Blecaute - Ano 2 - Nº 5 - Abr 2010
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BBBBLECAUTE Uma Revista de Literatura e Artes
DON QUICHOTTE - SALVADOR DAL
Ano 2 N5- ABR. 2010
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BLECAUTE Uma Revista de Literatura e Artes
Campina Grande (PB) - Ano 2 N5 Abr. 2010
ISSN: 2238-930X
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Copyright 2010, Ncleo Literrio Blecaute All Rights Reserved.
permitida a reproduo total ou parcial desta edio de Blecaute; Os textos ou fragmentos de textos,
quando reproduzidos, devem ter suas referncias (autoria e lugar de origem da obra) devidamente
citadas, conforme preconiza a legislao vigente no Brasil acerca dos direitos autorais (Lei 9.610/98); As
opinies emitidas nos textos so de responsabilidade exclusiva dos autores; vedado o direito de qualquer
cobrana pela reproduo desta edio.
Periodicidade: trimestral
Capa: Don Quichotte Salvador Dal
Fonte: Virtual Museum of Don Quixote - http://www.donquijote.org
Editores:
Bruno Rafael de Albuquerque Gaudncio
Janailson Macdo Luiz
Joo Matias de Oliveira Neto
800 R454 Revista Blecaute: uma revista de Literatura e Artes, ano. 2,
n. 5 (abr. 2010) Campina Grande, 2010. 68 p.: il. color.
ISSN: 2238-930X Editores: Bruno Rafael de Albuquerque Gaudncio,
Janailson Macdo Luiz, Joo Matias de Oliveira Neto. 1. Literatura. 2. Literatura Ensaios. 3. Literatura -
Contos. 4. Literatura Poemas. I. Ttulo.
21. ed. CDD
Blog:
www.revistablecaute.blogspot.com
Twitter:
https://twitter.com/revistablecaute
Fale conosco:
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NDICE
EDITORIAEDITORIAEDITORIAEDITORIALLLL
As feiras, os feirantes e os foras-do-eixo
Os editores 5
CONTOCONTOCONTOCONTO
Exploses
Ricardo Bruch 8
COLUNACOLUNACOLUNACOLUNA
Pedro Nava Franklin Jorge
11
POEMASPOEMASPOEMASPOEMAS
Quando o Mar Invade o Cais, Retrato em Preto e Branco, Em Mim, Abutre Voraz, Poesia (In)Perfeita e FLOR bela
Mirtes Waleska Sulpino
13
ENSAIOENSAIOENSAIOENSAIO A Fico Cientfica, os Robs e a Modernidade Primeira Parte Joo Matias de Oliveira
19
CONTOCONTOCONTOCONTO
Meia Luz Janailson Macdo Luiz
25
HUMORHUMORHUMORHUMOR
A tima Tentao Valdnio Freitas
31
POEMASPOEMASPOEMASPOEMAS
Olhos, Fragmentos da Paixo, Criana Chorando, Semntica e Soneto sem Despedida Anderson Braga Horta
32
ENSAIOENSAIOENSAIOENSAIO A Palavra Perplexa: Dificuldades de Ser Escritor no Brasil Bruno Gaudncio 39
ESTANTEESTANTEESTANTEESTANTE
Leite Derramado Chico Buarque Jomar Ricardo da Silva
49
Os Detetives Selvagens Roberto Bolao Luis Henrique Cunha
51
POEMASPOEMASPOEMASPOEMAS
Jurssico, Sir Biu, Itapoan, Penal e A Boceta
Ed Porto 53
CONTOCONTOCONTOCONTO
Quitria
Raquel Soares 58
ENSAIOENSAIOENSAIOENSAIO
O(s) Duplo(s) em Benjamim
Ablio Pacheco 63
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uma revista de literatura e artes Campina Grande-PB, Ano 2, n. 5 , p. 5
| Editorial Abril de 2010
AS FEIRAS, OS FEIRANTES E OS FORAS-DO-EIXO
UMA DAS MANEIRAS MAIS EXPRESSIVAS de divulgao literria no mundo moderno so as
chamadas feiras ou festas literrias. Nesses encontros, escritores, editores, agentes
literrios e leitores interagem de uma maneira nica, ocupando os mesmos espaos,
consumindo a literatura no mbito das sociabilidades.
O mais conhecido evento desse gnero, realizado no Brasil, a Festa Literria
Internacional de Paraty (FLIP), organizada todos os anos na cidade homnima, localizada
no Estado do Rio de Janeiro. A FLIP, cuja primeira edio ocorreu em 2003, j nasceu como
um evento tradicional e vem inspirando o surgimento de encontros similares em todo o
territrio brasileiro.
A Paraba, por exemplo, nesse incio de 2010, foi contemplada com a primeira edio
de dois eventos literrios que deram um novo gs ao sonolento universo literrio paraibano.
O primeiro, intitulado Encontro de Literatura Contempornea, realizou-se em Campina
Grande PB entre os dias 14 e 15 de fevereiro, durante o 19 Encontro da Nova
Conscincia. Encontro organizado pelos editores da Revista Blecaute, a empreitada marcou
o surgimento do Ncleo Literrio Blecaute. J o segundo, intitulado Feira Literria de
Boqueiro (FLIBO), ocorreu entre os dias 18 e 21 de maro, em Boqueiro PB, organizado
pela Associao Boqueiroense de Escritores (ABES).
O Encontro de Literatura Contempornea, cujo tema central foi Literatura
Contempornea: Identidades e Militncias, contou com nomes destacados da literatura
paraibana e brasileira, que estiveram presentes em palestras, mesas redondas e tambm
integrando o pblico, a saber: Maria Valria Rezende, Rinaldo de Fernandes, Ricardo
Kelmer, Astier Baslio, Antnio Mariano, Antnio de Pdua, Ed Porto, entre outros. O
pblico surpreendeu os organizadores. Em pleno carnaval, compareceram um bom nmero
de pessoas, prestigiando o evento at o fim das atividades de cada dia e levantando questes
sempre oportunas e que muito enriqueceram as explanaes dos palestrantes.
O recm-criado Ncleo Literrio Blecaute tem como propsito gerar espaos de
debate e produo de literatura na cidade de Campina Grande, assim como a promoo, nos
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prximos anos, de uma srie de eventos, tais como feiras literrias, lanamentos de livros,
saraus, palestras, procurando incitar a criao de lugares de agitao cultural onde a
literatura seja privilegiada.
Tal inteno sobrevm de uma vontade latente do Ncleo em expandir, para alm das
fronteiras acadmicas, o acesso literatura e, por sua vez, queles que a fazem acima de
quaisquer livreiros, editores, grficos ou atravessadores: os escritores. Nmero mirrado (se
comparado a outros estados) em nossa querida Paraba, talvez. Porm, no deixamos por
isso de nos lanar at o vo de luz do que tem se transformado estas feiras literrias: um
espao nico de interao entre leitor-escritor. E cada vez mais, a exemplo da FLIBO e do
Encontro de Literatura Contempornea, temos tentado subverter o crculo mtuo de elegias
a escritores e intelectuais de outras partes do Brasil para nos mostrarmos enquanto
identidade nica e crescente. Uma identidade, por certo, muito distinta dos conhecidos
movimentos regionalistas de 30 ou 45, estigma pelo qual ficaram retratados os autores
nordestinos como essencialmente regionalistas durante longo tempo. Estigma vencido por
uma nova roupagem do regionalismo luz da globalizao e da internet, bem como dos
nordestinos no-regionalistas, os quais buscam uma voz urbana e distinta, ou at mesmo
uma pluralidade de vozes, em sua literatura.
Como empreitada inovadora, a FLIBO Feira Literria de Boqueiro
surge do interior da Paraba, na pequena e agradvel
Boqueiro, cidade que abriga pouco mais de 15 mil habitantes, com o intento de levar, aos
seus participantes, muito mais do que as guas que atravessam as matas em direo aos
municpios vizinhos. Desse modo, o evento serviu como canal para a transmisso de cultura
e de uma boa vontade de transformar o ainda malfadado acesso leitura nas regies tidas
como perifricas do nosso pas.
Durante a FLIBO, foram organizadas palestras, mesas-redondas e lanamentos de
livros, cujos convidados (Andr de Sena, Brulio Tavares, Damio Cavalcante, etc) no
deixaram a dever no quesito diversidade, empreendorismo e coragem. bonito ver a ABES
(Associao Boqueiroense de Escritores) movimentar a terra das guas e das letras com
um solavanco vivaz de nomes reconhecidos, escritores paraibanos tornados nacionais e
nomes novos e promissores que, sobretudo, ainda esto por se reconhecer. ainda mais
bonito conferir uma forma audaz de revoluo, de descentramento do eixo Rio-So Paulo,
tirando a patente de leitores, escritores e agitadores culturais tupiniquins como sendo
exclusivos do Sul e Sudeste do pas.
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Mas, nada novo, querido leitor. Quando nem bem terminados os eventos literrios de
que participamos, eis o convite para uma possvel parceria entre o Ncleo Literrio
Blecaute, a Revista Blecaute e o Natora Coletivo .
Atravs do pessoal do Natora descobrimos uma outra forma de fugir do eixo em termos de
cultura e arte independente. O Natora prevalece no cenrio cultural de Campina Grande
PB como um coletivo onde se renem bandas independentes de todos os gneros para um
verdadeiro intercmbio regional. Mandam-se bandas independentes, crias da nossa terra,
como Sex On The Beach, Cabrura e Seu Perereira e Coletivo 401 para outros estados e, em
troca, bandas dos respectivos estados so enviadas para fazer shows em Campina Grande.
Tal parceria est diretamente ligada a um coletivo maior, cujo nome sugestivo, inclusive
para este editorial, Fora do Eixo . Na mesma perspectiva,
o Fora do Eixo busca ser uma voz independente no cenrio cultural nacional para este
intercmbio de arte e cultura que, como bem demonstra o prprio nome, est fora do eixo,
isto , fora do eixo comercial, fora do eixo Rio-So Paulo, fora de qualquer eixo, afinal de
contas. No seria essa tambm nossa ideia, iniciada com o Encontro de Literatura
Contempornea e influenciada pela Festa Literria de Boqueiro? Seguimos o contato com o
pessoal do Natora Coletivo, esperando boas perspectivas desta parceria.
O certo, talvez, seja mesmo tentarmos novas perspectivas de insero no mercado
literrio brasileiro, para alm de um apartamento barato em algum bairro da Vila
Madalena, em So Paulo. Sermos os foras do eixo literrios. As feiras literrias locais,
bienais do livro, os encontros e simpsios, e os coletivos culturais, so mais do que um grito
de independncia. So novos crculos que buscam uma nova identidade. Dessa vez, fora do
eixo.
Os editores
P.S. Elogio distinto a Blecaute: Boa nova Acabou a excelente e j saudosa "agulha", revista online mantida por vrios anos pelo Cludio Willer de So Paulo e pelo Floriano Martins, de Fortaleza. Mas, como a indicar que a inquietao nunca some, surge uma outra, muito interessante, vinda l de cima, da Paraba. "Blecaute" o timo nome que os autores deram publicao (pode ser essa palavra pra uma revista virtual?). Acabo de dar uma navegada pelo material. No tive tempo de analisar com vagar, mas me pareceu contedo dos mais promissores. Alberto Guzik In: http://os.dias.e.as.horas.zip.net/arch2009-12-27_2010-01-02.html
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| Conto
EXPLOSES
Por Ricardo Bruch
SEGURAVA UM LIVRO FECHADO nas mos. Encarava o cho como se as letras estivessem escritas
nele. Paria mil pensamentos calados e uma nsia de fazer algo se apoderou da minha
espinha na forma de um calafrio. No jardim surgiam pedaos de caule, de folhas, de botes e
ptalas, muitas ptalas para ornar minha sombra; insetos me rondavam como se eu fosse o
Sol; o playground destinado s crianas fora desabitado no dia de sua criao. Todas as
crianas desse prdio so velhas, esto doentes ou mortas dentro dos quartos coloridos e
recheados de objetos completamente inteis.
No primeiro patamar via ps se movendo sem sair do lugar, ps pequenos.
Certamente os dedos tambm so midos, pensei enquanto observava um par de canelas,
joelhos e coxas grossas, brilhantes de suor. Apenas metade do corpo se apresentava aos
meus olhos, a outra parte: um rabo de cavalo, um pedao de brao, um naco de ombro,
surgia para instigar minha curiosidade. De dentro da academia, o motor da esteira fazia
coral com os aparelhos de televiso dos andares superiores. E os pssaros? Sei que eles
esto aqui em algum lugar, sussurrava s ptalas aos meus ps. Alheias minha ateno,
as plantas cresciam, cresciam e cresciam em tempo absurdo, tempo o suficiente para no
reconhecer mais as paredes, a churrasqueira, o playground nunca usado. Uma fagulha de
lembrana de todo o lugar pinicava a sola do meu p; contudo no via pssaros, nunca os vi
por aqui. A esteira insistia em cantar a mesma melodia pungente de parafusos e motores,
silenciando completamente o eco dos pssaros da minha imaginao.
Estiquei as pernas, os braos se espreguiaram como se tivessem vida prpria e
quisessem se despregar do meu tronco. Me levantei com um nico pensamento em riste, um
repeteco duma idia muda, igual a todas as outras que me vieram hoje. Estranho, disse.
Muito estranho, concordei. Tirei o tnis, a meia, escondi-os com o livro fechado debaixo do
banco de pedra. Provavelmente esse ato de esconder o tnis debaixo do banco
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completamente desnecessrio, j que ningum tem tempo para andar em jardins. Caminhei
olhando para cima, no encontrando nuvens, bales, anjos, havia apenas rostos
preocupados, flagrando-me a caminhar com os ps descalos pelo jardim do prdio. Sentia a
terra fria e molhada sob mim. Tinha vontade de arrancar a roupa e rolar nu na grama, feito
um co. Queria me sujar inteiro de terra, sentir a natureza grudada no meu corpo, ser
bicho. Mas seguia educadamente, pousando os ps com zelo no solo para no fazer estragos
na grama, que mal respirava e se pudesse reclamaria do meu peso.
Contornando o edifcio, ouvi um estrondo ao alcanar a porta da entrada.
O eco da exploso ressoou no ar por muito tempo, como se vrias coisas explodissem
ao mesmo tempo: vrias exploses dentro de uma s.
Aps um segundo esperei o nascimento de um grito que no veio, mas certamente
existiu na memria, na figura pela metade que andava na esteira e expelia tempestades
pelos poros. Da frente do prdio no conseguia distinguir se a esteira continuava se
movendo, se continuavam gemendo os motores, os parafusos, a lona infinita. Com a
exploso tive certeza que pssaros no existem, pois nenhum voou amedrontado, nem
gritou, nem saiu do ninho para ver o que aconteceu com o grupo de pessoas que rolava
ladeira abaixo.
Apertei o boto do interruptor, avisando o porteiro que queria sair. Talvez o porteiro
fosse um pssaro, pois no tinha ningum atrs do vidro fosco. Pulo os limites do porto e
dou por mim descalo entre a multido, seguindo a exploso pela calda de seus ecos, pela
reverberao de suas camadas infinitas.
Voc viu o que aconteceu? uma mulher perguntou.
No. Apenas ouvi uma exploso. menti. Pois foram muitas exploses, que se
sustentavam por todos os cantos e que explodem ainda agora.
Espero que no tenham crianas envolvidas. disse outra mulher.
Ou cachorros disse outra, correndo com um poodle entre as mos.
O que aconteceu? Perguntou uma senhora enquanto caminhvamos com passos
rpidos, descendo a rua para topar de cara com o centro do universo, com o intestino do
mundo recm explodido.
Ainda no sei. Ouvi dizer que tem crianas e animais envolvidos.
Que horror! levou as mos boca.
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Me aproximei do aglomerado de pessoas em volta de algo no identificvel; sirenes
pareciam soar distantes, distantes demais para tirar a curiosidade do povo que estava ali
sem saber direito porqu. Sirenes distantes demais para que pudessem ouvir:
No se aproximem. Pode explodir de novo.
Sirenes distantes demais.
Subitamente, no sei se foi uma nova exploso ou um de seus ecos que ensurdeceu o
barulho da sirene e do buchicho. Senti-me suspenso no ar entre objetos e pessoas sem asas.
No sentia nada, apenas voava entre nuvens e sonhos azulados, que no tiveram tempo de
nascer. Distantes, pequenos pontos negros brincavam entre as estrelas.
Pssaros! gritei, aconchegado nos braos do meu pai.
______________________________________________
RICARDO BRUCH (So Paulo) Escritor. Seu conto denominado Mariana foi selecionado para figurar na antologia Universo Paulistano II.
A estria de seu primeiro livro est prevista para o segundo semestre de 2010. Blog http://bostoievski.blogspot.com
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| Coluna
PEDRO NAVA
Por Franklin Jorge
MINEIRO DE ASCENDNCIA CEARENSE, piauiense e pernambucana, Pedro Nava passou sem
transio, segundo o critico Wilson Martins, da categoria algo ambgua de escritor bissexto
para o plano mais rarefeito dos grandes escritores, ao lanar-se memorialista, publicando
em 1973 Ba de Ossos, livro que monopolizou os crculos culturais e o cumulou de prmios
e do reconhecimento dos leitores que sufragaram com avidez a sua arte literria plena de
experincia vivida e de cultura adquirida.
Privilegiado desde as suas origens por uma rica e pletrica vivncia pessoal e
ancestre, sua estria, j na compulsria, foi um desses acontecimentos extraordinrios,
nicos e inesquecveis que somente muito raramente ocorrem no mundo das letras, ao
resgatar, pela escrita, a memria de antigos vivos, dando-lhes, a esses mortos magicamente
ressuscitados atravs do dom esttico, na feliz e exata expresso drummondiana, uma
segunda vida a imortalidade que a arte proporciona.
Sua obra de memorialista compe com requintes de esteta um novo e impressionante
paradigma literrio que o aproxima sem despersonaliz-lo da tcnica narrativa de
Proust, autor tantas vezes citado em seu livro, pois em ambos grande e misterioso o
fascnio exercido pela memria involuntria, essa grande descoberta proustiana que faz de
Nava mais que um mero registrador de lembranas suas e alheias. Um grande criador
literrio.
Conheci-o no Rio, numa poca imediatamente anterior sua glorificao pblica,
como escritor, condio havia muito reconhecida por todos, nos mais exclusivos e seletos
crculos intelectuais do Pas, que no lhe sonegavam aplausos ao poeta bissexto, autor de
uma obra-prima do verso, ao artista das formas cambiantes, ao mdico e ao notvel
professor universitrio autor de teses cientificas consideradas por seus pares da Academia.
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uma revista de literatura e artes Campina Grande-PB, Ano 2, n. 5 , p. 12
Cercado de lembranas materiais e imateriais, vivendo sem filhos ao lado de Dona
Antonieta, em seu recanto da Glria, Pedro Nava iluminava a conversa, para ele uma arte
inexcedvel, com esprito e bom humor peculiares. Pareceu-me, naquele primeiro encontro,
um desses artistas da palavra que so igualmente gro-senhores, por suas maneiras
aristocrticas, polidez, cultura humanstica, origem e tradio, palavra que lhe era to cara
e naturalmente destituda de pedantismo.
A conversa fluiu, naquela manh inesquecvel, cheia de evocaes literrias e
geogrficas, gastronmicas e histricas, que abarcavam desde Proust, Cascudo e a
alimentao no Brasil, Gilberto Freyre e o luso-tropicalismo, o Nordeste como um pas
muito antigo, Mrio de Andrade e Natal, a poesia que imortal e pobre e, num dado
momento, Pernambuco e os Wanderley da Fonseca, minha origem paterna que ele associou
imediatamente aos velhos troncos do Engenho Mangueira e a outros troncos venerveis.
Nava recebeu-me com aquela espcie de ateno e curiosidade que encantam aos
jovens em seus relacionamentos com homens mais velhos, aos quais, por sua cultura
e experincia, instintivamente admiramos, neles reconhecendo essa espcie de farol ou
de mestre, na exata e simblica acepo baudelairiana do termo.
______________________________________________ FRANKLIN JORGE (Rio Grande do Norte) - Escritor e Jornalista. Vencedor do Premio Luis Cmara Cascudo em 1998 com o Livro: Fices
Frices Africes (1997).
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| Poemas
POEMAS DE MIRTES WALESKA SULPINO
QUANDO O MAR INVADE O CAIS
Quando meus olhos os teus encontraram
Um sorriso faceiro dos teus lbios brotou
Nossas almas que h tanto vagavam,
Reencontraram-se aps o escuro que nos assombrou.
Quando meus lbios em tua boca encostaram,
Um tremor absurdo em mim se formou,
Minhas mos j no me obedeciam,
E do teu corpo se apoderou.
Quando do nada me despertastes,
Uma fonte de vida de minhas entranhas jorrou.
s o meu refgio, meus momentos perfeitos,
Minha luz que irradia.
Quando nossas almas se amaram,
No era mais meu corpo que tremia,
Era a eternidade preenchendo minhas noites vazias,
Enchendo de vida o meu dia, e minh'alma de poesia.
Quando em mim tu te perdias,
Era o amor que te encontrava.
O mesmo amor que me prometias,
E que a ti eu dedicava.
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uma revista de literatura e artes Campina Grande-PB, Ano 2, n. 5 , p. 14
E ainda, quando de mim repleta ests,
A lua brinca com as estrelas,
E o mar invade o cais.
RETRATO EM PRETO E BRANCO
Moro onde o acaso permite-me
Nas ruas, nas esquinas,
Deixei de ser menina.
Esqueci a inocncia num banco de praa qualquer.
O vento frio o cobertor que aquece-me.
E a fome, amiga de todas as horas.
As lembranas afastaram-se de mim,
E um buraco negro em minha mente se fez.
No lembro que fui criana,
No lembro de onde eu vim,
No lembro quem so meus pais,
No lembro como sorria...
O que permito-me,
viver nesta constante agonia,
Contando as horas, esquecendo-me os dias,
Entregando-me noite,
Fria, v, vazia...
O que trago comigo o meu corpo,
Po que alimenta
Os de funesta alma e ftido corpo,
Assim como eu,
Perdidos sem rumo,
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Sem prumo, sem lasciva, sem amor.
E a minha vida,
Esta, continua vazia,
Sem brilho, sem luz e sem cor.
Retrato em preto e branco,
Maculado pela pungente dor.
Moro onde o acaso permite-me,
Onde o cu outrora anil,
Cobriu-se das cinzas da poluio...
Manchando meu fretro corpo,
Estendido aqui nesta praa condenado escurido...
EM MIM
Quero que me entendas nas entrelinhas
No apenas nas palavras ditas, bvias.
Quero que me desvendas no olhar
No silncio do meu mistrio.
Quero que me ames com volpia, com paixo.
Quero que me prendas em teus braos, deixe-me sem cho.
Eleve minh'alma com o toque da tua mo.
Quero te prender em mim,
Num momento eterno.
No improvvel dos instantes em que me possuis.
Onde somos um.
Quero gritar no silncio,
O meu prazer profundo.
Quando a lua nos envolve, e soberana brilha sobre ns.
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uma revista de literatura e artes Campina Grande-PB, Ano 2, n. 5 , p. 16
Quero acordar a noite, e o dia tambm.
Porque ao teu lado, ao teu lado as horas no passam
Os relgios no tm ponteiros,
E os dias sorriem.
Mesmo quando, ainda, madrugada.
Quero teus beijos quentes
Nas frias noites de solido
Quando tenho medo do escuro
E acendo todas as luzes da minh'alma
E prendo firme tua mo...
Enfim, quero todos esses instantes,
Esses momentos.
Quero ser, quero ter.
Ter voc.
Sempre.
Em Mim...
ABUTRE VORAZ
No sol quente e escaldante do serto
Onde o vento queima feito labareda
O homem labuta procura de po, alimento visceral.
Usa a enxada, arma da sobrevivncia,
Como um guerreiro usa o seu punhal.
Calangos, mandacarus, xiquexiques.
So suas companhias do dia-a-dia,
Compartilham seus ais,
Seus dias quentes, as noites vazias.
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A Morte espreita daquele que jaz.
O solo infrtil, seco da chuva
Cheiro de morte exalando do cho
Animais ressequidos, virando poeira
Ao seu lado um abutre voraz,
Faz-lhe companhia, disputando seus fretros restos com os demais.
Cotidianamente o homem, menino,
Bicho, rapaz.
Em busca da sobrevivncia,
Fugindo das garras da indesejada das criaturas,
Abutre se faz.1
POESIA (IN)PERFEITA
No quero rimas fceis,
Quero o vento espalhando meus versos jogados sobre a mesa, escritos em um papel
qualquer.
Quero todas as palavras que caibam em mim,
Na minha poesia, na nossa velha cano que guardo na lembrana.
Quero a metamorfose das idias,
Da minha fantasia desenhada nas nuvens,
A procura de algum a decifr-la.
Quero a poesia imperfeita
O soneto inacabado
O epitfio imortalizado
A causa do meu viver.
1 Poesia participante do XV Festival Sertanejo de Poesia em Dezembro de 2009. Aparecida-PB.
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FLOR
Bela
Sou tua rosa,
Poeta menina,
Tua flor em todas as estaes.
E tu, que s, respondes pra mim?
- Espinho ou beija-flor.
Se fores espinho,
Sou flor despetalada,
Oh, Triste,
Pobre coitada.
sem verso, sem rima.
Se fores beija-flor,
Sou flor desabrochada,
Sou Flor, Sou Bela
- Florbela,
Poetisa mais que amada...
______________________________________________ MIRTES WALESKA SULPINO (Paraba) Presidente da Associao Boqueiroense de Escritores (ABES). Graduada em Letras e
Graduanda em Comunicao Social pela Universidade Estadual da Paraba. autora do livro Versos Expressos: Poesias e Etc. Blog:
http://mirteswaleska.blogspot.com/
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| Ensaio
A FICO CIENTFICA, OS ROBS E A MODERNIDADE
- primeira parte -
Por Joo Matias de Oliveira
H ALGUNS MESES TENHO ME DEBRUADO sobre a coletnea de contos organizada pelo bioqumico
Isaac Asimov, junto de Patrcia S. Warrick e Martin H. Greenberg, intitulada Histrias de
Robs. De bolso, editada pela LM & Pocket, algumas figuras conhecidas da fico cientfica.
Arthur C. Clark, Philip K. Dick e talvez o prprio Asimov sejam os mais notrios entre os
outros integrantes do time, que ainda se compe de: Gordon Dickson, Murray Leinster, Poul
Anderson, John Brunner e Harry Harrison. Ao palmilhar as pouco mais de duzentas
pginas do livro, o sentimento de empolgao, frieza, indiferena, ora ou outra de rtilos
de exuberncia e criatividade. Mas o que pretendo mesmo, no Volume 3 da coleo que
ento se encerra, prende-se nas palavras de Isaac Asimov no auto-explicativo prefcio
ensastico Os Robs, Os Computadores e O Medo.
Frente ao tema forte no imaginrio social, algumas notas do prprio Asimov (2007)
acerca do carter mecnico da sociedade para a qual escreve:
Mais estranha ainda a tenaz oposio a qualquer modificao no teclado das mquinas de escrever, embora o padro universal de hoje em dia seja um disparate criado pelo inventor do instrumento por motivos banais. O mais avanado dos computadores atuais (inclusive o que estou usando neste instante) emprega esse teclado. Na realidade, ele diminui a velocidade datilogrfica por causa da utilizao desproporcional das duas mos, principalmente ao favorecer a maior aplicao da canhota num mundo em que noventa por cento da populao mais hbil com a direita. Por que essa atitude refratria a mudanas?
Okay, Houston, we have a problem. Asimov repreende o leitor com consideraes
acerca do processo lento de reeducao. Para ele, as pessoas adultas gastam infinidades de
horas para se habituar com polegadas e milhas, com os vinte e oito dias de fevereiro, com
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uma revista de literatura e artes Campina Grande-PB, Ano 2, n. 5 , p. 20
letras que no se pronunciam, em night e debt por exemplo, com exerccios de datilografia e
sabe Deus mais o qu. Algo de novo implicaria uma volta aos primevos anos da descoberta
do fogo, na qual a humanidade sorria mediante uma fagulha iniciada por um raio e seu
subseqente espraiamento pelo vento. Seria talvez como uma volta estaca zero com o
medo de este fogo se elevar e o incndio, ento sucedido, fosse a revolta dos deuses da
modernidade contra a humanidade pag. Trocando o fogo por palavras: correr o risco to
conhecido de possveis fracassos.
do espantoso mundo da antecipao que Asimov fala aos contemporneos e
leitores de um ou cinco sculos adiante. Medrosos ou no. Enfatizando riscos, questes de
ordem moral e ideolgicas, h no correr do breve ensaio iniciador de Histrias de Robs
Volume 3 um questionamento acerca do impacto do progresso da robtica. Para alm do
discurso tecnfilo (como o prprio autor se define), reside escondido um foco nas questes
sociais de recepo da obra, de insero dos autores em uma modernidade incipiente, mas
cujas fagulhas de silcio nos microchips, robs e computadores j se mostra sendo alada
pelo vento sombrio da floresta. A cincia nunca foi to ambiciosa e nem ainda to
assustadora:
Mas o que importa, afinal, no o rob, que consiste no sistema de alavancas e articulaes que executa a funo, e sim o computador, que controla essa funo, e sobretudo o microchip, que reduziu de tal forma as dimenses do computador a ponto de j se ver nele o futuro rival do crebro humano, em matria de condensao e versatilidade. Temos que admitir que, pelo menos como concepo, o medo no deixa de ser justificado. No h nenhum limite terico visvel para a complexidade e inteligncia do computador. Nem motivos para supor que, devido a deficincias intrnsecas, seja incapaz de igualar e at superar o nvel de atividade do crebro humano.
Esta longa histria que perfaz os medos e receios das sociedades ao progresso
tecnolgico leva Asimov ao insight de um possvel paralelo: a revoluo industrial e o
movimento luddista (manifestantes contra as mquinas que estariam ocupando o lugar dos
homens) comparados ento crescente revoluo tcnica e cientfica experimentada,
sobretudo, pelos Estados Unidos com o ps-guerra e a ascenso de duas potncias bipolares,
blocos capitalistas e blocos soviticos. A concluso : um complexo de Frankenstein nos
assola. Complexo no qual a perspectiva do monstro revoltoso contra o criador, clssico da
fico cientfica escrito pelas mos de Mary Shelley, revelaria o complexo do
Frankenstein, destacado pelo prprio Asimov como a sndrome da tecnofobia. Ou seja, esta
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sensao chinfrim de o crebro humano, composto de cido nuclico e protenas em meio
aquoso, resultante de trs bilhes e meios de anos de evoluo biolgica (baseada, como voc
sabe, em efeitos de mutao, seleo natural e outras influncias) contra uma composio
de interruptores eletrnicos e corrente eltrica em meio metlico, com apenas 40 aninhos de
aperfeioamento da criao humana. Eis o computador.
Naturezas diferentes: o que se espera de duas inteligncias distintas (uma
biolgica, e outra eletrnica), com vigorosas diferenas de estrutura, histricos,
desenvolvimentos e objetivos. Mas se Deus nos legou essa bela capacidade de sentir, aos
computadores o oprbrio seria no calcular to bem. Se avaliados pela capacidade de
resolver problemas aritmticos mais rapidamente, e se tal tipo de habilidade servir de
critrio para avaliar a inteligncia, tais computadores podem ser aclamados por sua
superioridade intrnseca. Mas estando exatamente as virtudes humanas nas blandcias do
erro, mesmo frente a situaes em que a viso do todo, a sensibilidade da perspiccia, a
originalidade da criatividade e, sobretudo, uma intuio sugestiva so teis para, por
exemplo, decidir a pena criminal de um cidado, os computadores so terrivelmente
ignorantes. Ou algozes arbitrrios. O certo, conforme reflete Asimov, que preparamos os
computadores para corrigir deficincias as quais seres humanos como eu ou voc no
contemplam em suas prprias qualidades. Ou seja, no h computadores intuitivos e
criativos unicamente porque no se exige isso. Em um mundo funcional, com cdigos e
padres pr-estabelecidos, os problemas so divididos em etapas claras e lgicas cujo nico
intento v-las cumpridas. A simples constatao de que entre um Yes e um No no h um
Maybe (Talvez), um humano talvez, sugere uma instrumentalizao da
razo/racionalidade. E se h, conduz a situaes na qual o Yes e o No voltam lmpidos e
risonhos.
uma dvida cruel:
Para que se esforar em levar os computadores a desenvolver uma capacidade tosca de serem criativos quando j dispomos do crebro humano, que faz isso to bem? Seria to sbio e prtico proceder desse jeito quanto propor-se a treinar determinados seres humanos para executarem rpidas proezas matemticas segundo os moldes de um computador
E at certo ponto uma angstia, auspcio ou lamentao:
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Por outro lado, duas inteligncias diferentes, especializando-se em objetivos diversos, cada qual com sua utilidade, podem, num relacionamento simbitico, aprender a colaborar com a lei natural do Universo de forma mais eficiente do que separadamente. Encarado dessa forma, o rob-computador no nos substituir, mas servir de amigo e aliado na marcha para um futuro glorioso
Mas, quando a tecnofobia asimoviana, alm do medo de que o progresso tecnolgico
tire o emprego de muita gente ainda traz consigo uma criatura semi-perfeita criada pelo
homem, fica posta a dvida: qual o limite real da inteligncia humana? Afinal, uma
criatura com braos e pernas, pele artificial e conjunto de caractersticas que podem muitas
vezes confundi-lo com um ser humano: como uma criao perfeita assim poderia vir do
homem? Sob que auspcios? Condio nica de coexistncia entre seres humanos e robs,
Asimov desenvolve em seu livro Eu, Rob (o qual foi adaptado para o cinema) as trs leis da
robtica (vista tambm como uma sada para os muitos enredos repetitivos na fico
cientfica de homens e robs):
1 lei: Um rob no pode ferir um ser humano ou, por omisso, permitir que um ser
humano sofra algum mal.
2 lei: Um rob deve obedecer s ordens que lhe sejam dadas por seres humanos,
exceto nos casos em que tais ordens contrariem a Primeira Lei.
3 lei: Um rob deve proteger sua prpria existncia, desde que tal proteo no entre
em conflito com a Primeira e Segunda Leis.
Pseudo-humanos. A criao de um autmato, de um pseudo-ser humano, por um
inventor tambm humano , ainda, interpretada como pardia da criao da humanidade
por Deus. Nas sociedades crists onde Deus aceito como o nico criador sacrlega
qualquer tentativa de querer imit-lo, ainda que na fico cientfica ou na robtica
inexistam intenes conscientes em tal sentido. Mas materialmente tudo diferente, ou
seja, as coisas conforme vistas e experimentadas neste mundo concreto so to diferentes
quanto a fico cientfica o da realidade:
Na fico cientfica, o rob criado com a maior perfeio. Na vida real, porm , o que hoje chamamos de rob industrial no passa de um brao complexo e computadorizado, sem a menor semelhana com o ser humano. Fica muito mais fcil, portanto, visualiz-lo como mquina
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complexa do que como pseudo-pessoa, mais temido pelo efeito que produz sobre os empregos do que pela imitao sacrlega de ns mesmos.
Cito, em ttulo ilustrativo, dois contos presentes na coletnea de Histrias de Robs.
Um deles, Uma Lgica Chamada Joe, escrito por Murray Leinster em 1946, faz aluso
utilidade domstica futuramente atribuda aos computadores. A Lgica de Leinster um
box metlico, no qual todo o conhecimento do mundo, da vida e do tudo respondido por
esta mquina que, de uma simples utilidade criada, Joe (nome atribudo ao primevo
computador) reproduz-se e instala um caos social com respostas para perguntas como qual
a senha do banco tal ou como posso me tornar presidente. Joe um Google mecnico para
o qual respostas tem de ser claras e precisas a quem quiser perguntar. Isso em 1946. Joe
temido e, por fim, proibido e trancafiado pelo prprio dono, o qual no sabe quando poder
utiliz-lo novamente, mas cogita. E assim se encerra o conto. Cerca de 40 anos depois surge
os sites de busca: Google, Yahoo etc.
Outro, para acirrar ainda mais a influncia de computadores e robs sobre o que se
chama de modernidade, o conto Prova, da autoria do prprio Isaac Asimov no ano de 1946.
Nele, h a insinuao de que um rob poderia ser capaz de governar um estado normal, com
seres humanos normais, guiado pelas trs leis da robtica (descritas acima) e cujos padres
ticos seriam bem mais slidos do que os observados na maioria dos polticos convencionais.
O conto narra uma histria vivenciada por funcionrios do governo de um Estado influente,
pelo rob cuja similaridade com seres humanos tamanha que lhe permitido concorrer
legalmente s eleies do governo (mas imprecisa o suficiente para despertar a reao dos
adversrios) e, por ltimo, a psicloga de robs, encarregada de provar se o candidato em
questo ou no um rob. Bem entendido: neste Estado, no se permite robs candidatos a
cargos pblicos. Para no estragar o prazer de quem ainda ir se debruar sobre o texto,
no narro como tudo acontece, mas fica claro no decorrer do conto que o rob candidato s
eleies dado a uma sucesso de provas: ele ou no um rob? Ele, Rob, busca a todo
tempo respeitar as leis asimovianas e ainda assim consegue, a todo custo, passar por um
teste maior e provar ser um no-rob, mas a partir de uma atitude tpica humana,
simulada por um segundo rob, de modo que no se desrespeitasse qualquer das tais leis da
robtica (um cdigo de tica indevassvel). Curioso? Mais ainda a reao da sociedade
ficcional a uma criatura perfeita, incapaz de qualquer falha tica ou deficincia moral.
Para a complexidade de um ensaio acerca da fico cientfica e dos indcios sugestivos
da modernidade nas relaes entre fico, sociedade e literatura demonstrarei em uma
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segunda parte deste ensaio quais as questes acerca da racionalidade instrumental, da
chamada dialtica do esclarecimento e do conceito de modernidade como um risco
constante, em que o fogo, mesmo sendo til, traz por consequncia o incncio; a agricultura,
prejuzos para o solo; o avio, a possibilidade do bombardeio areo; a tecnologia, a inveno
de bombas de hidrognio, alm de computadores que operam mquinas para matar pessoas.
Na fico, tudo isso se expressa em um contexto especfico da literatura de alguns
escritores. Mais especificamente, na fase em que o progresso tecnolgico, em real, punha
dvidas sobre a natureza de nossas aes e criaes, bem como a literatura expressaria a
realidade palpvel e reflexiva de artistas preocupados e engajados no prprio tempo.
A segunda parte vir na edio de Julho da Blecaute. Coming soon.
Referncia bibliogrfica
Asimov, Isaac. In Histrias de Robs 3 v. /ET. Al./ ; traduo de Milton Persson. Os
robs, os computadores e o medo Porto Alegre: L&PM, 2007.
______________________________________________
JOO MATIAS DE OLIVEIRA NETO (Paraba/Cear) Escritor, autor dos livros de contos Aos Olhos de Outro (2007) e O Vermelho das
Hstias Brancas (2009). Blog: http://blogmatias.org
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| conto
MEIA LUZ
Por Janailson Macdo Luiz
AS RECORDAES MAIS NTIDAS QUE EU GUARDO do meu av paterno esto associadas ltima
visita que ele nos fez, poucos meses antes de morrer.
Era maro de 1997 e o v Alcides ficou hospedado, por cerca de uma semana, no nosso
apartamento, enquanto tentava descobrir a origem de alguns caroos e manchas que, como
uma praga de ervas daninhas, brotavam em vrios pontos de sua pele.
Se dependesse do meu pai, ele j teria h muito tempo largado a vida no campo e se
instalado de vez na cidade. No entanto, o velho sertanejo se negava a modificar a maneira
de viver. Mesmo beirando os oitenta anos, ele nem cogitava se distanciar do cuidar dirio da
terra e da prpria subsistncia e poucos dias longe de seu sitiozinho j o deixavam inquieto.
Durante aquela visita, quando no estava com o meu pai em alguma clnica ou
consultrio, ou apenas dormindo, o v Alcides se sentava mansamente na sala, mantendo
uma postura muito respeitosa e formal. s vezes, levantava-se e ficava observando, pela
janela do segundo andar, os prdios vizinhos e as pessoas passando pela rua, ou
simplesmente ia para o quarto, ficar um pouco s.
Aps o jantar, mais para ser educado do que para se entreter com a televiso
passatempo que no lhe despertava o interesse , ele retornava sala, para fazer
companhia aos meus pais. Contudo, nessas horas, seus pensamentos pareciam estar
direcionados exclusivamente s recnditas e enigmticas programaes de sua memria.
Eu, curioso como era, dedicava boa parte do meu dia a observ-lo e no o via somente
como um velho que sempre usava os mesmos sapatos pretos, j desgastados, calas sociais
um pouco velhas e camisetas de boto; tambm no via apenas seu semblante melanclico,
sua pele negra, seus cabelos branco-algodo ou suas costas envergadas pelo tempo. Era
como se eu fosse uma pequena rvore que tivesse encostado as suas razes nas de uma
rvore gigante, a mesma cujas sementes a originaram. Sentia-me como aquela rvore que,
de uma s vez, entrara em contato com os rastros que lhe indicavam o caminho de sua
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formao, da sua substncia primeira, mas que acabara de descobrir que j constitua um
outro corpo, um outro espao; que embora possusse um destino de certo modo comum com a
sua ancestral, j estava h um bom tempo se desenvolvendo de acordo com um ritmo
prprio.
Certa noite, o v Alcides se encontrava na sala, como sempre, junto aos meus pais,
que assistiam ao telejornal enquanto esperavam o incio da novela das oito. De um
momento para o outro, entretanto, a distrao dos dois foi interrompida, pois faltou energia
no nosso prdio e, como logo percebemos, em todo o nosso bairro.
Naquele momento, eu me encontrava no quarto, jogando, concentrado, videogame
com um amigo. E tambm acabei sendo pego de surpresa pelo apago. O que ns
jogvamos? J no me lembro com exatido, lembro apenas do vdeo-game, um Nintendo j
usado que eu ganhara de presente no natal anterior. Mas, de toda forma, quando se tem
doze anos, ser interrompido durante uma partida de qualquer tipo de jogo, real ou virtual,
no nada excitante. Meu amigo e eu, certamente acometidos por uma frustrao juvenil
agudssima, tivemos ento que ir para a sala, fazer companhia aos adultos. Quando
chegamos l, encontramos a minha me, que havia ido procurar velas e j voltava sala
segurando uma espcie de candelabro improvisado, onde a vela fixada com a prpria cera
numa lata vazia de leite em p.
A vela, posta no centro da sala, propagava solitariamente suas ondas de luz por todo
o ambiente, tornando-se o centro atrativo dos olhares de todos no local. Meu amigo e eu
passamos a utilizar as migalhas de luz sadas da chamazinha amarelada para projetar
serpentes, coelhos e outras criaturas nas paredes, mas ambos deveramos estar rezando, em
silncio, para a energia voltar logo.
Os meus pais, por outro lado, matavam o tdio conversando sobre as notcias que
tinham acabado de assistir na televiso, e o v Alcides, alheio a tudo aquilo, mantinha-se
em companhia dos seus pensamentos mais ntimos.
Ainda bem que aquele clima insosso no durou muito. Aos poucos, com a sala
iluminada apenas pela meia luz da vela, foi sendo criado o clima ideal para se contar
histrias, principalmente as de assombrao, das quais o meu av guardava um amplo
estoque na memria. Sabendo disso e vendo que aquela seria uma tima oportunidade para
mostrar para mim e para o meu amigo a importncia de determinadas tradies, cada vez
mais deixadas de lado, o meu pai pediu que o v Alcides contasse uma daquelas histrias
que tanto gostava de narrar.
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Pai disse ele enquanto tocava na perna do v Alcides O senhor ainda se
lembra daquelas histrias que o senhor e a minha me costumavam contar noite, l em
casa, quando eu era pequeno? o meu av foi repentinamente trazido de volta do seu
mundo interior, com uma expresso de quem estava se sentindo ao mesmo tempo surpreso e
animado por uma boa recordao.
Vixe meu fio, aquilo j faz muito tempo...
Tenho certeza que o senhor ainda se lembra... Porque no nos conta uma delas
agora?
Num sei seu me alembro mais daquilo no fio...
Claro que se lembra homem, essas coisas no se esquecem assim...
...
Pode ser uma daquelas de cangaceiro... Isso! Conte uma daquelas histrias de
cangaceiro, pra esses meninos verem o que uma boa histria, bem melhor do que essas
bobagens que passam hoje em dia nesses desenhos sem graa da tev... De Lampio, pronto!
Conte uma de Lampio! Dessas da no tem jeito de se esquecer.
Vixe, logo Lampio? Deixa eu pens... Ele parou um segundo para matutar,
como que esperando a roleta da memria interromper os seus giros e lhe dizer que
acontecimento real ou imaginrio deveria trazer tona. O que no demorou muito. Sbito,
com um sorrisinho tmido, o velho nos apresentou, sem rodeios, uma histria guardada bem
l no fundo do seu alforje, no se sabe se inventada por ele ou se captada numa das muitas
rodas de conversa que participou durante a vida.
Pois bem reiniciou Me alembrei de uma agora... ocs tudo j deve de t ouvido
fal muito em Virgulino Lampio, o famoso Rei do Cangao, num mermo? E se calou
por alguns segundos. Meu amigo e eu ficamos impressionados, sem saber se deveramos
responder ou continuar em silncio. Minha me tambm permaneceu muda; e meu pai, que
conhecia bem o processo que estava se iniciando, abriu um sorriso discreto, mistura de
satisfao e orgulho contido.
S que o que pca gente sabe continuou que Lampio, o cabra mi valente
que os serto j viro, que botava pra corr polici froxo e coron metido a brabo, certa vez
pass um bom tempo sem dormi direito, atormentado por uma aima penada que, toda noite,
parecia nos sonho dele.
Dizem at que nem uma reza do prprio Pade Cio Romo, em pessoa, conseguiu faz
com que o hme deixasse de t aquelas viso. Toda santa noite, desde que havia se
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instalado com seu bando l pros lado de Juazeiro, Lampio via aparecer um vi em seus
sonho, que no falava nada, ficava s oiando, parado, pra ele. A toda veis, bem no mi do
pesadelo, o cangacero acordava assustado e logo ia empunhano a pexera, que sempre
guardava ao seu lado, pra ver se mandava de vorta a assombrao pros quintos dos inferno.
Eita que dava um trabaio danado pra pobre da Maria Bonita convenc ele que aquilo
era s mai um sonho ruim!
S que teve um dia que enquanto espiava pelas redondeza, o cangacero cheg at
uma casinha muito da antiga, onde vivia sozinha uma mui j de certa idade. Quando ele
entr na casa e come a convers com ela, avist um retrato antigo de um hme na parede.
Ave Maria! Lampio, que nunca tinha andado pelaquelas banda, de cara, reconheceu o tal
do hme no retrato. Pois num que se tratava do memo condenado que parecia nos
pesadelo dele! S que no retrato ele tava um pouquin mai moo. Mais era o memo, num
havia dvida! Lampio resoveu ento de cont pra via tudo o que tava se passano. E ela
disse pro cangacero que aquele hme do retrato era o seu falecido marido, que morrera de
morte morrida, uns poucos dias antes. O que deixou Lampio muito do desconfiado. A via
disse tambm que nos ltimos tempo o marido andava aperreado de d d, tentano
encontr uma botija chea de ouro, que um tio dele, segundo dizia o falecido, havia enterrado
h muito dos tempo por aquelas rea.
No que o falecido fosse ganancioso, isso num era no, garantiu a via com toda a
sinceridade pra Lampio, pois durante vrios ano ele nem tinha ligado pra essa histria da
botija. Mais como um dos fio deles, que morava l pra bandas do Recife, tava muito do
doente, precisano de dinhero pras consultas e pra operao, que custava mai que os dois io
da cara, o hme decidiu averigu se a histria da botija era de verdade. Ora, todo santo dia
ele cavava, procurano a tal da botija. Era buraco em cima de buraco feito naquela terra
seca, e nada... At que um dia ele desanim e de tanto do desgosto por no pud ajudar o
fio, acab morreno.
Lampio, sabeno que o vio que parecia nos sonho dele era um hme de respeito,
tent convers com ele durante a dormida, e pergunt o que que ele tava quereno afin.
Mais quem foi que disse que o vio respondeu? Fic foi oiando pra Lampio com aquela cara
lesa de aima penada. S que quano Lampio j tava pensano em desisti, o vio resolveu de
se desempabul. E quano resorveu de abr a boca, ele disse foi uma coisa muito da
estranha: que na manh seguinte, o primeiro arubu que o Rei do Cangao avistasse pelos
cu, ele fosse atrs. No pedao de terra, ia que coisa mi da doida, no pedao de terra
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adonde o arubu pousasse, Lampio devia de cav bem fundo, e descobriria o motivo de t
teno aquelas viso.
Mas num que foi dito e feito?! Mal Lampio acord, avist a ave agourenta
passeano sem avexame nenhum pelos cu e come a ir atrs dela. S que o arubu no
demor muito a pousar no. Ele logo deceu junto a um umbuzero bem grande e fic parado
l, s curtino a sombra do umbuzero. A Lampio, que ainda num tava acreditano muito
que tava fazeno aquilo de verdade, mand que um dos seus cabras fosse at a casa da mui,
pra pedi a p do falecido emprestada, pra cavar um buraco onde o arubu pous.
Durante as escavao, sem mi nem meno, a p bateu em algo bem duro. Mais num
que quano o cabra cav mais descobriu que ali tava enterrada uma botija, com num sei
quantas moedas de ouro! Ah! Mas os cabra de Lampio ficaro tudo doido ao ver aquela
dinherama toda... eles comearo logo a fal em como iam gast o dinhero com mui, bebida
e mi um bocado de bestera... S que ocs num pensem que o Rei do Cangao quis ficar com
o ouro no! No que ele fosse de neg dinhero. O que Lampio num queria era passar o
resto da vida seno atormentado, todas as noite, pela aima penada do vio. Por isso, muito do
srio, ele mand que os cabras calasse a boca e parasse com aquele pantim todo.
Sem muita da conversa, o chefe dos cangacero foi at a casa da mui e dex a botija
com ela. Pronto! A a via num instante arrum uma mala, com as poucas coisa que tinha, e
saiu avexada pro Recife. Ningum sabe se verdade, mais dizem que graas a botija chea
de ouro, que Lampio entreg, ela conseguiu saiv o filho e os dois vivero um bocado ainda.
O suficiente pra gast aquela dinherama toda. J Lampio tava aliviado por t se livrado
da aima penada do vio e vortou aos seus afazere de cangacero, que andavam cada vez mais
dos difcultoso, pois as volante num tavam dano trgua pra ele no, caano ele sem trgua
nem piedade por esse mundaru afora.
Quando concluiu a narrativa, assim como vinha fazendo de modo mais discreto
enquanto a pronunciava, meu av observou, com sutileza, as expresses de curiosidade,
satisfao e encanto delineadas nas faces de todos na sala, principalmente na minha e na do
meu amigo. Lembro-me que seu falar caracterstico, do tipo que hoje se considera em
extino ou erroneamente estereotipado nos filmes e novelas, e sua voz suave e envolvente
me deixaram maravilhado. Meu pai tambm estava enlevado e comentou que j no
lembrava mais de quando tinha ouvido pela ltima vez aquela histria. Minha me, meu
amigo e eu, entretanto, permanecemos calados, comunicando-nos apenas atravs dos
brilhos dos olhares.
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O velho contador de histrias conhecia bem esse tipo de reao, sabia que todos ali
ansiavam para ouvir mais uma narrativa como aquela, mais um acontecimento mstico dos
tempos antigos, sobretudo se envolvesse personagens carismticos como o Rei do Cangao,
alm de outros atrativos, como almas penadas e finais felizes. Ele parecia j estar at, no
ntimo, consultando seu repertrio lendrio e se preparando para a segunda rodada de
prosa, onde teria uma performance ainda mais cativante.
Mas, de repente, a energia do condomnio voltou, trazendo de volta a luz para a sala e
a fora vital das mquinas domsticas. Meu amiginho e eu, com a impacincia tpica da
idade, logo corremos de volta para o videogame. Na sala, a televiso tambm foi religada, de
modo automtico, sem qualquer reflexo. O que alegrou bastante os meus pais, que se
deram conta de que no haviam perdido nenhuma parte significativa da novela.
Mas o v Alcides no demonstrou ter se aborrecido com a nossa falta de sensibilidade,
a qual j devia estar acostumado. Ele ficou calado por alguns instantes e, logo depois, j
sonolento, despediu-se dos meus pais e foi para a cama. No entanto, no conseguiu esconder
que, por dentro, estava sentindo o seu nostlgico corao transbordar, de tanta saudade
acumulada; talvez saudade de quando, numa casinha de taipa, iluminada apenas pela meia
luz da lamparina, escutava seus pais contarem, cada um ao seu turno, dezenas de histrias
de Trancoso; saudades de todas as pessoas queridas, com as quais conviveu e compartilhou
suas melhores histrias; e saudade do seu tempo de narrador prestigiado, dos seus tempos
bons, de tudo o que havia ficado para trs.
Menos de um ano depois, o v Alcides faleceu. O homem forte e trabalhador fora
derrubado por um cncer de pele, descoberto, j em estado avanado, durante o perodo em
que esteve conosco. Mas eu quase no me recordo dos seus meses de agonia, ou melhor, dos
meses de agonia do meu pai, que no aceitava que o pai dele preferisse continuar em seu
stio a ficar em Campina e tentar algum tratamento. O v Alcides preferiu ter o fim que
teve. Ele no queria passar seus ltimos dias em algum hospital; queria era, quando recm-
falecido, receber sem demora o derradeiro abrao da terra que cuidou durante toda a sua
vida.
______________________________________________ JANAILSON MACDO LUIZ (Paraba) Escritor, professor e estudante do curso de Histria da Universidade Estadual da Paraba.
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uma revista de literatura e artes Campina Grande-PB, Ano 2, n. 5 , p. 31
| Humor
A TIMA TENTAO
Por Valdnio Freitas
LAMENTO ETERNO: ocupaes, obrigaes , datas.
Do outro lado, a bomia clama pela tua presena
- No te preocupas ,amigo. Jesus Cristo tinha nos seus planos uma crucificao e nem por
isso deixou de se esforar para tomar um pouco de vinho.
______________________________________________ VALDNIO FREITAS MENESES (Paraba) Graduando em Cincias Sociais pela Universidade Federal de Campina Grande e cronista do
blog: http://www.oaeropago.blogspot.com
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uma revista de literatura e artes Campina Grande-PB, Ano 2, n. 5 , p. 32
| Poemas
POEMAS DE ANDERSON BRAGA HORTA
OLHOS
De repente descubro
A lavada beleza de teus olhos.
(Entre mim e o sono
Trazes um sol nos lbios
E nos seios de Vnus.)
Teus olhos so como cus que choveram.
FRAGMENTOS DA PAIXO
I
Certo dia, no meio do caminho
que me arrastava os ps no Templo alado,
deparei junto a mim o burburinho
de um turbilho de seres extasiado
ante a frrea, magntica presena
de alta torre de vidro. Fascinado
pelo esplendor da apario imensa
sombrio resplandor de negra opala
tambm eu, que ao cantocho da descrena
me embalava, j cansado, j farto
de
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uma revista de literatura e artes Campina Grande-PB, Ano 2, n. 5 , p. 33
de arrastar pelo Planeta os andrajos
de minha solido, entrei cantando
no torvelim das almas que em ciranda,
brias, descendo, trmulas, em bando,
iam o adro da Torre demandando.
Ali paramos ante os negros vidros.
Abriram-se-nos portas densamente aliciantes.
Envolvia-nos algo como um olhar pegajoso
de hipnose. Danando ainda, entramos
nos amplos elevadores. Apertamos
os botes para o ltimo andar. E lentamente
fomos descendo.
II
Apagaram-se os sis. Ficamos sabendo,
sem que voz o dissesse, que a alegria
era infrao Norma. Mas autnoma,
senhora de nossos corpos, prosseguia-se a dana,
e era msica o contnuo terror, o temor expectante em
que nos fizramos,
regente atra Presena,
opresso de pressentida Espreita rapinante no escuro,
surda Vibrao de ala implume.
L fora o claro dia era um sonho remoto.
Nas trevas, no pavor, Suas invisveis milcias,
Seus ocultos exrcitos
espancavam a multido em fuga para Nenhures.
Esquecidos na entrada os amuletos!
Total desamparo! Comeava
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uma revista de literatura e artes Campina Grande-PB, Ano 2, n. 5 , p. 34
o sem-sentido, o sem-nexo,
o mergulho real.
Eu me apagava.
III
E de repente estava s de novo,
e descia. Meus andrajos de prpura cintilavam
torvamente. E descia.
Entre seis paredes de ar pesado,
corte vertical na rocha,
solitrio descia.
Os muros me estreitavam. Eu me espessava.
E descia.
IV
Oh solido da vida!
Oh solido da morte!
Oh solido amarga!
Nas paredes da rocha em descendente fuga,
vou escandindo
s pedrarias abissais, de faiscaes inversas
invertida luz, caliginosa
luz, antiluz
que s o negror desvela ,
as slabas terrveis
do terrvel grafito.
Oh! Que esperana para a humana raa
no por estes subterrneos astros!
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V
Na Plancie sinistra
cuja monotonia apenas quebra
um torvo rio, de mim mesmo apeio-me.
A atra, oculta Presena
comigo se confunde.
E solene olho em torno os meus domnios.
Glebas de solido.
Provncias de dio.
Sesmarias de escuro.
Cus tombados.
Sombra. Medo. Pavor. Angstia. Inferno.
E em meu Domnio eis-me senhor escravo.
Aniquila-me, Deus! Antes o Nada
que a privao do Sonho e da Esperana!
VI
E as falsas ascenses!... Elevadores que parecem subir
mas no chegam, no se abrem, ou sobem no vazio,
ou param ameaadores, ou se escancaram sobre estruturas
instveis, e despencam para um poo que tarda,
para um fim que no vem, que no vem, que no vem!
VII
Mas num relmpago,
fugitiva frao do escoar da areia,
descuido do Diabo, aps milnios,
de milnios de abismo,
de um infinito negar do claro, da centelha,
eis que, de abscnditas
nebulosas em flor desabrochada estrela,
estrela de beleza, do mistrio
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de ser o homem uma luz que tenta brilhar,
a Tua Face, Deus, lcida Se revela!
J no me desespera,
vislumbrado o Teu sol, Senhor, se agora,
em vez da redeno, ainda me espera
o surdo recomea
da negra eternidade.
Daqui, do mais profundo deste inferno,
fadado ao Teu Amor,
sonho-te, Deus, essncia cristalina.
E sei que alfim, ao fim da Eternidade,
ascendo a Ti, ascendo a Ti, Senhor!
CRIANA CHORANDO
Para meu filho Anderson
Teu pranto abala as razes da noite
Tuas lgrimas reanimam a velha metfora
e molham consteladamente o lenol.
Da obscuridade da tua fome
e do teu desamparo
clamas pelo dia, o teu dia.
quando fraldas e cueiros sero retratos esquecidos no lbum
e mamadeiras e chupetas se faro sorrir sobre outros beros.
Da noite do ventre materno saste para a penembra
e choras.
To pequeno e j franzes a testa.
Porventura sabes quanto pranto preciso para fazer-se um homem
e te constris impacientemente.
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SEMNTICA
As palavras morrem,
Virgens, de usura,
- Fartura
As palavras
Finam-se de desuso.
As palavras desviam-se,
Mudam de rbita
- Democracia
As palavras, satlites
Forados a novos planetas.
As palvras ocam-se,
Deslembrados signos
- Paz, Amor
Por onde o pensamento,
Como um leo, vaza.
As palavras gastam-se,
Oxidam-se de malcia e asco
- Liberdade! Liberdade!
As palavras.
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SONETO SEM DESPEDIDA
Para Waldemar Lopes
Buscas da infncia o inexorvel pomo,
pinta-lo em cores de memria, abstrato
e belo; mas, melhor que nesse cromo,
trazes no corao seu cerne, intato.
O que ganhaste em Tempo e em Ritmo exato,
dize-lo perda e no-lo ds em Nomo.
E, agora que te vais de nosso trato,
tampouco ir-te-s quanto imaginas. Como,
da noite, a fugitiva claridade
solar dissolve em luz os tons soturnos
permanece entre ns tua alma antiga
na dimenso do Sonho sem idade;
e, em teu Reino de pssaros noturnos,
tua presena matinal e amiga.
______________________________________________ ANDERSON BRAGA HORTA (Distrito Federal/Minas Gerais) - Poeta, Contista e Crtico Literrio. Vencedor do Prmio Jabuti em 2001,
com o livro Fragmentos da Paixo (Poesia Reunida). Boa parte dos poemas aqui publicados foram retirados da sua antologia 50 poemas
Escolhidos pelo Autor (2003).
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| Ensaio
A PALAVRA PERPLEXA:
DIFICULDADES DE SER ESCRITOR NO BRASIL
Por Bruno Gaudncio
I
EM UMA DE SUAS MAIS BRILHANTES REFLEXES, o carioca Machado de Assis, - maior expoente da
histria literria brasileira, se refere gerao romntica, posterior a sua, nas seguintes
palavras: cada sculo traz a sua poro de sombra e de luz, de apatia e de combate, de
verdade e de erro, e o seu cortejo de sistemas, de idias novas, de novas iluses.
O lirismo de tal meditao nos alerta sobre as constantes mudanas em cada perodo
histrico no mbito da produo literria de um pas durante um sculo. No caso especifico
de Machado, h um deslumbramento no olhar sobre o choque das geraes existentes, que
se cruzam ao longo do tempo, entrando em conflitos estticos, polticos e ideolgicos. Tanto
a gerao romntica, anterior a sua, como a gerao naturalista e/ou realista da qual ele fez
parte, possuam um conjunto de ideias que se firmaram de acordo com os habitus literrios
em eminncia no sculo XIX.
Uma curiosidade sempre presente inclusive nos dias atuais, no s entre crticos e
historiadores literrios, como tambm entre leitores, justamente a compreenso de quais
luzes e sombras so constitudas a atual literatura brasileira, em qu cortejo de sistemas,
de idias e iluses novas faz parte os nossos mais recentes escritores no incio do sculo
XXI. Deste modo, ficam as seguintes perguntas: O que singulariza a atual Literatura
Brasileira? Quais os seus principais expoentes? O que faz um indivduo nos dias atuais ser
um escritor? Estas e outras questes so algumas das principais temticas que iro compor
um inqurito literrio que pretendo publicar nos prximos anos, e que nesta revista,
apresentarei apenas o primeiro captulo. Tal inqurito, intitulado Sacudindo os Sentidos do
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Mundo: ensaios sobre a produo literria brasileira contempornea, visa de maneira geral
compreender os papis dos nossos novos escritores na sociedade brasileira atual.
II
Neste ensaio, o objetivo especfico ser entendermos quais as principais dificuldades de
ser escritor no Brasil na atualidade. Para responder tal questo formulei um questionrio,
na realidade, mais do que isso, uma espcie de inqurito literrio ( moda do jornalista
carioca Joo do Rio). As perguntas foram enviadas via e-mail, entre os meses de julho e
agosto do ano de 2007, para 43 escritores brasileiros contemporneos todos eles, nomes
destacados do cenrio literrio brasileiro atual, das mais variadas tendncias formais,
gneros, geraes e lugares do Pas. Destes 43 escritores, 21 responderam ao questionrio.
Foram eles: Amador Ribeiro Neto, Andra Del Fuego, Antonio Ccero, Bernardo Azenberg,
Bralio Tavares, Cntia Moscovich, Cludio Daniel, Fabrcio Carpinejar, Jos Aloise Bahia,
Lau Siqueira, Linaldo Guedes, Luis Estquio Soares, Marcelino Freire, Mrcio de Sousa,
Nelson de Oliveira, Nicolas Behr, Nilto Maciel, Paulo de Toledo, Paulo Henriques Britto,
Pedro Maciel, Rinaldo de Fernandes e Vernica Stigger. Ou seja, cerca da metade dos
questionados responderam; alguns deles, inclusive, elaboraram respostas de alta qualidade,
demonstrando assim que boa parte de nossos escritores tm um interesse nas questes
debatidas.
Com as respostas, que se mostraram bem dispares montei este primeiro e pequeno
ensaio, embasado no s nas opinies dos depoentes, como tambm nas minhas e em alguns
livros que tratam atualmente sobre a literatura brasileira contempornea.
Vamos enfim ao texto, intitulado de A Palavra Perplexa... Uma referncia aos
dilemas da atividade literria em meio s dificuldades de ser escritor no Brasil...
III
Todas as atividades humanas tm as suas dificuldades; a medicina, a engenharia, o
jornalismo, a enfermagem; todas enfrentam variados problemas cotidianamente, que podem
ser de ordem tcnica, intelectual, de infra-estrutura ou de formao. E no diferente com
a arte da escrita; o escritor, tanto nos dias atuais como no passado sofre ou sofreu em seu
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campo de trabalho com vrios dilemas, sejam de ordem interna ou externa, o que influi
diretamente em sua produo.
Indagando aos nossos entrevistados quais seriam as principais dificuldades de ser
escritor no Brasil nos dias atuais, alguns deles foram enfticos ao deixarem claro, antes de
tudo, que o exerccio literrio tem suas dificuldades em qualquer tempo e espao. Desde que
se formou a noo de escritor, de autoria, o que nos remete a modernidade dos sculos XVIII
e XIX, o sujeito que escreve e que vive a comercializar suas produes literrias, sofre com
dilemas complexos. Nas palavras do poeta gacho, radicado na Paraba, Lau Siqueira: No
s no Brasil, mas em qualquer pas do mundo, escrever o maior obstculo que um escritor
pode enfrentar. Todavia, nos dias atuais, segundo Pedro Maciel: No Brasil ainda mais
difcil porque ningum l e o mercado de fico e poesia praticamente inexistente.
A concepo das respostas dos escritores entrevistados podem ser compreendidas em
duas linhas gerais, que muitas vezes se cruzam. A primeira linha est ligada s questes
sociais e polticas que inviabilizam a prtica e o consumo de literatura no Brasil (baixo
poder aquisitivo, alto ndice de analfabetismo, etc.). J a segunda linha est relacionada s
prprias questes internas do campo literrio (como as dificuldades de serem publicados, de
distribuio e divulgao, ou seja, os dilemas com o mercado editorial).
IV
No Brasil quase ningum l
As motivaes de ordem poltico-sociais foram as mais salientadas pelos entrevistados.
As carncias estruturais (sociais, educacionais, econmicas) do nosso pas, como baixo poder
aquisitivo da populao, alto ndice de analfabetismo e sistema educacional precrio, foram
enfatizados no sentido de que estes fatores complicam e dificultam a aproximao dos
leitores com a literatura. Tudo fica difcil nesse pas, desde o bsico, como atendimento
mdico, at o pretensamente mais sofisticado, como viajar de avio. difcil querer que as
pessoas valorizem o trabalho do escritor se no tm o mnimo necessrio, destaca a
romancista paranaense Cntia Moscovitch, autora do Romance infanto-juvenil Por que sou
gorda, mame?
No mesmo sentido de Moscovitch se referiu o poeta e crtico cultural mineiro Jos
Aloise Bahia: No fundo, no fundo, ainda acho que perpassa todas as questes, uma questo
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bem maior: o tratamento dado cultura e educao na histria do Brasil. Ou seja, resta
saber o que os mbitos pblicos e privados fazem com isso, que tipo de valorizao existe em
relao literatura e leitura no Brasil. Um povo que no tem um preparo intelectual,
estudos e leituras, um estmulo e educao para a leitura, com certeza, far com que um
mercado consumidor da leitura, de livros e da prpria internet seja menor.
No Brasil, o ndice de analfabetismo em 2002 foi de 11,8 %, correspondente a 14,6
milhes de analfabetos nas cinco regies do pas, dados do ltimo Censo do IBGE. Em 1992,
a taxa era de 17,2%, o que mostra um declnio de quase 30% em dez anos. Em 2004, os
dados do IBGE mostraram ainda uma forte tendncia universalizao do acesso
educao para as crianas entre 7 e 14 anos: em, 2002, cerca de 97% freqentavam a escola.
Entre as crianas at 6 anos, no entanto, s 36,5% frequentavam creche ou escola. Estes
dados positivos, porm, devem ser encarados como uma melhoria de uma situao que
sempre se manteve precria.
O outro problema, ainda que na mesma ordem, est ligado ao baixo poder aquisitivo do
povo brasileiro. Temos que ter uma poltica cultural clara para a educao, para a leitura e
para o mercado consumidor de livros no Brasil. Tem que existir mais estmulos dos setores
pblicos, das famlias e daqueles que realmente querem um pas mais letrado e com maior
capacidade de reflexo ao enfrentar os grandes problemas da realidade. Tem que haver
uma melhor distribuio dos recursos pblicos e uma melhor poltica (mais transparente e
com mais recursos) para incluir a literatura, a leitura e tudo que advm disso no cenrio da
economia nacional. Sem investimentos nisso, duro ser escritor no Brasil, refere-se Jos
Aloise Bahia.
O fato do livro custar caro colabora com este problema, faltando assim uma poltica de
diminuio dos preos. Segundo alguns escritores, como o caso do romancista Pedro
Maciel, a poltica de difuso de livros no Brasil no homognea: Existe um mercado muito
aquecido para o mercado de livros paradidticos e didticos. O governo brasileiro o maior
comprador de livros didticos do mundo. Tal constatao realmente verdadeira. Os livros
didticos fazem parte de uma rede de interesses privilegiada no mercado de livros do Brasil.
Alguns autores, inclusive, ganham a vida exclusivamente produzindo textos a servios de
editoras especialistas. At a tudo bem, todavia, o fato de privilegiar apenas uma parte do
mercado editorial demonstra o descompromisso com a literatura de maneira geral pelo vis
do governo Federal.
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Na contramo dessa poltica, apesar do grande nmero de livros didticos e
paradidticos, somos um povo que no tem o hbito da leitura e isso cai no debate sobre as
explicaes culturais ou culturalistas. Inclusive nas classes mais favorecidas e
aparentemente mais intelectualizadas. Recentemente houve uma pesquisa que indicou o
baixo nmero de leitores entre os universitrios brasileiros, destacou o contista e ensasta
maranhense Rinaldo de Fernandes, autor do belssimo O Perfume de Roberta. Muitos falam
na crise do leitor, ou do livro, como os estudiosos franceses Pierre Bourdieu e Roger
Chartier. Todavia, de acordo com a romancista carioca Andra del Fuego, mais do que uma
crise do leitor , vivemos uma crise do livro, pois ele um objeto caro e mal divulgado, por
outro lado, ela destaca o fato que H obras de arte por seis reais em banca de jornal, em
toda esquina. Mais um paradoxo nesse contexto, pois diante dos altos preos da maioria
dos livros das famosas editoras brasileiras, existem vrios textos literrios disponveis,
clssicos da literatura e da filosofia, sendo vendidos a preos nfimos em bancas de jornal,
em farmcias e supermercados de todo o Brasil, sem falar nos livros a disposio na
internet. Essas obras, em formato de bolso, esto inclusas na poltica econmica e cultural
de algumas editoras que recentemente fizeram muitos sucessos com lanamentos baratos,
como a L&PM e a Martin Claret, o que incitou editoras mais famosas, como a Companhia
das Letras, a tambm lanarem produtos semelhantes. Entretanto, apesar destas polticas
editoriais, a concluso que se chega da ausncia cada vez maior de leitores e leitoras no
Brasil.
No podemos esquecer ainda das Bibliotecas Pblicas espalhados por todo o pas, e que
deveriam ser sempre uma porta para o hbito da leitura. Abro um parntese para escrever
um pouco da minha experincia neste sentido. Desde adolescente frequento as principais
bibliotecas pblicas da minha cidade, Campina Grande, Paraba, e foi l que aprendi, entre
as estantes e corredores de livros e revistas a tomar gosto pelos livros. No foram as
insistncias e imposies da famlia ou da escola que me fizeram tornar-me um leitor
assduo.
Mas deixando de lado os fatores pessoais e voltando s questes relacionadas aos
fatores culturais de nossa indisponibilidade ou averso a leitura, fica a dvida: ns
brasileiros, seramos bons leitores se houvesse uma melhoria da educao? Compraramos
mais livros caso o poder aquisitivo da populao fosse maior? Como um problema
estrutural, que rompe as barreiras dos tempos e espaos, essas interrogaes caem
infelizmente numa futurologia inconsequente. O que fica como ideal que Ler deveria ser
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um prazer e no um hbito, como bem disse Pedro Maciel, mas muitas vezes se torna algo
penoso e forado, nas escolas e faculdades e no prprio ambiente familiar.
Como j me referi acima, as concepes das repostas dos escritores entrevistados
podem ser compreendidas em duas linhas gerais, que muitas vezes se cruzam. A primeira j
foi trabalhada neste ensaio, ligada s questes sociais e polticas que inviabilizam a prtica
e o consumo de literatura no Brasil. Agora, vamos segunda linha, relacionada s questes
internas do prprio campo literrio (como as dificuldades de publicao, distribuio e
divulgao, ou seja, os dilemas do mercado editorial). Antes devemos compreender a ideia
de campo literrio, indispensvel para pensarmos as tenses entre o escritor, o leitor e o
mercado editorial no Brasil.
V
Questes internas do prprio campo literrio
A literatura no apenas um meio de que a conscincia toma emprestada
para exprimir, tambm um ato que implica instituies, define um regime
enunciativo e papeis especficos dentro de uma sociedade.
Dominique Mangueneau. In: O Contexto da Obra Literria: Leitura e Crtica.
A noo de campo de produo cultural, criada pelo socilogo francs Pierre Bourdieu,
pode ser compreendida como um espao social onde esto situados os que produzem obras
(escritores, poetas, jornalistas, etc.) e o valor intrnseco dessas mesmas obras, nas relaes
recprocas no transcurso de suas atividades. Como assim? Toda obra e artista s existem
dentro de uma rede de relaes visveis ou invisveis que definem a posio de cada um em
relao posio dos outros, ou seja, a uma posio social, em relao a uma posio
esttica. Esse conceito, tambm chamado de campo intelectual (verso mais ampla) muito
explica as complexas teias de relaes existentes entre o escritor, o leitor, a crtica
especializada e o mercado editorial no Brasil e no mundo, por no ver com naturalidade as
relaes entre ambas, explicitando os conflitos muitas vezes encobertos.
A natureza do conceito est na concepo que todo campo tem seus dominantes e seus
dominados, seus conservadores e sua vanguarda, suas lutas subversivas e seus mecanismos
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de reproduo (BOURDIEU), havendo assim uma aproximao entre o prprio campo
literrio com o campo poltico, visto que, segundo o socilogo, tanto num campo como no
outro, trata-se entre suas prticas de uma questo de poder. Aqui como em outros lugares
observam-se relaes de fora, estratgias, interesses, etc..
Estas relaes de fora podem ser exemplificadas muitas vezes nas prprias regras que
so criadas para a publicao, por exemplo, quando um autor consagrado faz um
comentrio positivo ou um prefcio elogioso a um livro de estria de um escritor jovem e
ainda desconhecido. A estratgia existiu e implicou certos interesses polticos internos
dentro do prprio campo. Esta estratgia esta ligada questo do reconhecimento de uma
obra e da entrada de seu autor por parte do campo. Portanto, existem traos equivalentes
entre o campo poltico e o literrio. Nas palavras de Bourdieu (2004): O campo literrio
simultaneamente um campo de foras e um campo de lutas que visa transformar ou
conservar a relao de foras estabelecida: cada um dos agentes investe a fora (o capital)
que adquiriu pelas lutas anteriores em estratgias que dependem, quanto orientao, da
posio desse agente nas relaes de fora, isto , de seu capital especifico.
O capital simblico, citado acima, seria, portanto, o capital de reconhecimento ou de
consagrao, institucionalizada ou no, que os diferentes agentes e instituies
conseguiram acumular no decorrer das lutas anteriores, ao preo de um trabalho e de
estratgias especificas. Este capital simblico ser ento a moeda que far um escritor ser
publicado por uma grande editora, ou no; ser criticado por um critico literrio famoso ou
no...
A teoria do campo literrio de Bourdieu pode ser vista como uma tentativa de
evidenciar que ali onde pensvamos que havia um sujeito livre, agindo de combinao com
sua pretenso mais imediata, existe, na verdade, um espao de foras estruturado que
molda a capacidade de ao e de deciso de quem dele faz parte. , pois, contra certa
concepo de autonomia do sujeito que Bourdieu se insurge de modo enftico. E, ao longo de
seu trajeto intelectual, ele elegeu sucessivos objetos onde seria admissvel detectar a
validade de uma subjacente rede de relaes coagindo os sujeitos: a educao, a moda, a
televiso, a produo intelectual e artstica de uma poca etc. (MARTINS).
Dessa maneira, o que se entende que Bourdieu compreende ento a sociedade como
um campo de batalha operando com base nas relaes de fora manifestadas dentro da rea
de significao. Atitudes, prticas, grupos de poder e deciso, estruturaes de imagens...
So vrios os mbitos que informam o campo ideolgico de uma dada cultura e, para
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compreend-los, o estudioso reconduz, de forma original, o estudo da simbolizao s suas
bases sociais.
Voltando aos dilemas do prprio campo literrio e aos depoimentos de nossos
inquiridos, o poeta e ensasta Cludio Daniel destaca os caminhos difceis de se publicar no
Brasil, que seriam segundo ele: Questes internas do prprio campo literrio. Para aqueles
escritores que esto iniciando a carreira literria, publicar uma tar