Bertheriano · 2019. 9. 20. · SEMEIE JUSTIÇA! Cultive paz e amor, então a vida ˜orescerá...

32
SEMEIE JUSTIÇA! Cultive paz e amor, então a vida florescerá Bertheriano Ano 38 | nº 114 | Mai./Ago. 2016 MISSÃO NO MUNDO África: bela, mas mártir da exploração - 4 MISSÃO NO BRASIL SAV: uma nova proposta - 6 ARTIGOS Voltar ao primeiro artigo da Constituição - 9 Teologia bíblica: prolegômenos - 10 Do lixo brota cidadania - 12 Famílias e pastoral integradora na Amoris Laetitia - 14 JUSTIÇA E PAZ Semear e cultivar... humanidade! - 17 Quanta paz experimenta quem serve os pobres! - 18 Justiça: restaurar ou instituir? - 19 Deixemo-nos inspirar pela Sagrada Família de Nazaré! - 20 Maria em La Salette, modelo de relações humanizadoras - 22 Parceria com Deus - 23 Carta aberta aos nossos mártires - 24 Profecia: um caminho de Fé e Espiritualidade! - 25 TESTEMUNHOS Testamento espiritual: “apostar tudo no amor” - 26 Dom Helder: servo de Deus, servo dos pobres! - 28 AMISAFA Seguir Jesus na missionariedade - 30

Transcript of Bertheriano · 2019. 9. 20. · SEMEIE JUSTIÇA! Cultive paz e amor, então a vida ˜orescerá...

Page 1: Bertheriano · 2019. 9. 20. · SEMEIE JUSTIÇA! Cultive paz e amor, então a vida ˜orescerá Bertheriano Ano 38 | nº 114 | Mai./Ago. 2016 MISSÃO NO MUNDO África: bela, mas mártir

SEMEIE JUSTIÇA!Cultive paz e amor, então a vida �orescerá

BertherianoAno 38 | nº 114 | Mai./Ago. 2016

MISSÃO NO MUNDOÁfrica: bela, mas mártir da exploração - 4

MISSÃO NO BRASILSAV: uma nova proposta - 6

ARTIGOSVoltar ao primeiro artigo da Constituição - 9Teologia bíblica: prolegômenos - 10Do lixo brota cidadania - 12Famílias e pastoral integradora na Amoris Laetitia - 14

MISSIONÁRIOS DA SAGRADA FAMÍLIAPROVÍNCIA BRASIL MERIDIONAL

www.msagradafamilia.com.br

Seja um missionário!

JUSTIÇA E PAZSemear e cultivar... humanidade! - 17Quanta paz experimenta quem serve os pobres! - 18Justiça: restaurar ou instituir? - 19Deixemo-nos inspirar pela Sagrada Família de Nazaré! - 20Maria em La Salette, modelo de relações humanizadoras - 22Parceria com Deus - 23Carta aberta aos nossos mártires - 24Profecia: um caminho de Fé e Espiritualidade! - 25

TESTEMUNHOSTestamento espiritual: “apostar tudo no amor” - 26Dom Helder: servo de Deus, servo dos pobres! - 28

AMISAFASeguir Jesus na missionariedade - 30

Page 2: Bertheriano · 2019. 9. 20. · SEMEIE JUSTIÇA! Cultive paz e amor, então a vida ˜orescerá Bertheriano Ano 38 | nº 114 | Mai./Ago. 2016 MISSÃO NO MUNDO África: bela, mas mártir

22

EDITORIAL

Conselho Provincial:

Pe. Jandir Antonio Haas, msfSuperior Provincial

Pe. Lotário José Niederle, msfVice-Provincial

Ir. Lauri De Cesare, msfSegundo Assistente

Ir. Moacir Filipin, msfTerceiro Assistente

Revisão de texto: Pe. Lotário Niederle, msf

Editoração: Editora IFIBE

Instituto Superior de Filosofia Berthier

Projeto gráfico:Diego Ecker

Capa e diagramação: Elias Fochesatto

Impressão: Gráfica e Editora Berthier

Tiragem deste número: 1.800 exemplares

Distribuição gratuita.

Contato e Pedidos:Província dos Missionários da

Sagrada Família (Brasil Meridional)Rua da Floresta, 1043 - Bairro Petrópolis

Cx. Postal 3056 - CEP: 99051-260Passo Fundo - RS - Brasil

Fone: (54) 3313-2107 | Fax: (54) 3311-2551 E-mail: [email protected]/bertheriano

BertherianoRevista da Província Brasil Meridional dos Missionários da Sagrada Família

Pe. Lotário Niederle, msfCoordenação Provincial

Passo Fundo, RS

O cristão é, por excelência, protagonista! Geraldo Vandré, em Pra não dizer que não falei das flores (1968) cantava: “Vem, vamos embora, que esperar não saber, Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. Protagonizar o bem comum fazen-do prevalecer o direito e a justiça para que haja paz sobre a terra; para que o amor desinteressado e verdadeiro seja cultivado sob o matiz da ética e do humanismo e assim floresça a vida: uma autentica vida! Viver na esperança, não do trivial, mas do esperar proativo; do saber “dar a razão de sua esperança”, como diz o apóstolo Pedro. E, nas palavras de D. Pedro Casaldáliga, “saber esperar, sabendo, ao mesmo tempo, forçar as horas daquela urgência que não permite mais esperar”.

O Papa Francisco, em seu discurso aos Movimentos Populares no dia 09 de julho de 2015, em Santa Cruz de La Sierra, Bolívia, assim se pronunciava:

Precisamos e queremos uma mudança! Queremos uma mudança, uma mudança real, uma mudança de estruturas. Este sistema é insuportável: não o suportam os camponeses, não o suportam os trabalhadores, não o suportam as comunidades, não o suportam os povos. [...] E nem sequer o suporta a Terra. [...] Queremos uma mudança [...] na nossa re-alidade mais próxima; mas uma mudança que toque também o mundo inteiro, porque hoje a interdependência global requer respostas globais para os problemas locais. A glo-balização da esperança, que nasce dos povos e cresce entre os pobres, deve substituir esta globalização da exclusão e da indiferença. [...] Vós sois semeadores de mudança. Que Deus vos dê coragem, alegria, perseverança e paixão para continuar a semear. Podeis ter a certeza de que, mais cedo ou mais tarde, vamos ver os frutos. [...] A Igreja não pode nem deve ser alheia a este processo no anúncio do Evangelho. [...] Estou convencido de que a cooperação amistosa com os movimentos populares pode robustecer estes esforços e fortalecer os processos de mudança. [...] O futuro da humanidade não está unicamente nas mãos dos grandes dirigentes, das grandes potências e das elites. Está fundamental-mente nas mãos dos povos; na sua capacidade de se organizarem e também nas suas mãos que regem, com humildade e convicção, este processo de mudança.

Não podemos fugir do compromisso ético-social e cristão, de sermos agentes de transformação da realidade. Mais do que isto, é necessário fazer a leitura crítica e atualizada dos acontecimentos, na perspectiva da mudança. Esta realidade é, também, política, pois exige participação cidadã, democrática e responsável. A Mensagem da Conferência dos Bispos do Brasil (CNBB) alusiva às eleições 2016, destaca:

A política, do ponto de vista ético, “é o conjunto de ações pelas quais os homens buscam uma forma de convivência entre indivíduos, grupos, nações que ofereçam condições para a realização do bem comum”. Já do ponto de vista da organização, a política é o exer-cício do poder e o esforço por conquistá-lo, a fim de que seja exercido na perspectiva do serviço. Os cristãos leigos e leigas não podem “abdicar da participação na política” (Christifideles Laici, 42). A eles cabe, de maneira singular, a exigência do Evangelho de construir o bem comum na perspectiva do Reino de Deus. Contribui para isso a partici-pação consciente no processo eleitoral [...]. Para escolher e votar bem é imprescindível conhecer, além dos programas dos partidos, os candidatos e sua proposta de trabalho, sabendo distinguir claramente as funções para as quais se candidatam. [...] No discerni-mento dos melhores candidatos, tenha-se em conta seu compromisso com a vida, com a justiça, com a ética, com a transparência, com o fim da corrupção, além de seu teste-munho na comunidade de fé. Após as eleições, é importante a comunidade se organizar para acompanhar os mandatos dos eleitos. [...] Os cristãos leigos e leigas, inspirados na fé que vem do Evangelho, devem se preparar para assumir, de acordo com sua vocação, competência e capacitação, serviços nos Conselhos de participação popular.

Ao celebrar o 170º aniversário da aparição de Nossa Senhora da Salette (1846-2016), padroeira dos Missionários da Sagrada Família, exortamos a cada leitor/a e amigo/a a unirmo-nos em prece e laborioso anúncio da Mensagem da Reconci-liação, no serviço do Reino. Que a vivencia do Ano da Misericórdia nos faça lançar sementes de justiça, cultivando-as com gestos de paz e amor para que possam vicejar em abundante vida, na construção efetiva do bem comum.

Page 3: Bertheriano · 2019. 9. 20. · SEMEIE JUSTIÇA! Cultive paz e amor, então a vida ˜orescerá Bertheriano Ano 38 | nº 114 | Mai./Ago. 2016 MISSÃO NO MUNDO África: bela, mas mártir

África: bela, mas mártir da exploração 4Pe. Celso Both, msf

Testamento espiritual: “apostar tudo no amor“ 26Pe. Ernesto Greiner, msf

Dom Helder: servo de Deus, servo dos pobres! 28Pe. Ivanir Antônio Rampon

Seguir Jesus na missionariedade 30Leandro Lunkes

SAV: uma nova proposta 6Ir. Wanderson Nogueira Alves, msf

Voltar ao primeiro artigo da Constituição 9Leonardo Boff

Teologia bíblica: prolegômenos 10Bertilo Brod

Do lixo brota cidadania 12Volnei Fortuna

Famílias e pastoral integradora na Amoris Laetitia 14Pe. Luiz Alencar Libório, msf

Justiça: restaurar ou instituir? 19Pe. José André da Costa, msf

Deixemo-nos inspirar pela Sagrada Família de Nazaré! 20

Pe. Itacir Brassiani, msfMaria em La Salette, modelo de relações humanizadoras 22

Fr. Ricardo Klock, msfParceria com Deus 23

Pe. Euclides Benedetti, msfCarta aberta aos nossos mártires 24

Dom Pedro CasaldáligaProfecia: um caminho de Fé e Espiritualidade! 25

Fr. Wilson Jorge Lamps, msf

JUSTIÇA E PAZ

TESTEMUNHOS

AMISAFASemear e cultivar... humanidade! 17Gleison Costa França

Quanta paz experimenta quem serve os pobres! 18Pe. Jean Berthier, ms

ARTIGOS

MISSÃO NO BRASIL

MISSÃO NO MUNDO

SUMÁRIO

Page 4: Bertheriano · 2019. 9. 20. · SEMEIE JUSTIÇA! Cultive paz e amor, então a vida ˜orescerá Bertheriano Ano 38 | nº 114 | Mai./Ago. 2016 MISSÃO NO MUNDO África: bela, mas mártir

4

MISSÃO NO MUNDO

África: bela, mas mártir da exploração

O Papa Francisco visitou o continente africano em no-vembro de 2015. Ficou impressionado com a alegria e o acolhimento desses povos e recordou que a “África é bela”, mas “mártir da exploração”. Com as suas mensagens e ges-tos, o papa missionário foi mensageiro da paz, do diálogo, da reconciliação, da misericórdia e do perdão.

Inspirado pelo mandato do Mestre Jesus, “vão pelo mundo afora e anunciem o Evangelho do Reino do Pai a toda a cria-tura” (Mt 28,16-20), partilho com os amigos e amigas a minha caminhada rumo a Moçambique, África. A opção se deve fundamentalmente por ser consagrado de uma Congrega-ção Missionária. Nas minhas veias corre a intuição do nosso fundador Pe. João Berthier: “formar obreiros para uma nova missão”. São diferentes as etapas que se vive entre a opção primeira para uma nova missão e a efetivação da mesma.

Sou religioso MSF há 30 anos. Trabalhei na formação de novos missionários por dezessete anos. Por cinco anos participei da equipe missionária na Bolívia; estive na missão

Amazônica e atuei na animação pastoral das Paróquias do Bairro Pippi de Santo Ângelo e Cunha Porã/Iraceminha. “Deus provê a quem envia”. Nesta certeza, envolvido pela graça de Deus: vivi as diferentes realidades missionárias. Desde que assumimos a missão em Mecubúri, na África, cada mensagem, cada foto, cada vídeo enviados pelos colegas mexia com minhas entranhas: “por que você, Celso, não vai, em Meu nome, servir a este povo?” E foi numa noite de me-ditação e oração que, encorajado, eu disse: “Sim, Senhor, eu vou, eis aqui o Teu servo, faça-se em mim a Tua vontade”. A partir deste momento, confesso, não tive uma situação de dúvida referente à minha opção. Ao contrário, não via chegar a hora de embarque para a África.

Estar pronto para a decolagem rumo ao “além-mar” exige de cada missionário ou missionária um grande ato de des-pojamento. É fundamental aprender, ainda no período de formação, que para a missão o importante é a grandeza do coração: “muito amor, compreensão e abertura de espírito,

Missionários da Sagrada Família: “estar perto dos que estão longe”.

Page 5: Bertheriano · 2019. 9. 20. · SEMEIE JUSTIÇA! Cultive paz e amor, então a vida ˜orescerá Bertheriano Ano 38 | nº 114 | Mai./Ago. 2016 MISSÃO NO MUNDO África: bela, mas mártir

5

e pouco peso nas malas de viagem”. Aliás, o fato de ter que ficar só com o essencial para viver é uma grande bênção para nós, religiosos. Hora de partilhar o supérfluo, aqui-lo que enche um baú de uma transportadora quando se é transferido para outra paróquia. Decidir e partir para a África fez-me sentir, também, a reação de muitas pessoas e comunidades. Há aqueles que, desde o início, veem com alegria a dimensão missionária da própria Igreja sendo for-talecida. Outros, porém, questionam e acham estranha tal decisão: “se aqui faltam tantos padres, se há paróquias sem padre, por que ir tão longe?” Referente a isto, talvez, não seja tão importante falar de missão pensando, apenas, em liturgia sacramental. Mas, o que pode ser motivo de con-versão para nós missionários e para as nossas comunidades de origem é a realidade de vida deplorável desse povo e da grande maioria do povo africano. Jesus, no Evangelho, se converte ao ver aquela multidão doente e com fome, como ovelhas sem pastor (Mt 9,35-38).

Chegar, desembarcar na cultura africana. Um mucuña (branco) que foi chamado por Deus para ser a presença d’Ele junto a este povo. No início, até que parece tudo ser tão igual, como em outros lugares e culturas. Porém, pas-sados quatro meses, reconheço que ainda sou um estranho nesta história toda. Graças a Deus e aos colegas de missão, estou fazendo o curso da língua Macua. Agora valorizo, e muito, as palavras do grande missiólogo Paulo Suess que, ao saber que viria para a África, afirmou: “para a missão é fundamental saber se comunicar na língua do povo”. Somos estranhos por vários motivos: no campo da comunicação, o modo de vida do povo. Como este povo consegue sobrevi-ver com tanta doença e tão pouca comida? Há pessoas que, diariamente, tem como alimento apenas algum pedaço de cana para chupar ou alguns amendoins para comer. Quan-do os têm. Bem sei que nunca serei totalmente de alma africana, mas darei tudo de mim para simplesmente ser um irmão desses e dessas aos quais fui enviado.

Este é o continente africano, com seus 54 países e 01 bilhão e 111 milhões de habitantes. Em um desses países, Moçambique, estamos nós, Missionários da Sagrada Famí-lia. Moçambique tem uma área de 801.590 Km2, com po-pulação de, aproximadamente, 28 milhões de habitantes. Neste belo, mas explorado continente nós encontramos centenas e centenas de missionários e missionárias, de dife-rentes países, doando sua vida, pela vida do povo africano.

Referindo-me, ainda, a visita do Papa à África, o Pontífice deixou um agradecimento especial aos missionários e mis-sionárias por uma “vida de tanto e tanto trabalho, às vezes dormindo no chão, toda a vida. Testemunho: esta é a grande missionariedade, e heroica, da Igreja, anunciar Jesus Cristo com a própria vida”.

Ao encerrar esta conversa, agradeço de coração a todos os colaboradores da AMISAFA. Tenham certeza: cada ofer-ta feita, bem como as vossas orações, salvam vidas aqui na África. Nem todos podem tomar sob seus ombros a baga-gem e voar além-mar. Mas todos podem ajudar com um

grãozinho de areia a construir um mundo mais justo e fra-terno, de modo especial, para estes milhões e milhões de irmãos que não vivem, mas só sobrevivem. Na língua Ma-cua, agradeço: Koxukhuru. Mwa etthoko yowarya, Muluku arerihe itthoko sahu (Obrigado. Por intercessão da Sagrada Família, que Deus abençoe vossas famílias)!

Pe. Celso Both, msfMissionário em Nampula

Moçambique, África

Page 6: Bertheriano · 2019. 9. 20. · SEMEIE JUSTIÇA! Cultive paz e amor, então a vida ˜orescerá Bertheriano Ano 38 | nº 114 | Mai./Ago. 2016 MISSÃO NO MUNDO África: bela, mas mártir

6

MISSÃO NO BRASIL

SAV: uma nova proposta

Em tempos de mudança (ou mudança dos tempos), a Vida Religiosa carrega dentro de si o Kairós perdido de nos-so tempo. Consagrados e consagradas são chamados, antes de tudo, a renascer vocacionalmente, a reposicionarem-se missionariamente para redescobrir a iniciativa de Deus que os chamou a sair de si. Uma vez centrados em Cristo e no seu Evangelho poderão ser sinais de novos tempos tanto para a Igreja, quanto para a sociedade. Papa Francisco, diz que “as pessoas consagradas são sinais de Deus nos diver-sos ambientes de vida, são fermento para o crescimento de uma sociedade mais justa e fraterna, são profecia de partilha com os pequenos e os pobres” (Ângelus, 02 fev. 2014). Des-sa forma, a Vida Consagrada se mostra em sua verdadeira identidade: dom de Deus à igreja e à sociedade.

Os congressos vocacionais no Brasil, promovidos pela Con-ferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e na América Latina, promovidos pela Conferência Episcopal Latino Ame-ricana (CELAM), têm avançado nas reflexões sobre a teologia vocacional. A mudança de nomenclatura de promoção voca-cional para Serviço de Animação Vocacional (SAV) é uma ex-pressão desta mudança. Este é um serviço de toda a Igreja, po-dendo ser dinamizada por uma equipe de Pastoral Vocacional que deve estar dentro de um organograma eclesial.

É comum falarmos sobre o tema, mas sabemos que na prática, animar as vocações é um serviço muito grande. Esse desafio se dá porque seu conteúdo ou é pouco conhecido, ou poucos se sentem convidados a aprofundá-lo, surgindo daí a necessidade de trabalharmos cada vez mais nesta área. E é com sã consciência desta necessidade, na colaboração com tantas pessoas que se doam nas equipes vocacionais,

muitas vezes sem possuir um subsídio que sirva de auxílio. Uma colaboração mais específica é começar elaborando um projeto que apresente de forma mais clara e concisa práticas simples que venham auxiliar as equipes nos diversos âmbi-tos: comunidades, paróquias, dioceses. Eis o passo inicial.

Deus é o primeiro a chamar o ser humano à existência. Feitos à sua imagem e semelhança, conservamos o desejo d’Aquele que nos chama à existência, sendo no mundo, sinal do seu amor (Gaudium et Spes, 14). O dever de fomentar as vocações pertence a toda comunidade dos fiéis. Devemos amadurecer a consciência de que todos somos chamados e, portanto, cada pessoa batizada tem a responsabilidade de viver bem o seu chamado divino para ser sinal de Deus no mundo.

Desenvolver uma equipe ou pastoral vocacional orgânica é desenvolver nas pessoas o desejo de comunidade, e em sintonia com a Igreja. Sua missão é auxiliar no despertar vo-cacional, como um “ajudar a fazer o parto” vocacional. Além de dar acompanhamento no discernimento e cultivo para fa-cilitar o passo da pessoa que ainda não se descobriu vocacio-nalmente, seja na vocação à que foi chamado: leigo, casado, religioso, missionário ou ministerial. O objetivo geral de uma Equipe Vocacional é fomentar o espírito vocacional e missio-nário em todas as comunidades, dando um caráter orgânico e suscitando o amadurecimento das vocações diversas, de forma que acolha e envolva os vocacionados nas diversas ati-vidades comunitárias e da vida eclesial e a pessoa possa fazer uma escolha consciente e determinada a partir de seu cha-mado com cursos, palestras, momentos de reflexão, convites à oração, etc. E que são de muita ajuda para esta finalidade.

Mas, uma grande questão é: como dialogar na atualidade, sobre vocação e missão quando nessa realidade as relações são extremamente liquidas e onde os discursos e realidades parecem desatualizados ou sem ligação conosco e com os outros? E os modelos familiares, eclesiais, até que ponto ainda dialogam com a sociedade? Como nos aproximar das novas realidades e novos tempos, dos novos sujeitos? É necessário propor um novo jeito de ser! Sendo comunidade de fé, aquilo que cremos deve ser o que nos move. Contudo há diversas soluções rápidas e superficiais ou ainda modelos complexos que também não resolvem muito. Mas, encontrar algo que toque na realidade das pessoas é o que realmente importa.

A religiosidade, a espiritualidade, a mística são experiên-cias de Deus, que nos unem. Uma Equipe Vocacional deve proporcionar um espaço de diálogo para o sentido da vida e das coisas, que toque nas diversas dimensões de encontro com o próximo e com a vida. Crise, ao contrário do que comu-mente se pensa não é dificuldade, mas momento de opor-tunidade. Quando o Profeta Isaías pensou em “entregar os pontos” Deus mais uma vez se revelou: “eis que estou fazen-do uma coisa nova” (Is 43,9). Coisa nova não é a coisa antiga de cara plastificada ou remendada. A coisa nova que Deus já

Page 7: Bertheriano · 2019. 9. 20. · SEMEIE JUSTIÇA! Cultive paz e amor, então a vida ˜orescerá Bertheriano Ano 38 | nº 114 | Mai./Ago. 2016 MISSÃO NO MUNDO África: bela, mas mártir

7

está fazendo é o novo ponto de onde devemos partir. O novo desafio que nos leva a uma nova maneira de ser e agir.

O Kairós – tempo favorável – se manifesta na fragilidade, e não na fortaleza. Gedeão, chefe do exército de Israel no tempo dos Juízes, a quem Deus se manifestou, foi capaz de com tre-zentos homens derrotar três mil soldados da terra de Madiã. Ser eleito não é ser o mais valente, mas dispor de sua fragi-lidade e, até, pequenez. Testemunhamos o transcendente--imanente quando somos fracos (2Cor 12,10). Somos sempre os colaboradores da Missão que é de Deus. Em qualquer for-ma de evangelização, o primado é sempre de Deus (Evangelii Gaudium, 12). Não há uma igreja, um grupo ou uma comuni-dade que tenham uma missão. A missão segue em frente sem qualquer instituição, pois quem nos chama a viver e participar da Sua missão é o próprio Deus: a Missão, por sua vez, tem comunidades, equipes, igreja.

Por isso, como igreja, não somos missionantes, mas mis-sionados, e se assim não formos, traímos nossa vocação. Fa-zemos parte, através de Cristo, da vida de Deus. Ser apóstolo significa ser cooperador de Cristo. No Sínodo da Nova Evan-gelização, ocorrido em 2012, os Bispos, na proposição de nú-mero quatro, afirmaram: “a Igreja é continuadora da missão”. Entendido assim, o ato de evangelizar é, antes de tudo, reco-nhecer a primazia da graça de Deus e de, pelo batismo, viver em Cristo. Enfatizar a filiação divina deve levar-nos, como ba-tizados, a uma vida de fé que manifeste claramente a iden-tidade cristã em todos os aspectos de sua atividade pessoal. Com isso também brota a consequente identidade nova da Igreja: ser colaboradora na Missão que é de Deus, buscan-do a salvação e o encaminhamento para o conhecimento da verdade, revelada em Cristo pelo Espírito (cf. 1 Tm 2, 4).

Uma Equipe Vocacional, neste sentido, entende que sua tarefa é transmitir esta forma de pensar, e tocar no mais radi-cal do mandato evangélico de Jesus: “Ir e fazer discípulos” (Mt 28,19). E, nesta postura, coloca-se o discurso das bem-aven-turanças como ponto transformador da própria realidade do ser discípulo. Devemos convidar a todos para seguir Jesus e seu Evangelho. Ser seguidor de Cristo, assim como Ele mesmo propõe, é ser fonte, e não poço. Assim foi a proposta de Jesus no encontro com a samaritana no Evangelho de João, capí-tulo 4: “Colocarei em você uma fonte. Você será uma fonte, por isso não terás mais sede”. Por exemplo: quando dizemos que alguém é religioso, estamos dizendo que essa pessoa ama mais a Deus do que ao próximo, conforme o primeiro testamento, em Números 19,1. Ou seja, estamos na primeira lei. Porém, ser religioso em Jesus, é aproximar-se do próximo: nova lei. Para os Levitas, no tempo de Jesus, a Lei era o que existia de mais intocável, porém, no discipulado de Cristo, escrito na primeira carta de São João: “quem não ama o seu irmão, a quem vê, não poderá amar a Deus, a quem não vê” (1Jo 4,20). Ser religioso é, dessa forma, amar o irmão, e nisso se manifesta o amor que tem a Deus.

Fazer obras é diferente de ser discípulo. Ao invés de ficar-mos reclamando ou esperando que mais pessoas venham ao templo, nossa atitude deveria ser de ir ao encontro, enviar

pessoas para que façam a experiência do encontro. A ade-são a Jesus se dá a partir de um encontro: em cada lar, em cada ambiente de trabalho, em cada gesto, em cada tempo. Ser discípulo não pelo cumprimento de leis, acúmulo de ce-lebrações, mas por uma cultura do encontro interpessoal, de partilha e de sintonia. Ser discípulo, ser vocacionado é estabelecer relações verdadeiras, prazerosas de viver. Esteja num lazer, numa viagem, na reunião ou no horário aperta-do do almoço, mas com alegria de viver fazendo um novo espaço, tempo acontecer (Kairós). Uma equipe vocacional não precisa fazer muito além do que perceber-se vocacio-nada e motivadora de vocações: querer ser e estar de for-ma diferente no mundo. Ser vocacionado, ser discípulo é lançar-se no amor, na acolhida, na fraternidade.

A Teologia Vocacional nos diz que Deus chama para estar com Ele. A vocação, portanto, não se realiza a partir da vida comunitária, mas a partir da missão. E é a partir da missão, por sua vez, que se realiza nosso modelo de vida comunitá-ria. Por vezes sentimos que aquilo que fazemos não é senão uma gota de água no oceano. Mas, como dizia Santa Madre Teresa de Calcutá: “O mar seria menor se lhe faltasse uma gota”. Por isso, uma nova postura cultural, com o cultivo vocacional é fundamental, pois dessa forma faz-se a expe-riência de Deus, fortalece-se a família, o grupo, a comuni-dade. Animação e cooperação missionária tornam-se então expressão de que a missão não é tarefa para especialistas, mas algo que faz parte da identidade e natureza da vida de todo cristão. A animação é elemento primordial da ação ordinária de todas as comunidades para que efetivamente sejam Missionárias (Redemptoris Missio, 83).

Finalizamos esta reflexão com o Documento de Aparecida: cinco necessárias conversões para a Igreja, comunidade e cristãos. A primeira conversão necessária é a atitude Missio-nária institucional: precisamos converter nossas instituições e fazer ressurgir uma nova forma de ser, aberta, dialogal e de encontro. A segunda conversão necessária é a conversão dos corações, ou seja, tornar-se próximo do próximo, atra-vessar a rua do caminho que nos separa, seja na forma de agir ou de pensar. A terceira necessária conversão é a das relações: descentralizar as mentalidades (leigas, clericais e consagradas) em mentalidades à maneira de Cristo. A quarta necessidade é a conversão pastoral, que nos convida a de-sinstalarmo-nos em nível pastoral: nem as ovelhas, nem os currais são os mesmos, não cabem mais nem na linguagem nem no modo de ser em nossa sociedade. Por fim, a quinta conversão necessária toca nas fronteiras: físicas, psíquicas, ideológicas, mas principalmente as existenciais, que todos temos que atravessar, como muito tem nos convidado a fazer com ele, o Papa Francisco.

Ir. Wanderson Nogueira Alves, msfCoord. do SAV-MSF - Prov. Brasil Meridional

Passo Fundo, RS

Page 8: Bertheriano · 2019. 9. 20. · SEMEIE JUSTIÇA! Cultive paz e amor, então a vida ˜orescerá Bertheriano Ano 38 | nº 114 | Mai./Ago. 2016 MISSÃO NO MUNDO África: bela, mas mártir

ARTIGOS

Page 9: Bertheriano · 2019. 9. 20. · SEMEIE JUSTIÇA! Cultive paz e amor, então a vida ˜orescerá Bertheriano Ano 38 | nº 114 | Mai./Ago. 2016 MISSÃO NO MUNDO África: bela, mas mártir

9

Leonardo BoffTeólogo, escritor e professor

Quando há uma crise generalizada como esta que esta-mos vivendo e sofrendo sem perspectiva de uma saída que crie consenso, não temos outra alternativa senão voltar à fonte do poder político, expressão da soberania de um povo. Temos que resgatar todo o valor do primeiro artigo da Cons-tituição, parágrafo único: “Todo poder emana do povo”.

O povo é, pois, o sujeito último do poder. Em momentos em que uma nação se encontra em um voo cego e perdeu o rumo de seu destino, este povo deve ser convocado para dizer que tipo de país quer e que tipo de democracia de-seja: esta, com um presidencialismo de coalizão feito de negócios e negociatas, ou uma democracia de verdade, na qual os representantes eleitos representam efetivamen-te os eleitores e não os interesses corporativos e empre-sariais que lhe garantiram a eleição? Urge avançar mais: precisamos dar forma política ao nível de consciência que cresceu em todos os estratos sociais, mostrando vontade de participação nos destinos do país.

No fundo, volta a questão básica: vamos nos alinhar aos que detém o poder mundial (inclusive de matar todo mun-do) ou vamos construir o nosso caminho autônomo, sobe-rano e aberto à nova fase planetizada da humanidade?

O primeiro projeto prolonga a história ocorrida até os dias de hoje: desde a Colônia, passando pelo Império e pela Re-pública sempre fomos mantidos subalternos. Os ibéricos não vieram para fundar aqui uma sociedade, mas para montar uma grande empresa internacional privada, uma verdadeira agroindústria, destinada a abastecer o mercado mundial. Essa lógica perdura até os dias atuais: tentar transformar nosso eventual futuro em nosso conhecido passado. Ao Brasil cabe ser o grande fornecedor de commodities sem ou com parca tecnologia e valor agregado, num processo de recolonização.

Lamentavelmente este é o intento do atual governo interi-no, especialmente do PSDB, que claramente se alinha a um se-vero neoliberalismo que implica diminuição do Estado, ataque aos direitos sociais em favor do mercado e uma inescrupulosa privatização de bens públicos como o Pré-sal entre outros.

O projeto alternativo finca suas raízes na cultura brasi-leira e no aproveitamento de nossa imensa riqueza que nos pode sustentar como nação independente, soberana e aberta a todas as demais nações. Seríamos uma grande potência, não militarista, nos trópicos, com uma economia, entre as maiores do mundo.

Curiosamente, as jornadas de junho de 2013 e posterior-mente, mostraram que o povo percebeu os limites da for-mação social para os negócios. Quer ser sociedade, quer ou-tras prioridades sociais, quer outra forma de ser Brasil. Numa palavra, quer ser uma sociedade de humanos, coisa diversa

da sociedade de negócios. Tal propósito implica refundar o Brasil sobre outras bases.

Mas, quem escutou o clamor das ruas, especialmente, dos jovens? Efetivamente ninguém, pois tudo ficou como antes.

O que na verdade nos faltou em nossa história, foi uma verdadeira revolução como houve na França, na Itália e em outros países. A história nunca é uma continuidade, algo que cresce organicamente de uma para outra coisa. Ela é feita de descontinuidades e rupturas radicais que derrubam uma ordem e instauram uma nova.

No Brasil, como sempre lamentava Celso Furtado, nunca tivemos essa ruptura. O que predominou em todo o tempo até hoje é a política de conciliação entre os poderosos. O povo sempre ficou de fora como incômodo dos acertos feitos por cima e contra ele.

O que está ocorrendo agora com a tentativa de impeach-ment da Presidenta Dilma Roussef, legitimamente eleita, é de dar continuidade a esta política de conciliação das elites, do capital rentista e financeiro, daqueles 10% (segundo o IBGE de 2013) que controlam 42% da renda nacional. Jessé Souza, do IPEA, os enumera: são 71.440 super-ricos que, por trás, manejam o Estado e os rumos da economia na pers-pectiva de seus interesses, absolutamente egoístas, conser-vadores e antipopulares. Não lhes importa a perversa desi-gualdade social, uma das maiores do mundo, que se traduz em favelização de nossas cidades, violência absurda, gera-ção de humilhação, preconceito e degradação social por falta de infraestrutura, de saúde, de escola e de transporte.

Se o Brasil foi fundado como empresa e para continuar como empresa transnacionalizada, é hora de se refundar como sociedade de cidadãos criativos e conscientes de seus valores.

O meu sonho é que a atual crise com o sofrimento que encerra, não seja em vão. Que ela crie as bases para o que Paulo Freire chamaria de “o inédito viável”: nunca mais co-alização entre os poucos ricos de costas para as grandes maiorias. Que se busque viabilizar o que prescreve a Cons-tituição em seu terceiro artigo (IV): “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”

Fonte: http://www.brasil247.com/colunistas/leonardoboff

Voltar ao primeiro artigo da Constituição

Page 10: Bertheriano · 2019. 9. 20. · SEMEIE JUSTIÇA! Cultive paz e amor, então a vida ˜orescerá Bertheriano Ano 38 | nº 114 | Mai./Ago. 2016 MISSÃO NO MUNDO África: bela, mas mártir

10

Cabe, na minha ancianidade, uma retomada da reflexão sobre estudos dos meus tempos acadêmicos na ótica da espiritualidade

bíblica, ressignificando meu cotidiano existencial.

O entardecer da minha peregrinação me autoriza a ser mais subjetivo do que objetivo...

Restringindo-me, por ora, a alguns prolegômenos da te-mática, considero a Teologia bíblica uma análise metódica da compreensão da revelação de Deus nas Escrituras ca-nônicas do Antigo e do Novo Testamento. É uma disciplina fundacional, indutiva e mediadora em oposição à Teologia sistemática, mais culminante e recapituladora, com base, inclusive, na reflexão de jaez filosófico (Cf. o Aquinate!). A Teologia bíblica tem sua especificidade na abordagem her-menêutica da Bíblia, partindo do princípio de que a Palavra de Deus é textualmente mediada por palavras humanas, em linguagem literária e historicamente contextuadas. É este o seu caráter fundacional que induz, porém, a reflexão à abertura de intermediações que funcionam como ponte entre a busca do sentido genuíno do estudo literário e his-tórico da Escritura e a Teologia dogmática. Indispensável, por isso, é o conhecimento da linguagem literária e do con-texto epocal que deram origem, fizeram reelaborações e culminaram na sistematização dos textos canônicos atuais.

Embasado nestes breves prolegômenos, direciono minha abordagem na defesa da seguinte tese bíblica: o Novo Tes-tamento (NT) é uma releitura do Antigo Testamento (AT), em ordem a Cristo. A Constituição dogmática Dei Verbum caracteriza o AT como “preparação, profecia e prefigura-ção”. É nesta prefiguração que pretendo me deter, pois expressa a categoria da tipologia empregada pelos auto-res inspirados e indispensável na hermenêutica bíblica. As tipologias são correspondências, divinamente pretendidas, entre eventos, pessoas e instituições do AT e sua concreti-zação em Cristo, no NT. Antecipo já, como exemplar, a refe-rência que o evangelista Mateus faz ao retorno da Sagra-da Família do Egito (Mt 2,15), recorrendo à linguagem do Êxodo de Israel do Egito (Ex 4,22; Os 11,1): correspondência de evento. O mesmo Mt fala de Cristo como o novo Moisés legislador: correspondência de pessoas. Cinquenta e uma vezes ocorre em Mt a expressão “Reino dos céus”, sinalizan-do a correspondência entre instituições (realeza davídica e reino messiânico de Jesus). Curiosamente, somente em Mt encontramos assinalado na entrada triunfal em Jerusalém: “Isso aconteceu para que se cumprisse o que fora anuncia-do pelo profeta: Dizei à cidade de Sião: Vê o teu rei que está chegando humilde, cavalgando um asno, uma cria, filho de uma jumenta” (Mt 21,4s.). Se este texto não é encontradi-ço nos outros sinóticos (Mc e Lc) foi útil aos propósitos de Mt, tanto no concernente ao emprego explícito da realeza (mansa e humilde!) de Cristo, inteligível aos destinatários

judeu-cristãos de Mt, bem como prova do cumprimento da Escritura. O cumprimento do tipo é, porém, sempre maior do que o próprio tipo. A tipificação é graduada: insinuada e profetizada no AT; plenificada e cumprida no NT!

Fazendo um pequeno parênteses, detenho-me um pouco no conceito de teologia como “conhecimento de Deus (saber sobre Deus)”. Deus pode ser conhecido? “Videtur quod non”, diria preliminarmente o Aquinate, citando a própria Escritura: “Tu és o Deus escondido” (Is 45,15); “Ninguém jamais viu a Deus” (Jo 1,18); “O único imortal que habita na luz inacessí-vel, que ninguém viu nem pode ver” (1Tm 6,16) [Um colchete dentro do parênteses: no afã de iluminar minhas “noites es-curas” – qual incauto aprendiz dos místicos! – busco revigo-rar meu envelhecimento humano na espiritualidade bíblica, mesmo quando a única fé que me sustenta é a vontade de crer, a exemplo de Terezinha de Lisieux].

A própria Escritura me socorre: Deus pode ser conhecido porque se revelou! “Scriptura est revelatio Dei”. A Carta a Tito me tranquiliza e emociona: “Manifestou-se a graça de Deus que salva todos os homens” (Tt 2,11); “Mas, quando apareceu a bondade do nosso Deus e Salvador e seu amor pelo homem [...]” (Tt 3,4). O testemunho mais profundo e inconcusso me revela Jo 1,14: “A Palavra se fez homem e acampou entre nós”. O “Lógos” se apresenta em pessoa, em carne, se faz simples homem (Gl 4,4) e arma a tenda onde se manifesta sua glória como filho único do Pai que herda tudo: “tudo o que é teu é meu” (Jo 17.12). Revelar sig-nifica dizer algo de si a outrem. Quem revela algo deve dizer algo inteligível e no nível do ouvinte. O modo da revelação continua, porém, velado, por vezes até enigmático: “Agora, vemos como enigmas num espelho; depois, veremos face a face” (1Cor 13,12). Símbolos e sinais visíveis são degraus reveladores do invisível e do inefável.

A Igreja primitiva e os autores inspirados do NT para pre-gar Cristo e expressar sua fé n’Ele releram a Escritura (AT) como meio de tornar Cristo inteligível. Um exemplo para-digmático encontro no início da Carta aos Hebreus:

Muitas vezes e de muitas formas Deus falou no passado a nossos pais por meio dos profetas. Nesta etapa final nos falou por meio de um Filho, a quem nomeou herdeiro de tudo, por quem criou o universo. Ele é reflexo de sua glória, expressão do seu ser, e tudo sustenta com sua palavra po-derosa. Realizada a purificação dos pecados, sentou-se no céu à direita da Majestade; tão superior aos anjos, quanto é mais excelente o título que herdou (Hb 1,1-5).

O autor desta introdução, talvez um discípulo de Paulo, se esmerou com brilhantismo tanto na forma literária como no conteúdo doutrinário. Quanto ao estilo, p. ex., emerge a quíntupla aliteração em “p-” (no original grego), dando so-noridade e cadência ao excerto. A síntese doutrinária é pro-funda e variegada, realçando Deus que falou pelos profetas

Teologia bíblica: prolegômenos

Page 11: Bertheriano · 2019. 9. 20. · SEMEIE JUSTIÇA! Cultive paz e amor, então a vida ˜orescerá Bertheriano Ano 38 | nº 114 | Mai./Ago. 2016 MISSÃO NO MUNDO África: bela, mas mártir

11

Bertilo BrodTeólogo e Professor

Erechim, RS

no AT (opção preferencial pelo Profetismo e não pela Torah/Lei) e que no tempo escatológico falou para nós por meio de um Filho. O Verbo de Deus se fez verbo humano: palavra poderosa que identifica o falar e o agir criador. Em “reflexo de sua glória” e “expressão do seu ser” descreve-se o misté-rio da origem e da natureza de Cristo, recorrendo à imagem do mundo da luz (“Luz da luz” do Credo) e do artesanato que dá forma. Subjazem aqui ideias bíblicas presentes no livro da Sabedoria e da Carta aos Colossenses.

A demonstração da tese da releitura do AT pelo NT em ordem a Cristo fica ilustrada com as seguintes categorias tri-ádicas: os eventos da Criação, do Êxodo e da Realeza, com seus respectivos personagens centrais: Adão, Moisés e Davi e com as três instituições do AT: profetismo, sacerdócio e maná do deserto. Cada um destes três eventos, três perso-nagens centrais e três instituições do AT mereceriam, até com bastante facilidade, análises tipológicas para eviden-ciar sua correspondência, em nível de prefiguração ou de contraste, com a leitura em ordem a Cristo do NT. Como me propus expor apenas alguns prolegômenos à Teologia bí-blica, restrinjo-me a alguns acenos que, numa leitura oran-te da Bíblia, podem servir de “provocação” para alimentar nossa espiritualidade bíblica...

Quanto à Criação: Cf. Is. 65,17: “Vede: eu vou criar um céu novo e uma terra nova”, referindo-se a Gn 1,1: “No princí-

pio, criou Deus o céu e a terra” e sua correspondência em Ap 21,1: “Vi um céu novo e uma terra nova” e Ap 21,5: “Eis que renovo o universo”. Quanto ao Êxodo: Cf. Is. 52,3: “Assim diz o Senhor: Inutilmente fostes vendidos e eu sem pagar vos resgatei”. Correspondência: 1Cor 10,1: “Não quero que igno-reis, irmãos, que nossos pais estiveram sob a nuvem e atra-vessaram o mar”. Quanto à Realeza: Cf. Sl 24,10: “Quem é o Rei da Glória? – O Senhor dos exércitos, ele é o Rei da Glória”. As expressões “Reino de Deus” de Mc e “Reino dos céus” de Mt são equivalentes. Correspondência na 1Ts 2,12: “[...] exortan-do-vos, animando-vos, urgindo que agísseis de modo digno de Deus, que vos chamou para o seu reino e glória”.

A exemplo dos três eventos “relidos” poderia anexar os exemplos de correspondência entre os personagens cen-trais destes eventos (Adão, Moisés e Davi) prefigurados ou contrastados em Cristo no NT, bem como a relação entre as instituições do profetismo, do sacerdócio e maná do AT e sua configuração nova no NT. Deixo este “prazer de casa” para o meu amável leitor do Bertheriano!

Page 12: Bertheriano · 2019. 9. 20. · SEMEIE JUSTIÇA! Cultive paz e amor, então a vida ˜orescerá Bertheriano Ano 38 | nº 114 | Mai./Ago. 2016 MISSÃO NO MUNDO África: bela, mas mártir

12

Volnei FortunaCoordenador do Projeto TransformAção

Passo Fundo, RS

Do lixo brota cidadania

Estudos mostram que nosso planeta não tem condições de suportar tantas atrocidades, como as que o ser humano vem conduzindo para sua manutenção, em excesso. As transformações que estamos observando são oriundas de duas perspectivas, que podemos definir da seguinte forma: temos, de um lado, os que defendem que as transforma-ções planetárias são resultado das ações dos sujeitos que, ao longo de muitos anos, ocuparam-se em destruir a na-tureza e lançar uma quantidade excessiva de gases, resí-duos, desmatamento, poluição; de outro lado, aqueles que defendem que as transformações são resultados da própria evolução do planeta, de modo que a ação do homem não é determinante neste processo.

Em detrimento desta problemática, as questões ambien-tais estão cada vez mais presentes, emergindo como con-sequências de uma crise planetária e humana. A busca por alternativas sustentáveis, deve ser prioridade. Para que este processo se efetive, necessariamente teremos que instigar o sujeito à conscientização, buscando na educação socio-ambiental um meio de transformação de concepções de consumo. Nesta perspectiva temos o desafio, como seres racionais, de qual presente e futuro queremos para nosso planeta. Para isso, precisamos buscar princípios de cadeias produtivas e de ecologia integral que contribuam para a transformação dos resíduos sólidos – lixo – em matéria--prima. Sabemos que na reciclagem e no trabalho dos ca-tadores e catadoras encontramos uma forma de geração de trabalho e renda e a diminuição do impacto ambiental.

Em Passo Fundo, região norte do Rio Grande do Sul, no ano de 2007, a Igreja Católica buscou, através da Campanha da Fraternidade, provocar na comunidade práticas de soli-dariedade com os povos que lutam para preservar a vida e, ao mesmo tempo, estimular iniciativas que enfrentem os desafios de recuperar as condições ambientais nas demais regiões do país e do mundo. A Associação Maria Auxiliadora, a Cáritas Arquidiocesana, a Congregação de Nossa Senho-ra, a Congregação Missionária Redentorista e a Associação dos Missionários da Sagrada Família fundaram a Associação das Entidades do Projeto TransformAção. Esta, assessora de

forma continuada, permanente e planejada cooperativas de reciclagem buscando, através do lixo, trabalho e renda para famílias em estado de vulnerabilidade social. Conta ainda com o apoio das Irmãs Salvatorianas, através do Colégio Bom Conselho, no programa com crianças e adolescentes chamado: Transformação em Arte.

O projeto assessora a Cooperativa de Trabalho dos Reci-cladores do Parque Bela Vista (RECIBELA), Cooperativa de Trabalho dos Recicladores da Santa Marta (COOTRAEMPO), Cooperativa de Trabalho Amigos do Meio Ambiente (CO-AMA) e Associação dos Recicladores Esperança da Vitória (AREVI). Nestas envolvem-se, ao todo, 48 associados/as que trabalham diretamente com a reciclagem, sendo esta, a única fonte geradora de trabalho e renda aos cooperados e famílias.

Os espaços de reciclagem, além de potencializarem o ser humano em sua totalidade, buscam aprimorar a discussão sobre a temática dos resíduos sólidos em espaços públicos e privados, visando a construção de políticas públicas so-ciais efetivas, garantindo os direitos dos catadores e cata-doras na sociedade. Seguindo a lógica do francês Antoine Laurent Lavoisier, o qual afirma que “na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”, o desafio está na sensibilização e conscientização da comunidade, instigan-do-os sobre a importância do reaproveitamento, empe-nhando esforço para a concretude e aplicabilidade dos 5 Rs, que são: repensar, reduzir, reaproveitar, reciclar e recusar-se a consumir produtos que agridam o meio ambiente. Ao dis-correr sobre resíduos sólidos, socialmente, estamos falan-do de pessoas, que encontram na coleta seletiva solidária - reciclagem - inclusão socioeconômica e defesa do meio ambiente, acoplado ao ato de emancipação, protagonismo e conquista da cidadania.

A Associação das Entidades do Projeto TransformAção, sob a direção do Ir. Moacir Filipin msf - seu atual presiden-te - e equipe, tem como objetivo central o cuidar da vida, cuidar da natureza e cuidar das pessoas, com isso, acredita na reciclagem como fonte de inclusão social e viabilidade de trabalho compartilhado. O trabalho realizado por várias mãos, transforma-se em ações concretas. Estas conquistas, refletem na inserção de trabalhadores para o fortalecimen-to humano e cooperativo. Sigamos acreditando na força do trabalho coletivo e na capacidade do ser humano, dando continuidade ao debate e promovendo a convicção de que do lixo brota cidadania!

Page 13: Bertheriano · 2019. 9. 20. · SEMEIE JUSTIÇA! Cultive paz e amor, então a vida ˜orescerá Bertheriano Ano 38 | nº 114 | Mai./Ago. 2016 MISSÃO NO MUNDO África: bela, mas mártir

PRÓXIMOS DAQUELES QUE ESTÃO LONGE

MISSIONÁRIOS DA SAGRADA FAMÍLIA

PROVÍNCIA BRASIL MERIDIONAL

Somos uma Congregação Religiosa Missionária, formada por missionários padres e irmãos, no mundo e para o mundo. Nosso carisma é missionário com ênfase na animação missionária, vocacional e no ser-viço às famílias. A Província do Brasil Meridional atua em várias frentes missionárias: Amazonas, África e Bolívia. Estamos nos meios populares e animamos a Pastoral Paroquial (RS, SC, GO, RJ). Nossa formação inicial acontece em: Goiânia, Passo Fundo, Santiago no Chile e Belo Horizonte. Temos consciência de que as alegrias e esperanças, as tristezas e as angústias dos homens e mulheres de hoje, sobretudo dos empobrecidos e de todos aqueles que sofrem, continuam nos motivando para sermos próximos daqu

e.

Page 14: Bertheriano · 2019. 9. 20. · SEMEIE JUSTIÇA! Cultive paz e amor, então a vida ˜orescerá Bertheriano Ano 38 | nº 114 | Mai./Ago. 2016 MISSÃO NO MUNDO África: bela, mas mártir

14

Famílias e pastoral integradora na Amoris Laetitia

Este texto tem como objetivo principal fazer uma pequena reflexão acerca da Exortação apostólica pós-sinodal Amoris Laetitia (AL – “A alegria do amor”) do papa Francisco sobre “o amor na família”, datada de 19 de março, festa de São José.

Essa Exortação leva em consideração os resultados de dois Sínodos (2014 e 2015) sobre a Família, convocados pelo Papa Francisco, como também documentos e ensinamentos dos seus Predecessores e as numerosas Catequeses sobre a Família do próprio Papa Francisco.

O Santo Padre recorre também às contribuições de diversas Conferências episcopais de todo o mundo, citando, também, como enriquecimento, personalidades importantes como Martin Luther King, Erich Fromm.

Este artigo estrutura-se da seguinte forma: 1- Os tipos de família no Brasil de hoje e suas dinâmicas; 2- Atitudes pas-torais básicas segundo a Exortação: acolher, acompanhar, discernir e integrar (AL, 291-312 do Capítulo VIII).

Tipos de famílias e suas dinâmicas

No Brasil contemporâneo, segundo o IBGE e outras fon-tes, os tipos de família mais comuns, com suas respectivas dinâmicas, são os seguintes:a. família de origem (ampliada): no passado, quase sem-

pre patriarcal (o poder de cima para baixo); hoje, mais democrática, com pouca influência da família nuclear por diversas razões (geográficas, valores, cosmovisões,

religião diferente, tempo, finanças, diferenças de educa-ção e cosmovisões, evitar interferências invasivas na pri-vacidade da nova família, autoafirmação, liberdade para construir seu próprio modus vivendi) (LIBÂNIO, 2002);

b. família nuclear: patriarcal e/ou democrática: introverti-da, extrovertida, anômala, irresponsável, crianças aban-donadas, jogadas no lixo ou pelas janelas e tantos outros tipos de dinâmica;

c. casal sem filhos: paixão ou amor enviscado (pegajoso), identificação projetiva, medo da triangulação perversa, narcisismo secundário forte, irrealização por não ter fi-lhos por causa das finanças, infertilidade, impotência e outras causas (homossexualidade);

d. casal com filhos do responsável e do cônjuge: responsá-vel e cônjuge ou companheiro (a) com filho (a) somente do responsável são 4,8%; responsável e cônjuge ou com-panheiro (a) com filho (a) somente do cônjuge ou com-panheiro (a) são 3,6%. Do total de indivíduos investiga-dos pelo Censo (2010), 30,2% estavam na categoria de responsáveis pela unidade doméstica. Desses: homens, 61,3%; mulheres, 38,7; 40,5%, entre 40-59 anos. No Brasil, 1/3 das unidades domésticas tinha mais de um responsável: compartilhamento de UD com apenas 1 responsável são 31,8% das pessoas. A dinâmica em geral é muito complexa pela agregação querida ou não de di-versos núcleos com vivências de valores os mais diversos tanto da parte do(a) responsável quanto do cônjuge;

Page 15: Bertheriano · 2019. 9. 20. · SEMEIE JUSTIÇA! Cultive paz e amor, então a vida ˜orescerá Bertheriano Ano 38 | nº 114 | Mai./Ago. 2016 MISSÃO NO MUNDO África: bela, mas mártir

15

e. mulheres/homens sem cônjuge e com filhos (mono-parental): sentimento de abandono (morte ou desapa-recimento do cônjuge); angústia pelo amanhã incerto seu e dos seus filhos (financeiro, educacional); impotên-cia diante da vida; desespero, violência, inversão de va-lores, sem sentido para a vida (“Bolsa Família” tem sido uma real ajuda);

f. família sem núcleo (duas ou mais pessoas): solidarie-dade, afeto, vazio afetivo, desamparo, apoio mútuo, dificuldades financeiras, indefinição com relação ao futuro, luta pela sobrevivência, conjunto de ideais al-truísticos e outros tipos;

g. família múltipla (2ª ou 3ª união): afetividade e convi-vência rompidas; não conta só a consanguinidade; Fra-ternidades forçadas; Adaptações de coração ao múltiplo; vivências incertas da afetividade (feridas generalizadas do passado); Desconfiança ou confiança; Tentativas de construção da felicidade pessoal e grupal (familiar). Di-nâmica de duas gerações: Tipos de educação diferente, sentimento de exclusão familiar, eclesial e social;

h. família homossexual (60 mil unidades domésticas no Brasil- IBGE 2010): vivência de uma homoafetividade e sexualidade condicionada (grande maioria) ou escolhi-da; realização psicoafetiva (não visceral) da paternidade e maternidade; para as crianças (filhos) possível proble-ma na superação do Complexo de Édipo (Electra) se não houver figura substitutiva; necessária preocupação para com situações culturais, especialmente para as crianças (como dia dos pais, das mães, crianças no colégio, etc.); sentimento de solidariedade e oblação radicais;

i. Família unipessoal (sem núcleo): As mais diversas, prin-cipalmente o abandono afetivo e, muitíssimas vezes, a carência de quase tudo além da incerteza em relação ao futuro.

j. Família com fantasma (animista, manista): No Oriente, em certas religiões (Taoísmo, Confucionismo, Xintoísmo), quando alguém querido da família morre, torna-se um ancestral (Manes: manismo), permanecendo vivo no seio da família, protegendo-a, cuidando dela! Entre os índios e negros brasileiros, as almas dos “encantados” que estão presentes na vida familiar também do oci-dental. Na sala principal da residência, os membros da família colocam seu(s) retrato(s) num lugar de destaque e lhe(s) oferecem diariamente incenso, flores e a comi-da preferida dele(s/as).

Atitudes pastorais básicas segundo a Exortação: acolher, acompanhar, discernir e integrar (AL, 291-312)

Segundo o Papa Francisco, os membros das Igrejas parti-culares, vigentes os pastores, devem se exercitar profunda-mente na mudança de uma mentalidade egoísta para uma altruísta, acolhendo com muito amor todas as pessoas como filhos de Deus.

Só se acolhe, se se ama. E para amar é necessário ver com o terceiro olho (1°: os olhos; 2°: a razão e 3º: o coração) o Cristo presente nos outros, especialmente os mais necessi-tados (Mt 25, 31-46).

A segunda atitude pastoral básica, segundo o Papa Fran-cisco, é acompanhar.

Temos de adquirir tempo em nossas pastorais para ir onde estão as ovelhas e não esperar que elas venham a nós. É ne-cessário sair dos tronos sacerdotais e episcopais para ir atrás das ovelhas desgarradas, abandonadas e acompanhá-las em suas necessidades materiais, psicoafetivas e espirituais como faz o Bom Pastor: Jesus! Quem ama, cuida!

A terceira atitude pastoral básica é discernir. Discernir, em nível pessoal e comunitário. O discernimento tem que levar em conta que a consciência bem formada (voz de Deus em nós!) é mais importante do que a dureza e “segu-rança” da Lei, algo típico dos fariseus de ontem e de hoje.

Feito o discernimento, somos chamados a integrar todos no processo de salvação sem discriminações, inclusive no que diz respeito aos sacramentos, especialmente o da Euca-ristia. O papa Francisco, no número 47 da Evangelii Gaudium e na nota 351 da Amoris Laetitia, citando Santo Ambrósio e São Cirilo de Alexandria, defende que a Eucaristia “não é um prêmio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os fracos” (EG, n. 47).

Se nós, pastores, assim agíssemos, em nossas paróquias e no processo educativo, seríamos muito mais verdadeiros anunciadores do Evangelho de Jesus Cristo.

Conclusão

Como se pode perceber, com essas poucas páginas, a Exortação apostólica Amoris Laetitia pretende reafirmar com força não o “ideal” da família, mas a sua realidade rica e complexa, em suas estruturas e dinâmicas. Há, em toda Exortação, um olhar aberto e positivo, que se baseia não em ideais quase impossíveis, mas numa concreta atenção pas-toral à realidade circundante e circunstante de cada pessoa que devemos: acolher com amor, acompanhar com solici-tude, discernir com sabedoria evangélica e integrá-la com carinho e sem medos na comunidade paroquial, educacional e social com o olhar fixo em Jesus Misericordioso.

Referências

BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulinas, 2010.FRANCISCO. Evangelii Gaudium. São Paulo: Paulinas, 2015.FRANCISCO. Amoris Laetitia. São Paulo: Paulinas, 2016.LIBÂNIO, J.-B. A religião no início do milênio. São Paulo: Loyola, 2002.LIBÓRIO, Luiz A. Slides sobre as famílias. Recife, PE: UNICAP, 2016.

Pe. Luiz Alencar Libório, msfProfessor e doutor em Psicologia

Recife, PE

Page 16: Bertheriano · 2019. 9. 20. · SEMEIE JUSTIÇA! Cultive paz e amor, então a vida ˜orescerá Bertheriano Ano 38 | nº 114 | Mai./Ago. 2016 MISSÃO NO MUNDO África: bela, mas mártir

JUSTIÇA E PAZ

Page 17: Bertheriano · 2019. 9. 20. · SEMEIE JUSTIÇA! Cultive paz e amor, então a vida ˜orescerá Bertheriano Ano 38 | nº 114 | Mai./Ago. 2016 MISSÃO NO MUNDO África: bela, mas mártir

17

Uma mãe em prantos e ao desespero clama por justiça, ao ter seu filho morto em um assalto. Um empregador diz que é justo o valor pago a uma moça que trabalhou debaixo de sol escaldante e em meio a nuvens de poluição veicular e sonora, vendendo balas e outros tipos de alimento, sem sequer ter dinheiro ou tempo para comer. Um eletricista de-sempregado caminha várias horas, de sua casa até o local de trabalho, para realizar aquilo que sabe fazer; vai a pé por não ter outro meio e acaba voltando de mãos vazias para sua casa sem receber, por não ter concluído o serviço e nem lhe deram a passagem para retornar no dia seguinte! Ain-da, voltará amargurado, abatido e com lagrimas nos olhos, porque passará mais um dia, juntamente com sua família, com a fome já sentida na véspera. Outro homem considera injusto, depois de anos de dedicação na empresa em que trabalhava, não receber a promoção a um cargo e melhoria de salário: perdeu para outro mais jovem, que foi avaliado melhor e considerado mais oportuno para o posto.

Justiça: palavra, de fato, muito bonita! Eu arriscaria dizer que sua escrita e som são até mesmo imponentes. Sua eti-mologia cheia de sentido, significado claro e objetivo. In-felizmente, na prática, assim como os conceitos de amor e paz, não faz jus à sua etimologia. Justiça, como sabemos, tem sua origem etimológica do latim cujo significado é dar ou realizar o direito, fazer jus a uma causa ou pessoa. Tam-bém dizemos que “aquela tal pessoa” é justa, ou seja, cor-reta, íntegra na relação com o outro, perante normas e/ou leis estabelecidas. A Sagrada Escritura está cheia da palavra “justiça”, seja no primeiro ou segundo testamento e, seu contexto (quando e porque é usada), também é variado (podemos tomar como exemplo Deuteronômio 32,4; Salmo 7, 7-12; Mateus 5,20; Efésios 6, 13-17).

As histórias descritas inicialmente não são de filmes, seriados ou novelas. Mesmo que fossem, mostrariam como é a realidade concreta do nosso dia-a-dia. Pergunto-me: como poderíamos semear e cultivar frutos de justiça em meio ao caos político, econômico e social que, já há décadas (ou até séculos), esta-mos vivendo? O tempo e a atualidade nos cobram não somente uma resposta, mas uma atitude concreta para reavivar em nós a crença na pessoa humana. Ser capaz de pensar, analisar e decidir pelo melhor caminho em vista do bem comum. Entre as várias possibilidades de resposta, volto à Sagrada Escritura, pois, como cristãos, acreditamos, por uma fé experiencial, na justiça de Deus que é infinitamente distinta da dos homens.1

1 Em Isaías 61,8 lemos: “Porque eu, o Senhor, amo a justiça e odeio o roubo e toda maldade”. Em Jó 37,23: “Fora de nosso alcance está o Todo-poderoso, exaltado em poder; mas, em sua justiça e retidão, não oprime ninguém”.

Ele em tudo é integro, correto, justo e fiel. Incapaz de cometer erro, maldade ou falsidade, espera de nós, seus filhos, as mes-mas atitudes: justiça, reto agir, bondade e amor.

O evangelista Mateus nos dá várias pistas sobre o que é ou como é a justiça de Deus. Uma destas pistas, sempre ins-tigante por sinal, é quando Jesus nos diz: “Se a vossa jus-tiça não for maior do que as dos escribas e fariseus, vós não entrareis no Reino dos céus” (Mt 5,20). Não entrando no mérito teológico desta passagem, sabemos que os douto-res da lei eram fiéis observadores da Torá, mas não cum-pridores. Cumprir a lei na íntegra é uma tarefa difícil, por certo. Não obstante, Jesus convida a seus seguidores a as-sumir uma justiça maior do que aqueles que somente eram observadores e impunham aos demais o julgo da lei. Não apresentavam para o povo sofrido da época o rosto de um Deus que está sempre a favor de seu povo e, de modo sem-pre especial, ao mais desvalido. Jesus nos mostra em que consiste esta “justiça maior” que devemos viver, mais do que somente observar (Mt 5,21-42).

Jesus nos deixou claro que o Reino dos céus pertence aos que são pobres e aos que são perseguidos por praticarem a justiça. Na maioria das vezes, esperamos no outro a mu-dança que se deseja em uma sociedade até então egoísta, individualista e cada vez mais fechada em si mesma; esque-cendo que sociedade é cada um de nós. Mudanças não são grandes atos, mas pequenas atitudes de compaixão, genti-leza e solidariedade, que contam com uma adesão pessoal e consciente. Começando por si mesmo, a justiça de Deus co-meça a se manifestar e, com isso a ser capaz de contagiar a todos os demais. Se cada pessoa, cristã ou não, for ineficien-te em sua maneira de ser “homem de boa vontade”, justo e solidário para com a humanidade que também faz parte de si, tal “como as coisas estão, o amanhã nunca poderá ser [mais uma vez] com sol” (Paredes. 2011, p. 4).

Que sejamos eficientes, à maneira de Deus, no cultivo do amor, da justiça, e da paz!

Referências

PAREDES, Mauricio. La Cama Mágica de Bartolo. 2. ed. Santiago, Chile: Alfaguara, 2011.

Semear e cultivar... humanidade!

Gleison Costa FrançaNoviço MSF

Santiago, Chile

Page 18: Bertheriano · 2019. 9. 20. · SEMEIE JUSTIÇA! Cultive paz e amor, então a vida ˜orescerá Bertheriano Ano 38 | nº 114 | Mai./Ago. 2016 MISSÃO NO MUNDO África: bela, mas mártir

18

Pe. Jean Berthier, msFundador dos Missionários da Sagrada Família

Anotações no final do retiro, no dia 02 set. 1865

Quem pretende ser guia de si mesmo está se entregando a mãos insensatas. Eu não serei feliz e não renderei a Deus qual-quer glória se não me despojar de tudo por amor a Ele e não procurar realizar sua vontade em minhas ações. Não posso me iludir comigo mesmo e tomar minha própria vontade como agradável a Deus. Por isso, serei obediente. E isso não apenas exteriormente, mas de coração, e não somente naquilo que se refere aos trabalhos exteriores. Já que não posso ser obedien-te sem amar a Deus, esforçar-me-ei para fomentar em mim o espírito de submissão mediante o espírito de oração.

“Orai e vigiai para não cairdes em tentação! Tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome eu vos darei! Dai-me, Senhor, o espirito de oração!” Preciso rezar bem de manhã e de noi-te. A oração é o mais poderoso meio para a santificação pessoal, o principal dever do sacerdote, a ajuda mais forte

Quanta paz experimenta quem serve os pobres!

na conversão dos pecadores e a salvação das almas. Assim, oração e preparação da oração através de uma pequena lei-tura. Minha salvação depende da oração constante, e isso supõe recolhimento. Por isso, amarei minha cela e guardarei o silêncio tanto quanto possível.

Antes de subir ao púlpito, rezarei com ardor e me con-vencerei de que, sozinho e por mim mesmo, sou incapaz de fazer o bem a quem quer que seja. Pedirei ao Divino Salva-dor a Palavra eterna que devo falar aos corações e às men-tes. Como não posso exercer os ministérios da pregação e da confissão sem uma preparação muito séria, esforçar-me--ei para jamais perder tempo, realizando com agilidade os trabalhos materiais e exteriores a fim de me reservar algum tempo para o estudo.

Meu Deus, eu te amo e devo ser inteiramente teu, pois me adquiristes pagando um alto preço e me perdoaste muitas vezes quando, por ter abusado da vida, eu deveria ser engolido pela segunda morte. Tu és o criador e nós so-mos apenas o barro. Tuas mãos me fizeram e me deram for-ma. Não tenho nada que me pertence a não ser o pecado, e tu sabes, Senhor, que minhas iniquidades se amontoaram, ultrapassam a altura da minha cabeça e me oprimem como uma carga pesada.

Senhor, não mereço ser honrado por aquilo que recebi de ti e que não recebo por pretensos méritos que, aos vossos olhos, são iniquidades. Com mais razão, evitarei fazer com que me elogiem, nada farei motivado pelo amor próprio e não direi sequer uma palavra de elogio a mim mesmo. Quando me surgir um pensamento de amor próprio, farei minha alma repousar na paz e na verdade, e em seguida perseguirei o pensamento para combatê-lo.

Senhor, faz que eu exerça o serviço que me confiaste com dedicação, sobretudo aos pequenos e pobres. E que eu faça isso por amor a ti, pois quiseste fazer-te pobre e pequeno para nossa salvação. E para edificar-nos escolheste os pobres, e dei-xaste as crianças se aproximarem de ti. Meu Deus, quanta paz experimenta quem serve os pobres! Quanta paz encontramos quando nos colocamos nos últimos lugares e amamos a hu-milhação! “Aprendam de mim, porque sou manso e humilde de coração, e vocês encontrarão descanso para suas vidas” (Mt 11,29). O orgulho só provoca confusão, porque é desordem. A verdadeira honra é se assemelhar a ti pela humildade!

Page 19: Bertheriano · 2019. 9. 20. · SEMEIE JUSTIÇA! Cultive paz e amor, então a vida ˜orescerá Bertheriano Ano 38 | nº 114 | Mai./Ago. 2016 MISSÃO NO MUNDO África: bela, mas mártir

19

Pe. José André da Costa, msfProfessor e Diretor-geral do IFIBE

Passo Fundo, RS

Justiça: restaurar ou instituir?O que evoca em nós a palavra justiça? Temos como praticar

a justiça? Como fazer justiça aos que sofrem a injustiça? Mas, o que é justiça? A justiça pode ser restaurativa, como hipóte-se de que se pode fazer justiça à vítima. Mas isso é possível? Pondo-nos entre a vítima e o algoz, de que lado fica a justiça? O agressor comete a violência à vítima, que fica injustiçada. O crime é uma violação das pessoas e dos relacionamentos. Cria obrigações para fazer as coisas bem feitas. O assassinato é a violência que ausenta o vitimado radicalmente: como é possível restaurar e fazer justiça ao assassinado se este está ausente? Por outro lado, fica também difícil aceitar que entre assassino e assassinado (a vítima) possa haver espaço para instituir justiça. A justiça envolve a vítima, o ofensor e a so-ciedade que cria o direito positivo para buscar soluções para promover o acordo, a reconciliação e a segurança. Mas o di-reito faz justiça? Até que ponto a justiça não é mais institutiva (contra o instituído) que restaurativa? Por isso, para praticar a justiça às vítimas tem-se que, muitas vezes, ir contra o direito.

Sentimos tanto a justiça como a injustiça. Frente à injustiça é possível articular a justiça como restaurativa do prejuízo causa-do à vítima. A justiça é, em primeiro lugar, um direito à palavra. Assim, é preciso instaurar a justiça no conflito antes que ele se transforme em violência. É preciso primeiro instaurar a justiça para depois pensar na possibilidade de restauração. Mais do que isso, a justiça é antes institutiva do humano, anterior inclu-sive à instauração e à restauração. A restauração só é possível depois da violência consumada, depois da agressão que, mui-tas vezes, termina no assassinado: mas, é possível restaurar a justiça? Como avaliar se um ato fez justiça e se a justiça foi feita em ato? A justiça é sempre uma atitude criativa que dignifica o ser humano e a injustiça é um ato que atenta contra a digni-dade do ser humano. A injustiça dá o que pensar... E a justiça?

O pensar e o criar são os primeiros conteúdos que consti-tuem a aventura da convivência humana. Por isso, a nossa re-lação primeira é sempre plural, porque tanto a justiça como a injustiça só são praticáveis na relação múltipla. A todo ins-tante, em todas as nossas ações somos chamados à respon-sabilidade para transformar nossos atos em um agir no qual se justifique a justiça. Mas é possível ser justo com o Outro?

Falar do Outro não é estar perto de quem se aproxima de nós, mas é falar da resposta que dou à interpelação dele. Mas quem é esse Outro? Esse Outro não é só meu amigo/a, vizinho/a, irmão/ã. A relação com o Outro nos leva de ime-diato a reposicionar o nosso modo de ser com ele, exigindo proximidade e convivência. A relação com Outro não é de tolerância, mas de solidariedade, porque tolerar é neces-sário, mas a tolerância é insuficiente, pois se trata de abrir concessão ao Outro. A relação com o Outro é muito mais do que tolerância, a relação com o Outro exige solidariedade. A resposta à interpelação do Outro abre a possibilidade de aceitação e de convivência com ele sem estratégia.

A solidariedade é aceitar presença do Outro com quem preciso conviver. Ele bate à minha porta e cruza meu ca-minho sem aviso prévio. A solidariedade é a face material da justiça, como ato primeiro do relacionamento humano.

O outro nos cumprimenta e clama por hospitalidade/aco-lhida. Sobre o Outro não tenho qualquer controle. Ele pode ser cordial ou agressivo comigo e dele posso esperar afabilidade e agressividade. Encontrar com o Outro ou ir ao seu encon-tro é sempre um ato de liberdade. A questão de fundo é: será possível encontrar com o Outro, o diferente, numa relação ros-to a rosto, numa relação de “olho no olho”? Como é possível ouvir a palavra do Outro? Estar no “espaço” da justiça significa dizer ao Outro a dor da agressão dele ou escutar os motivos da violência por ele sofrida. Neste sentido, a justiça é instituinte.

O exercício da justiça acontece no encontro plural dos se-res humanos diferentes. Só assim é que pode haver lugar para a justiça ou para a indiferença com o Outro. Olhar o rosto do Outro é uma atitude ética. Por isso visualizar o rosto do agres-sor já é um modo de falar-lhe e de abrir o caminho para a responsabilidade e a solidariedade na relação entre agressor e agredido. É neste universo adverso que se abre a possibili-dade do diálogo ético de respeito com a alteridade do Outro.

A reflexão necessária a fazer é: perguntar pelo modo como vivemos, como se dão as nossas relações; no fundo é saber como conduzimos a resolução dos conflitos. Se a justiça é a “meta” para mediação dos conflitos, então a reflexão racional resulta das perguntas como uma forma de convite para abrir-nos à interpelação do Outro. Mas, a justiça é também condição para toda e qualquer mediação, instituinte, portanto, de qualquer relação possível.

A convivência é mais do que tolerância, porque exige pen-sar e responder ao Outro que bate à porta clamando por jus-tiça. Responder ao apelo do Outro é um gesto de hospitalida-de que me leva a conviver com ele. Fazer justiça à vítima é um gesto de compromisso ético. Isto começa no olhar, porque o olhar já é palavra e a resposta ao olhar já é pronunciamento de acolhimento ou de rejeição da possibilidade do diálogo.

A justiça é antes de qualquer resultado calculável ou de cronologia, um direito da vítima à palavra. Mas como a ví-tima fala? Só tem sentido falar de justiça restaurativa se ela assegurar o direito da vítima pronunciar sua palavra. Mas isto é, antes, institutivo do que restaurativo! Se a justiça res-taurativa dá o que pensar, a justiça institutiva é condição para que aquela possa ser pensada.

Page 20: Bertheriano · 2019. 9. 20. · SEMEIE JUSTIÇA! Cultive paz e amor, então a vida ˜orescerá Bertheriano Ano 38 | nº 114 | Mai./Ago. 2016 MISSÃO NO MUNDO África: bela, mas mártir

20

Deixemo-nos inspirar pela Sagrada Família de Nazaré!

Desde sua juventude, nosso Fundador sentiu-se atraído por uma vida simples e humilde, dedicando-se aos mais po-bres. É isso que percebemos nas anotações feitas no retiro de preparação para sua primeira profissão religiosa: “Meu Deus, quanta paz experimentam aqueles que servem aos pobres. Quanta paz experimentam aqueles que se colocam em último lugar, aqueles que amam a humilhação. Que gra-tificante é tornar-se semelhante a ti pela humilhação!” En-contramos aqui traços de um apreço especial pela espiritua-lidade de vida simples e escondida da Sagrada Família, que mais tarde será desenvolvida pelo próprio Padre Berthier.

A devoção à Sagrada Família conheceu um notável desen-volvimento no decurso do século XIX e ensejou a fundação

de várias associações leigas e congregações religiosas coloca-das sob seu patrocínio. Com o objetivo de estimular esta de-voção, especialmente no seio das famílias operárias, o Papa Leão XIII publicou, em 14 de junho de1892, o documento Neminem Fugit. As reflexões e exortações deste documento oficial da Igreja tiveram grande influência sobre o Padre Ber-thier, especialmente em relação ao nome e à espiritualidade da comunidade missionária que ele projetava iniciar.

Enquanto modelo de espiritualidade, a Sagrada Família tinha uma relevância singular para o Fundador. Para ele, esta era a motivação e a estratégia mais adequada para criar laços de fraternidade entre jovens que procediam de distin-tos países. Além disso, na Sagrada Família, o Padre Berthier

Page 21: Bertheriano · 2019. 9. 20. · SEMEIE JUSTIÇA! Cultive paz e amor, então a vida ˜orescerá Bertheriano Ano 38 | nº 114 | Mai./Ago. 2016 MISSÃO NO MUNDO África: bela, mas mártir

21

vislumbrava uma vida escondida, humilde, abnegada e obe-diente; o trabalho, a piedade profunda e a carinhosa concór-dia; o clima propício para o crescimento de Jesus, o Missio-nário do Pai. A esse respeito, escreveu: “Eu tenho a convicção de que não há uma devoção que seja capaz de ajudar tanto na formação à vida religiosa e missionária quanto a devoção à Sagrada Família” (A obra das vocações tardias, p. 35).

Ademais, o Padre Berthier sentia-se especialmente se-duzido por uma forma de vida missionária, simples e des-pojada, junto aos mais pobres e distantes. Segundo o Pe. Barnhoorn, também isso ele visualizou na Sagrada Família de Nazaré: “O que Nazaré mostrou e o que o Evangelho en-sina sobre pobreza e abnegação é aquilo que ele aparente-mente desejava realizar com toda intensidade” (Misionero para todo el Pueblo, p. 206). Aos seus discípulos, Berthier não desejava honra e glória, mas o “espírito de Nazaré”, que ele identificava como um espírito de pobreza. Ele costuma-va repetir: “Nossa vida deve ser aquela de Nazaré: humilde, escondida. Aos outros as coroas, a nós o trabalho.”

Na Constituição que escreveu pessoalmente, o Funda-dor explicitou de um modo mais sistemático os traços da Sagrada Família que deveriam inspirar a Congregação.

“É na Sagrada Família que cresceu o sacerdote eterno Nosso Senhor Jesus Cristo, o enviado do Pai...” (art. 13).

“A Sagrada Família é perfeito modelo do espírito de respei-to, de obediência, de caridade, de dedicação, de humilda-de, de trabalho, de pobreza e de pureza que deve inspirar esta obra. Aqueles que a graça chamar terão o cuidado de assimilar este espírito” (art. 14).

“Que modéstia perfeita, que conveniência nas palavras e nos atos tiveram os membros da Sagrada Família! Que maravilhosas disposições interiores de zelo pela glória de Deus, de espírito de oração, de desejo de salvar almas, de humildade, de pobreza, de abnegação, de desapego de si, de sacrifício, de obediência encontramos na alma de Jesus, Maria e José!” (art. 66-67).

Segundo o testemunho do Pe. Julio Maria de Lombaerde, msf, no momento em que os primeiros frutos da perseve-rança vocacional eram colhidos, o Fundador teria dito: “O que eu temo não são as dificuldades e calúnias, mas o pe-cado. Eu temo mais as consequências de um só pecado dos nossos membros do que todos os ataques externos. Se formos fervorosos, asseguraremos a bênção e o auxílio dos nossos padroeiros (sic). Que a Sagrada Família nos inspire. É preciso que tenhamos seus pensamentos em nosso cora-ção, que amemos a humanidade, que apreciemos os acon-tecimentos à sua luz [...]” (Un apotre de notre jours, p. 406). Para o Padre Berthier, pecado era o esquecimento do espí-rito de Nazaré, ou seja, o esquecimento da simplicidade, da pobreza e da fraternidade.

No seu último livro, Berthier quis apresentar de uma forma mais ampla e fundamentada o culto e a devoção à Sagrada Família. Publicou esta obra como uma espécie de

Pe. Itacir Brassiani, msfFormador do Juniorado Latinoamericano

Belo Horizonte, MG

lembrança e regra de conduta para seus discípulos. Na con-clusão do livro, escreve:

Vocês estão colocados sob a proteção dessa Família divina, junto com aquele grande e divino Missionário enviado ao mundo para salvá-lo. Cresçam todos como Jesus, em idade e em graça diante de Deus e dos homens e sigam o mode-lo celeste que lhes é oferecido, e que o próprio nome lhes convida a reproduzir fielmente. Se as virtudes da Sagrada Família forem banidas deste mundo por parecerem impos-síveis, que elas encontrem asilo entre vocês. Ninguém mais que vocês devem levar a sério o dever de praticá-las e de dar exemplo a todos [...] (Le culte et le imitation de la Sainte Famille, p. 314).

Embora o propósito do livro fosse a legitimidade e a ex-celência do culto e da devoção à Sagrada Família para todos os cristãos, o Fundador se dirige especialmente aos seus herdeiros: “Os exemplos da Sagrada Família são o tesouro que lhes deixo como herança.” Mas ele tinha a convicção de que seus seguidores deveriam continuar aprofundando o mistério de Nazaré. “Este tesouro, escrevia ele, está enterrado, escondido em meio à terra e às pedras. Através da meditação vocês deverão escavar o interior de Jesus, Maria e José a fim de descobrir todas as riquezas que ele esconde” (p. 315).

Em linhas gerais, a Constituição de 1985 acolhe e expressa este “tesouro” que o Fundador nos deixou como herança e testamento pessoal: a Sagrada Família é um modelo de respeito mútuo, amor ao próximo, obediência, piedade, hu-mildade, pobreza, pureza, trabalho (Diretório Geral, 011). Entretanto, ousa atualizar os traços inspiradores da Sagrada Família, cumprindo o desejo do Fundador. No prefácio, a Sagrada Família é apresentada como “modelo missionário”, ou seja, como “apelo à comunhão fraterna em Cristo” e ao “compromisso de levar todos os homens a fazer parte da única família do Pai”.

Estes elementos inspiradores advindos da Sagrada Famí-lia aparecem mais claros e desdobrados no art. 5: “Na Sagra-da Família se manifesta o dom de Deus aos homens” e, ao mesmo tempo, “nela a resposta do homem ao dom de Deus encontrou sua expressão mais clara.” A Sagrada Família ca-racterizará nossa vida e nossa ação “pela busca em comum da vontade de Deus e pela comunicação dos seus dons”. Sua união com Deus “é um apelo à comunhão fraterna, à abertura humana e à hospitalidade e, ao mesmo tempo, à missão de conduzir todos os homens à única família do Pai”.

Eis aqui um horizonte espiritual tremendamente inspira-dor para os tempos de hoje, para uma Igreja que, confiando na generosidade e criatividade dos leigos e leigas, ousa sair de si mesma, vencer a indiferença, viver a misericórdia e ir ao encontro daqueles que estão longe.

Page 22: Bertheriano · 2019. 9. 20. · SEMEIE JUSTIÇA! Cultive paz e amor, então a vida ˜orescerá Bertheriano Ano 38 | nº 114 | Mai./Ago. 2016 MISSÃO NO MUNDO África: bela, mas mártir

22

Fr. Ricardo Klock, msfJuniorista e estudante de Teologia

Belo Horizonte, MG

Maria em La Salette, modelo de relações humanizadoras

Nossa Senhora de La Salette apareceu aos dois pastor-zinhos, Melânia e Maximino, no dia 19 de setembro de 1846. Portanto, a mensagem deixada por Maria, em La Salette na França, completa 170 anos em setembro deste ano. A mensagem quase bicentenária ainda tem muito a nos dizer. E para demonstra-lo, embaso o meu escrito no livro de Marcel Schlewer, missionário saletino que fez um estudo sistematizado da mensagem (SCHLEWER, Marcel. Salette: opção de vida. Trad. Atico Fassini. Passo Fundo: Berthier, 1999.).

Há inúmeras possibilidades de abordagem das palavras de Maria em La Salette, porém nos ateremos a uma frase da mensagem: “Dei-vos seis dias para trabalhar, reservei-me o sétimo e não o querem conceder”. Ao olhar a realidade da nossa sociedade e da vida das pessoas, seja no campo ou na cidade, entre jovens ou adultos, percebemos que há um novo substituto para o dia do descanso: o trabalho e, consequentemente, o acúmulo.

Primeiramente precisamos destacar que a mensagem de Maria, em La Salette, está inserida na realidade do povo francês. Maria não usa exemplos e nem uma linguagem sofisticada, mas sim do cotidiano do povo mais simples. A França vivia um tempo alvoroçado devido aos avanços nas industrias; assim a realidade das fábricas, do trabalho em con-dições desumanas era “normal”, com jornadas de trabalho,

nos sete dias da semana, de até dezesseis horas diárias. Neste contexto não havia tempo para a vivência em família, e muito menos para a vivência comunitária. O que acabou ocasionando um abandono em massa da religiosidade. O trabalho, naquela época, desumano e forçado, acabou substituindo Deus.

E hoje, o que está substituindo à Deus? Pergunta que devemos fazer, pois percebe-se um certo abandono das vivências familiares, comunitárias e religiosas. As pessoas acabam-se tornando escravas do dinheiro e do trabalho, di-reta ou indiretamente. O trabalho acaba tomando conta de todas as horas de uma pessoa. No livro do Êxodo encontra-mos essa referência ao dia de descanso, entretanto o povo de Israel vivia a escravidão no Egito e instituir a sacralida-de do dia de sábado, pois para os judeus o sábado é o dia “sagrado”, era garantir o descanso dos trabalhos forçados aos quais eram submetidos (Ex 31, 15-17). Pelo menos te-riam um dia de libertação da escravidão, o qual deveria ser dedicado em adoração à Javé.

Maria em La Salette chama a atenção para o desleixo com o dia dedicado ao Senhor, o Domingo. As pessoas já não rezavam mais, não se juntavam em comunidade, já não viviam mais com liberdade; haviam se tornado escravas do relógio, do trabalho, do dinheiro. Infelizmente a situação se repete: o povo esquece de viver, esquece de se reunir ou, quando o fazem, acontece às pressas. Já não conseguem tirar de suas rodas de conversa o trabalho, o dinheiro. Este tema acaba tomando conta de tudo.

Necessitamos de uma vivência maior da nossa relacio-nalidade; mais do que isto, necessitamos humanizar nossas relações. Maria em La Salette não nos pede simplesmen-te a recitação de orações, ou a presença nas celebrações dominicais. Sua mensagem vai além, ela entra na essência da vivência cristã, que é a vida em comunidade. Somente somos cristãos se estamos inseridos numa comunidade. Como diz o ditado popular “é preciso trabalhar para viver, e não viver para trabalhar”, Maria nos pede que avaliemos as nossas relações e coloquemos na balança onde está o essencial de nossas vidas: em Deus (família e comunidade) ou no dinheiro (trabalho), pois como diz o Evangelho: “não podeis servir a Deus e ao dinheiro” (Lc 16, 13).

Page 23: Bertheriano · 2019. 9. 20. · SEMEIE JUSTIÇA! Cultive paz e amor, então a vida ˜orescerá Bertheriano Ano 38 | nº 114 | Mai./Ago. 2016 MISSÃO NO MUNDO África: bela, mas mártir

23

Pe. Euclides Benedetti, msfPároco da Paróquia Nsa. Sra. de Lourdes

Cunha Porã, SC

Parceria com DeusSempre gostei de fazer parcerias! E a parceria que estou

propondo, agora, é uma parceria muito especial. É com o próprio Deus! Espero que você já tenha se dado conta que a vida de cada um de nós é um projeto que Deus nos con-fiou. Por isso, pode ser um projeto bem ou mal sucedido. Depende de nós. Como nada é mais importante do que a vida, que é marcada por dois momentos fundamentais: quando nascemos e quando nos perguntamos, por que existimos, todo o investimento que se possa fazer é pou-co. Deus sabe disso e se oferece para ser nosso parceiro. Quando nos damos conta que é possível fazer uma parceria com Ele, ficamos encantados. Mas há um detalhe. Não po-demos fazer uma parceria e, de imediato, ignorar nosso par-ceiro. Ele é importante demais para que, de repente, fique de lado ou esquecido.

Pelo contrário, é importante mantermo-nos permanen-temente em contato com Ele, para que nada seja feito unila-teralmente. Pois, como é evidente, trata-se de uma parceria bilateral, mesmo de parceiros desiguais. Por parte de Deus, sabemos que haverá total fidelidade, total correspondên-cia. De nossa parte, quem poderá garantir que haja a mes-ma correspondência? Portanto, é uma parceria com a qual nós só temos a ganhar. Além disso, sabemos que quem toma a iniciativa é sempre Ele. Foi Ele que nos criou. Foi Ele que nos amou primeiro. Foi Ele que tatuou o nosso nome na palma de sua mão. Foi Ele que falou que cuida de nós mais do que dos lírios do campo, mais do que dos pássaros do céu. Por nós, Ele não poupou seu próprio Filho, cuja En-carnação foi sua maior prova de amor. Não há porque, não aceitar uma parceria assim.

O projeto de vida que dispensa essa parceria corre o grande risco de não se realizar plenamente, pois, ne-nhuma vida se basta a si mesma, nenhuma vida pode dispensar seu Criador, nenhuma vida se sentirá vocacio-nada se não estiver em sintonia com Deus que é quem nos quer como companheiros, quem nos chama à pleni-tude. Sem parceria com Deus, a pessoa humana corre o risco de perder-se, sem tomar parte nos grandes sonhos e utopias da humanidade.

Na parceria com Deus, sabemos que somos inquilinos do tempo. Sabemos que temos um tempo para chegar, um tempo para habitar e um tempo para partir. Que, como inquilinos do tempo, habitamos o presente, pode-mos visitar o passado, ou então, imaginar o que nos espe-ra. Quando habitamos bem o tempo presente, partimos com a disposição de habitar novos tempos, acolhendo as novas oportunidades. Contudo, não levamos bagagens desnecessárias que possam dificultar a partida. Não fica-mos presos ao passado, dificultando a espera de novas promessas, de novos sonhos, de novas utopias. A parce-ria com Deus, não permite que carreguemos um passado

negativo, que deverá ser entregue confiantemente à Sua Misericórdia. Caso contrário, nosso coração não terá es-paço para levar sempre consigo a perene gratidão que constantemente se transformará em prece. Não haverá espaço para guardar os amigos com seus fraternais abra-ços, não haverá espaço para guardar tantos olhares de ternura, de compaixão, de amor com que fomos olhados em nossa vida, quem sabe em momentos cruciais... Não haverá espaço para guardar as semeaduras de Deus em nosso coração, apesar de sua aridez.

A parceria com Deus nos torna íntimos, profunda-mente conhecedores de sua vontade, o que é de fun-damental importância, para quem quer se mover por ela. É bom que se diga, também, que a parceria com Deus não impede que façamos outras parcerias, que te-nhamos outros parceiros, lembrando que a união faz a força. Quem é parceiro de Deus tem que ter o mesmo encantamento diante de suas criaturas, principalmente das pessoas que são otimistas, esperançosas, proféticas e místicas ao mesmo tempo. Encantamento diante das pessoas que se sentem sujeitos e protagonistas de sua própria história, que vão andando sem perder o fio con-dutor de sua própria caminhada, sabendo onde querem chegar. Por isso, têm seu projeto de vida elaborado com sabedoria, com metas e linhas de ação. Encantamento diante das pessoas humildes e alegres que sabem con-quistar o nosso coração. São essas pessoas que perfu-mam o ambiente onde estão. E quem não quer estar com essas pessoas?

Essa parceria com Deus pode ser registrada no cartório da pia batismal, onde, segundo o nosso Mestre, se nas-ce do alto; no cartório da mesa eucarística, onde nosso Parceiro se oferece como alimento da verdadeira vida; no cartório da mesa da palavra, onde nosso Parceiro nos diz palavras de interesse por nós e de como devem ser as outras parcerias que fazemos, principalmente com os mais desvalidos da sociedade; no cartório do poço de Jacó, onde nosso Parceiro nos pede de beber, mesmo sa-bendo que é Ele que tem a água viva que sacia todas as sedes, que o ser humano possa ter; no cartório da sarjeta, onde o Mestre nos recorda que o amor dos seus parceiros não pode ter fronteiras e é um amor generoso, serviçal; no cartório da eternidade, onde nosso Parceiro não tem mais nenhuma recomendação, apenas nos espera para o abraço com gosto de eternidade.

Page 24: Bertheriano · 2019. 9. 20. · SEMEIE JUSTIÇA! Cultive paz e amor, então a vida ˜orescerá Bertheriano Ano 38 | nº 114 | Mai./Ago. 2016 MISSÃO NO MUNDO África: bela, mas mártir

24

Dom Pedro CasaldáligaBispo emérito da Prelazia de

São Félix do Araguaia, MT

Carta aberta aos nossos mártires

Recordaremos vocês, um por um, uma por uma, e se não dizemos agora nenhum de seus claros nomes, é para dizer-mos vocês, todos e todas, num só golpe de voz, de amor e de compromisso. Nossos mártires! Mulheres, homens, crian-ças, anciãos, indígenas, lavradores, operários, estudantes, mães de família, advogados, professores/as, prefeitos/as, militantes e agentes de pastoral, artistas e comunicadores/as, pastores, sacerdotes, catequistas, bispos...

Nomes conhecidos e já incorporados a nossa martirologia ou nomes anônimos, gravados, porém, no santoral de Deus. Sentiremo-nos herança sua, povo testemunha, Igreja marti-rial, diáconos em caminhada por essa longa noite pascal do continente, tão tenebrosa ainda, porém tão invencivelmente vitoriosa. Não cederemos, não nos venderemos, não renun-ciaremos a esse paradigma maior de suas vidas, que foi pa-radigma do próprio Jesus e que é o sonho do Deus vivo para todos os seus filhos e filhas de todos os mundos, para o mun-do único e pluralmente fraterno: o Reino, o Reino, seu Reino!

Com São Romero da América e com todos vocês e unidos à sua voz e ao compromisso comum de todos os irmãos e ir-mãs de solidariedade que nos acompanham, declaramo-nos “felizes por correr, como Jesus (como vocês) os mesmos ris-cos, por nos identificarmos com as causas dos despossuídos”.

Neste mundo prostituído pelo mercado total e pelo bem-estar egoísta, juramos para vocês, com humildade e decisão: “Longe de nós nos gloriarmos não sendo na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo” e em suas cruzes, irmãs de Sua cruz! Com Ele e com vocês seguiremos cantando a Li-bertação. Por Ele e por vocês saberemos jubilosamente que ressuscitaremos “mesmo nos custando a vida”.

Fonte: Ofício dos Mártires da Caminhada Latino-americana.

Escrevemos a todos vocês, mulheres e homens, que de-ram a vida pela vida ao longo da nossa América, nas ruas e nas montanhas, nas oficinas e nos campos, nas escolas e nas igrejas, sob a noite ou à luz do sol. Por vocês, sobretudo, Nossa América é o continente da morte com esperança.

Escrevemos para vocês em nome de todos os nossos Povos e nossas Igrejas, que a vocês devem a coragem de viver, defendendo sua identidade e a vontade teimosa de seguirem anunciando o Reino, contra o vento e a maré do anti-reino neoliberal e apesar das corrupções de nossos governos, ou das involuções de nossas hierarquias, ou de todas as nossas próprias claudicações.

Cremos que, enquanto houver martírio haverá credibilida-de, enquanto houver martírio, haverá esperança. Vocês lava-ram as vestes de seus compromissos no sangue do cordeiro. E seu sangue no sangue d´Ele continua a lavar também nos-sos sonhos, nossas fragilidades e nossos fracassos. Enquanto houver martírio haverá conversão, enquanto houver martírio haverá eficácia. O grão de milho morrendo se multiplica.

Escrevemos para vocês, contra a proibição dos poderes das ditaduras - militares, políticas e econômicas - e contra a desmemoriada covardia de nossas próprias Igrejas. Bem que eles e elas quiseram impor uma anistia que fosse amné-sia e uma reconciliação que seria claudicação. Inutilmente. Vocês sabem perdoar, mas querem viver.

Não permitiremos que se apague o grito supremo de seu amor. Não deixaremos que seu sangue seja infecundo. Também não nos satisfaremos, superficiais ou irresponsá-veis, exibindo seus pôsteres e cantando seus nomes numa romaria ou chorando sua memória numa dramatização. Assumiremos suas vidas e suas mortes assumindo suas causas. Essas causas concretas pelas quais vocês deram a vida e a morte. Essas causas, tão divinas e tão humanas, que desdobram em conjuntura histórica e em caridade eficaz a causa maior do Reino, pela qual deu a vida e a morte e pela qual ressuscitou o Primogênito dentre os mortos, Jesus de Nazaré, o Crucificado-Ressuscitado para sempre.

Page 25: Bertheriano · 2019. 9. 20. · SEMEIE JUSTIÇA! Cultive paz e amor, então a vida ˜orescerá Bertheriano Ano 38 | nº 114 | Mai./Ago. 2016 MISSÃO NO MUNDO África: bela, mas mártir

25

Fr. Wilson Jorge Lamps, msfComunidade Inserida, Paróquia Jesus de

Nazaré. Porto Alegre, RS

Profecia: um caminho de Fé e Espiritualidade!

A espiritualidade é um caminho de vida que se faz peregri-nando através do Espírito. É a “vida no Espírito”: guiada, alimen-tada e sustentada por Ele. Sem essa caminhada de fé, no Es-pírito, seria impossível realizar nossa vocação e missão a partir do chamado de Deus que nos quer livres em seu Reino de amor (CATÃO, Francisco. Espiritualidade Cristã. São Paulo: Paulinas; Valência, Espanha: Siquém, 2009. p. 10).

Deus se manifestou a Moisés por meio da sarça ardente (Ex 3,4) que não se consumia, embora em meio ao fogo. Sem uma visão, em forma humana, Deus, através de uma planta e do fogo, falou: “Eu Sou aquele que Sou” (Ex 3,14). Mas como obedecer uma voz de alguém que não mostra um “rosto” definido e, ainda, propõe uma tarefa nada fácil de cumprir? Através dos sentidos físicos, é muito difícil de convencer; mas, com os “olhos da fé” Moisés foi capaz de acreditar que a “mão invisível” de Deus ouviu, viu, desceu. Estava ali para salvar o povo que escolhera para ser “seu”, para fazer aliança, um povo que não mais seria submetido ao jugo da opressão.

Quando enviou Moisés para libertar seu povo do Egito (Ex 3, 10), Deus não forneceu uma série de garantias. Garantias sem as quais, hoje, nós não saberíamos viver, tampouco aceitarí-amos qualquer empreitada. Tampouco lhe foi fornecido um roteiro, um “mapa da mina” dizendo onde exatamente encon-traria a terra prometida. Moisés teve que fazer a experiência da confiança irrestrita e da fé total. Foi como fechar os “olhos da carne para abrir os olhos da alma”. Da mesma maneira, Santa Teresa D’Avila explicava que devia ser sua oração e a oração de suas monjas no convento, embora isto não seja uma garantia de vida fácil, mas um caminho de superação contínua.

A atitude de confiança é determinante para o processo de salvação. Foi em Moisés e no povo de Deus. É em nós hoje, e em nossa relação com Deus. Decidir, acreditar e se lançar é o que faz a diferença em uma vida dedicada à mis-são, numa jornada de amor e por amor. Pela fé ele acreditou na ação de Deus e pela fé Deus se mostrou com ele: liberda-de, serviço e entrega no amor.

Estar junto, ser com, assumir sua história é o que carac-teriza a presença de Deus para com seu povo. Viver uma di-nâmica de espiritualidade do Amor. Moisés foi um homem de carisma excepcional: cultivou um amor tão intenso no impossível que se fez possibilidade. Quando por um irmão israelita matou e teve que se esconder, sentiu-se abrasado por um amor maior; amor a todos os irmãos/ãs (fraterno e comunitário), a seu povo, conhecendo uma nova sintonia com Deus. No chamado de Moisés vemos que uma con-tradição primeira, pode gerar um dizer, uma confirmação segunda: o dizer, a Palavra de um Deus, que não olha para a perfeição, mas para o coração e o molda para a missão.

Na luta pela libertação contou com o auxílio de Aarão, de Jetro – seu sogro que o aconselhou a dividir suas responsa-bilidades de líder – dos anciãos. Todavia Moisés ainda teve a necessidade de enfrentar seus próprios desafios, de vencer a si mesmo, para somente assim se encontrar, para caminhar com Deus. Entretanto, nesse peregrinar, Deus o encontrou primeiro. O acontecido de Moisés nos ensina que caminhar é a possibilidade para encontrar. Encontrar o caminho, elei-ção, proximidade com Deus, benção e um verdadeiro tesou-ro: uma terra onde corre leite e mel. Ensina-nos ainda, que o caminhar é viver e acreditar, mesmo parecendo impossível!

Espiritualidade é, portanto, algo que é construído e em construção, nunca pronto. É na intimidade e na adesão, na saída e na busca, da terra prometida, que vamo-nos encon-trando. Raramente é um caminho fácil de trilhar, o sair de si. Exige de nós atenção, luta, desejo, esforço, criatividade, atitude de vida e acima de tudo perseverança para poder encontrar o caminho da verdadeira espiritualidade: o en-contro com e no Senhor. Moisés viveu essa busca mais do que ninguém, o desejo do encontro de si mesmo, em sua vocação e serviço ao povo, no caminho da libertação da escravidão. E assim pode descobrir a vida em Deus: era ali que estava a sua terra prometida, depois de todo um longo caminho percorrido, e isso foi o fundamental para sua vida!

Page 26: Bertheriano · 2019. 9. 20. · SEMEIE JUSTIÇA! Cultive paz e amor, então a vida ˜orescerá Bertheriano Ano 38 | nº 114 | Mai./Ago. 2016 MISSÃO NO MUNDO África: bela, mas mártir

26

Testamento espiritual: “apostar tudo no amor”

TESTEMUNHOS

Irmãos!Se eu olho o passado como a visita de Deus na minha

vida, só me cabe agradecer o festival de graças e regalias com que Deus me presenteou desde a primeira infância. Se olho a existência como acolhida ao Deus visitante, sinto-me

como um campo em que a semente caiu em terra dura, em húmus bonito, mas magro, em terra pedregosa e no meio dos espinhos. Quantas omissões e mal-entendidos! Quantas provas de segunda época a misericórdia de Deus me conce-deu! O castigo merecido, o Senhor protelou até hoje. Tenho

Page 27: Bertheriano · 2019. 9. 20. · SEMEIE JUSTIÇA! Cultive paz e amor, então a vida ˜orescerá Bertheriano Ano 38 | nº 114 | Mai./Ago. 2016 MISSÃO NO MUNDO África: bela, mas mártir

27

tanta pena daqueles que caminhando com cuidados pela penosa estrada da vida, levam na cabeça ao primeiro deslize.

Nasci em um berço esplêndido. Família pobre, aldeia pe-quena, única criança no meio de pais velhos e irmãos cresci-dos. Por isso fui criança viva, crítica, desconfiando cedo que o mundo pequeno conserva as pessoas pequenas: cedo despertando o sono do mundo maior, a fome de um mun-do maior. Quando o professor disse à mãe: “Este menino é muito esperto; não pode ficar entre nós”, me levaram ao Seminário. Mas não pensem que eu fui violentado. A aldeia era pequena em extensão, mas rica em história, história que as crianças bebiam no lar, na Igreja, na escola. Mil anos de triunfos da doutrina católica. A paróquia que abarcava toda educação e toda a vida social, foi fundada em 958. Igreja, berço de grandes homens, mãe de toda cultura, mestra da sabedoria. Ser um sacerdote era o máximo.

A primeira fase da vida: estudos humanísticos (filosofia, te-ologia) eram marcados por presunçoso radicalismo. Pensava ser dono da verdade, porque lia os grandes mestres em latim e grego. Empolgado pela “perene” filosofia de Aristóteles e Tomás de Aquino, julgava os pensadores modernos uns im-becis. O poder de consagrar, de perdoar pecados, eu confun-dia com realização pessoal. Sentia-me um laureado salvador do mundo. Assim como a criança divide o grande mundo em lobisomens e tios, o jovem radical o divide em dias certos e errados, em fiéis e hereges, em santos e pecadores.

A providência divina me fez viver na cidade e atuar no mundo estudantil, na sociedade das mil respostas aos por-quês da inteligência e do coração. Aprendi a respeitar a opi-nião alheia, as ciências sobre o homem, as diversas buscas de sentido da vida. Descobri que em cada cabeça há um pedaço de verdade, em cada coração um pouco de bon-dade. Sim, o Espírito de Deus paira sobre todas as águas! Deus, a sua Igreja, o homem são mistérios insondáveis. É uma ventura falar sobre eles. O mistério da palavra exige muito pudor, humildade e discrição. As definições categó-ricas foram-me aborrecendo. Não me tornei um sacerdote acomodado, mas bem mais compreensivo.

Acima de tudo recebi a graça de compreender que o cristianismo não é um fato consumado, um reino triunfan-te de Deus, mas um perseverante caminhar por erros, so-frimentos e misérias rumo à casa do Pai. Depois da graça da fé, recebi a graça da esperança. O cristianismo é uma revolução constante, é tornar-nos o que não somos ainda. Sabedoria completa, bondade perfeita, segurança plena, alegria imperturbada só existe na glória. Peregrinos, vi-vemos na penumbra e na penumbra nós devemos dar as mãos, nos confortar no amor. A esperança é inimiga da presunção e do fanatismo. O bom sacerdote é fanático de esperança, e por isso paciente e liberal diante do pre-sente. Não é duro no julgamento, implacável nas exigên-cias. Nada o oprime, nada é trágico, nada é desesperador, quando a gente vai rumo ao lar. “Eu vos precederei e vos prepararei um lugar.”

Estou entrando na terceira fase da vida sacerdotal (al-

guns amigos já me chamam de velhinho), fase da desilusão e da concentração. A mobilidade do corpo e do espírito di-minuem. Não tanto por esclerose, mas porque a gama de opções diminui. Para o moço, o tempo é futuro de muitas estradas; para o velho, o tempo é passado que escapa rápi-do pelos buracos dos dias e das horas. O velho só conta com uma decisão essencial de que não escapa. Por isso o velho não repete só anedotas, mas também coisas importantes. Certas ideias centrais acampam na sua inteligência, certas preocupações fazem uma fogueira no seu coração.

Estou desiludido com as ciências e a técnica (ônibus es-pacial aterrissando na terra queimada pela fome). Onde es-tão os economistas, os políticos para fazerem o avanço ir ao encontro do atraso, a riqueza ao encontro da miséria? Os homens são lobos e aves de rapina; não são irmãos. Estou começando a apostar tudo no amor como o velho Apóstolo João. Não no amor dos esposos e dos pais, no amor-família. Na família se aprende a amar, mas não se termina de amar. Mil “boas e amorosas” famílias podem estar em guerra cruel entre si. Eu acreditava no “Cristianismo anônimo”, do amor ao próximo sem nada saber dele senão do rosto contorcido pela dor, dos olhos gritando solidão. Não acredito mais. Es-tou com o nosso papa que vive clamando: “Amar o desco-nhecido, o anônimo” (este amor salva o mundo do inferno). Não é possível sem conhecer as maravilhas do outro, sem a esperança de conviver com o outro, sem sintonia de co-ração e da mente. A fé nos faz ver tudo isto: Somos irmãos, filhos amáveis do mesmo Pai, estaremos juntos, vindos dos muitos recantos e anonimatos do mundo, na casa do Pai. Não acredito mais em soluções econômicas e políticas. Eu quero rumar para os dias e horas de imensa seriedade e do-çura que o velho Apóstolo viveu e que a escritura nos relata.

Os que tinham sido convocados com ele pelo Senhor já estavam mortos há muito tempo. O tempo dos Apósto-los já tinha passado. Mas ele vivia, e vivia. Já cochichavam que ele não iria morrer antes da vinda do Senhor. Quando o carregavam para a assembleia eucarística, depois da fala de bispo, lhe pediam que dissesse também umas palavri-nhas (como os jovens capuchinhos com frei Antônio): “Fi-lhinhos amai-vos uns aos outros’ era só o que dizia. Depois da terceira, quarta vez e sempre de novo, suspeitando de esclerose, lhe perguntaram: Pai, por que tu dizes sempre a mesma coisa? João respondeu: “Porque é o mandamento do Senhor. Cumpri-lo basta para tudo”.

Que maravilha seria se os homens, ao se despedirem de mim no fim da jornada sacerdotal, pudessem dizer com São Paulo: “Apareceu entre nós a benignidade e humani-dade de Nosso Senhor Jesus Cristo. Vede como ele amava, vede como ele nos fazia amar”.

Pe. Ernesto Greiner, msfFilósofo e Sociólogo, Professor IFIBE-UFRGS

Falecido em 17 de fev. 1987

Page 28: Bertheriano · 2019. 9. 20. · SEMEIE JUSTIÇA! Cultive paz e amor, então a vida ˜orescerá Bertheriano Ano 38 | nº 114 | Mai./Ago. 2016 MISSÃO NO MUNDO África: bela, mas mártir

2828

É com alegria que estou aqui com vocês celebrando a vida e o legado espiritual que o Servo de Deus e Servo dos Pobres, Dom Helder Pessoa Camara deixou para a Igreja de Cristo e para todos os que sonham por um mundo de irmãos. Não um primeiro, segundo, terceiro, quarto mundos, mas um só mun-do de irmãos e irmãs; irmãos de verdade e não só de palavras. Poderíamos falar muito de Dom Helder, mas pensei, para hoje, falar a partir de três palavras: Serviço, Pobres, Profecia. E farei isto comentando três episódios da vida do Dom.

Serviço

Quando Helder tinha entre sete a nove anos, o seu pai lhe disse algo inesquecível e que ele sempre procurou viver: “Filho, você está crescendo e continua a dizer que quer ser padre, mas você sabe de verdade o que significa ser padre?” O menino ficou quieto, meio acabrunhado com o questio-namento do pai, que prosseguiu: “Você sabia que para uma pessoa ser padre ela não pode ser egoísta, não pode pensar só em si mesma? Ser padre e ser egoísta é impossível, eu sei, são duas coisas que não combinam”. Atento, Helder não sa-bia o que dizer. O pai continuou: “Os padres acreditam que quando celebram a Eucaristia é o próprio Cristo que está presente. Você já pensou nas qualidades que devem ter as

mãos que tocam diretamente no Cristo?”. Helder, convicto, disse: “Pai, é um padre como o senhor está dizendo que eu quero ser”. “Então filho” disse o pai – “que Deus te abençoe! Que Deus te abençoe! Você sabe que não temos dinheiro, mas, mesmo assim, vou pensar como ajudá-lo a entrar no seminário”. Helder aprendeu e sempre buscou viver isto. O Padre não se pertence. Ele pertence a Deus para servir o Povo de Deus. É um homem para servir. Isto significa que não vive buscando honras, aplausos, fama, comodidades individualistas, vaidades pessoais de todo o tipo. Como muito bem disse o querido Papa Francisco, é uma pessoa descentralizada. Helder se fez para nós, o Dom do Serviço.

Pobres

No ano de 1955 aconteceu, no Brasil, o Congresso Euca-rístico Internacional. Este foi organizado por Dom Helder e sua equipe maravilhosa. O Cardeal Gerlier, de Lião, França, que acompanhara os trabalhos de Dom Helder na organi-zação do Congresso Eucarístico, concluiu que não era razo-ável que a capacidade desse Bispo brasileiro ficasse presa à organização de megaeventos religiosos. Por isso, antes de retornar à França, quis um colóquio com ele, a fim de elogiá-lo, mas muito mais para lhe lançar um apelo:

Dom Helder: servo de Deus, servo dos pobres!

Page 29: Bertheriano · 2019. 9. 20. · SEMEIE JUSTIÇA! Cultive paz e amor, então a vida ˜orescerá Bertheriano Ano 38 | nº 114 | Mai./Ago. 2016 MISSÃO NO MUNDO África: bela, mas mártir

29

Permita-me falar-lhe como um irmão, um irmão no batis-mo, um irmão no sacerdócio, um irmão no episcopado, um irmão em Cristo. Você não acha que é irritante todo este fausto religioso em uma cidade rodeada de favelas? Eu tenho certa prática em organização e por ter participado desse Congresso devo dizer-lhe que você tem um talento excepcional de organizador. Quero que faça uma reflexão: por que, querido irmão dom Hélder, não coloca todo este seu talento de organizador que o Senhor lhe deu a serviço dos pobres? Você deve saber que o Rio de Janeiro é uma das cidades mais belas do mundo, mas também uma das mais espantosas, porque todas essas favelas, neste quadro de beleza, são um insulto ao Criador [...].

O Cardeal sensibilizou Dom Helder que interpretou aque-las palavras como um novo desafio. Pegando e beijando as mãos do Cardeal, disse-lhe:

Este é um momento de virada em minha vida. O senhor poderá ver minha consagração aos pobres. Não estou con-vencido de possuir dotes excepcionais de organizador, mas todo o dom que o Senhor me confiou colocarei a serviço dos pobres.

A partir daquele dia, as visitas às favelas começaram a ser frequentes e converteram-se em sua preferência pastoral. Quando bispos e cardeais o visitavam, ele os recebia com gran-de cordialidade e os levava para um passeio. O principal lugar a conhecer não era mais a Catedral de São Sebastião ou o Cor-covado – de onde se contempla uma das paisagens mais belas do mundo. Ele tornou-se cada vez mais o Dom dos Pobres.

Quando chegou em Recife, a sua primeira visita Pastoral foi para os Mocambos. Quando o Papa Francisco assumiu a missão de Sucessor de Pedro a sua primeira visita Pastoral foi para Lampedusa. Aliás, são muitas as coincidências en-tre as palavras e os gestos de Dom Helder e do Papa Fran-cisco. Recentemente, quase repetindo as palavras de Dom Helder disse o Papa: “Quando peço terra, teto e trabalho para os necessitados alguns me acusam dizendo que ‘o Papa é comunista’! Não entendem que a solidariedade com os pobres é a base mesma do Evangelho”. Portanto, Helder se fez para nós o Dom dos Pobres.

Profecia

Dom Helder assumiu decididamente a missão profética com a alegria que é ser um profeta de Deus, mas também com os sofrimentos, as dores, as apreensões que fazem parte desta missão. Durante o regime militar ele foi tido como um dos principais, senão, o principal inimigo político do gover-no ditatorial. Não que ele fosse. Outros assim o consideram. Dom Helder padeceu muito por querer a fraternidade, o diá-logo, a compreensão, o amor, a paz, a partilha, por defender o direito há um palmo de terra para cada brasileiro e brasilei-ra, por ser contra a tortura dos presos políticos, por defender os direitos humanos. Ele não apenas foi um profeta, mas ele provocou um “arrastão profético” na América Latina.

Pouco antes de morrer, Dom Helder nos deixou o seu último pedido. Segundo o relato do Pe. Marcelo Barros,

isto aconteceu no dia 5 de agosto. Marcelo foi visitar o Dom. O Arcebispo estava calado, parecendo pouco lúcido, mas fez um sinal demonstrando que o havia reconhecido. Então teria dito as suas “últimas palavras”: “Não deixe cair a profecia”.

Dom Helder não apenas foi um profeta, mas um alimenta-dor da profecia e nos pediu para não a deixarmos cair. E ela cai quando, por exemplo, vivemos o mundanismo espiritual, a alienação religiosa, a sedução da espiritualidade do merca-do e do capitalismo neoliberal. Irmãos, não vamos deixar cair a profecia. Vamos alegrar Dom Helder atiçando a profecia!

Três palavras: Serviço, Pobres e Profecia. Se reparamos bem na vida de Dom Helder as três palavras se penetram. Porque quis servir mais e melhor fez a opção pelos Pobres. Porque quis fazer uma opção pelos pobres profunda, real, concreta se tornou um profeta; e porque respondeu com sinceridade à missão profética serviu mais e melhor a Deus e ao seu Povo amado. Os textos bíblicos que a Igreja esco-lheu para o Dia de Santa Mônica também se ajustam à me-mória de Dom Helder. No texto do Evangelho de Mateus que ouvimos, Jesus, através de uma parábola, ensina que os líderes da Igreja, das comunidades cristãs, devem não apenas cuidar dos outros, mas se vigiarem para não se afas-tarem da prática da Justiça do Reino. É muito fácil a gente trocar o essencial pelo superficial!

Não se pode cair em tentação porque Jesus está demo-rando voltar. É preciso vigiar sempre para em primeiro lugar buscarmos o Reino de Deus e a sua justiça. Dom Helder foi um homem de joelhos vigilantes. Quantas horas fez vigílias para viver mergulhado na Santíssima Trindade e para viver a união com Cristo a fim de ser para nós o Dom de Deus?

Meus irmãos e irmãs. Levamos desta reflexão três reco-mendações helderianas:

1) vamos servir a Deus, servindo o seu Povo amado;2) vamos servir a Deus, alimentando a opção evangéli-

ca pelos pobres;3) vamos servir a Deus não deixando cair a profecia.

O mundo precisa urgentemente de novos profetas e profetizas!

Dom Helder obrigado por ser o Dom do Serviço, o Dom dos Pobres, o Dom da Profecia... o Dom de Deus que passou por Olinda e Recife, que tocou o mundo!

Homilia alusiva ao 16º ano de falecimento de Dom Helder Camara, em 27 de agosto de 2015.

Pe. Ivanir Antônio RamponDoutor em Teologia, professor do ITEPA e

Pároco. Passo Fundo, RS

Page 30: Bertheriano · 2019. 9. 20. · SEMEIE JUSTIÇA! Cultive paz e amor, então a vida ˜orescerá Bertheriano Ano 38 | nº 114 | Mai./Ago. 2016 MISSÃO NO MUNDO África: bela, mas mártir

AMISAFA: sua possibilidade de ser missionário/a!

Leandro LunkesPostulante MSF, Licenciado em Filosofia

Passo Fundo, RS

Há, na Vida Religiosa Consagrada, uma diversidade de carismas, ou seja, formas de seguir a Jesus. Um carisma é justamente isso: uma maneira de seguir a Jesus. Há con-gregações que seguem Jesus praticando orações, como Ele fez. Outras congregações se preocupam com os migrantes, como Jesus que se preocupou com os desamparados. A família franciscana segue Jesus a exemplo de São Francis-co de Assis, que deixou toda a sua riqueza para servir os pobres, assim como aconteceu a Zaqueu, homem rico que recebeu a visita de Jesus e, com isso, se converteu.

Os Missionários da Sagrada Família (MSF) seguem Jesus através de seu carisma: “Próximos daqueles que estão lon-ge” (At 2,39). Esse carisma é herança do Pe. João Berthier, fundador dos MSF. A nossa congregação foi fundada para receber vocações tardias. Na época do Pe. Berthier, 1840-1908, não eram aceitos seminaristas acima de 14 anos. Em suas missões como Missionário de Nossa Senhora de La Sa-lette, percebeu que havia muitos jovens que desejavam ser padres, mas, devido à sua idade avançada para o ingresso, naquela época, não eram admitidos em nenhum seminá-rio. Tendo em vista, também, a falta de operários para a messe, o apelo dos bispos para mais missionários, a trans-missão da mensagem de La Salette e a “compaixão de Cris-to diante das multidões cansadas e sem pastor” (LUNKES, Hermeto. Missionários da Sagrada Família: Centenário 1895-1995. Passo Fundo: [s. n.], 1997, p. 8), em 1895 fundou a Con-gregação dos Missionários da Sagrada Família.

Desde a fundação da congregação, a preocupação foi estar próximo daqueles que estão longe. Por isso, Pe. Ber-thier se preocupou com as vocações tardias. Eram pessoas dispostas a servir a Cristo, mas, estavam longe de conseguir isso. Naquela época, com a revolução industrial, as famílias também estavam longe da igreja e de Deus. Trabalhavam por longas jornadas e eram exploradas pelos seus patrões. Pe. Berthier, percebendo isso e aceitando os apelos do Papa Leão XIII, incorpora ao nosso carisma a família. Além da vocação e da família, nosso carisma tem um caráter missionário. No tempo de Pe. Berthier, os bispos pediam mais missionários para as frentes de missão na América e na África. Havia poucos padres nessas regiões. Então, Pe. Berthier pediu a seus filhos que fossem missionários e que estivessem próximos daqueles que estão longe em outros países, em lugares que ainda não conheciam Jesus.

Estar próximos daqueles que estão longe não é só ir para lugares distantes, como as frentes missionárias no Amazo-nas e em Moçambique. É, também, estar próximos dos mais

necessitados e daqueles que estão longe da Igreja, por não viverem sua fé como discípulo de Jesus.

Jesus sempre esteve próximo daqueles que estão longe. Jantou com os cobradores de impostos, que em sua época eram considerados ladrões e pecadores e, portanto, esta-vam longe da sociedade e da religião judaica (Mt 9,9-13); Jesus ressuscitou o filho de uma viúva, que estava longe por não ter marido e agora nem o filho para ampará-la, já que na sociedade judaica a viúva sem filho ou marido era exclu-ída (Lc 7,11-17); Jesus também estava próximo dos doentes que, para os judeus eram pessoas pecadoras, sendo sua do-ença um castigo de Deus, vistas como pessoas desprovidas da graça de Deus e, por isso, impuras. Os leprosos e doentes geralmente ficavam às margens da sociedade, fora dos mu-ros que protegiam a cidade ou, então, nos becos e periferias, longe dos fariseus, doutores da lei e do templo (Mc 1,40-45).

Mas o mais importante para os Missionários da Sagrada Família, o que os move e sustenta como discípulos missioná-rios é a parábola do bom samaritano em que Jesus nos ex-plica quem é o nosso próximo e o como devemos agir. Esse é o fundamento de todo o plano de ação e pastoral dos MSF.

Nessa parábola Jesus nos ensina que o próximo é o neces-sitado, ou seja, aquele que precisa de atenção, de cuidado, um destinatário da misericórdia de Deus, que na parábola é representado pela vítima dos assaltantes, uma pessoa ferida e quase morta. Mas, hoje, quem é o próximo? Aqueles homens e aquelas mulheres que vivem nas comunidades ribeirinhas do Rio Juruá, em Carauari e Itamarati; o povo africano de Mo-çambique; as comunidades dos arredores de Santa Cruz de la Sierra. Frentes missionárias onde os MSF atuam. Aqueles que estão longe são também os pobres, os que vivem nas perife-rias, como na inserção que a congregação, a exemplo de Jesus que atendia fora dos muros da cidade, atende em Porto Alegre e outros lugares. Também estão longe as nossas famílias que vivem a falta de amor e de carinho, que sofrem a separação...

Os MSF seguem Jesus estando próximos das realidades sofridas e gritantes do povo de Deus. Você também pode viver esse seguimento conosco seja como leigo/leiga ou como religioso. Quando Jesus disse “Vá e faça a mesma coisa” (Lc 37), foi a ti que Ele também falou.

AMISAFA - Ação Missionária da Sagrada FamíliaRua da Floresta, 1043 | Caixa Postal 3056 | CEP: 99.051-260

[email protected] | Fone: (54) 3313-2107

Seguir Jesus na missionariedade

Page 31: Bertheriano · 2019. 9. 20. · SEMEIE JUSTIÇA! Cultive paz e amor, então a vida ˜orescerá Bertheriano Ano 38 | nº 114 | Mai./Ago. 2016 MISSÃO NO MUNDO África: bela, mas mártir

Nossa Senhora de La Salette, mensageira da Misericóridia Divina,

roga por nós que recorremos a ti!

19 de setembro de 1846170 anos da aparição

Page 32: Bertheriano · 2019. 9. 20. · SEMEIE JUSTIÇA! Cultive paz e amor, então a vida ˜orescerá Bertheriano Ano 38 | nº 114 | Mai./Ago. 2016 MISSÃO NO MUNDO África: bela, mas mártir

SEMEIE JUSTIÇA!Cultive paz e amor, então a vida �orescerá

BertherianoAno 38 | nº 114 | Mai./Ago. 2016

MISSÃO NO MUNDOÁfrica: bela, mas mártir da exploração - 4

MISSÃO NO BRASILSAV: uma nova proposta - 6

ARTIGOSVoltar ao primeiro artigo da Constituição - 9Teologia bíblica: prolegômenos - 10Do lixo brota cidadania - 12Famílias e pastoral integradora na Amoris Laetitia - 14

MISSIONÁRIOS DA SAGRADA FAMÍLIAPROVÍNCIA BRASIL MERIDIONAL

www.msagradafamilia.com.br

Seja um missionário!

JUSTIÇA E PAZSemear e cultivar... humanidade! - 17Quanta paz experimenta quem serve os pobres! - 18Justiça: restaurar ou instituir? - 19Deixemo-nos inspirar pela Sagrada Família de Nazaré! - 20Maria em La Salette, modelo de relações humanizadoras - 22Parceria com Deus - 23Carta aberta aos nossos mártires - 24Profecia: um caminho de Fé e Espiritualidade! - 25

TESTEMUNHOSTestamento espiritual: “apostar tudo no amor” - 26Dom Helder: servo de Deus, servo dos pobres! - 28

AMISAFASeguir Jesus na missionariedade - 30