Bartolome de Las Casas

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47 Bartolomé de Las Casas e a Controvérsia de Valladolid: o deslocamento dos Direitos Humanos e do surgimento do biopoder HELDER FELIX PEREIRA SOUZA * Resumo: Este artigo ensaia uma breve análise da Controvérsia de Valladolid, sua relação com os primórdios dos Direitos Humanos e o surgimento do biopoder foucaultiano. Controvérsia esta ocorrida na cidade de Valladolid, Espanha (nos anos de 1550 e 1551) entre frei Bartolomé de Las Casas, procurador e defensor dos índios americanos e por isto também defensor e difusor dos Direitos Humanos, e o teólogo e filósofo Juan Ginés de Sepúlveda, a favor da conquista das Américas e a escravização dos índios desta região subjugada pela Espanha. Esta controvérsia representa um importante evento em relação aos Direitos Humanos, pois desloca a primazia da revolução americana, com sua Declaração de Independência, e da revolução francesa, com a Declaração dos Direitos dos Homens e dos Cidadãos, colocando o século XVI, a Espanha e o Novo Mundo também como importantes marcos. Por fim, este deslocamento realoca em alguns séculos antes o nascimento do biopoder e, consequentemente, da biopolítica foucaultiana, que data do séc. XVII e de meados do séc. XVIII, antecipando seus contornos em dois séculos. Palavras-chave: Conquista do Novo Mundo; proteção dos índios; poder disciplinar; biopolítica. Bartolomé de Las Casas and the Controversy of Valladolid: The Human Rights Displacement and the Rise of Biopower Abstract: This article attempts a brief analysis of the Controversy of Valladolid, its relationship with the beginnings of human rights and the emergence of foucaultian biopower. Such controversy occurred in the city of Valladolid, Spain, in the years 1550 and 1551, from Fray Bartolome de Las Casas, prosecutor and defender of American Indians, and also advocate and protector of Human Rights, and the theologian and philosopher Juan Ginés de Sepúlveda for the benefit of the conquest of the Americas and the enslavement of the Indians of that region subjugated by Spain. This represents an important event in relation to human rights, because moving the primacy of the american revolution with its Declaration of Independence and the french revolution, the Declaration of the Rights of Men and Citizens, placing the sixteenth century, Spain and New World an as important landmarks. Finally, this shift relocates in a few centuries before the birth of foucaultian biopower and the biopolitics, which dates from the century XVII and mid-century XVIII, anticipating its contours in two centuries. Key words: Conquest of the New World; protection of Indians; disciplinary power; biopolitics. * HELDER FELIX PEREIRA SOUZA é Mestrando em Filosofia, Teoria e História do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), bolsista da Capes.

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    Bartolom de Las Casas e a Controvrsia de Valladolid: o deslocamento dos Direitos Humanos

    e do surgimento do biopoder

    HELDER FELIX PEREIRA SOUZA*

    Resumo: Este artigo ensaia uma breve anlise da Controvrsia de Valladolid, sua relao com os primrdios dos Direitos Humanos e o surgimento do biopoder foucaultiano. Controvrsia esta ocorrida na cidade de Valladolid, Espanha (nos anos de 1550 e 1551) entre frei Bartolom de Las Casas, procurador e defensor dos ndios americanos e por isto tambm defensor e difusor dos Direitos Humanos, e o telogo e filsofo Juan Gins de Seplveda, a favor da conquista das Amricas e a escravizao dos ndios desta regio subjugada pela Espanha. Esta controvrsia representa um importante evento em relao aos Direitos Humanos, pois desloca a primazia da revoluo americana, com sua Declarao de Independncia, e da revoluo francesa, com a Declarao dos Direitos dos Homens e dos Cidados, colocando o sculo XVI, a Espanha e o Novo Mundo tambm como importantes marcos. Por fim, este deslocamento realoca em alguns sculos antes o nascimento do biopoder e, consequentemente, da biopoltica foucaultiana, que data do sc. XVII e de meados do sc. XVIII, antecipando seus contornos em dois sculos.

    Palavras-chave: Conquista do Novo Mundo; proteo dos ndios; poder disciplinar; biopoltica.

    Bartolom de Las Casas and the Controversy of Valladolid: The Human Rights Displacement and the Rise of Biopower

    Abstract: This article attempts a brief analysis of the Controversy of Valladolid, its relationship with the beginnings of human rights and the emergence of foucaultian biopower. Such controversy occurred in the city of Valladolid, Spain, in the years 1550 and 1551, from Fray Bartolome de Las Casas, prosecutor and defender of American Indians, and also advocate and protector of Human Rights, and the theologian and philosopher Juan Gins de Seplveda for the benefit of the conquest of the Americas and the enslavement of the Indians of that region subjugated by Spain. This represents an important event in relation to human rights, because moving the primacy of the american revolution with its Declaration of Independence and the french revolution, the Declaration of the Rights of Men and Citizens, placing the sixteenth century, Spain and New World an as important landmarks. Finally, this shift relocates in a few centuries before the birth of foucaultian biopower and the biopolitics, which dates from the century XVII and mid-century XVIII, anticipating its contours in two centuries.

    Key words: Conquest of the New World; protection of Indians; disciplinary power; biopolitics.

    * HELDER FELIX PEREIRA SOUZA Mestrando em Filosofia, Teoria e Histria do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), bolsista da Capes.

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    Introduo

    relevante destacar que o recorte deste artigo destaca a Controvrsia, ou a Junta de Valladolid, ocorrida na importante cidade de Valladolid - Espanha, em dois momentos: o primeiro em agosto e setembro de 1550 e o segundo em maio de 1551 no Colgio de San Gregrio de Valladolid. Contenda esta travada entre o frei dominicano Bartolom de Las Casas1, defensor dos direitos dos ndios da Amrica espanhola que estavam

    1 Bartolom de Las Casas (1474 ou 84-1566): foi um importante e destacado pensador espanhol, participou das navegaes da conquista do Novo Mundo, mas logo em seguida deixou-as e tornou-se frei da ordem dominicana, bispo de Chiapas no Mxico. Contra a utilizao de toda a classe de violncia para a converso dos ndios americanos ao cristianismo; foi notvel defensor dos indgenas e por isso difusor dos Direitos Humanos e sua universalidade. Teve importantes obras tais como Histria de las ndias, Brevssima Relacin de la Destruccin de Las ndias, Apologia, esta em que o frei contrape argumento por argumento as afirmaes de Seplveda na Controvrsia de Valladolid, etc.

    sendo massacrados pelos espanhis no perodo da conquista do Novo Mundo (final do sc. XV e sc. XVI), contra o pensador espanhol Juan Gins de Seplveda2, que defendia a conquista das ndias (Novo Mundo) e a luta contra seus povos.

    Um detalhe importante que ambos defendiam a obrigatoriedade da converso crist no Novo Mundo e o domnio desta regio ao rei da Espanha, no entanto para Las Casas isto s

    2 Juan Gines de Seplveda (1490-1573): foi filsofo, telogo, jurista, humanista e cronista do imperador Carlos V, partidrio do emprego da fora como instrumento para vencer as dificuldades que se opunham na difuso do cristianismo aos novos povos descobertos; mais conhecido pela sua defesa da guerra contra os ndios em oposio ao frei Bartolom de Las Casas na importante Controvrsia de Valladolid. Publicou importantes obras dentre as quais Democrates, em que adequa a religio crist e a utilizao das armas; tambm Democrates alter, sive de iustis belli causis apud Indos em que defende a guerra das ndias; a sua Apologia onde defende a mesma causa na Junta de Valladolid; etc.

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    poderia acontecer pacificamente e com prvio consentimento voluntrio dos ndios. J para Seplveda era admissvel utilizao da fora para obter tal fim.

    Esta questo foi disputada na presena de muitos letrados, telogos e juristas numa congregao em que o Imperador Carlos V convocou para resolver o problema capital da justia ou injustia das campanhas que a Espanha empenhava na Amrica. Esta junta representa para o historiador espanhol Angel Losada3 uma grande importncia para as bases do Direito Internacional, assim como para os Direitos Humanos, pois foi pela primeira vez na histria da humanidade que uma nao (Espanha) e seu Rei discutiram juridicamente a justificao de uma guerra em que estavam em campanha, gerando toda uma legislao posterior: a Legislao das ndias (LOSADA, 1975a).

    O historiador coloca a importncia desta Controvrsia de Valladolid para o Direito Internacional e tambm a relevncia que se tem em relao aos Direitos Humanos e do Homem, pois os dois contendores discutem valores sobre a humanidade, liberdade e igualdade entre dois povos distintos: os europeus e os americanos, no caso, amerndios.

    Assim, evidente a questo de Valladolid que refletindo o esprito final da poca renascentista, marcada por efervescncias de pensamentos contraditrios, no deixa de refletir tambm uma escalada ideolgica rumo conquista dos Direitos do Homem, tpico do humanismo espanhol do sc. XVI.

    3 Losada chama a ateno em sua obra para o fato de que a controvrsia ter sido fundamental para a histria e que a mesma se encontra ausente em boa parte dos manuais de histria moderna. O motivo, ele diz, que os documentos de base da controvrsia ficaram permanecidos inditos at o nosso dia (1975b).

    Disto possvel perceber um deslocamento do eixo franco-americano da guinada dos Direitos dos Homens e perceb-los fortemente presentes tambm em pocas da conquista espanhola do Novo Mundo; deslocando-se tambm a leitura do biopoder assim como da biopoltica efetuada por Foucault que coloca como sendo o seu marco o sc. XVII e meados do sc. XVIII. Remetendo assim para, ao menos, dois sculos antes a existncia e o fomento da insero da vida na poltica: o poder soberano de decidir sobre fazer viver (proteger a vida) ou deixar morrer desloca seu paradigma no mais somente para a poca da revoluo francesa, mas tambm para a poca das novas colonizaes, sobretudo a do Novo Mundo espanhol.

    No se pretende neste artigo esgotar o assunto e preencher de dados histricos que comprovem as afirmaes anteriormente destacadas, pois tal empreitada custaria algumas dezenas, ou at mesmo, centenas de pginas a mais. No entanto quer-se discorrer brevemente sobre essas novas perspectivas de algumas evidncias que deslocam o eixo comum dos Direitos dos Homens centrados no sc. XVIII, com as revolues francesa e americana, inserindo a Espanha e a Amrica Latina como novas correntes.

    1. A Controvrsia de Valladolid

    Este item abordar de maneira resumida e sinttica os pontos importantes discutidos na Controvrsia, assim como os pontos e contrapontos defendidos por Seplveda e Las Casas, com base na traduo castelhana de Angel Losada acerca dos textos originais latinos reunidos na obra Apologia. Esta obra importantssima, e muito pouco utilizada ainda em meio acadmico, rene o livro Apologia en pro del libro de las justas causas dela guerra contra

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    los ndios de Seplveda, que resume a argumentao deste autor defendida na famosa Junta de Valladolid e tambm Apologia de Las Casas, que refere-se contestao feita argumento por argumento contra Seplveda.

    Esta controvrsia convocada pelo imperador Carlos V, que decidiu reunir em 1550 uma junta de telogos e juristas para por em debate a justia de uma guerra que o prprio imperador movia na Amrica, foi to importante que, enquanto aguardava o resultado das deliberaes da junta, a coroa espanhola decidiu suspender a guerra de conquista no Novo Mundo. No entanto, [...] a junta de Valladolid no chegou a nenhuma deciso definitiva, contudo o tema em debate e as posies adotadas deixaram marcas indelveis at nossos dias [...] (LOSADA, 1975a, p. 10).

    Importante destacar tambm a existncia de um filme francs lanado em 1992, La Controverse de Valhadolid, do diretor Jean-Daniel Verhaeghe, inspirada na obra literria A Controvrsia, de Jean-Claude Carrire (2003), que retrata os assuntos mais importantes discutidos na controvrsia e desenvolvido brilhantemente tanto no livro quanto no filme.

    1.1 Sntese das ideias discutidas

    As discusses se deram em torno de ideias distintas, mas de cunho humanista renascentista: a de Seplveda marcada por um humanismo clssico que se fundamentava em doutrinas de Aristteles, sobretudo para afirmar a escravido por natureza dos povos brbaros, ao mesmo tempo compatvel com o humanismo cristo, em que se baseia na bblia e outros escritos de pensadores da igreja (GALMS, 1991). Por outro lado, Las Casas, tambm humanista renascentista, apoiava-se nas mesmas bases filosficas e

    argumentativas de Seplveda (a sagrada escritura, o filsofo estagirita, dentre outros), contudo marcada por um pacifismo cristo e contra a escravido indgena.

    Pode-se afirmar que os pensadores mesmo com defesas diferentes partiam dos mesmos princpios: [...] f em cristo, amor ao prximo, incondicional fidelidade ao imperador [...] e ambos queriam a cristianizao das ndias. (GALMS, 1991, p. 187). No entanto, a conquista do novo mundo pelo imprio espanhol e a sua cristianizao implicava na utilizao de dois meios diferentes: a forma violenta, e talvez mais realista, aceita por Seplveda, e a forma pacfica, e tambm mais idealista, defendida por Las Casas.

    Nisto o pensamento de Seplveda baseava-se em sua obra Democrates alter, e de sua Apologia, em que o autor destaca os justos motivos que possibilitam e garantem a guerras contra os ndios, a fim de perpetuar a conquista espanhola e legar aos povos brbaros a civilizao. Por outro lado, Las Casas escreve sua Apologia em que rebate as teses defendidas por seu adversrio afirmando, sobretudo, o pacifismo cristo. Chama-se a ateno para um detalhe: Bartolom teve a vantagem de ter lido a apologia de Seplveda; no entanto, este no teve a mesma sorte de ter acesso aos trabalhos preparados pelo frei dominicano (BRUIT, 1993).

    As principais ideias discutidas da Controvrsia de Valladolid giram em torno das quatro questes, defendidas por Seplveda e contraposta por Las Casas, sinteticamente colocadas abaixo:

    Primeiramente Seplveda defende a ideia de que Os ndios se encontram em um estado tal de barbrie que se impem domin-los pela fora para libert-los de tal estado. (LOSADA,

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    1975a, p.16) e Las Casas as contrapem: No se pode generalizar o argumento de barbrie como Seplveda faz com base na autoridade de Aristteles e aplic-los aos ndios americanos sem antes definir o conceito de barbrie e as diferentes classes de brbaros. (LOSADA, 1975a, p. 16).

    Com isto Las Casas (1965) coloca que Seplveda falseou por ignorncia ou malcia a doutrina de Aristteles dizendo que este conhece uma classe s de brbaros, a dos incapazes de governarem-se por si mesmo e, portanto, escravos por natureza, sendo que o estagirita fala de duas classes de brbaros, incluindo a anterior e a dos que no falam o idioma de outro povo. J Bartolom vai mais longe definindo quatro classes de brbaros.

    A primeira classe se d em sentido imprprio, entrando nesta categoria todos os homens cruis e no-humanos, em que Aristteles chama de feras, incluindo-se ai os gregos e os latinos por causa da ferocidade de seus costumes, do mesmo modo que so os espanhis quando cometem crueldades nas ndias.

    J a segunda classe so as dos brbaros por essncia, como aqueles que somente falam a sua lngua, no falando a de outros povos, tais como os gregos chamavam os romanos de brbaros e vice-versa.

    Na terceira classe, na qual Seplveda acredita pertencer aos ndios americanos, se encontram os brbaros em sentido estrito, ou seja, os incapazes de governarem-se a si mesmos, sendo, nas palavras de Aristteles, servos por natureza.

    Por ltimo, Las Casas constri outra classe de brbaros, a dos homens no cristos. Baseia-se ele na Sagrada escritura, entendendo que os brbaros se

    comportam como ns, humanamente, contudo no so cristos.

    Com isto, o frei demonstra os equvocos de Seplveda alm de destacar sua limitao que, ao buscar informaes sobre os ndios americanos, se baseou somente nos relatos de Fernndez de Olviedo, espanhol conquistador que possua escravos ndios cuja opinio acerca destes era muito imparcial e preconceituosa, devendo o pensador ter buscado tambm outros relatos importantes.

    O segundo argumento de Seplveda diz que [...] a guerra contra os ndios se justifica como castigo do crime que eles cometem contra a lei natural por causa de sua idolatria e imolao de vtimas humanas aos deuses [...] (LOSADA, 1975a, p. 19), respondendo Las Casas que Todo o castigo supe jurisdio sobre a pessoa em que se aplica; nem a Igreja, nem os prncipes e reis cristos tm jurisdio para castigar os ndios por seus crimes. (LOSADA, 1975a, p.19).

    Isto, pois os ndios no conheciam o cristianismo, no habitavam terras crists, no haviam cometido crimes contra a igreja ou seus representantes e no podendo, portanto, receber castigos. Pois, para que isto acontecesse os indgenas deveriam ser sditos dos conquistadores. O que implicava em habitar as terras crists (domiclio), ser filho de algum sdito (origem), jurar fidelidade a algum senhor (vassalagem) ou cometer algum crime contra o prncipe, o que no ocorreu, pois os ndios estavam fora de qualquer jurisdio estrangeira; no receberam a f em ato, mas a tinham em potncia, ou seja, podiam vir a ser sditos, mas ainda no o eram.

    No terceiro argumento Seplveda afirma ser [...] justa a guerra contra os

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    ndios para evitar o sacrifcio de pessoas inocentes para oferec-las aos deuses ou para o consumo de sua carne, pois um ato contrrio lei natural [...] (LOSADA, 1975a, p. 22) sendo este o argumento mais slido do pensador, pois de fato afrontava a doutrina tradicional da igreja sobre a lei natural contra a idolatria e a antropofagia, o que era prtica comum entre alguns povos indgenas como os Astecas.

    O frei dominicano retruca e prepara uma monografia para refutar esta questo afirmando sinteticamente que [...] existem maneiras diferentes em que a igreja pode ter jurisdio contenciosa sobre os infiis [...] (LOSADA, 1975a, p. 23) para concluir que os ndios da Amrica no entram em nenhuma categoria das leis naturais e, portanto, no podem ser de nenhum modo castigados ou atacados pela guerra por parte da igreja ou dos prncipes cristos. O frei refora a sua argumentao dizendo que no h jurisdio sobre os ndios, no podendo assim nem castig-los e nem domin-los por armas, mas sim convert-los de modo pacfico mostrando o verdadeiro caminho de Deus.

    No ltimo e quarto argumento, Seplveda afirma que Deve-se fazer guerra contra os infiis (ndios) para preparar assim o caminho para a propagao da religio crist e facilitar a tarefa dos pregadores [...] (LOSADA, 1975a, p. 38) com base na sagrada escritura e em santo Agostinho; o que Las Casas rebate dizendo [...] aqueles que nunca receberam a f no devem ser forados a receb-la; e ao contrrio, aqueles que receberam, sendo hereges, devem ser compelidos a redimirem-se. (LOSADA, 1975a, p. 39).

    Isto denota a postura de Las Casas em resolver os conflitos de maneira pacfica

    sem a utilizao de violncia em relao aos povos recm-descobertos, como sendo potenciais cristos, devendo ser convertidos se quiserem, e nunca utilizando da fora para isso.

    Por fim, apesar desta controvrsia no ter tido nenhuma soluo foi importantssima para a histria na questo das discusses sobre a igualdade, a liberdade e a vida dos seres humanos. No entanto, vale tecer alguns comentrios sobre os pontos discutidos.

    possvel notar que, mesmo com essa brevssima sntese da discusso da Controvrsia de Valladolid, o que estava em destaque era a relevante importncia atribuda sobre a questo da vida (tanto dos indgenas quanto dos espanhis) em que eram defendidas justificativas racionais para de algum modo melhor domin-la ou instrumentaliz-la (pacfica ou violentamente). Tratando-se assim de um tipo de exerccio de poder sobre a vida, preocupado em buscar a melhor forma para concretiz-la.

    Por outras palavras, tanto Seplveda, ao defender a ideia de conquistar (mesmo que com violncia) o Novo Mundo e at mesmo escravizar os ndios como povos brbaros para levar a civilizao e o Deus cristo aos infiis, quanto Las Casas, ao contrariar as ideias de dominao violenta dos novos povos, ambos preocupavam-se com os meios de se lidar com a vida dos diferentes (ao menos os indivduos e as populaes envolvidas no Novo Mundo).

    Estas vidas e a maneira que elas sero tratadas, do nvel individual (os indivduos indgenas, disciplinados para serem escravos, ou catequisados, e os espanhis, disciplinados para trabalharem e administrarem as terras conquistadas) ao nvel populacional (a populao do Novo Mundo, assim como

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    a populao espanhola, como partes da economia de conquista da metrpole que gere a colnia), recapitulando, estas vidas dependero da deciso de um poder soberano que passa a preocupar-se em administrar e gerenciar a vida do corpo individual e populacional, decidindo sobre quem e o que brbaro, ou escravo, e quem ou o que humano; decidindo assim sobre quem deve viver ou quem se deixa morrer; ideia esta mais presente em Las Casas do que em Seplveda, pois este denota maior preocupao em fazer morrer ou deixar viver.

    Estas especulaes esto presentes no conceito de biopoder de Michel Foucault, como um tipo de manifestao do poder que passa a se ocupar da vida j em incio do sc. XVII, assim como nas discusses dos Direitos Humanos e dos Homens que inserem a vida nos discursos e prticas polticas com a preocupao de proteg-la, da mesma forma em que pretende garantir seus direitos, dignidades, liberdades e igualdades. Ponto este que ser objeto da parte seguinte.

    2. O deslocamento da defesa dos Direitos Humanos

    Est claro que atualmente vivenciamos uma Era dos Direitos em que amplas normas que protegem o homem e regulam suas relaes so criadas. Como as j antigas, porm atuais, Declarao de Independncia dos Estados Unidos e a Declarao dos Direitos dos Homens e dos Cidados de 1789 ou a Declarao Universal dos Direitos Humanos de 1948. Ambas fruto de muitas lutas, como as revolues francesa e americana, influenciando a difuso dos Direitos e Garantias Fundamentais, assim como os Direitos Humanos, e que se difundem no atual contexto (em escala mundial, ao menos no ocidente) modelando e

    delineando praticamente todas as constituies dos Estados ocidentais contemporneos.

    Estas se pautam basicamente em proteger a vida, a liberdade, a fraternidade, a igualdade, a dignidade, a propriedade, o trabalho, a sociedade, a economia, a cultura, o meio ambiente, etc. Compondo estes direitos, como nos orienta Norberto Bobbio (1992, p. 6), os direitos de primeira gerao, como sendo os direitos garantidores da liberdade individual dos sujeitos de direito; os direitos de segunda gerao, como os referentes aos direitos sociais, sendo estes dois os mais primitivos e os direitos de terceira gerao, considerados os direitos solidrios, aparecendo nos ordenamentos jurdicos como os direitos coletivos ou difusos; e por fim, os direitos de quarta gerao, pertinentes s pesquisas e manipulaes biolgicas, estes dois ltimos os mais atuais.

    Enfim, estes direitos so de maneira genrica frutos das lutas pelos Direitos Humanos e da corrente iluminista que na tradio europeia coloca a revoluo francesa e a independncia dos Estados Unidos como importantes marcos na histria dos Direitos, afirmando isto o pensador Norberto Bobbio acerca da relevncia da revoluo francesa e americana [...] quando da aprovao dos Direitos do Homem marcando o princpio de uma nova era. (1992, p.113).

    No entanto, percebe-se que h outra corrente importante relacionada com a defesa dos Direitos Humanos e ligada poca do renascimento espanhol e da conquista do Novo Mundo, principalmente em relao Bartolom de Las Casas nas suas defesas dos indgenas americanos por quase um sculo, atingindo o seu clmax na Controvrsia de Valladolid.

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    Deste modo passam a existir duas importantes tradies tericas sobre os Direitos Humanos. Uma delas a tradicional franco-americana, citada anteriormente e de influncia individualista, e outra que surge com os conflitos do Novo Mundo no sc. XVI, sobretudo com os padres dominicanos e Bartolom de Las Casas que se preocupam com os ndios (os pobres, oprimidos), sendo a vertente da Amrica Latina e da Espanha.

    desta forma que pensa o professor Torre Rangel em seu livro El Uso Alternativo de Derecho por Bartolom de Las Casas exposta na seguinte passagem e que vale a pena transcrever na ntegra:

    Cada uma destas tradies tericas sobre os direitos humanos tem uma filosofia jurdica na qual est enraizada. A da ilustrao apela teoricamente chamada Escola do Direito Natural, que se desenvolveu durante os sculos XVII e XVIII, sendo de corte racionalista e seu princpio social fundamental o individualismo. A segunda mais antiga e se trata do jusnaturalismo de tradio Crist que tem sua expresso melhor elaborada com os telogos juristas espanhis do sculo XVI; envolve uma concepo do Direito Natural no s racional, mas que tem em conta o homem concreto e a histria como um princpio social fundamental de corte comunitrio. Esta corrente do jusnaturalismo Cristo, d o salto definitivo na concepo dos direitos humanos desde o pobre, no nas ctedras espanholas, mas sim na prxis da defesa do ndio e a partir da realidade das ndias. (1991, p. 174 e 175)

    Assim, abre-se outro caminho e perspectivas sobre a histria dos Direitos Humanos. A corrente hispano-

    americana pautada no comunitarismo e na proteo dos mais fracos: difundida por Bartolom de Las Casas e os padres dominicanos em sua defesa dos ndios. Esta, incitando uma referncia aos Direitos Humanos j presente em meados do sc. XVI cujo auge se deu com a Junta de Valladolid que reuniu diversas autoridades reais, clericais e pensadores, discorrida sinteticamente na primeira parte deste artigo. Representando naquela poca, se no o auge, mas o alto nvel das discusses polticos-filosficas da condio do ser humano, dos estrangeiros, da guerra justa, da vida.

    Se analisarmos a discusso gerada pela Junta de Valladolid, assim como os discursos e prticas da vida de Bartolom de Las Casas como denunciador da violncia contra os ndios e consequentemente o seu maior defensor (CASAS, 1991), concluiremos que a discusso versa sobre a questo da vida e do poder sobre a vida: seja a vida digna do ndio reconhecida como necessidade de se proteger e cristianizar; seja sobre liberdades e igualdades, no reconhecimento, principalmente por Las Casas, onde partia da obra do Criador [...] que a todos faz livres e, apesar das particularidades constatadas, no podemos tachar de humanamente inferior toda uma srie de povos, a ponto de serem oprimidos e escravizados. (GALMS, 1991, p. 194); seja na questo de fraternidade e solidariedade, em que o frei dominicano reconhecia a misso de converter pacificamente os ndios para compartilharem da mesma f no cristianismo.

    Percebe-se com isto que h tambm duas posies bem distintas se confrontando: a de Seplveda que coloca os ndios como seres inferiores,

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    escravos naturais, e a de Bartolom como defensor dos Direitos, liberdade e igualdade dos povos indgenas em relao aos conquistadores, o que com esta perspectiva o frei dominicano fundamenta um tipo de Direitos Humanos Universais, comunitrios e voltado aos mais fracos (JOSAPHAT, 2000).

    Seus discursos e suas prticas so inseparveis, o que torna evidente que com Bartolom a defesa dos Direitos Humanos, alm de tomar corpo, ganha fora e vida prpria. Mesmo que j existissem posturas semelhantes em alguns dominicanos, tais como o frei Montesinos4, com Bartolom que os discursos e as prticas so potencializadas, pois coloca-se em discusso a dignidade do ser humano, suas liberdades e igualdades; em suma, discute-se o poder sobre a vida em disputas filosficas, polticas e jurdicas.

    Pode-se dizer que h um incremento e um deslocamento de dois sculos em relao aos Direitos Humanos da tradio individualista franco-americana. E este deslocamento se d com a conquista do Novo Mundo e defesa dos ndios americanos.

    Isto no deixa de demonstrar tambm outra consequncia: confirma a tese de Michel Foucault, cuja [...] vida biolgica se insere cada vez mais no poder [...] (FOUCAULT, 2005, p. 285), ou seja, que a vida do ser humano passa a ingressar nos discursos e prticas da poltica, o que algo 4 Antnio de Montesinos (1475-1540): foi um missionrio e frei dominicano que atuou junto com a primeira comunidade de domenicos na Amrica espanhola. Distinguiu-se pela denncia e a luta contra o abuso, explorao e o trato desumano que se cometiam aos indgenas por parte dos colonizadores espanhis, influenciando com seus sermes a converso de frei Bartolom de Las Casas na defesa dos ndios (FRANCH, 1995).

    evidente na defesa de Las Casas ou no ataque de Seplveda condio e ao estatuto humano dos indgenas americanos. Esta a nova forma de se governar: o biopoder e a biopoltica, que sero assunto da parte seguinte.

    3. O deslocamento do biopoder foucaultiano

    Do mesmo modo em que se indica mais um importante marco para os Direitos Humanos, inserindo o sc. XVI das conquistas espanholas e o Novo Mundo, juntamente com os sc. XVIII e as revolues americanas e francesas, deslocando em aproximadamente duzentos anos antes a questo desses Direitos, pode-se indicar algo semelhante em relao ao biopoder5.

    Foucault, em seus estudos diversos sobre a temtica do poder percebeu que prximo aos sc. XVII e XVIII houve uma redefinio do Estado-soberano, que desde a poca clssica tinha o direito de vida e morte sobre seus sditos, no entanto com a proximidade da modernidade fora substitudo por um Estado-governo, [...] incompatvel com as relaes de soberania. (2010, p. 187), preocupado em promover a vida e deixar morrer manifestando-se, sobretudo, em dois plos: um deles pautou-se na disciplina dos corpos, tratando-os como mquinas, a fim de melhor adestrar, ampliar as aptides, individualizando as pessoas para melhor torn-las dceis e teis; e outro agindo diretamente no corpo como espcie, ou seja, na populao, preocupando-se em gerenciar a massa populacional inserida em seu territrio.

    5 Biopoder utilizado aqui o concebido por Foucault como uma redefinio da manifestao de poder que o pensador detecta j no sc. XVII. Um tipo de poder sobre a vida preocupado em fazer viver ou deixar morrer.

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    Esta disciplina dos corpos era assegurada por procedimentos do poder que tratavam de cuidar e moldar caractersticas antomo-polticas do corpo humano. Adaptar os indivduos para serem disciplinados e desempenharem melhor as suas funes sob a interferncia e interesse do poder. Isto se manifestava presente no sc. XVII, como um poder disciplinar, que tambm continuar a ser utilizado (mas com outras conotaes e contextos) nos sculos seguintes.

    J no desenvolver da metade do sculo XVIII, um segundo plo do poder sobre a vida comeou a adentrar-se no corpo como espcie, preocupando-se com os processos biolgicos, como a questo da proliferao, dos nascimentos e das mortes, a questo da sade, da vida, da longevidade, etc. O poder poltico passa a preocupar-se no somente em disciplinar o indivduo otimizando suas funes e utilidades na sociedade, mas tambm passa a perceber o conjunto de indivduos como espcie, querendo cuidar e administrar do corpo populacional (FOUCAULT, 2006).

    Pode-se dizer, portanto, que desde o sculo XVIII tem havido uma maior interferncia do Estado, como aquele que governa a vida, tanto em relao vida dos indivduos (de maneira a disciplinar e adestrar os corpos), quanto vida da populao (gerenciamento populacional); inserindo, assim, o indivduo e a populao em uma tecnologia do poder, que Foucault chama de poder disciplinar e, respectivamente, de biopoltica6; elaborando, para isto, clculos para

    6 Biopoltica uma tecnologia do poder, destacada por Michel Foucault, preocupada em gerenciar a vida do corpo populacional, inserindo a vida biolgica dos indivduos como espcie em sua lgica gerencial, preocupando-se em fazer viver ou deixar morrer.

    melhor gerir, administrar, organizar a sociedade.

    Em suma, diversos procedimentos e tcnicas foram criados e utilizados para sujeitar corpos e controlar populaes. Foi estabelecido um poder cuja funo mais elevada a de investir sobre a vida, gerenci-la, control-la:

    A velha potncia da morte em que se simbolizava o poder soberano agora, cuidadosamente, recoberta pela administrao dos corpos e pela gesto calculista da vida. Desenvolvimento rpido, no decorrer da poca clssica, das disciplinas diversas escolas colgios, casernas, atelis; aparecimento, tambm, no terreno das prticas polticas e observaes econmicas, dos problemas de natalidade, longevidade, sade pblica, habitao e migrao; exploso, portanto, de tcnicas diversas e numerosas para obterem a sujeio dos corpos e o controle das populaes. Abre-se, assim, a era de um bio-poder. (FOUCAULT, 2006, p. 152).

    Pode-se concluir que para Michel Foucault desde o sc. XVII at hoje h uma preocupao do Estado-governo em gerir a vida, conceituada por Foucault de biopoder e que tem por intuito a sujeio e o adestramento dos corpos individuais atravs do poder disciplinar, e o controle biopoltico como gerenciamento [...] racional do conjunto de viventes constitudos em populao [...] (2008, p. 431). Esta ferramenta do poder manifesta-se claramente nos discursos e nas prticas que visam dizer/fazer coisas sobre a vida e a morte dos indivduos ou de populaes; quem pode ou no ser escravizado; o que e o que no vida; o que brbaro e o que civilizado.

    O fato que, retomando a discusso da primeira parte deste texto, e voltado s

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    anlises discursivas da Controvrsia de Valladolid, percebe-se uma insero dos indivduos e da populao, no caso a indgena do Novo Mundo, nas discusses e preocupaes governamentais da coroa espanhola. Este tipo de preocupao seja em defender a conquista e a escravido dos nativos ou contra esse tipo de violncia; seja ao definir se o ndio tem ou no tem alma; se ou no humano; enfim, este tipo de discusso envolve, no somente a questo econmica, mas tambm a sua relao com um tipo de poder preocupado em decidir sobre ao valor e o desvalor da vida.

    Isto denota claramente que a importante controvrsia ocorrida em 1550 e 1551, que destacava a questes do que e o que no humano, colocando de um lado defensores dos direitos dos ndios e consequentemente dos Direitos Humanos (WOLKMER, 1998), e de outro os negadores; este tipo de discusso e prtica desloca o eixo dos Direitos Humanos inserindo a Espanha e a Amrica Latina como plos importantes na criao destes direitos, pois coloca outro ponto de vista: a comunitria e a condio dos oprimidos (diferentemente da tradicional franco-americana, que no pensar de Torre Rangel, era de cunho individualista).

    No entanto, este deslocamento antecipa tambm o eixo do biopoder, colocando importante peso na renascena do sc. XVI a preocupao em inserir a vida na administrao de um Estado-governo, preocupado no mais com o velho direito de causar a morte ou deixar viver, tpico do Estado-soberano, mas sim em causar a vida ou devolver morte.

    O exemplo do frei defensor dos ndios, e consequentemente dos Direitos Humanos, que exigia do poder soberano o reconhecimento da precariedade das

    condies humanas na conquista do Novo Mundo, culminando na Controvrsia de Valladolid, um claro exemplo de que a questo do poder disciplinar e da biopoltica, ou seja, a preocupao com a vida dos indivduos e da populao tornava-se evidente, redefinindo a forma de manifestao do poder poltico.

    Portanto, da poca clssica at hoje, da transformao do poder em biopoder, da poltica em biopoltica, o tipo de mecanismo direto de poder ir deslocar-se, e com essa alterao passar a ser no somente um poder de morte, mas tambm um poder de fazer a vida, geri-la, otimiz-la, organiz-la. Assim, este antigo poder de morte se [...] apresenta agora como o complemento de poder que se exerce, positivamente, sobre a vida, que empreende sua gesto, sua majorao, sua multiplicao, o exerccio sobre ela, de controles precisos e regulaes de conjunto. (FOUCAULT, 2006, p. 149). E os contornos deste biopoder e da biopoltica ganham corpo no mais no sc. XVII ou em meados do sc. XVIII, mas esto presentes com muita fora j em meados do sc. XVI, combinando com as conquistas espanholas e a dominao do Novo Mundo.

    Consideraes finais

    Com a breve anlise deste artigo sobre a Controvrsia de Valladolid, dada sua enorme relevncia para o imperador espanhol Carlos V e a sua importncia para a Europa do sc. XVI em relao discusso dos valores humanos, projeta-se essa Controvrsia e a poca das conquistas, se no no mesmo, mas em um patamar prximo s revolues francesa e americana, que estabeleceram os Direitos dos Homens, assim como as bases para os Direitos Humanos.

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    Ganhando relevncia sobre a questo dos Direitos Humanos a vertente espanhola e americana, datando da poca das conquistas do sc. XVI, culminando nas discusses da Controvrsia de Vallhadolid e tendo como seu maior expoente nas lutas pelos indgenas e pelos Direitos Humanos: frei Bartolom de Las Casas.

    Da mesma forma em que se insere esta questo coloca-se outra: o deslocamento eixo do biopoder e da biopolitca foucaultiana. Cujo poder passa a preocupar-se em fazer vida e o Estado-governo em gerenci-la, inserindo-a na poltica, necessitando saber o que e o que no humano; o que e no brbaro, escravo, etc., para medir e avaliar a vida (dos indivduos e das populaes); datada por este autor como ocorrncias iniciadas no sc. XVII e XVIII, mas tambm presentes j no sculo anterior. Pois a preocupao do poder poltico, a partir de meados do sc. XVI, ao menos na renascena espanhola, mais evidente na Controvrsia de Valhadolid, toma fortes contornos com a preocupao de fazer viver ou deixar morrer dos novos povos conquistados, caractersticas do biopoder, e no mais somente o de deixar viver ou fazer morrer, tpica das pocas dos suplcios do Estado-soberano.

    Por fim, este artigo finaliza com um enlevo relevncia de se pensar outras possibilidades e perspectivas, no s dos Direitos Humanos e o do biopoder e da biopoltica, mas tambm dos acontecimentos histricos e de seus entendimentos, como um estmulo fuga ao congelamento tanto do pensar quanto do interpretar certos fatos e perspectivas tradicionalmente aceitas.

    Assim, ilustrando um pouco mais a histria, fortalece-se um novo eixo da difuso dos Direitos Humanos, do

    mesmo modo que se faz um alerta questo do biopoder: no so apenas dois sculos, aproximadamente, em que estamos inseridos em uma gesto calculista da vida; quase meio milnio desse tipo de governamentabilidade inserida em nossos corpos, como o filsofo Agamben j evidenciava sobre a antiguidade da biopoltica em sua obra Homo Sacer. Fica para uma prxima pesquisa a questo: o que sobra de nossa subjetividade aps diversos sculos de vidas reduzidas a clculos e inseridas nessa mquina gerencial de corpos em que se tornou nossa poltica?

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    Recebido: 02.03.2012 Publicado: 12.12.2012