Bobok - Fiodor Dostoievski

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    Coleo LESTE

    Fidor Dostoivski

    BOBK

    Traduo, posfcio e notasPaulo Bezerra

    DesenhosOswaldo Goeldi

    TextoMikhail Bakhtin

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    EDITORA 34

    Editora 34 Ltda.Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000So Paulo - SP Brasil Tel/Fax (11) 3811-6777 www.editora34.com.br

    Copyright Editora 34 Ltda., 2012Traduo Paulo Bezerra, 2012

    A FOTOCPIA DE QUALQUER FOLHA DESTE LIVRO ; ILEGAL E CONFIGURA UMAAPROPRIAO INDEVIDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS E PATRIM ONIAIS DO AUTOR.

    Agradecemos Forense Universitria/GEN a autorizao para publicao do texto SobreBobk, extrado do livroProblemas da potica de Dostoivski, de Mikhail Bakhtin, traduo de Paulo Bezerra (5 edio revista, Rio de Janeiro,2010).

    Imagem da capa:partir de desenho de Oswaldo Goeldi

    (autorizada sua reproduo pela Associao Artstica CulturalOswaldo Goeldi - www.oswaldogoeldi.com.br)

    Capa, projeto grfico e editorao eletrnica:Bracher & Malta Produo Grf ica

    Reviso:Cide Piquet, Marina Kater, Iara Rolnik,Nina Schipper, Alberto Martins

    1 Edio - 2012

    CIP - Brasil. Catalogao-na-Fonte(Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ, Brasil)

    Dostoivski, Fidor, 1821-1881D724b Bobk / Fidor Dostoivski; traduo, posfcio e notas de Paulo Bezerra; desenhos de Oswaldo Goeldi; texto de Mikhail Bakhtin. So Paulo: Editora 34, 2012 (1 Edio). 96 p. (Coleo Leste)

    Traduo de: Bobk

    ISBN 978-85-7326-505-7

    1. Literatura russa. I. Bezerra, Paulo. II. Goeldi, Oswaldo, 1895-1961. III. Bakhtin,

    Mikhail, 1895-1975. IV. Ttulo. V. Srie. CDD - 891.73

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    BOBK*

    *Publicado originalmente no semanrio Grajdanin(O Cidado), n 6, em 5 de fevereiro de1873, quando Dostoivski j era seu redator-chefe. Traduzido do original russoPlnoiesobrnie sotchininii v tridtsattomkh(Obras completas em trinta tomos) de Dostoivski,

    tomo XXI, Leningrado, Ed. Naka, 1980.As notas da edio russa esto assinaladas com (N. da E.); as notas do tradutor, com (N. d

    T.).

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    Desta vez eu publico as Notas de uma pessoa. Essa pessoa no sou eu; outra bemdiferente. Acho que no mais necessrio nenhum prefcio.

    NOTAS DE UMA PESSOA

    Anteontem Semin Ardalinovitch me veio justamente com essa:

    A propsito, Ivan Ivnitch, ser que algum dia voc vai estar sbrio? faz o obsquio deme dizer?

    Estranha exigncia. No me ofendo, sou um homem tmido; e mesmo assim at de louco jme fizeram. Um pintor fez o meu retrato por acaso: Seja como for, diz ele, voc umliterato. Rendi-me, e ele o exps. Depois li: Ande, v ver aquele rosto doentio beira daloucura.

    V l, mas, no obstante, logo assim, to direto na imprensa? Na imprensa deve ser tudo

    nobre; deve haver ideais, mas aqui...Diga pelo menos de forma indireta, para isso voc tem estilo. No, de forma indireta ele jno quer. Hoje o humor e o bom estilo esto desaparecendo e se aceitam insultos em vez degracejos. No me ofendo: no sou desses literatos que levam o leitor ao desatino. Escrevi umnovela no publicaram. Escrevi um folhetim recusaram. Esses folhetins eu levei aredaes de vrias revistas e de todas elas recebi um no: sal, dizem, o que lhe estfaltando.

    Que sal esse pergunto por brincadeira , tico?1Nem consigo entender. Estou

    traduzindo mais do francs para editores. Tambm escrevo anncios para comerciantes: Umraridade! Ch bem vermelho, diz que de cultivo prprio.... Pelo panegrico a Sua Excelncio falecido Piotr Matvievitch recebi uma boa bolada. EscreviA arte de agradars mulherepor encomenda de editores. Pois bem, em minha vida publiquei uns seis livros como esse.Estou com vontade de reunir os aforismos de Voltaire, mas receio que paream insossos aosnossos leitores. Isso l tempo de Voltaire: tempo de palerma, no de Voltaire! De tanto semorderem acabaram quebrando uns aos outros at o ltimo dente! A est toda a minhaatividade literria. No fao outra coisa seno enviar cartas gratuitamente s redaes, commeu nome completo. Vivo a fazer sermes e sugestes, a criticar e indicar o caminho. Na

    semana passada enviei a uma nica redao a quadragsima carta em dois anos; s com selogastei quatro rublos. Tenho um carter asqueroso, isso.

    Acho que o pintor no me retratou por causa da literatura, mas de duas verrugas simtricasque tenho na testa: diz que um fenmeno. Ideias mesmo andam escassas, porque hoje s hlugar para fenmenos. E como as minhas verrugas saram no retrato que ele fez de mim:vivinhas! isso que eles chamam de realismo.

    Quanto loucura, no ano passado muita gente foi registrada como louca em nosso pas. Ecom que estilo: Com um talento diz que to original... e vejam o que acabou acontecendo...

    alis, h muito tempo isso devia ter sido previs to...2A ainda existe muita astcia; de sorte

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    que do ponto de vista da arte pura d at para elogiar. Mas sbito aquela gente aparece aindamais inteligente. Que em nosso pas se leva loucura, se leva, s que ainda no se fez ninguficar mais inteligente.

    Acho que o mais inteligente quem ao menos uma vez por ms chama a si mesmo deimbecil capacidade de que hoje no se ouve falar! Antes ao menos uma vez por ano oimbecil sabia sobre si mesmo que era imbecil, mas hoje, nem isso. E confundiram tanto acoisa que a gente no distingue o imbecil do inteligente. Isso eles fizeram de propsito.

    Lembra-me uma galhofa espanhola, do tempo em que os franceses construram a primeiracasa de loucos h dois sculos e meio: Eles trancaram todos os seus imbecis em uma casaespecial para se certificarem de que eram pessoas inteligentes. E de fato: ao trancar o outronuma casa de loucos voc ainda no est provando sua prpria inteligncia. K. enlouqueceusignifica que agora somos inteligentes. No, ainda no significa.

    Alis, com os diabos... por que toda essa celeuma com minha inteligncia? Eu resmungo,resmungo. At a empregada j enchi. Ontem me apareceu um amigo: Teu estilo, diz ele, estmudando, est truncado. Truncas, truncas, e sai uma orao intercalada, aps a intercalada

    vem outra intercalada, depois mais alguma coisa entre parnteses, e depois tornas a truncar, truncar....

    O amigo est certo. Uma coisa terrvel est acontecendo comigo. O carter mudando, acabea doendo. Comeo a ver e ouvir umas coisas estranhas. No so propriamente vozes,mas como se estivesse algum ao lado: Bobk, bobk, bobk!.3Que bobk esse?Preciso me divertir.

    Sa para me divertir, acabei num enterro. Um parente distante. No entanto, conselheiro decolgio.4Viva, cinco filhas, todas donzelas. S em sapato, a quanto no vai isso! O falecido

    dava um jeito, mas agora sobra uma pensozinha. Vo ter de meter o rabo entre as pernas.Sempre me receberam com descortesia. Alis, eu nem teria vindo no fosse um acontecimentto especial. Acompanhei o cortejo at o cemitrio no meio dos demais; evitam-me e se fazemde orgulhosas. Meu uniforme realmente ruinzinho. Faz uns vinte e cinco anos, acho, que euno vou a um cemitrio; s me faltava um lugarzinho assim!

    Em primeiro lugar, o esprito. Com uns quinze mortos fui logo dando de cara. Mortalhas dtodos os preos; havia at dois carros funerrios: o de um general e outro de alguma gr-finaMuitas caras tristes, e tambm muita dor fingida, e muita alegria franca. O proco no pode s

    queixar: so rendas. Mas esprito esprito... Eu no queria ser o proco daqui.

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    Olho para as caras dos mortos com cautela, desconfiado da minha impressionabilidade. Hexpresses amenas, como h desagradveis. Os sorrisos so geralmente maus, uns at muito.No gosto; sonho com eles.

    Durante a missa sa da capela para tomar ar fresco; o dia estava acinzentado, mas seco. Efrio; tambm pudera, estvamos em outubro. Comecei a caminhar entre as sepulturas. Classes

    diferentes. As de terceira classe custam trinta rublos: so bastante boas e no to caras. Asduas primeiras ficam na igreja, no adro; bem, isso custa os olhos da cara. Na terceira classeenterraram desta vez umas seis pessoas, entre eles o general e a gr-fina.

    Dei uma olhada nas sepulturas um horror: havia gua, e que gua! Toda verde e... svendo o que mais! A todo instante o coveiro a retirava com uma vasilha. Enquanto transcorria missa, sa para dar uma voltinha alm dos portes. Fui logo encontrando um hospcio, e umpouco adiante um restaurante. E um restaurantezinho mais ou menos: tinha de tudo e atsalgadinhos. Havia muita gente, inclusive acompanhantes do enterro. Notei muita alegria e

    animao sincera. Comi uns salgadinhos e tomei um trago.Depois ajudei com as prprias mos a levar o caixo da igreja para o tmulo. Por que os

    mortos ficam to pesados no caixo? Dizem, com base em alguma inrcia, que o corpo j noteria domnio sobre si mesmo... ou algum absurdo dessa ordem; coisa contrria mecnica eao bom senso.5No gosto quando algum apenas com instruo geral se mete a especialista:entre ns isso acontece a torto e a direito. Civis gostam de julgar assuntos de militares, e atda alada de marechais de campo, gente com formao em engenharia discute mais filosofia economia poltica.

    No assisti ao Rquiem. Sou orgulhoso, e se me recebem apenas por extrema necessidade

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    por que vou me enfiar nos seus jantares, ainda que sejam de funerais? S no entendo por qufiquei no cemitrio: sentei-me em uma sepultura e passei a meditar de verdade.

    Comecei por uma exposio de Moscou6e terminei refletindo sobre a admirao, falandodo tema em linhas gerais. Eis o que conclu sobre a admirao:

    Admirar-se de tudo , sem dvida, uma tolice, no se admirar de nada bem mais bonitoe, por algum motivo, reconhecido como bom-tom. Mas pouco provvel que no fundo sejaassim. Acho que no se admirar de nada uma tolice bem maior do que admirar-se de tudo.Alm do mais, no se admirar de nada quase o mesmo que no respeitar nada. Alis, umhomem tolo no pode mesmo respeitar.

    Sim, acima de tudo desejo respeitar.Estou sequiosopor respeitar disse-me certa vepor esses dias, um conhecido.

    Est sequioso por respeitar! Meu Deus, pensei, o que seria de ti se te atrevesses a publicaressa coisa hoje em dia!

    Nisso comecei a dormitar. No gosto de ler inscries de tmulos; so sempre iguais.Sobre uma lpide, ao meu lado, havia um resto de sanduche: coisa tola e inoportuna.Derrubei-o sobre a terra, pois no era po mas apenas sanduche. Alis, parece que no pecado esfarelar po sobre a terra; sobre o assoalho que pecado. Procurar informaes nalmanaque de Suvrin.8

    Cabe supor que fiquei sentado muito tempo, at demais; ou seja, cheguei inclusive a medeitar em um longo bloco de pedra com formato de caixo de mrmore. E como foi acontecerque de repente comecei a ouvir coisas diversas? A princpio no prestei ateno e desdenheiMas a conversa continuava. E eu escutava: sons surdos, como se as bocas estivessem tapadapor travesseiros; e, a despeito de tudo, ntidos e muito prximos. Despertei, sentei-me e pass

    a escutar atentamente. Excelncia, isso simplesmente no se faz. O senhor canta copas, eu fao o jogo, e de

    repente o senhor aparece com um sete de ouros. Devia ter cantado ouros antes.

    Ento, quer dizer que vamos jogar de memria? Que graa h nisso?

    No, Excelncia, no h meio de jogar sem garantias. No pode faltar o morto, e ascartas tm de ser dadas viradas para baixo na mesa.

    Bem, morto por aqui no se arranja.

    Que raio de conversa mais maante! estranha e surpreendente. Uma voz to forte e gravea outra parecendo suavemente adulorada; no acreditaria se eu mesmo no estivesse ouvindAo Rquiem parece que no assisti. E, no entanto, como que podem jogarprfrence9aquie que general esse? De que ouvi coisas de debaixo dos tmulos no h nenhuma dvida.Inclinei-me e li uma inscrio em um tmulo:

    Aqui jaz o corpo do general-major Piervoidov... tais e tais medalhas decavaleiro. Hum! Faleceu em agosto deste ano... cinquenta e sete... Descansem em

    paz, queridos restos mortais, at o amanhecer radiante!10

    Hum! que diabo, um general mesmo! Na outra cova, de onde vinha a voz bajuladora, aind

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    no havia tmulo; havia apenas uma lpide; pelo visto era de algum novato. Pela voz, umconselheiro da corte.11 Oh-oh-oh-oh! ouviu-se uma voz bem nova a umas cinco braasdo lugar do general e vinda de uma cova bem fresquinha, voz masculina e vulgar, pormatenuada pela maneira reverente e comovida.

    Oh-oh-oh-oh!

    Ah, ele est soluando de novo! ouviu-se de sbito a voz enojada e arrogante de umdama irritada, parece que da alta sociedade. Para mim um castigo ficar ao lado desse

    vendeiro! Eu no estou soluando coisa nenhuma, e alm do mais nem comi nada, isso s por

    causa de minha natureza. Tudo isso, senhora, porque os seus caprichos aqui neste lugarnunca lhe do paz.

    Ento, por que o senhor se deitou aqui?

    Me botaram, foram a mulher e os filhos que me botaram e no eu que me deitei. omistrio da morte! E eu no me deitaria a seu lado por nada, por ouro nenhum; estou deitados custas de meu prprio capital, a julgar pelo preo. Porque sempre podemos pagar por umasepultura de terceira classe.

    Juntou dinheiro; roubando as pessoas?

    De que jeito roubar a senhora se desde janeiro no recebemos nenhum pagamento da su

    parte? Tem uma conta em seu nome na minha venda.

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    Bem, isso j uma bobagem; acho muita bobagem cobrar dvidas aqui! V l em cima.Cobre da minha sobrinha; ela a herdeira.

    Ora essa, onde que se vai cobrar e aonde ir agora. Ns dois chegamos ao limite, e emmatria de pecados somos iguais perante o tribunal de Deus.

    De pecados! arremedou a finada com desdm. E no tenha o atrevimento de falarnada comigo!

    Oh-oh-oh-oh!

    Mas o vendeiro obedece senhora, Excelncia.

    E por que no haveria de obedecer?

    Sabe-se por qu, Excelncia, j que reina aqui uma nova ordem.

    Que nova ordem essa?

    que ns, por assim dizer, estamos mortos, Excelncia.

    Ah, mesmo! Mas ainda assim ordem...

    Que obsquio! realmente um consolo! Se a coisa aqui chegou a esse ponto, o que se podeindagar no andar de cima? Que coisas esto acontecendo, sim senhor! Mas no entantocontinuei a escutar, mesmo tomado de excessiva indignao.

    No, eu ainda gostaria de viver! No... eu, fiquem sabendo, eu ainda gostaria de viver! ouviu-se de repente a voz nova de algum nalgum canto entre o general e a senhorairritadia.

    Ouvi, Excelncia, o nosso vizinho volta a bater na mesma tecla. H trs meses calado, de repente: Eu ainda gostaria de viver, no, eu ainda gostaria de viver!. E com que apetitehi-hi!

    E leviandade.

    Est atnito, Excelncia, e ficai sabendo, est entrando no sono, no sono definitivo, jest aqui desde abril, mas de repente: Eu ainda gostaria de viver!.

    Isso meio maante, convenhamos observou sua Excelncia.

    Meio maante, Excelncia; no seria o caso de tornarmos a mexer com AvdtiaIgntievna, hi-hi?

    Isso no, peo que me dispense. No consigo suportar essa gritalhona provocante. J eu, ao contrrio, no consigo suportar vocs dois respondeu a gritalhona com noj

    Vocs dois so os mais maantes e no sabem falar de nada em que haja ideal. A seurespeito, Excelncia por favor, no sejais presunoso , conheo aquela historiazinha emque o criado vos varreu com a vassoura de debaixo da cama de um casal ao amanhecer.

    Mulher detestvel! rosnou o general entre dentes.

    Minha cara Avdtia Igntievna tornou a gritar subitamente o vendeiro , minhasenhorinha, esquece o mal e me diz se eu tenho de passar por todas essas provaes ou devo

    agir de outro jeito?

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    Ah, l vem ele com a mesma ladainha, eu bem que pressenti, pois estou sentindo o cheique vem dele, o cheiro, porque ele que est se mexendo!

    No estou me mexendo, minha cara, e no de mim que est saindo nenhum cheiroespecial, porque eu ainda estou inteiro no meu corpo plenamente conservado; j a senhorinhase mexeu mesmo, porque o cheiro realmente insuportvel at para um lugar como este. spor delicadeza que eu fico calado.

    Ah, esse ofensor detestvel! Fede que um horror e diz que sou eu.

    Oh-oh-oh-oh! Se pelo menos os nossos acabassem logo essa quarentena: escuto sobremim vozes chorosas, o pranto da mulher e o choro baixinho dos filhos!...

    Vejam s por que ele est chorando: vo encher a pana de kuty12e ir embora. Ah, seao menos algum acordasse!

    Avdtia Igntievna falou o funcionrio bajulador.

    Espere um segundinho, os novatos vo falar.

    Tambm h jovens entre eles?

    Tambm h jovens, Avdtia Igntievna. At rapazinhos. Ah, como viriam a propsito!

    E por que ainda no comearam? quis saber sua Excelncia.

    Nem os de anteontem acordaram, Excelncia, o senhor mesmo sabe que s vezes ficamuma semana calados. Ainda bem que de repente trouxeram muitos ontem, anteontem e hoje.Seno a umas dez braas ao redor todos seriam do ano passado.

    , interessante.

    Pois bem, Excelncia, hoje sepultaram o conselheiro efetivo secreto13

    Tarassivitch.Reconheci-o pelas vozes. Conheo seu sobrinho, que ainda h pouco fez descer o caixo dele

    Hum, onde estar ele por aqui?

    A uns cinco passos do senhor, Excelncia, esquerda. Quase bem aos vossos ps...Seria bom que os senhores se conhecessem, Excelncia.

    Hum, essa no... eu, dar o primeiro passo.

    Ora, ele mesmo tomar a iniciativa, Excelncia. Ele vai se sentir at lisonjeado, deixaicomigo, Excelncia, e eu...

    Ah, ah... ah, o que est acontecendo comigo? sbito comeou a ofegar a vozinhanovata e assustada de algum.

    Um novato, Excelncia, um novato, graas a Deus, e foi to depressa! Noutras ocasiespassam uma semana sem falar.

    Ah, parece que um jovem! guinchou Avdtia Igntievna.

    Eu... eu... eu tive uma complicao, e to de repente! tornou a balbuciar o rapazinho Schultz me disse ainda na vspera: o senhor, diz ele, est com uma complicao, e derepente morri ao amanhecer. Ah! Ah!

    Bem, no h o que fazer, meu jovem observou o general cheio de benevolncia e

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    notria alegria pelo novato , precisa consolar-se. Seja bem-vindo ao nosso, por assimdizer, vale de Josaf.14Somos gente bondosa, vs o sabereis e apreciareis. General-majorVassli Vassliev Piervoidov para servi-lo.

    Ah, no! no, no, de jeito nenhum! Estava no consultrio de Schultz; andava com umacomplicao, primeiro senti o peito tomado e tosse, depois peguei uma gripe: o peito e agripe... e de repente tudo inesperado... e o pior, totalmente inesperado.

    O senhor est dizendo que primeiro foi o peito intrometeu-se brandamente o

    funcionrio, como se quisesse animar o novato. Sim, o peito e escarro, depois desapareceu o escarro e no senti o peito, no conseguia

    respirar... o senhor sabe...

    Sei, sei. Mas se era peito, seria melhor o senhor ter ido a Eckoud e no a Schultz.15

    Sabe, eu estava para ir a Btkin... mas de repente...

    Bem, Btkin arranca os olhos da cara observou o general.

    No, ele no arranca olho nenhum; ouvi dizer que ele muito atencioso e antecipa tudo

    Sua Excelncia observou a propsito do preo emendou o funcionrio. Ah, o que isso, apenas trs rublos, e ele examina to bem, e receita... e eu queria sem

    falta, porque me disseram... Ento, senhores, devo ir a Eckoud ou a Btkin?

    O qu? Aonde? com uma gargalhada agradvel comeou a agitar-se o cadver dogeneral. O funcionrio o repetiu em falsete.

    Querido menino, meu menino querido e radiante, como eu te amo! ganiu em xtaseAvdtia Igntievna. Ah, se colocassem um assim ao meu lado!

    No, isso eu j no posso admitir! e olhe que esse um morto moderno! Entretanto, vamosouvir mais e sem pressa de concluir. Esse fedelho novato lembro-me dele ainda h poucono caixo a expresso de um frango assustado, a mais asquerosa do mundo! Mas vejamoo que vem pela frente.

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    Mas depois comeou tal pandemnio que no retive tudo na memria, porque muitosacordaram ao mesmo tempo; acordou um funcionrio, conselheiro civil,16e comeouimediatamente a discutir com o general o projeto de uma nova subcomisso no ministrio e,conjugado com essa subcomisso, um provvel remanejamento de ocupantes de cargos, o quedeixou o general bastante entretido. Confesso que eu mesmo me inteirei de muitas novidades,de sorte que fiquei impressionado com os meios pelos quais s vezes podemos tomar

    conhecimento das novidades administrativas nesta capital. Depois semidespertou umengenheiro, que ainda levou tempo resmungando um completo absurdo, de sorte que os nossonem implicaram com ele, mas deixaram que por ora continuasse deitado. Finalmente umailustre gr-senhora, sepultada pela manh no catafalco, deu sinais de animao tumular.Lebiezitnikov (porque se chamava Lebiezitnikov o bajulador conselheiro da corte, objeto dmeu dio, que se colocara ao lado do general Piervoidov) ficou muito agitado e surpreso aover que desta vez todos estavam acordando muito depressa. Confesso que eu tambm mesurpreendi; alis, alguns dos despertos j estavam enterrados h trs dias, como, por exempluma mocinha bem jovem, de uns dezesseis anos, que dava risadinhas sem parar... davarisadinhas abjetas e sensuais.

    Excelncia, o conselheiro secreto Tarassivitch est acordando! anunciou de sbito

    Lebiezitnikov com uma pressa excepcional. h, o qu? resmungou o conselheiro secreto com voz ciciante e nojo, despertando d

    repente. No som da voz havia um qu de capricho e imposio. Por curiosidade agucei oouvido, pois nos ltimos dias eu ouvira falar coisas sumamente tentadoras e inquietantes arespeito desse Tarassivitch.

    Sou eu, Excelncia, por enquanto apenas eu.

    Qual o seu pedido e o que o senhor deseja?

    Apenas me inteirar da sade de Vossa Excelncia; por falta de hbito, cada um que

    chega aqui se sente meio tolhido da primeira vez... O general Piervoidov gostaria de ter a

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    honra de conhecer Vossa Excelncia e espera...

    No ouvi.

    Perdo, Excelncia, o general Piervoidov, Vassli Vasslievitch...

    O senhor o general Piervoidov?

    No, Excelncia, sou apenas o conselheiro da corte Lebiezitnikov para servi-lo, mas ogeneral Piervoidov...

    Absurdo! E peo-lhe que me deixe em paz. Deixai-o finalmente o general Piervoidov deteve com dignidade a pressa torpe do

    seu cliente sepulcral.

    Ele ainda no acordou, Excelncia, preciso considerar; isso falta do hbito: quandoacordar o receber de modo diferente...

    Deixai-o repetiu o general.

    Vassli Vasslievitch! Ei, Excelncia! gritou alto de sbito e entusiasmada ao lado d

    prpria Avdtia Igntievna uma voz inteiramente novata, voz fidalguesca e petulante, com adico lnguida da moda e descaradamente escandida , j faz duas horas que vos observo todos; h trs dias estou deitado aqui: o senhor se lembra de mim, Vassli Vasslievitch?Klinivitch, ns nos encontramos em casa de Volokonski, onde o senhor, no sei por qu,tambm era recebido.

    Como, o conde Piotr Pietrvitch... no me diga que o senhor... e em idade to jovem..Como lamento!

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    E eu tambm lamento, s que para mim d no mesmo e doravante quero desfrutar de tudo que for possvel. E no sou conde, mas baro, apenas baro. Ns somos uns baronetessarnentos, descendentes de criados, alis, eu at desconheo a razo disso e estou me lixandoSou apenas um pulha da pseudo-alta sociedade e me considero um amvelpolisson.17

    Meu pai era um generalote qualquer e houve poca em que minha me era recebida en hautlieu.18No ano passado eu e ojid19Zifel pusemos em circulao cerca de cinquenta mil rubloem notas falsas, eu o denunciei, e o dinheiro Yulka Charpentier de Lusignan levou todinho

    para Bordeaux. E imaginai que eu j estava noivo de Schevalivskaia, moa ainda colegiaa menos de trs meses para completar dezesseis anos, noventa mil rublos de dote. AvdtiaIgntievna, estais lembrada de como me pervertestes h quinze anos, quando eu ainda era umcadete de quatorze anos?

    Ah, s tu, patife, pelo menos Deus te enviou, porque aqui...

    Em vo desconfiastes de mau cheiro no vosso vizinho negociante... Eu me limitei a calae rir. Porque o mau cheiro sai de mim; que me enterraram num caixo pregado.

    Ah, que tipo abominvel! Mas mesmo assim estou contente; no acreditareis,

    Klinivitch, no acreditareis como isso aqui carece de vida e graa. Pois , pois , mas eu tenho a inteno de organizar aqui alguma coisa original.

    Excelncia no estou falando com o senhor, Piervoidov , Excelncia, o outro, o senhorTarassivitch, o conselheiro secreto. Respondei! Klinivitch, que na Quaresma vos levou casa de mademoiselleFurie, estais lembrado?

    Eu vos estou ouvindo, Klinivitch, e muito contente, acreditai...

    No acredito numa vrgula, e estou me lixando. Eu, amvel velhote, quero simplesmentcobri-lo de beijos, mas graas a Deus no posso. Sabeis vs, senhores, o que essegrand-

    re20engendrou? Faz trs ou quatro dias que morreu, e podeis imaginar que deixou umdesfalque de quatrocentos mil rublos redondos em dinheiro pblico? A quantia estava emnome das vivas e dos rfos, mas no se sabe por que ele a administrava sozinho, de sorteque acabou ficando oito anos livre de fiscalizao. Imagino a cara de tacho de todos eles l eque lembrana guardam dele! No verdade que uma ideia cheia de volpia? Vivi todo oano passado admirado de ver como esse velhote de setenta anos, cheio de gota nas mos e nops, ainda conseguia conservar tanta energia para a libertinagem, e agora vejo o enigmadecifrado! Aquelas vivas e rfos... alis, a simples ideia de sua existncia deveria deix-l

    em brasas!... Eu j conhecia essa histria havia muito tempo, e era o nico a conhec-la,Charpentier me contou na Semana Santa e, mal tomei conhecimento, investi contra ele,amigavelmente: Passa-me vinte e cinco mil, seno amanh a fiscalizao estar aqui;imaginai, na ocasio ele s arranjou treze mil, de sorte que, parece, agora a morte dele vembem a propsito. Grand-pre,grand-pre, estais ouvindo?

    ChrKlinivitch, estou inteiramente de acordo convosco, e em vo... descestes asemelhantes detalhes. Na vida h tanto sofrimento, tanto martrio e to pouco castigo... eudesejei finalmente aquietar-me e, at onde percebo, espero at neste lugar desfrutar de tudo..

    Aposto que ele j farejou Ktich Bieriestova!

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    entanto nem falamos nem nos movemos! Que truques so esses?

    Isso, se o senhor desejar, baro, quem pode vos explicar melhor do que eu PlatonNikolievitch.

    Quem esse Platon Nikolievitch? Pare de mastigar, vamos ao assunto.

    Platon Nikolievitch o nosso filsofo domstico daqui, naturalista e gro-mestre. Jlanou vrios livros de filosofia, mas faz trs meses que vem entrando no sono definitivo, demodo que aqui j no mais possvel desentorpec-lo. Uma vez por semana balbucia algumapalavras sem nexo.

    Ao assunto, ao assunto!...

    Ele explica tudo isso com o fato mais simples, ou seja, dizendo que l em cima, quandoainda estvamos vivos, julgvamos erroneamente a morte como morte. como se aqui o corpse reanimasse, os restos de vida se concentram, mas apenas na conscincia... Isto no tenhocomo lhe expressar a vida que continua como que por inrcia. Tudo concentrado, segundele, em algum ponto da conscincia, e ainda dura de dois a trs meses... s vezes at meioano... H, por exemplo, um fulano que aqui quase j se decomps inteiramente, mas faz umasseis semanas que de vez em quando ainda balbucia de repente uma palavrinha, claro que semsentido, sobre um tal bobk: Bobk, bobk; logo, at nele ainda persiste uma centelhainvisvel de vida...

    Coisa bastante tola. E como que eu estou sem tato, mas sinto fedor?

    Isso.. eh-eh... Nesse ponto o nosso filsofo meteu-se em zona nebulosa. Referindo-seprecisamente ao olfato, ele observou que aqui se sente um fedor, por assim dizer, moral, eh-eh! como se o fedor viesse da alma para que, nesses dois-trs meses, ns nosapercebssemos a tempo... e que isso, por assim dizer, a ltima misericrdia... S que eu,baro, acho que tudo isso j delrio mstico, bastante desculpvel na situao dele...

    Basta, e estou certo de que todo o resto absurdo. O principal so os dois ou trs mesede vida e, no fim das contas, bobk.Sugiro que todos passemos esses dois meses da maneiramais agradvel possvel, e para tanto todos nos organizemos em outras bases. Senhores!

    proponho que no nos envergonhemos de nada!

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    Ah, vamos, vamos, no nos envergonhemos de nada! ouviram-se muitas vozes e,estranho, ouviram-se at vozes inteiramente novas, logo, que haviam tornado a despertar nesnterim. Um engenheiro que despertara completamente trovejou com voz de baixo a suaconcordncia, com uma presteza especial. A mocinha Ktich dava risadinhas de alegria.

    Ah, como eu quero no me envergonhar de nada! exclamava em xtase AvdtiaIgntievna.

    Ouvi, j que Avdtia Igntievna quer no se envergonhar de nada...

    No-no-no, Klinivitch, eu me envergonhava, apesar de tudo l eu me envergonhava,mas aqui estou com uma terrvel, uma terrvel vontade de no me envergonhar de nada!

    Eu entendo, Klinivitch falou o engenheiro com sua voz de baixo , que estaispropondo organizar a vida aqui, por assim dizer, em princpios novos e j racionais.

    Bem, para isso eu estou me lixando! Neste sentido aguardemos Kudeirov, foi trazidoontem. Assim que despertar vos explicar tudo. Precisam ver que tipo, um tipo agigantado!Amanh, parece, vo trazer mais um naturalista, certamente um oficial e, se no estouenganado, dentro de uns trs ou quatro dias um folhetinista, e parece que junto com o redator-chefe. Alis, o diabo os tenha, porque to logo se rena a nossa turma, tudo entre ns seorganizar naturalmente. Mas por enquanto eu quero que no se minta. s o que eu quero,porque isto o essencial. Na Terra impossvel viver e no mentir, pois vida e mentira sosinnimos; mas, com o intuito de rir, aqui no vamos mentir. Aos diabos, ora, pois o tmulosignifica alguma coisa! Todos ns vamos contar em voz alta as nossas histrias j sem nosenvergonharmos de nada. Serei o primeiro de todos a contar a minha histria. Eu, sabei, soudos sensuais. L em cima tudo isso estava preso por cordas podres. Abaixo as cordas, evivamos esses dois meses na mais desavergonhada verdade! Tiremos a roupa, dispamo-nos!

    Dispamo-nos, dispamo-nos! gritaram em coro. Estou com uma terrvel, uma terrvel vontade de tirar a roupa! ganiu Avdtia

    Igntievna.

    Ah... ah... Ah, estou vendo que a coisa aqui vai ficar alegre; no quero mais ir a Eckoud

    No, eu ainda gostaria de viver, no, ficai sabendo, eu ainda gostaria de viver!

    Ih-ih-ih Ktich dava risadinhas.

    O principal que ningum pode nos proibir, e ainda que Piervoidov se zangue, como

    estou vendo, ele no pode mesmo me alcanar com a mo. Grand-pre, o senhor est deacordo?

    Totalmente, totalmente de acordo e com o maior dos prazeres, mas contanto que Ktichseja a primeira a comear sua bi-o-grafia.

    Protesto, protesto com todas as foras pronunciou com firmeza o generalPiervoidov.

    Excelncia! balbuciou em voz baixa o canalha do Lebiezitnikov numa inquietaoprecipitada e em tom persuasivo. Excelncia, ser at mais vantajoso para ns se

    concordarmos. Como sabeis, est em jogo essa menina... e, no fim das contas, todas essascoisinhas vrias...

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    Suponhamos, a menina, no entanto...

    Mais vantajoso, Excelncia, juro que seria mais vantajoso! Ao menos uma provinha, aomenos experimentemos...

    Nem no tmulo nos deixam em paz!

    Em primeiro lugar, general, o senhor jogaprfrenceno tmulo, em segundo, estamosnos li-xan-do para o senhor escandiu Klinivitch.

    Meu caro senhor, no obstante, peo que no esqueais as maneiras. O qu? Ora essa, o senhor no me alcana, e daqui eu posso provoc-lo como se faz coum cachorrinho. Em primeiro lugar, senhores, que general ele aqui? L ele era general, masaqui um nada!

    No, no sou um nada... eu at aqui...

    Aqui apodrecer no caixo, e deixar seis botes de cobre.

    Bravo, Klinivitch, qu-qu-qu! mugiram vozes.

    Eu servi ao meu soberano... tenho uma espada...

    Vossa espada serve para espetar ratos, e alm do mais o senhor nunca a desembainhou

    No importa; eu era parte de um todo.

    Sabe-se l que partes tem um todo.

    Bravo, Klinivitch, bravo, qu-qu-qu!

    Eu no entendo o que uma espada proclamou o engenheiro.

    Ns vamos fugir dos prussianos como ratos, eles nos reduziro a p! gritou uma vozdistante, estranha a mim, mas literalmente sufocada de xtase.

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    A espada, senhor, honra! ia gritando o general, mas s eu o ouvi. Ergueu-se uma

    berraria demorada e frentica, motim e alarido, e s se ouviam os guinchos impacientes equase histricos de Avdtia Igntievna.

    Vamos logo com isso, logo! Ah, quando que vamos comear a no ter vergonha denada!

    Oh-oh-oh! a alma anda verdadeiramente atormentada! ia-se ouvindo uma voz vindado povo e...

    E eis que de repente espirrei. Aconteceu de forma sbita e involuntria, mas o efeito foisurpreendente: tudo ficou em silncio, exatamente como no cemitrio, desapareceu como um

    sonho. Fez-se um silncio verdadeiramente sepulcral. No acho que tenham sentido vergonhade mim: haviam resolvido no se envergonhar de nada! Esperei uns cinco minutos e... nemuma palavra, nem um som. Tambm no d para supor que tenham temido ser denunciados polcia; porque, o que a polcia pode fazer neste caso? Concluo involuntariamente que, apesade tudo, eles devem ter algum segredo desconhecido dos mortais e que eles escondemcuidadosamente de todo mortal.

    Bem, queridos, refleti, ainda hei de visit-los e com essas palavras deixei o cemitri

    No, isso eu no posso admitir; no, efetivamente no! O bobkno me perturba (vejam em

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    que acabou dando esse tal bobk!).

    Perverso em um lugar como este, perverso das ltimas esperanas, perverso decadveres flcidos e em decomposio, sem poupar sequer os ltimos lampejos deconscincia! Deram-lhes, presentearam-nos com esses lampejos e... E o mais grave, o maisgrave: num lugar como este! No, isto eu no posso admitir...

    Circulo em outras classes, escuto em toda parte. O problema que preciso escutar em todaparte e no s de um lado para fazer uma ideia. Pode ser que eu depare com algo consolador

    Mas voltarei sem falta queles. Prometeram suas biografias e toda sorte de anedotas. ArreMas vou procur-los, vou sem falta; uma questo de conscincia!

    Vou levar ao Grajdanin;21l tambm reproduziram o retrato de um redator-chefe. Pode seque publiquem.

    Vassli Perov,Retrato do escritor Fidor Dostoivski, 1872, leo s/ tela, 99 x 80,5 cm, Galeria Tretiakov, Moscou.

    1Sal tico, expresso figurada que significa gracejo refinado. Remonta a Marco Tlio Ccero (106-43 a.C.), que nutria ualto apreo pela arte oratria grega. (N. da E.)

    2Tm-se em vista as resenhas e as repercusses polmicas do romance Os demnios, sobretudo a nota Jornalismo ebibliografia, publicada porBirjeve Vidomosti[Boletins da Bolsa] e assinada por M. N., que comparava o contedo doromance s alucinaes de Poprchin, protagonista doDirio de um louco, de Nikolai Ggol. Aqui se menciona o incio daatividade literria de Dostoivski, quando sua primeira obra foi saudada por Bielnski, para quem o talento do escritor estreanpertencia categoria daqueles que no se percebem nem se compreendem de imediato. Enquanto ele continuar em suasatividades, dizia o crtico, surgiro muitos talentos que iro opor-se a ele, mas estes acabaro esquecidos, ao passo que sua

    glria chegar ao apogeu. No sabemos se o seu talento chegou a esse apogeu, mas, pelo que fez uma parte dos nossos jovenptrios, ele realmente superou ao menos aqueles concorrentes que enveredam por esse caminho noRssk i Vistnik

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    [Mensageiro Russo] e em outras revistas da mesma natureza e que j foram esquecidas (Birjeve Vidomosti, 24/3/ 1872, n83). (N. da E.)

    3Em russo, bobksignifica fava. (N. do T.)

    4Classe civil de sexta categoria. (N. da E.)

    5Rplica polmica ao artigo do crtico Viktor P. Burinin (1841-1926), O sentido purificador das gals e os folhetins cheiode nervosismo e clamor do sr. Dostoivski (Grajdanin, n 1, 2, 3). Burinin assim avalia a publicstica de Dostoivski: Masquando o sr. Dostoivski envereda pelo campo do pensamento terico, quando ele se mete a publicista, filsofo, moralista, elefica horrvel; no, mais que horrvel: ele irresponsveldiante do bom senso e da lgica (S.-Peterbrgskie Vidomosti[Boletim ou Dirio Oficial de So Petersburgo], 20/1/1873, n 20 grifos da redao). Uma pessoa modifica um pouco as

    palavras (grifadas) de Burinin, substituindo lgica por mecnica. Tudo indica que Dostoivski o faz com uma finalidadepolmica complementar de atingir Ivan Turguniev pelo artigo A propsito dePais e filhos, que antes Dostoivski parodiarem Os demnios. Turguniev conclui o artigo com esse apelo s pessoas prticas: respeitai ao menos as leis da mecnictirai de cada coisa todo o proveito possvel! Seno o leitor, ao percorrer nas revistas algumas pginas de verborreia murcha,vaga, impotente de to prolixas, palavra, dever involuntariamente pensar que substitus exatamente alavancapor escorasprimitivas, que estareis retornando primeira infncia da prpria mecnica [.. .] (Ivan Turguniev, Obras, tomo XIV, p. 109 grifos da edio russa). (N. da E.)

    6Tudo indica tratar-se de uma exposio politcnica inaugurada em Moscou no dia 30 de maio de 1872 e encerrada no dia30 de agosto do mesmo ano, em comemorao ao bicentenrio de nascimento de Pedro, o Grande. Um grande resumo, Aexposio politcnica de Moscou, assinado com as iniciais B. K. N., foi publicado numa coletnea do Grajdaninem 1872 econsta na biblioteca de Dostoivski. (N. da E.)

    7Dostoivski tem em vista Quinto Horcio Flaco (68-8 a.C.), autor da expressoNil admirari(De nada admirar-se). EmBobkessa locuo talvez atinja polemicamente o crtico de arte Lev Panitin (1831-1882), que usava a expresso comopseudnimo. (N. da E.)

    8Trata-se doAlmanaque Russode Aleksei Suvrin em sua edio de 1872 (So Petersburgo). O novo almanaque difereconsideravelmente dos anteriores, que eram simples calendrios. Essa circunstncia foi ressaltada e explicada no prefcio nova edio: Diante do interesse pelas questes sociais e sua discusso que vem se expandindo nos ltimos dez anos em nossociedade, colocamos como meta central do Calendrio Russoser no s um livro de consulta como, ao mesmo tempo, ummanual de informaes sobre a Rssia e de dados para o conhecimento dos seus recursos fsicos, econmicos e tico-polticono estado em que esto disponveis e, ainda, comparados com as mesmas potencialidades do resto da Europa. O calendriocontava com quarenta e duas sees; pelo visto, uma pessoa pretende consultar a quarta seo, Calendrio desupersties, costumes e crendices populares na Rssia, pp. 48-55. (N. da E.)

    9Jogo de baralho semelhante ao bridge. (N. do T.)10Epitfio do escritor Nikolai Karamzin (1766-1826). Por vontade dos irmos Mikhail e Fidor Dostoivski, foi gravado em

    1837 no monumento que eles colocaram no tmulo da me. O epitfio j era amplamente popular em 1830. A. Chlekhter, noconto Vtimas do vcio: cenas da vida urbana (1834), constata: Com repeties particulares as pessoas usaram tanto,gastaram tanto essa inscrio maravilhosa que ela perdeu inteiramente o seu belo sentido. A gente a encontra sobre as cinzasde algum malvado, de um homem de quem se recebeu uma herana h muito esperada, sobre o tmulo de um inimigo, o corpode um marido odiado pela mulher. O epitfio de Karamzin j figurara antes (em contexto burlesco) no romance O idiota, deDostoivski. (N. da E.)

    11Classe civil de stima categoria. (N. da E.)

    12Mistura de cereal cozido com mel (ou acar, ameixa em passas, passas, etc.). Tudo indica que o cereal , aqui, umsmbolo da ressurreio, e o mel (ou outros ingredientes doces) um smbolo de doura da futura vida. O kuty um tradicion

    detalhe simblico do ritual fnebre. (N.da E.)13Classe civil de segunda categoria. (N. da E.)

    14Vale situado nos arredores de Jerusalm; segundo a lenda bblica, o nome se deve a Josaf, rei da Judeia. O vale deJosaf um smbolo proftico bblico: o lugar onde se dar o Dia do Juzo Final, quando o mundo acabar. (N. da E.)

    15Estrelas da medicina de Petersburgo. OAlmanaque Russode Suvrin informa sobre eles na rubrica Mdicosespecialistas de Petersburgo, dando detalhes de endereo, dias de atendimento etc... Tambm aparecem nos manuscritos deCrime e castigoe O idiota. (N. da E.)

    16Classe civil de quinta categoria. (N. da E.)

    17Vadio, vagabundo, em francs no original. (N. do T.)

    18Nas altas rodas, em francs no original. (N. do T.)

    19Termo depreciativo usado no tratamento de judeus. (N. do T.)20Vov, em francs no original. (N. do T.)

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    21O Cidado, semanrio de Petersburgo do qual Dostoivski redatorchefe quando publicaBobk. (N. do T.)

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    O UNIVERSO DEBOBK

    Paulo Bezerra

    Dostoivski publicaBobkem 1873, com a finalidade de ajustar contas com a crtica

    muitas vezes azeda, ideologicamente raivosa e desrespeitosa ao romance Os demnios,publicado no ano anterior. Escrito queima roupa, esse conto aproxima narrador e objeto darepresentao, tempo da ao e tempo da narrao, elimina toda distncia entre os poloscomponentes do universo representado e arrasta imediatamente o leitor para dentro do climade hostilidade da crtica ao romancista, que se seguiu publicao de Os demnios, em 1872Acusado de louco, de haver criado um romance que lembra um hospital povoado depacientes excntricos, de marionetes e figuras afetadas ao lado de personagens vivas, umromance que deixa a impresso extremamente sinistra de um manicmio, traz umaenxurrada de asneiras e apresenta os niilistas como manequins que se distinguem entre sipor essa ou aquela variedade de delrio que, no fundo, so delrios do prprio autor tudo isso, segundo muitos crticos, revela de modo definitivo a falncia do autor de Genteobre. Sensvel crtica pr ou contra, Dostoivski passa por uma breve crise e faz planos

    para responder na bucha aos seus crticos. Podia faz-lo sem nenhuma dificuldade, pois a essaltura era redatorchefe do semanrio Grajdanin[O Cidado], onde, alm de editar artigossobre os mais diversos temas, publicou o famosoDirio deum escritore vrias de suasobras, entre elas o prprio contoBobk. Contudo, em vez de usar a crtica jornalstica, na quse destacava como um polemista inflamado e contundente, preferiu dar sua resposta no camp

    onde nenhum de seus oponentes e detratores tinha a mnima condio de ombrearse com ele:no campo da fico. Foi isto que deu origem aBobk.

    O clima psicolgico desencadeado por essa crtica hostil ao romance Os demniosrefletese diretamente na estrutura deBobk, que marcada por uma profunda tenso traduzidno comportamento do protagonista e nos vaivns de sua linguagem. Observando a maioria daresenhas e crticas a Os demnios, notase que nelas predomina a ideia de desequilbrio,delrio e loucura, em suma, toda uma estratgia da crtica cujo fim desqualificar obra eautor, irrit-lo e tir-lo do prumo, lev-lo a cometer desatinos. O narrador aceita o desafio

    mergulha nesse clima, vai desenvolvendo seu movimento pendular de sentimentoscontraditrios, onde aparecem elementos dialgicos como evasivas, cises, intermitnciasacentuais, reticncias etc., numa tenso diablica entre aceitao e rejeio da palavra dooutro. Mas isto uma estratgia da narrativa para preparar a contraposio do autor, que estpor trs do narrador.

    SendoBobkuma resposta a esses crticos, mesmo considerando o necessriodistanciamento esttico entre autor e obra, entre os fatos reais e sua plasmao ficcional,verifica-se no conto uma presena muito forte do elemento autobiogrfico, que se traduz, paraalm da polmica com os crticos, no modo composicional de Dostoivski, no qual todopersonagem tem pleno direito voz, independentemente do peso de sua funo na obra.

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    Apesar da tenso que envolvia Dostoivski durante a escrita deBobk, seu protagonista enarrador vai dando voz a cada um dos detratores do romancista para depois lhes contraporseus argumentos, marcados por grande elevao e sutis observaes de ordem histrica,ticofilosfica, esttica e psicolgica. A nfase no tema da loucura, um dos principaiselementos de sua polmica com a crtica, visa livrar esse tema da vulgarizao a que forareduzido no senso comum e incorporado dessa mesma maneira pela crtica. Da suasobservaes sutis e profundas, que pem o tema da loucura em um novo nvel de reflexo e o

    relativiza. Primeiro faz uma referncia experincia russa: No ano passado muita gente foiregistrada como louca em nosso pas..., e em seguida arremata: De fato: ao trancar o outronuma casa de loucos voc ainda no est provando sua prpria inteligncia. Mas o narradorno se daria por satisfeito limitando a discusso do tema da loucura experincia russa, eresolve universaliz-lo, incluindo na discusso dois grandes pensadores. Primeiro remete aErasmo, para quem o homem tanto mais feliz quanto mais numerosas so as suasmodalidades de loucura... eu no saberia dizer se haver, em todo o gnero humano, um sindivduo que seja sempre sbio e no tenha tambm a sua modalidade,1e completa areflexo do tema com uma aluso a esta citao de Montesquieu: H aqui uma casa ondeinternam os loucos. Seria ento de se acreditar que fosse a maior da cidade... Sem dvida osfranceses, to denegridos por seus vizinhos, encerram uns poucos doidos nessa casa, para seconvencerem de que tm juzo os que esto fora.2Ao universalizar o tema da loucura erelativizar a condio de louco, Dostoivski retoma aquele espao sem fronteiras da memrido romanesco referido por Northrop Frye, e assim permite que se lance uma ponte entre

    obke O alienista, de Machado de Assis. Neste, Simo Bacamarte, o psiquiatra que trancotoda a populao da cidade na famosa Casa Verde, presumindo que todos fossem loucos,acabou trancandose a si mesmo ao perceber que o doido era ele.

    Abordada a questo da loucura, o narrador introduz na polmica a relao entre intelignce imbecilidade, e a relativiza a tal ponto que a imbecilidade passa a ser patrimnio pblico ese generaliza tanto que quase apaga os limites entre esses dois conceitos. Ao afirmar que omais inteligente dos homens aquele que ao menos uma vez por ms chama a si mesmo deimbecil, o narrador deBobkcria a imagem ambivalente da imbecilidade inteligente eviceversa, incorporando o esprito de Scrates, que se dizia o mais sbio dos homens porquesabia que nada sabia e assim criava a imagem ambivalente da sbia ignorncia. O tom jocosoque da se segue quebra a tenso asfixiante motivada pela polmica que envolve o primeiro

    segmento da narrativa e abre espao para sua radical inverso temtica. Mas antes que istoacontea, Dostoivski usa de um extraordinrio virtuosismo para mudar as coordenadasformais da narrativa e justificar composicionalmente a inslita experincia a ser vivida porseu heri e narrador. Este afirma que comea a ver e ouvir umas coisas estranhas, sendoassim inserido na narrativa aquilo que em teoria literria se chama de precondio dofantstico. E como quem se sente saturado de to asfixiante tenso, fecha o primeiro segmentocom a seguinte afirmao: Preciso me distrair.

    GNERO E GNEROS

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    O segundo segmento desdobra a ltima frase do primeiro, Sa para me distrair, acabei nucemitrio, e com isso muda brusca e radicalmente o estilo do narrador, que passa doempolado, descontnuo e ziquezaguente, que at ento marcara sua fala insegura, para umadico leve, bem consentnea com o tom jocoso da histria que culminar no dilogo dosmortos. A palavra cemitrio, por evocar a ideia de morte, poderia parecer um contrapontoinsupervel palavra distrao, que evoca alegria, farra, vida. Mas Dostoivski resolveu aquesto recorrendo ao antiqussimo gnero da stira menipeia, tipo de narrativa cuja criao

    atribuda ao filsofo cnico Menipo de Gdara (primeira metade do sculo II a.C.), e o fez naforma de dilogo dos mortos, consagrada por Luciano de Samsata (sculo II d.C.), masatualizada maneira russa. Vejamos em breves pinceladas alguns traos caractersticos damenipeia que deram sustentao formal ao contoBobk.

    Na stira menipeia, desaparecem todos os resqucios das barreiras hierrquica, social,etria, sexual, religiosa, ideol-gica, nacional, lingustica etc.; entre os participantes do di-logo no h nenhuma espcie de reverncia, regra de decoro, etiqueta, medo, resultando dauma completa liberdade de expresso, sob a qual todas as coisas so ditas com naturalidade o riso desempenha um papel mais grosseiro do que desempenhara at ento. A ausncia deformas de reverncia pe o mundo literalmente de pernas para o ar, cria a impresso de umcaos absoluto na ordem universal das coisas. Desaparece a sensao de seriedade nocomportamento das personagens e em sua relao com o mundo; tudo alvo de rebaixamentogrosseiro e inverses ousadas, nas quais os momentos elevados do mundo aparecem savessas, com uma faceta oposta quela em que antes se manifestavam. O riso aproxima e d otom a tudo, sua ambivalncia vislumbra uma nova perspectiva de construo do universo,assumindo, em casos particulares, conotaes utpicas. O riso familiariza tudo e no deixamais lugar para a imagem elevada do passado; todo o espao da representao se constitui

    numa zona de contato familiar entre o mais sagrado e o mais profano, o mais alto e o maisbaixo, e nessa zona tudo pode ser fisicamente tocado. Como predomina a familiarizao, comtudo dado no contato imediato, no h qualquer restrio de espao e tempo para o enredo,que se desloca com total liberdade de fantasia do cu terra, desta ao inferno, do presente aopassado etc. O reino de alm-tmulo o espao das disputas e do congraamento universal, a os protagonistas do passado, dos tempos lendrio e histrico, e os contemporneos vivos,que em vida eram separados por barreiras de diversos tipos, encontram-se de maneirafamiliar para debates e at contendas. Surge, assim, um modelo utpico de mundo ideal, onde

    cada indivduo dono de si mesmo e da sua palavra, que flui livre de qualquer injuno, umavez que no h leis para reger o comportamento dos homens.

    O reino dos mortos o lugar ideal para o riso, pois est livre das leis que regem a vidaterrena, nele no existe a preocupao com o psmorte nem com o desconhecido, e todos seencontram fora do alcance das restries do mundo dos vivos. EmBobk, essas restries srepresentadas pelas cordas podres em que, segundo Klinivitch, se sustentava o mundo dosvivos e agora, livres delas, os mortos que integram a alegre confraria de alm-tmulo podemexperimentar uma vida nova em condies excepcionais, ou melhor, nas outras bases a quese refere o prprio Klinivitch. A todos so iguais em sua condio de mortos e por isso n

    h nenhuma forma de reverncia, podem rir uns dos outros, insultar-se, desafiar-se

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    mutuamente, enfim, a liberdade total.

    Assim, Dostoivski recria numa forma muito condensada o autntico clima do reino dosmortos de Luciano, abrindo espao para o riso, que a exerce a funo de elementodeflagrador da verdade, como diz Klinivitch: com o intuito de rir, aqui no vamos mentir.

    Ao atualizar o tema do dilogo dos mortos, Dostoivski mostra como ele estuniversalizado e perpetuado na memria do gnero. Dois exemplos ilustram essa afirmao.NaApocoloquintosede Sneca, depois de morto, Cludio julgado no Olimpo em um grande

    dilogo de mortos ilustres, entre eles Augusto. Ali todos esto livres das leis e restries queregem o comportamento dos homens em vida, a liberdade total, o direito palavra seestende a todos, h de fato uma vida em novas bases, sem nenhum escamoteamento daverdade e Cludio desmascarado, condenado e expulso. O segundo exemplo est em

    emrias pstumas de BrsCubas, de Machado de Assis. Machado atualizou de tal forma tema da menipeia que criou o defunto autor, que, do outro lado da vida, escreve o seguintesobre a condio de morto, que coincide com as novas bases em que se assenta a vida e liberdade:

    Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realo minhamediocridade; advirta que a franqueza a primeira virtude de um defunto. Na vida,o olhar da opinio, o contraste dos interesses, a luta das cobias obrigam a gente acalar os trapos velhos, a disfarar os rasges e os remendos, a no estender aomundo as revelaes que faz conscincia... Mas, na morte, que diferena! quedesabafo! que liberdade! Como a gente pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso aslantejoulas, despregar-se, despintar-se, desafeitar-se, confessar lisamente o que foie o que deixou de ser. Porque, em suma, j no h vizinhos, nem amigos, neminimigos, nem conhecidos, nem estranhos; no h plateia. O olhar da opinio, esseolhar agudo e judicial, perde a virtude, logo que pisamos o territrio da morte; nodigo que ele no se estenda para c, e nos no examine e julgue; mas a ns que nose nos d do exame nem do julgamento. Senhores vivos, no h nada toincomensurvel como o desdm dos finados.3

    Fica com o leitor a deciso de comparar essa reflexopost mortemde Brs Cubas com asfalas de Klinivitch e confrades no reino dos mortos deBobk.

    Note-se que neste ltimo esboa-se a manuteno das formalidades do relacionamento entas pessoas na sociedade hierarquicamente estruturada; contudo, tais formalidades so apenassuperficiais e vo se relativizando at serem inteiramente neutralizadas ou reduzidas a merossimulacros de relacionamentos hierrquicos. Prova disto a reao s atitudes do generalPiervoidov, que tenta manter sua dignidade de general no reino dos mortos sacando daespada para defend-la; mas nesse mundo a dignidade coisa absolutamente descartada, suasimples ideia soa inoportuna e por isso ningum lhe d o menor crdito e ele termina a histrcomicamente reduzido tambm a simulacro de antigo general. cmica e grotesca a sanhaertica de Avdtia Igntievna, como cmica e grotesca a sensualidade do conselheiroTarassivitch; profundamente cmica a cena em que Lebiezitnikov pergunta pela sade do

    morto Tarassivitch etc. Trata-se de elementos do gnero que Dostoivski manteve

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    essencialmente intactos.

    Dostoivski aproveita ainda emBobkum importante elemento filosfico da menipeia edos dilogos socrticos que a experimentao da ideia filosfica, da palavra e da verdade.Esse fundo filosfico assume caractersticas bastante amplas, abre uma interlocuo comoutras obras dostoievskianas (comoHumilhados e ofendidos, para citarmos apenas uma), ecom outros autores, como Plato, por exemplo, levando a questo a transcender os limites doprprio texto, a comear pela ideia da relao entre vida e morte. O filsofo da casa, Platon

    Nikolievitch, autor de vrios livros de filosofia, desenvolve a ideia segundo a qual quandoeles, isto , os membros da confraria de alm-tmulo, ainda estavam vivos, julgavamerroneamente a morte como morte. Ali, no reino de alm-tmulo, como se o corpotornasse a viver, os restos de vida se concentram [...] em algum ponto da conscincia [...] avida continua como que por inrcia. Essa concepo muito prxima da que Platodesenvolve noFdon,4onde Scrates discute a questo da morte como libertao dopensamento e diz: por todo o tempo em que durar nossa vida, estaremos mais prximos dosaber [...] quando nos afastarmos o mais possvel da sociedade em unio com o corpo.

    Traduzida essa afirmao socrtica na linguagem de Platon Nikolievitch, ela poderia serassim resumida: enquanto julgarmos erroneamente a morte como morte, ser impossvelatingir esse saber socrtico. E como Scrates est interessado no saber como forma de chega verdade, tem ele a firme convico de que depois da morte h qualquer coisa qualquercoisa de resto [...],5ou melhor, h os restos de vida, como quer Platon Nikolievitch.Scrates, porm, usa de critrio axiolgico e delimita o acesso a esses restos de vida,argumentando que uma antiga tradio diz ser muito melhor para os bons do que para osmaus. Scrates argumenta que, estando a alma livre da priso do corpo, pode concentrar-sem si mesma e sobre si mesma, ou, diria Platon Nikolievitch, concentrar-se na

    conscincia, em algum ponto desta. Em essncia, h um dilogo entre as reflexes doScrates deFdone as de Platon Nikolievitch; Scrates fala do resto da existncia das almpuras, isto , sua perspectiva de sobrevivncia indefinida, ao passo que Platon Nikolievitfala de dois a trs meses e ... s vezes at meio ano.... Cabe, porm, mais umaobservao: Platon Nikolievitch fala que ali se sente um fedor moral, e, na perspectivasocrtica, tal fedor seria uma advertncia para que, nos dois ou trs meses restantes, os mortse dessem conta da vida provavelmente mal vivida. O prprio Lebiezitnikov qualifica taisreflexes de delrio mstico, Klinivitch, de tolice. Cruzadas e experimentadas, as verdade

    filosficas de Scrates e Platon Nikolievitch acabam tachadas de delrio mstico e tolice poaqueles que ainda continuam presos vida do corpo.

    Tambm como filosofia, a questo tica ligada ao fedor moral amplia os horizontes deobk, que assim dialoga com outras obras de Dostoivski, comoHumilhados e ofendidos,

    romance de 1861, com a confisso que o prncipe Valkovski faz ao narrador, afirmando que,se cada um de ns descrevesse todos os seus podres, no s o que ele teme dizer aos seusmelhores amigos, mas inclusive o que s vezes teme confessar a si mesmo, o mundo seriatomado de tamanho fedor que todos ns acabaramos morrendo sufocados.6O mesmosensualismo de Klinivitch, Avdtia Igntievna, Tarassivitch e Ktich tambm aparece nessmesmo romance, onde o prncipe Valkovski define bem suas aspiraes aristocrticas ao diz

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    que no mundo pode-se viver de modo to alegre e belo sem ideais, que gosta de pompa,patente, hotel, imensas apostas no baralho, mas gosta principalmente de mulheres, e demulheres de todas as espcies: gosto at de uma libertinagem secreta, obscura, maisinusitada e mais original, at com um pouco de sordidez para variar [...].7Note-se que essemesmo gosto pela libertinagem secreta e obscura e pela sordidez tambm professado poroutro nobre: Svidrigilov, de Crime e castigo. Valkovski choca o narrador, seu interlocutor,contando com a mais absoluta sem-cerimnia segredos ntimos seus e da gente de seu mundo

    Conta a histria de uma dama da alta sociedade, uma condessa de uns 27 ou 28 anos, primeirclasse em beleza, e que busto, que postura, que andar!. No seu meio aquela mulher tinhaenorme importncia. As velhas mais orgulhosas e das virtudes mais terrveis a respeitavamadulavam... Uma nica observao... ou insinuao sua podia arruinar uma reputao, tal eramaneira como se colocara na sociedade; at os homens a temiam.8Aquela dama de tantasvirtudes e alvo de tanto respeito e admirao lanou-se em um misticismo contemplativo,alis tambm sereno e majestoso... E o que se viu? No havia uma devassa mais devassa queaquela mulher, e eu tive a felicidade de merecer inteiramente sua confiana. Numa palavra,era seu amante secreto e misterioso. Aquela mulher era to voluptuosa que o prpriomarqus de Sade poderia aprender com ela. Contudo, o mais intenso, o mais penetrante eemocionante naquele prazer era seu mistrio e a impudncia do engano. Aquela zombaria detudo o que a condessa propagava na sociedade como o mais elevado, inacessvel e inviolvee, por ltimo, aquela diablica gargalhada interior e a humilhao consciente de tudo o queno se pode humilhar, e tudo isso sem limite, levado quele ltimo dos ltimos graus, quelegrau que nem a imaginao mais ardente poderia conceber... , ela era o prprio diabo emcarne e osso, mas um diabo invencvel de to encantador. At hoje no consigo me lembradela sem xtase.9A imagem da condessa devassa, cuja histria Valkovski acaba de narrar,

    tem relao direta com a imagem de Avdtia Igntievna.Quem esse prncipe Valkovski? Um descendente de um ramo nobre arruinado, que come

    sua carreira casando-se com a filha de um comerciante exclusivamente pelo dote. Faz carreirno servio pblico, ocupando cargos que usa para enriquecimento e passando por cima detudo e de todos no af de acumular e ampliar sua fortuna. Valkovski rene em si o perfil dadecadncia da nobreza e do capitalismo ascendente, tem plena conscincia e orgulho da suacondio de burgus, diz que Tudo para mim, e todo o mundo foi criado para mim... Eu sme considero obrigado quando isto me traz algum proveito... Ame a si mesmo eis uma

    regra que eu reconheo. A vida uma transao comercial....10

    Esse individualismoexacerbado e narcsico o pragmatismo burgus que v tudo como objeto de proveito, delucro, e a viso da prpria vida luz desse pragmatismo que a considera mera transaocomercial. Esse hbrido de aristocrata decadente e novo burgus v o mundo como suavontade e por isso deseja que a vida seja longa, e declara que quer viver forosamente at onoventa anos.11Diante de tudo isso, a proposta de Klinivitch, no sentido de passarem osrestantes dois ou trs meses da maneira mais agradvel possvel, sem se envergonharem denada, contando em voz alta suas histrias e estabelecendo o reino da mais desavergonhadverdade, j encontra antecedentes no prncipe Valkovski. Essa verdade aristocrtica,experimentada por esse prncipe e pelo baro Klinivitch , na viso de Dostoivski, produt

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    da civilizao do sculo XIX.

    Essa experimentao da verdade passa pelo prprio Klinivitch, que agora, vivendo emnovas bases no inferno carnavalizado, livre das cordas podres que sustentam a sociedadl em cima, quer a verdade, quer que no se minta..., porque na terra impossvel vivee no mentir, pois vida e mentira so sinnimos.

    Aqui a mentira discutida no plano exclusivo do imaginrio, pois so personagensficcionais que a debatem. importante observar que, em Dostoivski, o imaginrio e o real

    esto de tal forma imbricados que a discusso da verdade passa diretamente das personagenficcionais para o prprio Dostoivski jornalista, como se verifica no artigo Alguma coisasobre a mentira (Nitchto o vrani), publicado em agosto de 1873 no Grajdanin, onde oautor escreve:

    Uma delicada reciprocidade da mentira quase chega a ser a primeira condio dasociedade russa: em todas as suas reunies, saraus, clubes, sociedades cientficasetc... Na Rssia, a verdade quase sempre tem carter perfeitamente fantstico... estna mesa h um sculo diante das pessoas e estas no a tocam, mas correm atrs do

    inventado justamente porque consideram a verdade coisa fantstica e utpica... cadaum de ns carrega consigo uma quase nata vergonha de si mesmo e da sua prpriacara.12

    J que a mentira a primeira condio da sociedade russa e a verdade sempre tem carterfantstico, ento necessrio que o plano do real seja substitudo pelo fantstico para que seinverta essa situao: a primeira condio no seja mais a mentira e sim a verdade, e osrussos no se envergonhem de nada. Essa passagem do plano real para o fantstico facilitadpor um elemento nada secundrio: o mundo real, que fica l em cima, sustentado por

    cordas podres, isto denuncia seu equilbrio precrio, que pode ser violado a qualquermomento, e sugere que muito tnue a fronteira entre o real e o fantstico, que convivem emplanos paralelos. Da ser fcil a Klinivitch e seus confrades aristocratas abolirem as taiscordas podres e institurem uma sociedade utpica ao modo aristocrtico, onde iro passaros dois ou trs meses que lhes restam na mais absoluta liberdade, sem se envergonharem dnada nem ferirem o princpio da verossimilhana, pois, como reconhece o prprioDostoivski jornalista, na Rssia as pessoas correm atrs do inventado em detrimento daverdade, que consideram coisa utpica e fantstica. Como a verdade que predomina no mundreal a da aristocracia, ela tambm que vai predominar no reino dos mortos, mas com um

    adendo: uma verdade desavergonhada, em perfeita sintonia com a verdade cnica da vidasem princpios acalentada pelo prncipe Valkovski, no havendo sequer necessidade deobservncia de qualquer preceito moral, como ocorre na sociedade do mundo real da qualesse reino dos mortos metonmia. Mais tarde, em artigo denominado A um mestre(Utchtieliu), publicado no Grajdaninde 6 de agosto de 1873, Dostoivski comenta que ascamadas esttica e intelectualmente desenvolvidas da sociedade russa soincomparavelmente mais devassas que o nosso povo grosseiro e to atrasado; nassociedades masculinas at velhotes calvos, depois de lautos jantares e altas discusses de

    assuntos de Estado, passam a temas estticos que transbordam rapidamente em libertinagemobscenidade tais que a imaginao popular jamais poderia conceber. Acrescenta que isso

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    acontece com muita frequncia e envolve todos os matizes desse crculo de pessoas tosituadas acima do povo.13

    O tema da provocao e experimentao da verdade envolve a histria do conselheiro dacorte Tarassivitch, que deu desfalque de um dinheiro pblico destinado a vivas e rfos eteve Klinivitch como cmplice. O prprio Klinivitch narra o fato e tambm se autodenuncicom a maior naturalidade. Tarassivitch no se perturba, e limita-se a dizer que tudo isso intil lembrar, uma vez que na vida h tanto sofrimento, tanto martrio e to pouco castigo.

    O mesmo tema envolve tambm Avdtia Igntievna, que acaba denunciada como caloteirapelo vendeiro. A experimentao dessas verdades acaba em um autodesmascaramento daaristocracia, pronunciado pelo baro Klinivitch, que se autodefine como um pulha dapseudo-alta sociedade, um dos baronetes sarnentos, filho de um generalote qualquer, esimplesmente ladro e canalha da pior espcie ps em circulao cinquenta mil rublos emnotas falsas em sociedade com Zifel, a quem denunciou para apoderar-se do dinheiro sozinho

    Contudo, h emBobkum conflito de verdades no qual se chocam essa aristocraciadecadente e o remanescente de uma aristocracia que ainda guarda alguns vestgios de

    princpio e dignidade. o caso do general Piervoidov, que tambm teve os seus pecadilhosem vida, mas no aceita a mxima do tudo permitido com que Klinivitch e companhiadesejam governar o reino dos mortos nas tais novas bases. Mas o general Piervoidov est sseus valores nada significam nesse mundo sem valores nem princpios, e por isso ele estirremediavelmente condenado ao silncio. Por tudo isso, a sociedade tumular emBobk ummetonmia da sociedade aristocrtica russa, atravs da qual se provoca e experimenta averdade do universo aristocrtico.

    A relao entre texto e contexto emBobkmanifesta-se ainda no tema da sensualidade, qu bem recorrente em vrias obras de Dostoivski e mereceu o captulo especial Os lascivosem seu ltimo romance Os irmos Karamzov. Quando, emBobk, Klinivitch proclama,Todos ns vamos contar em voz alta as nossas histrias j sem nos envergonharmos de nadaSerei o primeiro de todos a contar a minha histria. Eu, sabei, sou dos sensuais, o narradorregistra, Ergueuse uma berraria demorada e frentica, motim e alarido, e s se ouviam osguinchos impacientes e quase histricos de Avdtia Igntievna [...] Ah, como eu quero no menvergonhar de nada! [...] apesar de tudo l eu me envergonhava, mas aqui estou com umaterrvel, uma terrvel vontade de no me envergonhar de nada!.

    Essa sanha ertica da herona a representao ficcional hiberbolizada de uma prtica

    comum na sociedade aristocrtica russa, como o registra o prprio Dostoivski em artigoornalstico:

    [...] nas sociedades masculinas, compreendendo as mais altas rodas, at velhotescalvos e cobertos de medalhas [...] depois do jantar e de fartas conversas sobretodos os assuntos importantes, inclusive de matria de Estado, passam s vezes atratar em cascata de temas estticos. Esses temas em cascata, por sua vez,transbordam rapidamente em libertinagem, em obscenidade, em desbocamentos taisque a imaginao popular jamais poderia conceber. Isso acontece com muita

    frequncia entre todos os matizes desse crculo de pessoas to situadas acima do

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    povo. Eles gostam justamente das obscenidades e do requinte das obscenidades, eno tanto da palavra indecente quanto da ideia que ela encerra; gostam da vileza dadegradao, gostam exatamente do fedor...14

    essa libertinagem praticada nas altas esferas como norma de vida social que esses mortopretendem prolongar pelos dois ou trs meses de vida que lhes restam, porque, ao fim e aocabo, o tmulo representa alguma coisa.

    J Dostoivski produziu, metonimicamente, uma representao complexa desse mundo,

    fazendo imperar no reino dos mortos um clima de absoluta liberdade para que seusrepresentantes se revelassem integralmente e externassem sua ltima posio em vidanaqueles dois ou trs meses que lhes restavam. Recriou esse mundo a partir da perspectiva dsua finitude, mostrando-o humanamente pobre e desprovido de um sentido duradouro, ummundo sem um projeto maior, restrito a personalidades sem alcance histrico. Parodiou umaliteratura ertica de baixa qualidade esttica.

    Dostoivski atualiza formas da antiga stira menipeia, e estas se concretizam na absolutaliberdade de palavra e ao que o autor d quelas personagens aristocrticas, usando o

    mtodo socrtico da ancrise como meio de experimentao moral e psicolgica e fazendo-aexternar suas verdades, tendncias e hbitos, sua ltima posio diante da vida e do mundoE o que se verifica? Elas se revelam capazes apenas de continuar por inrcia o modo de vidaque na sociedade aristocrtica as caracterizava como classe usufruidora; agora, livres dasmnimas normas sociais de comportamento que lhes impunham as cordas podres, essesaristocratas s so capazes de propor o usufruto da liberdade total. Como antes nunca tiveramum projeto de vida respaldado em princpios e valores, agora no conseguem ir alm daproposta de abolir a vergonha e instituir o desnudamento total.

    importante assinalar que a proposta de desnudamento total, mesmo sem ter sido posta emprtica no reino dos mortos porque foi interrompida pelo espirro do narrador, efetua de fato desnudamento da sociedade aristocrtica dos vivos. A afirmao do filsofo PlatonNikolievitch, segundo quem os restos de vida se concentram apenas na conscincia e a vidcontinua como que por inrcia, mostra que a decomposio desses cadveres aristocratascomeara ainda em vida, pois, pelas palavras e atitudes de Klinivitch, Lebiezitnikov,Tarassivitch e Avdtia Igntievna, vemos que eles desprezavam a dignidade humana epassavam por cima dos princpios que norteiam uma comunidade humana guiada por um grauminimamente aceitvel de civilidade e decncia. Como para Dostoivski o homem decado

    que no tenta reabilitar-se perde a prpria dignidade, a condio humana e, com esta, a razode viver, esses mortos aristocratas perderam o sentido da dignidade humana e a razo de vive, por isso, no passam de cadveres em decomposio. E uma vez que esto afastados dequaisquer princpios morais e acham desnecessrio observ-los ainda que seja por purahipocrisia, resolvem no mentir e passar o tempo que lhes resta na mais desavergonhadaverdade. Por isso receberam com entusiasmo a proposta de todos tirarem a roupa e no seenvergonharem de nada. Neste ponto chocam-se duas verdades: a verdade desavergonhada daristocracia e a verdade do autor, que reage atravs do narrador: No, isso eu no posso

    admitir... Perverso em um lugar como este, perverso das ltimas esperanas... Deram-lhespresentearam-nos com esses lampejos e....

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    As reticncias falam por si; como se o autor dissesse: esses aristocratas ganharam depresente esses ltimos lampejos de vida e conscincia como uma experimentao e no foramcapazes de propor seno o mesmo hedonismo vazio, as mesmas trivialidades que marcaramsua existncia enquanto vivos. A nica nota destoante desse universo o general Piervoidovque resiste e protesta, porm seus protestos caem no vazio e s o narrador os ouve. Asimbologia do po que o narrador atira ao cho, dizendo que no pecado esfarelar po soba terra, sintomtica para qualificar esses aristocratas. Para Bakhtin, esse episdio evoca um

    simblica de tipo carnavalesco e est ligado aos temas da semeadura e da fecundao, isto ao tema da perpetuao e renovao permanente do ciclo vital. O resto de sanduche l emcima, coisa boba e inoportuna pelo lugar em que se encontra, evoca fertilidade, ao passoque os aristocratas l embaixo evocam apenas esterilidade, a esterilidade de sua classe, cujavida continua por inrcia, segundo palavras do filsofo tumular Platon Nikolievitch.

    Carentes de um princpio e de valores que lhes justifiquem a existncia, desprovidos deiniciativa criadora, esses aristocratas, que so representados por Dostoivski em criseprofunda, s conseguem reproduzir sua rotina social, os mesmos velhos modelos decomportamento que lhes caracterizaram a existncia, agora reduzida a dois ou trs meses deresto de vida. Que continua por inrcia.

    TRADUO E LINGUAGENS

    Quando se traduz fico no se traduz lngua, mas aquilo que uma individualidade criadorao autor, faz dela, isto , traduz-se linguagem, ou melhor, linguagens, medida que cada falant sujeito de seu prprio discurso, tem sua prpria dico, uma nesga do universosociocultural e sua linguagem marca sua pertena a certo segmento social e exprime seu grau

    de escolaridade, seu nvel cultural e at sua sade mental ou a falta dela. Portanto, numa obrade arte literria as modalidades de linguagem variam segundo o nmero de falantes e suasrespectivas peculiaridades, e cada um destes tem seu prprio padro de linguagem. Cabe umdestaque especial para o narrador, que geralmente algum que usa o padro erudito euniversal de linguagem, o que facilita a vida do tradutor, que domina a norma culta da lngue a emprega em seu ofcio tradutrio. Mas nem tudo so flores na traduo da linguagem dosnarradores, pois h narradores que mesclam mais de um ou vrios padres de linguagem emseu discurso, assim como h narradores que so tambm protagonistas da obra e a clareza ouobscuridade de sua linguagem depende do seu estado de esprito, de seu equilbrio ou

    desequilbrio, do maior ou menor grau de tenso que experimenta enquanto narra. No casoespecfico de Dostoivski, a fluidez ou a sinuosidade do discurso do narrador estodiretamente vinculadas ao clima psicolgico da narrativa, ao grau de proximidade oudistncia entre narrador e personagens.

    SENTIR A LNGUA

    O russo costuma falar de uma coisa que me agrada muito: tchuvsto yazik, que traduzo oracomosensibilidade lingustica, ora comosentir a lnguaquando usada nas conversas

    comuns, ousentir a linguagemquando se trata de literatura. Sentir a lngua ou linguagem do

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    outro sentir o outro, entrar em alguma empatia (ou antipatia) com ele para tentar captar asnuances de sua personalidade. Quando traduzimos literatura entramos em atividade estticaporque traduzimos a arte da palavra, e essa palavra do outro. A traduo umacompenetrao na alma e na linguagem do outro, cujo estado dalma o tradutor precisavivenciar, colocando-se no lugar dele para senti-lo at nos mnimos gestos.

    Ento, sentir a lngua de onde se traduz compenetrar-se totalmente, embeber-se dela,vivenciar sua sonoridade, seu ritmo, pensar com seus mltiplos recursos morfolgicos e

    sintticos, captar e vivenciar a afetividade e tambm a hostilidade que emanam das falas daspersonagens. Em suma, entranhar-se na lngua de partida, encarnar-se, despersonalizar-setemporariamente nela, diluir-se na dico dos seus falantes e assumir seu gestual como umator que representa falas alheias. Mas para que a traduo acontea, eu como tradutor noposso permanecer em estado de eterna despersonalizao no outro, preciso sair dessacompenetrao para retornar a mim mesmo, como sugere Bakhtin, para me reencarnar em mediscurso na minha lngua, em consonncia com seus mltiplos valores, para produzir umatraduo em bom portugus, com as formas de expresso tpicas do nosso modo brasileiro defalar e escrever.

    PSIQUISMO E RITMO

    A fala de cada indivduo traduz o ritmo de funcionamento do seu psiquismo, sua fluncia operturbao manifestam-se em sua sintaxe, ora coerente e harmoniosa, ora incoerente edescontnua, dependendo do estado de sade mental ou de esprito de cada falante. IvanIvnitch, narrador deBobk, acusado de falta de sobriedade e de loucura, passa todo oprimeiro segmento da narrativa se debatendo entre essas acusaes, procurando exemplos qu

    lhe permitam refut-las. Mesclando momentos de tranquilidade apenas razovel com umreceio que parece congnito (sou um homem tmido), articula um discurso alicerado numasintaxe descontnua, por vezes atabalhoada e tensa, em um ritmo que traduz o estado do seupsiquismo abalado pelas insinuaes de bbado permanente e louco, de sua psique angustiad

    Bobk uma narrativa marcada por uma experincia de procedimento de construo dasfalas das personagens diretamente vinculadas ao seu estado psquico, procedimento esteiniciado na literatura russa por Ggol com Akki Akkievitch, protagonista de O capote, ePoprschin, protagonista e narrador doDirio de um louco. Dostoivski aprofundou eradicalizou tal procedimento com o senhor Golydkin, personagem central e narrador de Oduplo, e o manteve no restante de sua obra. No caso deBobkesse procedimento idntico.O narrador, autodefinindo-se como um homem tmido, resiste com certa hesitao spalavras com que o outro o espreita, avalia e julga, e essa hesitao provoca uma tenso nasintaxe, que se reflete nos ziguezagues e na forma sinuosa de sua linguagem, na obnubilao dsentido de algumas de suas frases, nos retardamentos das prprias palavras. Contudo, apenetrao por parte do tradutor nesse estado de linguagem no se deu de chofre, logo noincio do processo da traduo. Ela ocorreu de forma gradual, no rduo processo de anlise,atravs do qual fui penetrando no mago do discurso dostoievskiano e perscrutando os seus

    sentidos, e, medida que me aprofundava na anlise e percebia os sentidos da fala do

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    narrador, compreendia melhor os sentidos do texto e a introduzia as modificaes que oprocesso de interpretao me impunha. Assim, fui empreendendo uma retraduo do textoconcomitante ao processo da anlise do discurso ali veiculado; essa anlise foi me revelandoo sentido de algumas passagens para o qual eu no eu havia estado suficientemente atento noincio da traduo e que s consegui perceber na articulao s vezes catica da forma. Istome levou a cometer alguns pecadilhos contra a chamada boa norma da lngua, como noemprego contguo das duas adversativas mase no obstantena passagem mas, no obstant

    at de louco me fizeram, que obedece rigorosamente ao estado psicolgico do narrador-protagonista. Usar aqui o rigor da lngua, evitando a dupla adversativa, implicaria noentender o movimento pendular em que se debate o protagonista entre a resistncia e aaceitao da palavra qualificativa e judicativa do outro, ou melhor, significaria no entenderanular o processo dialgico. Em sua traduo de O senhor Prokhartchin(1846), BorisSchnaiderman observa que os polimentos de estilo seriam catastrficos para essa obra dasmais estranhas de Dostoivski, e que o embelezamento iria ferir o conto no que ele tem demais caracterstico. E acrescenta que a prpria desarticulao da linguagem [...] coincidecom a desarticulao do mundo de Prokhartchin,15isto , a forma de ser da personagem estem homologia com a forma de sua manifestao, harmonizando os planos do contedo e daexpresso. o que ocorre com o protagonista Ivan Ivnitch emBobk: a articulao sinuosade sua linguagem est em homologia com o modo sinuoso como ele resiste palavra do outroUm dos exemplos disto est ilustrado na passagem em que Ivan Ivnitch reproduz as palavrascom que um crtico compara Dostoivski a um louco, e sai com uma tirada em que secombinam aceitao e resistncia: V l, mas, no obstante, logo assim, to direto naimprensa?.

    Nesta passagem ficam claras as vacilaes e evasivas do falante, que se debate entre

    aceitar o discurso qualificativo do outro e oferecer-lhe algum tipo de resistncia. Da a formsinuosa da sua fala: primeiro usa o pronome pessoal neutro de terceira pessoa on, dando aideia de abrangncia de toda a qualificao anterior a ele aplicada, e combina esse pronomecom a partcula de motivao e estmulo da lngua russapust, criando o ncleo oracional semverbo On pust, dotado de uma expressiva gama de sentidos, e que traduzimos por v l,produzindo a impresso de aceitao resignada de toda a afirmao anterior. Mas essaexpresso logo seguida da conjuno adversativa n, que, em si, j quebra a expectativadessa aceitao resignada; essa adversativa vai combinar-se com a partcula expletiva vid

    cuja funo, aqui, reforar a expressividade da enunciao e inserir nela o embrio da ideide rejeio que se completa com a insero da partcula de interrogao e modo kak,conjugada com a adversativaj, formando a expresso vid kak j, que traduzimos por assimSegue-se mais uma adversativa, odnko, e desse modo se completa a primeira parte desselabirinto em que se constitui a fala do protagonista: On pust, n vidkak j, odnko, onde scombinam um pronome pessoal neutro, uma partcula de motivao e estmulo, uma partculaexpletiva e trs conjunes adversativas, o que caracteriza o movimento de aceitao eresistncia do protagonista fala do outro, movimento esse traduzido na sinuosidade do seudiscurso, que vai desaguar na expresso que simula perplexidade e rejeio: to direto na

    imprensa?.

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    Em minha primeira traduo a passagem completa saa assim: V l, mas, como quepode, ir logo metendo na imprensa?. No se tratava de traduo mas de interpretao, o queevidentemente, no a mesma coisa: mantinha-se o sentido geral, mas se abolia o estadopsicolgico do protagonista, traduzido na sinuosidade da articulao de sua fala, que noadmite amaneiramento. Depois fiz uma segunda traduo: V l, mas olhe o jeito, e aindaassim to direto na imprensa?. Esta j estava mais prxima do estado psicolgico doprotagonista, porm era clara demais para tal estado. Enquanto eu analisava o texto e tentava

    vrias outras sadas, cheguei a: V l, mas, no obstante, logo assim, to direto naimprensa?. Esta me agradou bastante, j no trazia verbo, e acabei optando por ela, porque a contiguidade de no obstante, logo assim e to direto me dava uma sensao maistosca, prxima do real estado psicolgico de Ivan Ivnitch.

    O ritmo das hesitaes do narrador no primeiro segmente da narrativa ditou o processo derecriao de sua linguagem tensa. Mas no dilogo dos mortos no h mais tenso, os discursoali proferidos, exceo feita apenas fala do general Piervoidov, so discursos de pessoalivres das amarras da vida terrestre; no h mais uma linguagem, como no primeiro segmentda narrativa, mas linguagens falas que caracterizam a condio social, cultural e sexual dcada ex-vivo.

    Em qualquer traduo essencial que o tradutor penetre nos subterrneos da linguagem; nocaso especfico de Dostoivski, imprescindvel que procure, como j escrevi, sentir alngua, cada palavra, auscultar as nuances de cada voz que participa do processo dialgico.So coisas muito difceis, mas um longo convvio com a lngua e, especialmente, com alinguagem de um autor da complexidade de Dostoivski permite ao tradutor umafamiliarizao crescente com sua riqueza e abre caminho para que ele perceba o tratamentoque essa riqueza recebe nele, Dostoivski, e em outros autores. Dostoivski um mestre

    insupervel no emprego de partculas da lngua russa, que aparentemente no dizem nada masque, sob sua batuta, revivificam sentidos que pareciam adormecidos nos subterrneos dalngua. O emprego de tais partculas muitas vezes cria a impresso de algo mal escrito, dedisplicncia do autor, e pode desorientar sobremaneira o tradutor. Da a importncia de sentlas, interpret-las, pois s assim poder atinar com a finalidade do escritor ao em preg-las.Foi o que tentei fazer com a presente traduo deBobk.

    A traduo um processo contnuo que parece terminar quando o tradutor pe ponto finalem seu trabalho, mas que retorna sempre que ele o rel, pois o distanciamento entre o ato da

    traduo e o ato de sua leitura j em livro pelo prprio tradutor desperta aspectos da suasensibilidade que pareciam adormecidos durante a traduo. Alm do mais, assim como oautor, tambm o tradutor visa a um leitor, cuja sensibilidade e experincia so fundamentaispara a recepo da traduo e seu posterior aperfeioamento, o que nos sugere a ideia de queo texto traduzido um texto inacabado, aberto a modificaes. A traduo de fico umaproduo potica, cujo resultado final a reproduo da obra em sua unidade aberta que, poser uma unidade potica, como afirma Meschonnic, da ordem do contnuo pelo ritmo e pelprosdia.16

    Da a importncia de se considerar a traduo como um processo e a obra traduzida comouma obra aberta.

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    1Erasmo de Roterd,Elogio da loucura , traduo de Paulo M. Oliveira, Coleo Os Pensadores, vol. X, So Paulo, AbriCultural, 1972, pp. 68-9.

    2Montesquieu, Cartas persas, traduo de Renato Janine Ribeiro, So Paulo, Pauliceia, 1991, p. 137.

    3Machado de Assis,Memrias pstumas de Brs Cubas, So Paulo, W. M. Jackson, 1952, p. 101.

    4Plato,Fdon , traduo de Jorge Paleikat e Joo Cruz Costa, Coleo Os Pensadores, vol. II, So Paulo, Abril Cultural,1972, p. 74.

    5Idem, p. 70.6Fidor Dostoivski,Humilhados e ofendidos, em Obras completasem trinta tomos, Leningrado, Ed. Naka, 1972, p.

    361.

    7Idem, p. 365.

    8Idem, ibidem.

    9Idem, pp. 364-5.

    10Idem, p. 365.

    11Idem, p. 366.

    12Fidor Dostoivski, Algo sobre a mentira, em Obras completasem trinta tomos, op. cit., tomo XXI, p. 119.

    13Fidor Dostoivski, A um mestre, em Obras completas em trintatomos, op. cit., tomo XXI, p. 116.

    14Idem, ibidem.15Boris Schnaiderman,Dostoivsk i: prosa poesia, So Paulo, Perspectiva, 1982, pp. 58-9.

    16Henri Meschonnic,Potica do traduzir, traduo de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich, So Paulo, Perspectiva,2010, p. xxxi.

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    SOBREBOBK

    ikhail Bakhtin1

    pouco provvel que erremos se dissermos queBobk, por sua profundidade e ousadia

    uma das mais grandiosas menipeias em toda a literatura universal. Mas aqui no nosdeteremos na profundidade do seu contedo, pois estamos interessados nas particularidadesdo gnero dessa obra.

    So caractersticos, acima de tudo, a imagem do narrador e o tomda sua narrao. Onarrador uma pessoa2 encontra-se no limiarda loucura (distrbio mental). Afora issporm, ele no um homem como todos, isto , que se desviou da norma geral, do cursonormal da vida, ou melhor, temos diante de ns uma nova variedade do homem do subsoloSeu tom vacilante, ambguo, com ambivalncia abafada e elementos de bufonaria satnica

    (como nos diabos dos mistrios). Apesar da forma exterior das frases truncadas curtas ecategricas, ele oculta sua ltima palavra, esquiva-se dela. Ele mesmo cita a caracterizaodo seu estilo, feita por um am