Bicha de internet, das Filipinas ou de qualquer outro lugar€¦ · 1 Bicha de internet, das...
Transcript of Bicha de internet, das Filipinas ou de qualquer outro lugar€¦ · 1 Bicha de internet, das...
1
Bicha de internet, das Filipinas
ou de qualquer outro lugar
João Barreto da Fonseca1
Vanessa Maia Barbosa de Paiva2
Resumo
O mundo digital gerou novas possibilidades de visibilidades que, em contrapartida,
ocasionaram novas percepções das diversidades sexuais com a explosão de vídeos que
narram variantes ideológicas, éticas e políticas do corpo. Novos e outros modelos
corporais estão em composição com o ambiente e renegociam sentidos e valores a partir
das narrativas audiovisuais. Pretendemos com este trabalho, analisar os “outros corpos”
que se apresentam a partir das imagens digitais nos clipes de vídeos de Royce Cherdan
Lee (Filipinas), ressaltando as potencialidades dessas narrativas audiovisuais como
produtoras de novas enunciações, problematizações, invenções e sentidos. Os “novos
corpos” pulam nas telas, enriquecendo o debate, subvertendo valores e colocando em
xeque as fronteiras entre as culturas e as possibilidades de aceitação dos corpos e dos
produtos da indústria cultural. Para compor as linhas de pensamento deste texto
convocamos autores como Omar Rincón, Judith Butler, Guacira Louro, Friedrich
Nietzsche, Nízia Villaça e Michel de Certeau. Propomos que a apropriação criativa da
produção audiovisual hegemônica pode ser potente para pensarmos os corpos prescritos,
a aceitação, a abjeção e a invenção.
1 Professor Doutor, pesquisador da Universidade Federal de São João del-Rei (MG). E-mail: jombarreto
@gmail.com 2 Professora Doutora, pesquisadora da Universidade Federal de São João del-Rei (MG). E-mail:
2
Esfera pública digital
A visibilidade do mundo digital gera transformação na percepção das diversidades
sexuais, a notar pelos registros em vídeo, que apresentam variantes ideológicas, éticas
e políticas do corpo neste momento histórico de conexão instantânea e criação de uma
esfera pública digital. Novos corpos, em novas composições com o ambiente, são
criativamente renegociados em seus sentidos e valores, a partir de produtos
audiviosuais.
Imagens e sons, tratados em seus códigos universais, realizados em plataformas móveis
circulam o mundo, ampliam o que se conhece como humano através de geração de
novos pontos de vistas, até então ocultos, subvertendo valores. Novos corpos pulam nas
telas e enriquecem o debate sobre as sexualidades e democratizam as possibilidades de
comportamento, trazendo combinações inusitadas e divertidas, perspectivas dissidentes
e dissonantes, como, por exemplo, os vídeos oriundos das Filipinas, nos quais as
situações improvisadas de filmagem sincretizam com as performances estandardizadas
do cinema ou da televisão.
Royce Cherdan Lee3 é o cara ou a diva, e desde 2014, ficou famoso por suas aparições
na internet, recriando, num universo underground, em condições precárias de recursos
de produção, narrativas criativas e parodias com soluções visuais inusitadas. Seus
vídeos curtos são, de fato, recriações de clipes estadunidenses, em planos-sequências4.
3 Royce Cherdan Lee, segundo informações colhidas na Internet, é Filipino da cidade de Cebu.
Semanalmente, publica vídeos caseiros, com um time de dançarinos amadores, interpretando divas do
mundo pop. Suas performances dublando Beyoncé, Nicki Minai, Meghan Trainor e até mesmo Valeska
Popozuda já chegaram a quase quatro milhões de visualizações. Um site filipino chegou a anunciar que a
própria Meghan havia convidado o grupo para se apresentar no Grammy. Lee desmente o boato: “São
apenas rumores, que é triste”. Disponível em http://noisey.vice.com/pt_br/blog/team-aspo. Acessado em
20/032016.
4 Modo de filmar que evita a fragmentação do mundo real, geralmente utilizado para “perseguir” um
personagem ou demonstrar suas ações.
3
Lee é um rapaz de 21 anos, mas aparenta menos, ao lado de seu grupo de meninos.
Também é uma diva, interpretando clássicos do pop, com desenvoltura e sensualidade
típicas do que é aceito e padronizado como corpo feminino, mas não o feminino das
divas, mas uma estilização combinada com elementos do ambiente onde foram feitos os
registros da câmera. Por esta e outras questões, as adaptações ou versões colocam em
xeque as fronteiras entre as culturas e as possibilidades da aceitação homogênea de
produtos da indústria cultural. E ainda expõem a fragilidade dos procedimentos de
heteronormatização. Mas, antes disso, aproveitando ensinamentos de Butler (2015, p.
107), esse movimento reconstroi e decompõe os afetos que instaura, inspira e sustenta a
condição daqueles sujeitos. É o que tem para hoje e é com essa roupa que eu vou.
Parecem essas as máximas que orienta o grupo de rapazes que, com as poucas
ferramentas que dispõe, gera um universo singularmente divertido..
Nossa intenção é analisar alguns vídeos de Royce Cherdan Lee para sublinhar as
potencialidades das narrativas audiovisuais como produtoras de maneiras de posicionar,
enunciar, problematizar e inventar os sentidos para si mesmo. Royce Cherdan Lee
inventa inéditas formas de experiência, pensamento e imaginação, desativando modos
de atuação instaurados e criando possibilidades. Essas adaptações são também formas
de apropriação do mundo ou nas palavras de Muniz Sodré (2002, p. 144): “O indivíduo
percebe a realidade de seu mundo na medida em que a ele se adapta interativamente”. E
essa interação pressupõe complementação: os rapazes são afetados pelas grandes
produções da indústria cultural mundial e devolve em forma de paródia, na qual a
cultura original é adaptação, criando uma ponte entre o emissor e recetor, que, por sua
vez, devolve a mensagem não mais para o emissor, mas a distribui em rede. Trata-se de
estabelecer uma ponte, mas uma ponte que não elimina a distância, mas cria novos
espaços éticos e estéticos de entretenimento e diversão.
Os apetites do corpo
Os apetites, os prazeres, as alegrias, a vontade de poder são apresentadas com as
ferramentas precárias que possuem, com uma positiva decadência: “O fenômeno da
décadence é tão necessário quanto qualquer ascensão e progresso da vida: não está em
4
nossas mãos suprimi-la” (NIETSZCHE, 2001, p. 45) A vontade, como expressão de
vida, de seu movimento, burla as condições materiais de existência e se apresenta como
autoexposição e aparição.
Em sua versão em vídeo para All about that bass (de Meghan Trainor), em plano-
sequência, Lee sensualiza, acompanhado de rapazes, num cenário natural de uma
comunidade em estado de vulnerabilidade social. O vídeo oficial investe contra o
padrão de corpo que gera a demonização da obesidade5. Na reinvenção de Lee, com os
dançarinos todos magros, o esforço é na transformação de Lee em diva e, para tanto,
compõe uma sensualidade em gostos de mão, expressão facial e mobilidade dos quadris,
compondo uma forma diferente de organização do discurso sexual. Enquanto a versão
original trata de obesidade da sociedade estadunidense, o vídeo filipino é diversão, pinta
(na gíria gay), alegria, paródia, pastiche, recriação.
Para Martín-Barbero (2003, p. 60), esses fenômenos de globalização comunicativa não
podem ser pensados como meros processos de homogeneização. O que está em jogo é a
mudança no sentido da diversidade” Para o pensador, a situação requer permanente
exercício de reconhecimento do que constitui a diferença - uma cultura gerando
enriquecimento potencial em outra. Mas Martín-Barbero alerta que esses movimentos
não podem ser lidos de maneira otimista como eliminação de fronteiras, pois resulta
num movimento paradoxal em que a fronteira desaparece enquanto aceitação da
sensibilidade de algo desenvolvido em território alheio, mas as fronteiras continuam
rígidas em termos de território físico e de conquista de direitos. O vídeo até a data de
fechamento deste texto tinha 3, 9 milhões de visualizações no youtube6, sem salas de
exibição, gerando reações que vão do estranhamento, passando pelo humor, até a
identificação.
As sensibilidades, segundo Rincón (2002), operam como estratégias para imaginar a
diferença em meio ao fluxo caótico e barroso de imagens. A imagem funciona como
5 Disponível em http://www.vagalume.com.br/meghan-trainor/all-about-that-bass-traducao.html. Acessado em 20/03/2016. 6 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=8ujLvk38wVU. Acessado em 20/032016.
5
uma maneira de pensar e narrar a existência. E, segundo Paul Ricoeur, citado por
Martín-Barbero (2003), as identidades se constroem, narrando-se. Como se fosse, para
Martin-Barbero (2003, p. 69), “a reconfiguração do comunicador como mediador
voltado basicamente para o entendimento da comunicação como a colocação em
comum de sentidos da vida e da sociedade” .
“O que implica dar prioridade ao trabalho de ativação, nas pessoas
e nos grupos, de sua capacidade de narrar/construir sua
identidade, pois a relação da narração com a identidade não é
meramente expressiva, mas constitutiva”. (MARTÍN-BARBERO
citando Ricoeur).
Lee se constitui como diva, como as do cinema ou como Beyoncé, em quem se espelha,
na sua forma de fabular um mundo possível a partir de um outro imaginário proveniente
da TV, principalmente o mainstream dos Estados Unidos. Nas produções de Lee,
precárias em termos de recursos técnicos, os segredos da realização, com som ambiente,
tudo o que seria “erro” aparece e também se constitui em uma maneira de comunicar
que não passou pelo processo de “higienização” da edição.
Daí, acaba-se revelando um cotidiano nu, que tem um certo valor de verdade, por não
ter a intenção de primeira modificar a realidade. A mesma música tem duas versões. Na
primeira, a menos acessada, Lee aparece com uma camisa com os dizeres “Don`t worry,
Be Yoncé”. É o fascínio do corpo pop, pesquisado por Villaça (1999, p. 29):
“Fenômenos midiáticos como a performática Madonna, o mutante Michael Jackson são
emblemáticos da importâcia do corpo e suas imagens enquanto campo de
experimentação, automodelagem e expressão”.
Lee reencena o que lhe afeta: os seus gostos, os seus repertórios. É exatamente no ponto
da exibição de seus afetos, sensibilidades, no que diz respeito aos modos de
6
experimentar, saborear, recriar e investir na produção do corpo e de viver os prazeres
que reside a força dos seus vídeos e é também daí que sai sua contribuição a uma esfera
pública digital.
Corredor de rapazes e o Espírito Santo
Os jogos de erros tradicionais entre versão e original pouco dizem a respeito da ousadia
a que o grupo se entrega. Lee, com figurino muito simples, copia o movimento das
divas, sem trabalhar o cenário. Os meninos que o acompanham também aparecem com
trajes simples e aceitam bem o papel de figurantes em todas as produções. Ao erotizar
as produções, recriando vídeoclips com músicas que a princípio não teriam uma
conotação erótica, Lee espalha sua pulsão sexual de diva em todos os produtos com sua
marca, como se estivesse desmistificando o que há por trás dessas produções.
O melhor exemplo disso é a versão para Oh, Holy Night. Na canção natalina, as frases
famosas do reportório gospel são dubladas com movimentos sensuais.
Oh, noite Santa!/As estrelas brilham tanto/É a noite do
nascimento do querido Salvador/Há muito o tempo está
em pecado e erro/Até que Ele apareceu e o Espírito
sentiu o seu valor/Um tremor de esperança, o cansado
mundo regozija/Para fraturas além de uma manhã nova e
gloriosa/Caia de joelhos! Oh, ouça as vozes dos anjos!/O
noite divina, a noite em que Cristo nasceu/Ó noite, O
Noite Santa, Oh noite divina!/Ó noite, O Noite Santa, Oh
noite divina!/Liderado pela luz da fé, serenamente
radiante/Com o coração ardendo por seu berço
estamos/O mundo é uma estrela brilhando
docemente/Agora vêm os sábios de fora da terra do
Oriente/O Rei dos reis, portanto, repousa na humilde
manjedoura/Em todas as nossas provações/nasceu para
7
ser nossos amigos/Ele conhece a nossa
necessidade/Nossa fraqueza, não é um estranho/Eis o teu
Rei! Diante dele se curve humildemente!/Eis o teu Rei!
Diante dele se curve humildemente!/Verdadeiramente
ele nos ensinou a amar uns aos outros/Sua lei é o amor e
Seu evangelho é a paz/Correntes ele quebrará, pois o
escravo é nosso irmão/E no seu nome toda a opressão
cessará/Doces hinos de alegria em grato coro
erguemos/Com todo o nosso coração louvamos o Seu
santo nome/Cristo é o Senhor! Então sempre, sempre
lovaremos/Seu poder e glória, proclamar cada vez
mais!/Seu poder e glória, proclamar cada vez mais!7
Ao som da canção e embalado por frases religiosas, Lee sensualiza e se diverte,
gerando um atravessamento temático e estético, não para romper tabus (Filipinas é
um país cristão), mas para brincar com a sonoridade da canção e aproveitar o fato de
que a música foi gravada por cantores de grande extensão vocal (como, por exemplo,
Mariah Carey), uma das características das divas estadunidenses. O culto do
amadorismo, Segundo Gerace (2015),” impõe o mote da experiência, real, radical e
verdadeira, em prol do ineditismo e do flagra”. Ao divar em cima do Espírito Santo,
7 Disponível em http://www.vagalume.com.br/glee/o-holy-night-traducao.html#ixzz43UOgrXwp. Acessado em 20/03/2016. O Holy Night! /The stars are brightly shining/It is the night of the dear Saviour's birth/Long lay the world in sin and error pining/Till He appeared and the Spirit felt its Worth/A thrill of hope the weary world rejoices/For yonder breaks a new and glorious morn/Fall on your knees! Oh, hear the angel voices!/O night divine, the night when Christ was born/ night, O Holy Night, O night divine!/O night, O Holy Night, O night divine!/Led by the light of faith serenely beaming/With glowing hearts by His cradle we stand/O'er the world a star is sweetly gleaming/Now come the wisemen from out of the Orient land/The King of kings lay thus lowly manger/In all our trials born to be our friends/He knows our need/our weakness is no stranger/Behold your King! Before him lowly bend!/Behold your King! Before him lowly bend!/Truly He taught us to love one another/His law is love and His gospel is Peace/Chains he shall break, for the slave is our brother/And in his name all oppression shall cease/Sweet hymns of joy in grateful chorus raise we/With all our hearts we praise His holy name/Christ is the Lord! Then ever, ever praise we/His power and glory ever more proclaim!/His power and glory ever more proclaim!
8
num país fortemente cristão, onde até hoje as pessoas se oferecem ao sacrifício na
Semana Santa, Lee parece incorporar frases nietzschianas: “enquanto acreditamos na
moral, condenamos a existência” (2011, p. 30) ou “a vitória de um ideal sempre foi um
movimento retrógrado” (2011, p. 65). Lee se esgueira e desfila num corredor de
rapazes para mostrar que tem muitas opções disponíveis.
As produções que conhecemos da comunicação de massa, editados de maneira
industrial mantém uma relativa semelhança em relação aos enquadramentos, cortes e
planos, formando um conjunto estético engessado, que, por sua vez, produz também um
sentido linear. As realizações de Lee, como cópias que não se disfarçam, deixam vazar
os erros, os áudios com ordenamento para os planos-sequencia, fazendo da realização o
seu próprio making off.
Eu existo
Cada pedaço de visibilidade é negociação, um processo de subjetivação inconcluso com
seus afastamentos normativos singulares. Todas as pessoas enfocadas vão se
organizando enquanto a produção se realiza, embora perceba-se um certo nível de
planejamento. Mas Lee se transborda e se rompe a si mesmo como diva/muso,
transitando entre o masculino e o feminino, embaralhando os sentidos de quem os vê,
bagunçando as zonas de conforto, instaurando a incerteza e a precariedade. Na busca de
sabermos quem são, eles nos escapam. “A identidade imobiliza o gesto de pensar,
prestando homenagem a uma ordem. Pensar, pelo contrário, é passar; é questionar essa
ordem, surpreender-se pelo fato de sua presença aí, indagar-se sobre o que tornou
possível essa situação (...)”. (CERTEAU, 2011, p.118)
Lee, embora faça sucesso como muso gay, recria gestual das divas, mas não se monta,
deixando a categorização do que seria feminino nos gestos, na movimentação, nas
escolhas dos repertórios. Da mesma forma que a invenção das raças, a invenção dos
sexos e da diferença sexual (masculino ou feminino) implica que devemos assumir,
reconhecer e declarar o sexo em toda e qualquer circunstância, a todo momento, como,
por exemplo, nos formulários que são preenchidos para matrícula nas escolas, para
9
inscrição em eventos, para fazer compras a prazo e nas pesquisas de audiência ou
intenção de voto que respondemos. Para garantir a normalização e a inteligibilidade dos
corpos, inventamos os sexos/gêneros e ensinamos/aprendemos os modos como eles
devem ser vividos, tendo como matriz a heterossexualidade.
É nessa medida que a pesquisadora Butler (2010) afirma que os gêneros são
performados conforme os discursos e práticas que, ao pretender descrevê-los, os
produzem. Nessa perspectiva, o que os clipes e os atuais estudos sobre gênero e
sexualidade buscam problematizar são os discursos e as práticas que tentam naturalizar
a relação entre corpo-sexo-gênero-orientação sexual produzindo certa normalidade e,
simultaneamente, os seus desvios, num binarismo configurado por
identidades/diferenças que pressupõe ainda, de cada lado, pessoas idênticas entre si.
Os clipes, além de divertirem abrem uma fonte de possibilidade. É claro que não é
novidade na internet vídeos que constroem um novo campo de atuação para a
comunidade LGBT e apresentam a polissemia de novas existências, variedades de seres
que requerem, a partir da visibilidade, o reconhecimento pela estratégia da
autoexposição e aparição, uma vez que o humanismo a que estamos expostos, mantém,
adaptando Butler (2009), uma escala rígida e hierárquica entre os que devem e que não
devem ser prestigiados, homenageados, reconhecidos.
Os vídeos de Lee fragmentam a imagem homogênea do gay de sucesso como branco,
ocidental - o mesmo que tem aparecido nos “posters sociais” sobre casamento entre
pessoas do mesmo sexo e leis antidiscriminação. Essa também é a representação dos
filmes, da publicidade e das novelas, que exclui outros participantes desse movimento
como os gays moradores de rua, de favela, de países periféricos. Os vídeos de Lee que,
a princípio podem parecer cómicos devido à originalidade advinda da precariedade,
também aponta para esses abismos de representação standardizadas da comunidade
LGBT. Então, onde há uma mídia possível, Lee faz sua declaração de existência.
10
Neste sentido, como nos informa Louro (2000), a produção audiovisual exerce uma
sedução e uma autoridade sobre as plateias. O corpo de Lee é o corpo virtualizado que,
segundo Levy (1986), não seria um corpo desencarnado, mas um corpo reinventado.
Para Guattari (1992), Lee já seria uma composição heterogênea, marcada por uma
composição mista de ordem maquínica, biológica, social, imaginária, entre muitas
outras possíveis.
A diva sem maquiagem
Scott (1995), ao teorizar acerca do gênero como uma categoria útil de análise histórica,
diz que “aquelas pessoas que se propõem a codificar os sentidos das palavras lutam por
uma causa perdida, porque as palavras, como as ideias e as coisas que elas pretendem
significar, tem uma história” (p. 71). A autora recupera a trajetória histórica do conceito
de gênero para apresentar a sua própria definição, sabendo-a precária: Minha definição
de gênero tem duas partes e diversos subconjuntos, que estão inter-relacionados, mas
devem ser analiticamente diferenciados. 1) o gênero é um elemento constitutivo de
relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e 2) o gênero é uma
forma primária de dar significado às relações de poder. (SCOTT, 1995, p. 86). Nos
vídeos de Lee, as fronteiras entre as duas concepções de Scott também estão eclipsadas.
Os videos de Lee também não cumpre as expectativas depositadas sobre o masculino
muito menos sobre o feminino. O movimento dos corpos, que, historicamente, foi
sexualizado, encontra-se num beco sem saída. A idealização da feminilidade e as
expectativas sobre o corpo masculino não encontram eco nessas produções. Os homens
não são corpulentos (os badalados sarados) e a diva está de short jeans, camiseta e sem
maquiagem. São corpos em transito, em movimento não apenas físico, mas social.
A construção da subjetividade masculina, que, de acordo com Corneau (1995), acontece
fora do corpo, alimentada por inúmeras informações que ultrapassam o campo das
ideias pessoais, está temporariamente suspensa na produção desses vídeos “caseiros”.
Mesmo em se tratando de um paródia, em que há um modelo, haveria de se esperar o
cumprimento de um protocolo, no qual os campos de subjetivação estariam sujeitos a
11
movimentos não autônomos. Mas como se trata de paródia cultural, de espelho
retorcido, não se percebe o procedimento de servidão involuntária à violência, mas sim
um movimento de prazer a partir de uma identificação com um reconhecimento de uma
alegria num produto de massa.
Em todos os vídeos, há movimentos de aceitação e de burla com o produto parodiado.
Contudo, para Certeau (1994), esses praticantes da cultura inventam, em suas operações
de usuários, outras lógicas e sentidos para o que lhes é oferecido ou imposto informados
por outros interesses e desejos que não são os hegemônicos. Neste sentido, o corpo é
sempre uma relação, diferentes modos de produção de intensidade, de passagem. O
corpo, nesta concepção, é singular e é também coletivo, local de várias inscrições e
significados.
De acordo com Certeau (1994), as práticas cotidianas dos sujeitos ordinários, as pessoas
comuns, praticantes da cultura, são do modo das táticas engendradas com os usos
possíveis do que é imposto (discursos, normas, comportamentos, etc.) e que são
informadas por interesses e desejos dos usuários.
12
Referências Bibliográficas
BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
_____. Deshacer el género. Barcelona: Paidós, 2010.
_____. Vida precaria. Barcelona: Paidós, 2009.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1: artes de fazer. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1994.
____________. História e psicanálise: entre ciência e ficção. Belo Horizonte:
Autêntica, 2011.
CORNEAU, Guy “Paternidade e masculinidade”. In: Sócrates Nolasco (Org.).A
desconstrução do masculino, Rio de Janeiro: Rocco, 1995.
DELEUZE, Gilles.Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992.
GATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Rio de Janeiro: Ed. 34.
1992.
GUIMARÃES, César. Documentário, testemunha do presente. In. FURTADO, Beatriz
(org.). Imagem contemporânea: cinema, TV, documentário, fotografia, videoarte,
games...Vol. 1. São Paulo: Hedras, 2009.
LÉVY, Pierre. O que é virtual. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996.
LOURO, Guacira. Cinema & Sexualidade. Educação & Realidade. Porto Alegre, v. 33,
n.1, p. 81-98, jan./jul. 2008.
___________. O corpo educado. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
MARTÍN-BARBERO, Jésus. “Globalização comunicacional e transformação cultural”.
IN: MORAES, Denis (Org,). Por uma outra comunicaão: mídia, mundialização
cultural e poder. Rio de Janeiro: Recoord, 2003.
NIETZSCHE, Friedrich. A vontade de poder. Rio de Janeiro: Contraponto, 2011.
RINCÓN, Omar. Televisión, video y subjetividad. Bogotá: Grupo Editorial Norma,
2002. SCOTT, Joan. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. In: Educação &
Realidade, jul./dez. 1995, pp. 71-99.
SODRÉ, Muniz. Antropológica do espelho. Petrópolis, Vozes: 2002.
VILLAÇA, Nízia. Em pauta: corpo, globalização e novas tecnologias. Rio de Janeiro:
Mauad, 1999.