vamos fazer de forma diferente. Imagine-se lá e não olhe pra mais nada deste mundo até eu pedir para reabrir os olhos, está bem? - Claro. – Mexeu os ombros e fechou os olhos. Suspirou e esperou.

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12 A primeira coisa que notou foi uma tênue mudança no clima, de um calor aconchegante para um frio incômodo. O cheiro incomum das rosas sumiu dando lugar ao odor de suor, metal e do ar seco da poluição, algo que muitos não notavam pela vivência continua na cidade grande. – Pode abri-los Lucas! Abriu os olhos e se viu no quarto de seu filho. Apenas um abajur estava aceso, derramando uma luz fraca e de curto alcance num livro aberto sobre o peito do homem jovem, que dormia despreocupado em uma grande cama de casal, acompanhado da esposa, que também mergulhava no mundo dos sonhos... Era Sebastian. Um jovem de trinta e quatro anos e bem casado. Era esbelto e branco como o pai, mas tinha os cabelos loiros da falecida mãe... Dormia profundamente... - Sussurre ao seu ouvido Lucas, diga-o o que sente! – Murmurou Dimas ainda do outro lado do portal luminoso. – Ande, vá! – Insistiu gesticulando quando o ex-idoso o espiou por cima dos ombros. Lucas se aproximou e agachou ao lado da cama de seu filho e sussurrou: - Sebastian? – Deu mais uma espiada em Dimas ainda se sentindo inseguro. – Sou eu, seu pai! - Pai? – Murmurou o homem ainda dormindo. - Sim... – Ao espiar Dimas de novo, o homem-gato fez um sinal para que se apreçasse. – Sou eu! Vim aqui para dizer que te amo, meu filho e... E que... Que estou bem e muito feliz. Que nunca me esqueci de você e sei que também me ama... Agora tenho que ir... Fique com Deus e trate bem de si, de sua mulher e de seus filhos, quando os tiver. Adeus Sebastian... - Adeus pai! – Sussurrou aos ventos o filho mudando de posição na cama. Lucas beijou o rosto inconsciente do filho, se levantou e antes de atravessar o portal de volta, parou, e com lágrimas presas nos olhos azuis, deu mais uma penetrante olhada em Sebastian... Desse modo, Lucão, partiu da vida de seus amigos e da de seu rapaz para sempre. - Muito bem Lucas! – Elogiou Dimas fechando o portal luminoso. – Agora, infelizmente, temos que visitar outro indivíduo. - Tudo bem. – Enxugou as lágrimas que cederam. – Vamos logo acabar com isso! - Achei que não conseguiria ser breve... Parabéns! Se demorasse mais um pouco poderia nos causar um transtorno... - Certo... – Descansou as mãos na cintura. –E agora? - Agora – Riu Dimas excitado. – Vamos nos divertir! Sei bem quem pode nos ajudar nisso!

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Suzo Bianco

13 Luiz remexia-se na cama inquieto. Mais tarde, quando acordasse, lembraria do sonho mais fantástico de toda sua vida... Ao contrário de Jonathan... Este estava dormindo em sua cama suja após um dia intenso e “produtivo”. Em seu sonho - e no de Luiz - Jonathan andava num corredor rubro apinhado de gente estranha e sombria. Eles fumavam, bebiam e riam. Seus dentes eram afiados, achou ter visto isto. As mulheres usavam uma sombra carregada nos olhos e batons escandalosamente azuis. Contudo eram elegantes... E apesar da beleza que possuíam, seria injusto dizer que, mesmo assim, não causavam medo. Todos usavam roupas de cortes antigos, como nos filmes dos anos 30... Estranho. Era óbvio, inclusive, que se encontrava num cabaré excêntrico e cheirando a incenso. “Aquelas mulheres eram cortesãs de demônios, na certa”. Pensou o gordo enquanto perambulava meio perdido... Sentia isso da mesma maneira estranha que sabemos de certas coisas quando sonhamos. Nossa mente brinca. E a ‘brincadeira’ seria saborosa para ele. Jonathan cambaleava com um copo vazio na mão e era alvo de risadas ousadas e humilhantes. O gordo esbarrava em quase todos pelo corredor - que não queria ficar parado - Estava bêbado? O lugar todo parecia ter sido construído num navio em alto mar. Diabos... O enjôo era terrível, sentia o vômito amargo lhe roçar a garganta. De repente, uma ruiva enorme e maravilhosamente bem moldada por alguma inspirada mente divina lhe bloqueou o caminho até o bar mais à frente. Seus seios volumosos e brancos quase pulavam para fora do espartilho negro de couro que usava, fumava numa piteira comprida e fina como uma típica mulher de tolerância do início do século XX. A fumaça do cigarro flutuava para cima numa nuvem azul entre o liso e solto cabelo vermelho que se deitava nos ombros macios daquela aparição. Ela sorriu para ele. Jonathan também sorriu apesar da irritação inicial. Os olhos da mulher pareciam refletir toda a luz do lugar. Rubros... As luzes das lâmpadas vermelhas reforçavam a cor escarlate das paredes e sumiam no negro do chão e teto. Contudo, algumas luzes negras realçavam os brancos dos olhos e dos dentes deles, que se encaravam como presa e predador. Todos dançavam lentamente ao som de Dead and Lovely de Tom Waits. Conseguia saber disso também... Apesar de ser uma música cantada em inglês, os clientes do prostíbulo pareciam entender o que o cantor dizia.

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Menos Jonathan, que mesmo se soubesse a outra língua, não prestaria atenção na canção, os olhos da ruiva exuberante eram difíceis de serem ignorados. Ela alargou seu sorriso e disse: - Gosta dessa balada, meu querido? Balança... Balança-nos... Balança-me... Serve para isso... – E indicou o copo que Jonathan segurava cuidadosamente. - Como? – Respondeu. - Esquece... – Sorriu. – Quer ‘dormir’ comigo gordinho? – Passou uma mão sobre seu próprio colo, quase nu, enquanto a outra mão equilibrava o cigarro, tragou-o. – Me diz logo... – Piscou e exalou uma baforada densa de fumaça negra. - Q-quero! – Gaguejou Jonathan. – Onde? - Onde você acha que quero que durma comigo? – Sussurrou ela ao seu ouvido. – Tenha imaginação... - Q-quero dizer, e-em q-que lugar vamos f-fazer! – Ela lhe deixava nervoso. Aquela voz rouca lhe encheu de excitação. Nem mesmo uma mulher da noite havia lhe sido tão direta alguma vez em sua vida. Aquilo o agradou. - Aqui mesmo, meu benzinho. Quero que todo mundo veja você receber tudo o que merece... – Falou isso insinuando prazer. Mas seria o prazer de quem? - bem aqui, aos olhos de todos, o que acha...? Ele sorriu num esgar satisfeito, tirou apressadamente toda roupa e a agarrou com vontade. Foi quando todas as luzes se apagaram. Apenas ele mesmo estava iluminado por um holofote de luz negra preso num teto inexistente. A mulher desaparecera, o cheiro de incenso e a música também. Mas vindas do breu ao redor, as risadas surgiram sussurradas e ameaçadoras. Junto veio o medo... Para Jonathan, parecia que apenas ele estava ali. Embora soubesse que o povo sombrio ainda ‘estava’ ao seu redor, sussurrando, rindo, espiando-o. Ouviu passos. Pareciam ser duas pessoas... - Bom dia Sr. Dimas! – Ouviu a mulher sussurrar no escuro para alguém que acabara de chagar. – Ele é todo seu! - Quem está ai? – Resmungou Jonathan não se sentindo nenhum pouco confiante. Para falar a verdade, o pavor já lhe dominava a mente. - Vou deixá-lo contigo, agora se me dá licença, tenho outros sonhos eróticos para participar. – E se ouviu estalos de saltos se distanciando. Mas o silêncio repentino aplacou-o. Apenas o ruído de um leve ofegar podia se distinguir naquelas sombras terríveis. - Obrigado Mademoiselle Rubi! – Agradeceu uma voz não muito estranha para ele. – Você sempre é um amor!

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- Olhando para este escroto se borrando deste jeito... – Começou o dono de uma terceira voz. – Nem parece um assassino! Este sujeito. Ele conhecia aquela voz... Estava um pouco diferente, mas o jeito de falar era o mesmo. - Quem são vocês? – Gritou, ao mesmo tempo fazendo força para acordar. Não conseguiu. – Quem diabos são vocês? - Você deveria se lembrar... – Falou o homem com um sotaque indistinguível. – Afinal das contas, foi o último a nos ver... Não foi mesmo senhor Jonathan? - Não sei do que estão falando e não conheço vocês. – Seu pavor estava aumentando, pois notou que além de não conseguir despertar, sentia toda a coisa como se estivesse desperto. O que estava acontecendo ali? – Quero acordar! Eu não fiz nada para vocês... ‘Me deixem ir’. – Sabia que, quem é que fossem, eram responsáveis pela sua permanência forçada ali... Nas trevas. - Por que não diz pra esta criatura, que vemos nua e desprotegida diante de nós, ‘quem’ somos? – Falou Dimas para seu companheiro. - Somos aqueles que você colocou aqui! – Falou Lucas tentando assustar o gordo. – E viemos lhe cobrar o favor. As luzes se acenderam num estalo. Lustres gigantescos iluminaram mortiçamente todo o ambiente. Jonathan se viu cercado de idosos vestidos com estranhas roupas de couro, como se participassem de um ritual inominável. Era realmente um prostíbulo dos anos trinta. Um casarão enorme e repleto de ornamentos clássicos e tapeçaria indiana. Entre os idosos de rostos conhecidos, mulheres jovens e lindas circulavam indiferentes à situação. Em pé, ao seu lado no chão, um rapaz alto e caucasiano o encarava severamente, acompanhado de um homem-gato vestido com o que parecia um terno vermelho antiquado e uma cartola da mesma cor. - Vamos deixar que suas vítimas façam por nós. – Sentenciou Lucas. - Eu não conheço vocês! – Gritou desesperado, sabia que não era um bom sinal quando notou que os dois estranhos se afastavam... – Me deixem em paz... – Sabia no fundo que não tinha este direito. Sabia também que conhecia aquelas figuras ameaçadoras. Dona Julieta, Margarida, Antonio, Wagner o idoso sem um olho, Senhora Quitéria, entre outros tantos... O jovem de alguma maneira era o velho Lucas. Soube quando o olhou nos olhos. E o outro, com certeza era o gato... Aquele gato preto demoníaco. Mas teve que mentir. Admitir a culpa de um, ou vários, assassinatos é o que não faria. Nem em sonhos. – Eu não fiz nada! NADA! – Berrou, mas não adiantou. Todos os idosos que ali se encontravam avançaram contra o obeso suado devido ao pânico. Estava indefeso e pelado no salão do prostíbulo... E sentia que aquilo seria seu fim.

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Luiz acordou justamente neste momento. Aquele sonho com Lucas e Jonathan era real demais para ser ignorado. Seu coração estava pesado... Uma tristeza lhe invadiu o peito. Sim... Sabia que não veria mais seu amigo nesta vida. Tinha quase certeza que, assim que chegasse ao refeitório receberia a notícia da morte do amigo... E a de Jonathan. Levantou-se calmamente da cama, pôs seus óculos grossos e vestiu-se apropriadamente. Colocou seu chapéu, suspirou profundamente e lentamente saiu de seu quarto com a mão no peito. Nunca em toda sua estada naquele asilo, o corredor, que ligava os dormitórios ao refeitório, pareceu tão longo e turvo. Já se acalmava quando ouviu o primeiro choro... Igual quando Antonio morreu. Porém o pranto vinha de outro quarto... Ele parou. Fechou os olhos quando escutou o nome berrado pela garganta de Amélia, uma velhinha sorridente que passava a maior parte do tempo lendo em seu próprio quarto: - Lucas! – Um choro inevitável. – Não Lucas... Você também não... Deus... – Chorava a velhinha desesperada. Um choro contagiante. Luiz também chorou, antes mesmo de ver seu amigo morto e frio debaixo do cobertor. Mas todos os enfermeiros estavam em outro quarto... No de Jonathan. ... Mais tarde disseram ao senhor Luiz que o legista confirmou uma parada cardíaca no funcionário, causada por sedentarismo, um consumo incontrolável de guloseimas gordurosas. Já em Lucas, foi constatada a presença de uma substância venenosa no sangue. Eu mesmo fiquei muito triste em saber da morte de Lucas, um homem que nem cheguei a conhecer pessoalmente. Impressionante como podemos nos envolver emocionalmente com outras pessoas que não conhecemos bem... O senhor Luiz me contou toda a história. Sentado num banquinho na área reservada ao jardim... Limpava algumas lágrimas rebeldes sempre que se descontrolava e se lembrava do amigo. Confesso que por pouco não chorei também, afinal de contas, tudo acabou de uma maneira triste, apesar do que mudou no asilo posteriormente, quando conseguiram provar o envolvimento do falecido funcionário e do ex-diretor, Augusto, com as mortes dos idosos dali. Os assassinatos foram tema de reportagens na tevê por uma semana, abrindo até mesmo a questão sobre maus tratos contra idosos em asilos

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clandestinos em todo país. Eu, por outro lado, contei a história de Luiz ao meu pai, isso ajudou bastante a convencê-lo a morar sozinho em sua própria casa. Antes só e com a possibilidade real de sempre fazer amigos, ser visitado e passear, do que se manter preso numa casa para abandonados e solitários. Ele ainda reclama, mas está bem, graças a Deus, e isso é o que importa. Augusto foi condenado a vinte e cinco anos de prisão por maus tratos, cumplicidade em homicídios, falsidade ideológica e sonegação de impostos. Os funcionários acusados por maus tratos também foram sentenciados pela justiça e pagam seus crimes hoje em cadeias do Estado. Embora isso só tenha acontecido pela divulgação em massa pela imprensa, acredito. Sebastian, o filho de Lucão, foi surpreendido pela mulher com a notícia da gravidez. Ele já tinha um nome para o bebê, se nascesse um garoto... Luiz ainda vive na Casa de Fátima para Idosos, mas agora, apesar da saúde debilitada, recebe visitas de seus netos e filhos. Ainda relembra do amigo com ternura, e sempre que lhe dão oportunidade, conta esta mesma história. Já eu mesmo, me sensibilizei com o ocorrido e resolvi registrar essa inacreditável história do velho e simpático Senhor Luiz. Mesmo assim, por mais estranho que possa parecer a essa altura, só o fiz mesmo porque tive um sonho esquisito... E neste sonho, um pequeno gato preto me dizia: - Puxa... – Olhava-me curioso. - Por um momento acreditei mesmo que não conseguiria...!

Fim

Bom Dia Senhor Dimas – Um conto de Suzo Bianco - 2012