BAIRRO DO BOM RETIRO SEGUNDO AS CATEGORIAS … · As grandes cidades americanas do início do...
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BAIRRO DO BOM RETIRO SEGUNDO AS CATEGORIAS ETNOGRÁFICAS:
Fundamentos teóricos e primeiras observações no campo
CHI, JUNG YUN
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP).
Pós-graduação na Área de Concentração Paisagem e Ambiente. www.usp.br/fau [email protected]
RESUMO
Este artigo apresenta a metodologia de estudo de paisagem inspirada na disciplina de Antropologia que emprega, do olhar de etnólogo, algumas estratégias para inserção no campo. O uso das categorias etnográficas, instrumentos extraídos das pesquisas do Núcleo de Antropologia Urbana (NAU/FFLCH-USP) desenvolvidas sob a supervisão do Prof. Dr. José Guilherme Cantor Magnani, tem como finalidade entender a forma recíproca com que a rede de relações sociais influencia a estrutura espacial do bairro. Com isso, espera-se descrever a maneira com a qual diferentes comunidades de imigrantes do bairro do Bom Retiro se apropriam dos espaços públicos, dando-lhes expressões multiculturais que denotam valores comunitários, tais como identidades coletivas, interesses territoriais, emblemas e memórias sociais.
Palavras-chave: São Paulo; Bom Retiro; multiculturalismo; categorias etnográficas; espaços públicos
3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro
INTRODUÇÃO
O mestrado em desenvolvimento na Área de Concentração Paisagem e Ambiente da
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), sob a
orientação do Prof. Dr. Vladimir Bartalini e intitulado Bom Retiro: o multiculturalismo na
paisagem paulistana, tem como objetivo detectar as expressões do multiculturalismo na
paisagem do bairro do Bom Retiro, descrevendo as formas pelas quais os imigrantes
participam da criação e da transformação dos espaços públicos do bairro e a maneira como se
apropriam deles. Através dessa descrição, espera-se apontar os valores multiculturais do
bairro e contribuir para sua preservação, promovendo a integração social através da
valorização e do reconhecimento da diversidade cultural.
Como passos iniciais da pesquisa, foram realizadas observações no campo e os dados
levantados foram organizados segundo as categorias etnográficas, utilizadas nas
pesquisas do Núcleo de Antropologia Urbana (NAU/FFLCH-USP) desenvolvidas sob a
supervisão do Prof. Dr. José Guilherme Cantor Magnani, com a finalidade de entender a forma
recíproca com que a rede de relações sociais influencia a estrutura espacial do bairro. O
trabalho resultante apresenta as etapas dessas análises iniciais: primeiro, mostra alguns
fundamentos teóricos que levaram à escolha desta metodologia de campo e, depois, são
colocadas as observações feitas nas primeiras visitas ao campo, seguidas por reflexões que
apontam as possibilidades de desencadeamento da análise das categorias etnográficas no
estudo da paisagem do bairro multicultural.
BOM RETIRO, O BAIRRO DOS IMIGRANTES
Ao pensarmos no bairro do Bom Retiro, as primeiras imagens que surgirão nas nossas
mentes serão, provavelmente, os imigrantes e as coloridas lojas de roupas da Rua José
Paulino. A ferrovia e a Estação da Luz também são marcos importantes do bairro que lhe
atribuíram a função de “porta de entrada da cidade” e que configuram o seu limite com o
Centro. Até os meados do século passado, os trens traziam à Estação os imigrantes que
desembarcavam no Porto de Santos e muitos se fixaram ali mesmo, ainda que a maioria
estivesse só de passagem e partisse buscando lugares para morar em outros bairros logo em
seguida. Mais tarde, os imigrantes deixaram de chegar em barcos e a ferrovia perdeu a
conexão de passageiros com o porto, mas sua reputação de bairro de estrangeiros
permanece até os dias de hoje e o Bom Retiro continua abrigando os imigrantes vindos de
diferentes as partes do mundo. Todas as manhãs, podemos encontrar, nas ruas adjacentes
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do Terminal Princesa Isabel, grupos de passageiros que acabaram de desembarcar dos
ônibus vindos de vários países vizinhos – Paraguai, Peru e Bolívia, na sua grande maioria.
Outras características do bairro são a presença de instituições, equipamentos públicos e
monumentos, a intensa atividade comercial e a proximidade com o Centro que formam um
conjunto de fatores que lhe proporciona o status de bairro central. Segundo Feldman (2011):
As singularidades do Bom Retiro como bairro central e como bairro de
estrangeiros resultam da combinação entre presença da ferrovia,
proximidade do centro e sucessão de diferentes grupos de estrangeiros.
A proximidade ao centro repercute tanto na atuação de
empreendedores privados, como em estratégias do poder público de
destinar ao bairro tudo que exige acessibilidade, mas que é indesejado
ao centro (Feldman, 2011: p. 42).
Essa condição de bairro de estrangeiros e bairro central caracteriza o Bom Retiro desde os
primórdios da sua urbanização, que é decorrente da expansão urbana de São Paulo atrelada
à instalação da ferrovia, aos negócios cafeeiros e à industrialização incipiente. E foi no
entorno das pequenas instalações industriais e do comércio de confecção que, no início do
século XX, as comunidades de imigrantes começaram a estabelecer-se no bairro. Até hoje, o
bairro é fortemente caracterizado pela presença de indústria têxtil e das comunidades de
estrangeiros que participam dessa indústria, constituindo uma economia de base étnica:
A organização da base material compreendendo todos os elementos da
cadeia de produção e vendas, num território delimitado e fortemente
concentrado em um grupo de estrangeiros – uma economia de base
étnica – é o que lhe (ao bairro) confere uma identidade (Feldman, 2011:
p. 46).
Sobre essa economia de base étnica que se instalou no Bom Retiro, Truzzi (2011) aponta
suas forças e debilidades:
De um lado, o capital social de solidariedade, que produz sustentação
mútua entre os integrantes da rede (da mesma base étnica), pode ser
alto, mas, em muitos casos, conspícuo. De outro, o capital social de
reciprocidade, derivado das relações tecidas externamente à rede, com
outros grupos, e muitas vezes crucial à mobilidade social, é débil
(Truzzi, 2011: p. 31).
A falta de mobilidade social típica da economia de base étnica reforça a estratificação da
estrutura social do bairro, dividida entre grupos culturais que coincidem com os grupos de
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classes econômicas, distanciando ainda mais o convívio social entre as comunidades. Tendo
em vista esse multiculturalismo e a estrutura econômica que organizam a vida social do bairro
em grupos culturais, veremos quais são seus efeitos na convivência e na vida nos espaços
públicos.
IMPLICAÇÕES MULTICULTURAIS NA CIDADE CONTEMPORÂNEA
O multiculturalismo é um dado inerente às sociedades da era contemporânea: as distâncias
se encurtaram, o isolamento geográfico foi vencido pela alta capacidade de comunicação que
a tecnologia viabilizou e as pessoas oriundas de diversas terras trouxeram consigo, às
cidades, costumes e tradições de suas origens. Num mundo que se diz globalizado, já nem
sabemos afirmar se ainda existem “sociedades” na forma plural, que se sustentariam umas
independentemente das outras. No entanto, a impressão que se tem é de que estamos ainda
distantes do ideário descrito como noosfera por Teilhard Chardin, no qual a humanidade seria
transformada numa unidade integrada, fundida num fluxo único de ideias, desfrutando do bem
estar advindo de uma sociedade igualitária e livre de conflitos. Segundo Budyko (1986), a sua
formação é um processo considerado ainda em andamento, longe de ser completado.
Não podemos negar o fato de que o intercâmbio de culturas sempre existiu, mas nunca com a
intensidade e a velocidade do mundo atual. Todas as culturas se misturam ou estão
suscetíveis a misturar-se, a perder seus limites no território e na sociedade através da
estrutura de comunicação que atingiu a escala global. E as tensões causadas por
estranhamento e discordância no encontro das diferentes culturas frequentemente se
manifestam na forma de conflitos sociais que, muitas vezes, são camufladas sob os discursos
da ética e da boa convivência. É como se nos encontrássemos na fase de transição em
direção à utópica noosfera, na qual a capacidade tecnológica de comunicar-se estivesse um
passo adiante da capacidade mental e afetiva das pessoas de integrar-se.
As grandes cidades americanas do início do século XX, onde o mundo viu a rápida formação
de sociedades multiculturais de tamanho e densidades jamais vistas antes, foram objetos de
interesse dos antropólogos da Escola de Chicago, em especial Robert E. Park e Louis Wirth.
Segundo Bógus (2008), o conceito da segregação espacial começa a aparecer na Escola de
Chicago, que considerava esta ser o produto de escolhas individuais, cada um escolhendo
formar grupos segundo afinidades étnicas e raciais e posição social com a finalidade de
proteger-se dos efeitos fragmentadores da individualização trazida pela vida urbana. Essa
visão sobre a estrutura social das cidades deriva do seguinte pensamento de Simmel (1967):
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A primeira fase das formações sociais encontradas nas estruturas
sociais históricas bem como contemporâneas é a seguinte: um círculo
relativamente pequeno firmemente fechado contra os círculos vizinhos,
estranhos ou sob qualquer forma antagônicos (SIMMEL, 1967: p.18).
Esses pequenos círculos sociais organizados de acordo com o modelo das comunidades
antigas, baseadas na relação de solidariedade, seriam a solução encontrada para a mediação
dos conflitos culturais com outros círculos e, ao mesmo tempo, para a preservação da
individualidade, das heranças culturais e da tradição. A relação entre esses grupos culturais,
portanto, seria marcada por tolerância, mínimo de comunicação, e indiferença. A atitude blasé
que Simmel define como sendo característica da vida mental dos metropolitanos é o que
prevalece na vida social para fora dos pequenos círculos e carrega o potencial para conflitos
quando na proximidade física.
Essa atitude mental dos metropolitanos para com o outro, podemos
chamar, a partir de um ponto de vista formal, de reserva. (...) o aspecto
interior dessa reserva exterior é não apenas a indiferença, mas, mais
frequentemente do que nos damos conta, é uma leve aversão, uma
estranheza e repulsão mútuas, que redundarão em ódio e luta no
momento de um contato mais próximo, ainda que este tenha sido
provocado (SIMMEL, 1967: p.17).
Em cidades densamente povoadas, a proximidade física inevitável força os grupos a
adotarem a relação de simbiose e acomodação entre si, e os problemas serão resolvidos por
regras e leis e não no trato individual e íntimo. Segundo Wirth (1956):
Nesses casos, os grupos humanos conseguem viver lado a lado, como
se fossem plantas e animais na situação conhecida como simbiose.
Essa organização entre plantas e animais persiste sem envolvimento de
consciência. Porém, a consciência e sentimentos surgirão no caso dos
seres humanos e cada um dos grupos poderão ocupar um espaço dado
sem perder identidades separadas porque para cada lado é permitido
viver sua vida interna e cada um, de alguma maneira, temerá ou
idealizará a vida do outro. Essa relação é apropriadamente descrita
como acomodação, para distingui-la da assimilação (WIRTH, 1956: p.
282).1
1 WIRTH, 1956 – p. 282. Tradução nossa.
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Para a finalidade do estudo proposto, com enfoque nos espaços públicos do bairro do Bom
Retiro, essas peculiaridades de convivência urbana entre os grupos culturais têm relevância
porque ditam as regras da vida pública. Sendo assim, o que se espera é a manifestação do
contraste de relações sociais entre a vida comunitária e a vida pública. A partir desse
pressuposto, vamos observar como esse contraste adota expressões concretas na paisagem,
por atores que participam do processo de criação, transformação e apropriação dos espaços
públicos.
BOM RETIRO SEGUNDO AS CATEGORIAS ETNOGRÁFICAS
A proposta de iniciar a análise sobre a maneira como as comunidades se apropriam dos
espaços públicos a partir do olhar de etnólogo tem como objetivo entender a forma recíproca
com que a rede de relações sociais influencia a estrutura espacial do bairro. A família das
categorias etnográficas do Prof. Magnani – pedaços, trajetos, circuitos e manchas – é o
instrumento que permite contextualizar, na cidade, as relações de sociabilidade e a dinâmica
cultural, evidenciando a sua organização espacial e simbólica, pois, “em vez da anomia,
isolamento ou fragmentação, o que se vê são regularidades, arranjos coletivos, oportunidades
e espaços de trocas e encontros” (MAGNANI, 2012: p. 251).
O primeiro elemento da família das categorias etnográficas, o pedaço, é o termo que “designa
aquele espaço intermediário entre o privado (a casa) e o público, onde se desenvolve uma
sociabilidade básica, mais ampla que a fundada nos laços familiares, porém mais densa,
significativa e estável que as relações formais e individualizadas impostas pela sociedade
(MAGNANI, 1998 apud MAGNANI, 2012: p. 88)”. Em outras palavras, o pedaço é lugar de
encontro de membros pertencentes ao mesmo círculo social, que se conhecem e/ou se
reconhecem, e é onde se praticam as atividades coletivas. O caráter espacial do pedaço é
transitório, pois o plano simbólico se sobressai na formação do mesmo: as pessoas se
reconhecem ao serem portadores dos mesmos símbolos culturais que remetem à etnia, à
tradição, aos hábitos, à crença, etc.
O restante das categorias etnográficas é decorrente da existência dos pedaços e da sua
distribuição espacial: as manchas são “áreas contíguas do espaço urbano dotados de
equipamentos que marcam seus limites e viabilizam (...) uma atividade ou prática
predominante (MAGNANI, 2012: p. 94)” sendo aglutinações no entorno de um ou mais
estabelecimentos; o trajeto “aplica-se a fluxos recorrente s no espaço mais abrangentes da
cidade e no interior das manchas urbanas (MAGNANI, 2012: p. 95)” e é constituído por
caminhos não aleatórios que interligam os pedaços, manchas, estabelecimentos,
equipamentos, etc.; e o circuito “descreve o exercício de uma prática ou a oferta de
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determinado serviço em estabelecimentos, equipamentos e espaços que não mantêm entre si
uma relação de contiguidade espacial, sendo reconhecido em seu conjunto pelos usuários
habituais (MAGNANI, 2012: p. 97)”, ou seja, ele é composto por espaços de prática cultural do
mesmo grupo, porém espalhado pela cidade ou para além dela. Sendo assim, a observação
das categorias etnográficas realizada no recorte dos limites do bairro do Bom Retiro mostrará
o entrelaçamento de redes sociais de diversas origens culturais e seu arranjo espacial dentro
do bairro, com distintos pedaços situados em manchas sobrepostas, onde há uma clara
confluência de circuitos de sociabilidade das comunidades multiculturais.
Ainda mais, o estudo das categorias etnográficas existentes no bairro poderá revelar a
qualidade de seus espaços públicos, não somente atrelada às configurações físicas, mas aos
usos, aos fluxos, às relações sociais neles promovidos e, principalmente, à afetividade que os
espaços evocam em seus frequentadores. Essa qualidade afetiva dos espaços públicos seria
o resultado da verdadeira apropriação, do sentir-se responsável por aquele lugar. A
existência das categorias pedaços, circuitos e trajetos é sinal de apropriação dos espaços e,
quando detectada no âmbito público, mostraria, além da relação das pessoas com o espaço, o
grau de aceitação dos valores culturais de um grupo pela sociedade. Segundo Magnani
(2009):
Os graus de uso, a formas de mobilidade, a multiplicidade de pontos de
encontro, as oportunidades de trabalho, estudo, etc. oferecidas pelas
diversas escalas urbanas é que vão determinar um maior ou menor
campo de trocas, permitindo construir, fortalecer e exibir marcas de
identidades que se legitimam na medida em que são assumidas pelos
“de dentro” e exibidas para “os de fora”. É preciso, pois, identificar os
pedaços, os circuitos, os trajetos que constituem diversas
modulações ou gradações do espaço público onde se pode
perceber a construção de múltiplas identidades – em contraste
com o confinamento do espaço privado, que dificilmente
consegue fazer a passagem do estigma, negativo, para a marca de
pertencimento, positiva (MAGNANI, 2009: p. 148).
Assim, a passagem do estigma para o pertencimento aconteceria na medida em que o grupo
se sente acolhido pela sociedade na sua diferença e resultaria no fortalecimento da vida social
nos espaços públicos. Vale ressaltar que esse acolhimento não significa a anulação da
identidade diferenciadora, mas a sua preservação e aceitação.
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LEVANTAMENTO DE CAMPO – ASPECTOS GERAIS
As visitas ao bairro do Bom Retiro realizadas entre os dias 18 a 22 de julho de 2014, no horário
entre as 9:00 e as 18:00, tiveram como objetivo mapear os estabelecimentos de comércio
e de serviço e equipamentos voltados para as comunidades étnicas e culturais do
bairro com a intenção de caracterizar as categorias etnográficas – pedaços, trajetos, circuitos
e manchas – compostas por distintos círculos de sociabilidade baseados nessas
comunidades. Para isso, em vez de adotar o limite administrativo do bairro para o
levantamento, foi traçado um novo limite, considerando a contiguidade espacial a partir da
centralidade formada no eixo das estações Luz e Tiradentes (ver Figura 1). Assim, os limites
estabelecidos para o levantamento inicial foram: Av. Rudge, Rua Sérgio Tomas, Av. do
Estado, Av. Tiradentes e a ferrovia. Esses limites, por serem vias de circulação de âmbito
municipal/regional, representam corte no tecido urbano e o recorte resultante é, de fato, o que
é o bairro do Bom Retiro na acepção geral.
Figura 1 – Limite do levantamento e as centralidades do bairro.
Uma vez definido o limite do levantamento, todas as ruas nele existentes foram percorridas a
pé e os dados levantados são resultados de observações feitas a partir das calçadas. Com
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isso, foi elaborada a tabela de endereços dos estabelecimentos de comércio e de serviço e
equipamentos voltados para as comunidades específicas que, mais tarde, serviu de base para
a elaboração do mapa síntese (ver Figura 2). Partindo do pressuposto de que esses
estabelecimentos promovem a socialização e a comunhão entre os membros pertencentes às
comunidades, esse mapa síntese representaria a distribuição espacial dos pedaços
existentes no bairro. Houve atenção contínua para detectar a formação de pedaços nos
espaços públicos, nas ruas e praças, mas nada foi identificado como tal nesse primeiro
levantamento.
Antes de tudo, é importante citar algumas características espaciais do bairro que foram
observadas durante o levantamento de campo. São elas:
1. O bairro se divide em três setores de acordo com o uso (ver Figura 1). O primeiro deles se
desenvolve a partir do eixo formado pela Rua José Paulino e é dedicado ao comércio de
roupas e de outros artigos ligados à confecção, tais como máquinas de costura e corte,
tecidos, aviamentos, etc.; o segundo é de comércios e serviços relacionados à vida
cotidiana do bairro e das comunidades, concentrado na Rua Prates; e o terceiro, de
ocupação menos densa, é composto por armazéns, galpões industriais, antigas vilas
operárias e residências.
2. A centralidade do bairro está nas áreas adjacentes das Estações Tiradentes e Luz (ver
Figura 1).
3. O Jardim da Luz é um importante lugar de passagem de pedestres que conecta o Bom
Retiro à Luz e ao Centro da cidade.
4. A constatação de que os setores comerciais causam vazios urbanos fora do horário
comercial é geral em toda a área central da cidade de São Paulo. O Bom Retiro não é
uma exceção. Essa característica exige mais uma série de observações de campo a
serem realizadas fora desse horário, em que poderão ser detectados padrões distintos de
apropriação dos espaços públicos em relação aos padrões constatados neste
levantamento.
5. O uso residencial é difundido no bairro todo, menos no setor do comércio de roupas. São
raros os edifícios exclusivamente residenciais, ou seja, a tipologia residencial
predominante é de uso misto.
6. Edifícios de grande porte (instituições e indústrias) provocam grandes extensões de
superfícies muradas junto às calçadas e diminuem a densidade de ocupação, o que faz
decair a qualidade das ruas do bairro.
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7. As avenidas e a ferrovia, que configuram o limite da área de levantamento anteriormente
descrita, são as rupturas do tecido urbano e as áreas adjacentes sofrem a situação de
borda, com ruas sem saída e praças abandonadas.
PRIMEIRAS IMPRESSÕES
Da observação dos estabelecimentos, da sua quantificação e da distribuição espacial,
puderam ser destacas três grupos culturais: coreano, judaico e hispano-americano, na ordem
decrescente do número de estabelecimentos encontrados. Desses três, apenas o grupo dos
coreanos é de base estritamente étnica, sendo que outros dois são compostos por diversas
etnias, porém unidos por outros fatores culturais: no caso da comunidade judaica, a força da
união vem das tradições e costumes religiosos enquanto a comunidade hispano-americana
compartilha a mesma língua. O destaque dessas três comunidades era esperado pela leitura
de artigos e publicações relacionados à história do bairro e foi atestado, sem dificuldades, no
primeiro levantamento.
Figura 2 – Mapa dos estabelecimentos de comércio e de serviço e equipamentos voltados para as comunidades étnicas e culturais.
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Em número, a comunidade coreana tem a maior representatividade no bairro, sendo que
existem trechos de ruas com uma sucessão de lojas com letreiros em coreano, causando a
sensação de se estar num bairro da Coreia. Como podemos observar na Figura 2, os
estabelecimentos e equipamentos da comunidade coreana se concentram nas quadras
movimentadas entre a R. José Paulino e a Estação Tiradentes do Metrô, principalmente na
esquina da R. Silva Pinto com a R. Guarani, na Rua Prates no trecho entre a R. Ribeiro de
Lima e a R. dos Bandeirantes e na R. Três Rios. Esses estabelecimentos suprem diversas
necessidades da vida cotidiana – são templos religiosos (igrejas evangélicas na sua grande
maioria), restaurantes, bares, karaokês, cabeleireiros, escolas, mercearias, etc. – e atendem
não só os moradores coreanos como os que trabalham no bairro e residem em outros locais
ou aqueles que não têm relação direta com o bairro, mas que desfrutam, de alguma forma, a
vida comunitária, vêm em busca da vida social com outros coreanos, da culinária típica ou da
vida religiosa.
Já a comunidade judaica, a mais antiga das três, marca a presença discretamente. De acordo
com o Prof. Dr. Carlos Alberto Póvoa2, a comunidade judaica já teve vínculo mais forte com o
bairro, mas foi perdendo a ligação com a indústria têxtil e avançou em direção aos bairros
Santa Cecília, Higienópolis, Jardins, Morumbi, Itaim Bibi, Vila Mariana e Moema, na ordem
cronológica. Mesmo assim, os estabelecimentos e equipamentos ligados à vida religiosa e os
costumes persistem, tais como as sinagogas, mercados de alimentos kasher, algumas
escolas e instituições beneficentes.
2 Das anotações da visita educacional do bairro do Bom Retiro realizada no dia 5 de abril de 2014 e organizada
pelo Centro da Cultura Judaica de São Paulo.
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Figura 3 – Discrição da confeitaria kasher na R. João Kopke e a fachada fortificada da sinagoga Khal Adas Yereim na R. Talmud Thorá.
O aspecto desses estabelecimentos, muitas vezes, é mais discreto do que a vestimenta dos
judeus ortodoxos que as frequentam. Se não estão escondidas atrás das fachadas fortificadas
com muros altos, portões de ferro e guaritas blindadas de vidro reflexivo, mantêm um disfarce
ou fachadas discretas sem letreiros e anúncios de maneira que um transeunte desinteressado
não perceba sua finalidade (Figura 3). O levantamento dos estabelecimentos judaicos com o
auxílio dos classificados disponíveis pela internet3 teve um resultado revelador, porque elas
eram invisíveis para quem não fazia parte daquele círculo social. Se os letreiros em coreano
desencorajam o acesso daqueles que não entendem a língua, a invisibilidade é outra
estratégia para afastar os não pertencentes à comunidade. Assim, cada círculo social protege
seus pedaços contra os estranhos, os indesejados e até a violência da vida urbana.
Os estabelecimentos e equipamentos para a comunidade hispano-americana, antes de tudo,
são de caráter de conveniência: são diversas modalidades de comércios e serviços – lan
house, cabeleireiros, venda de pães e salteñas, transferência internacional de dinheiro e
venda de cartões telefônicos para chamadas internacionais – que compartilham o mesmo
espaço nas pequenas lojas (Figura 4). Muitas vezes, não é necessário um ponto comercial
para isso, bastando sinalizar com pequenos anúncios em balões e adesivos nas portas de
residências. Podemos expor duas constatações sobre o cotidiano dos hispano-americanos a
partir dessa observação: 1) esses pequenos comércios espalhados pelo bairro, porém, longe
daquela parte central ocupada pelos estabelecimentos coreanos e judaicos e misturando-se
com as vilas operárias, oficinas de costura e fábricas, denunciam a significativa presença de
moradores hispano-americanos que demandam a existência desses estabelecimentos de
conveniência na proximidade de suas casas; 2) a ausência dos espaços de lazer que
promovem a vida social, salvo o caso do campo de futebol da Rua Afonso Pena onde são
realizados jogos dominicais entre times bolivianos e paraguaios entre outros. O lazer e a troca
de informações sobre os negócios provavelmente acontecem na famosa feira boliviana da
Praça Kantuta, que acontece todos os domingos na praça localizada na divisa entre os bairros
Bom Retiro e Pari, e que concentra os bolivianos de toda a região, do circuito que se estende
para Pari, Brás e Zona Leste adentro.
3 www.koshermap.com.br, acesso no dia 20 de julho de 2014.
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Figura 4 – Lojas latino-americanas na R. Joaquim Murtinho, ao lado da sinagoga Machzika Hadás.
PRÓXIMOS PASSOS: MAPEANDO PEDAÇOS, TRAJETOS E
CIRCUITOS
Uma vez elaborados os mapas mostrando a distribuição de diferentes pedaços que existem
no bairro para ver a estrutura espacial dos circuitos de sociabilidade, foi detectada a
necessidade de aprofundar o levantamento de forma que maior ênfase fosse dado aos
espaços públicos e às formas de apropriação desses espaços. Para isso, podemos atentar
para as seguintes situações:
1. Pedaços formados nos espaços públicos: os pedaços indicam apropriação pontual de
um espaço por um grupo. A constatação da não existência dos pedaços em espaços
públicos pode denunciar o abandono e a deficiência da vida social pública do bairro.
2. Trajetos e as ruas: os trajetos na escala de bairro indicam o fluxo de pedestres nas
ruas que traz a vivacidade e a sensação de segurança. Quanto mais frequentes e
sobrepostos, melhor é a qualidade da vida nas calçadas.
3. Pedaços e manchas sobrepostos: quando os pedaços e manchas compartilham os
mesmos espaços públicos, a convivência pode se manifestar de forma negativa
potencializando as tensões sociais e disputas territoriais ou acontecer positivamente
abrindo possibilidade de expandir as relações sociais para além dos limites dos pequenos
grupos. Muito provavelmente, os espaços serão ocupados com a alternância de horários
para evitar o contato indesejado com os outros e manter a invisibilidade pública e a
discrição, como forma de negociação pacífica entre os grupos (MAGNANI, 2012: p. 91).
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Segundo Magnani (2012), é necessário ampliar o nosso olhar “para além da nostalgia pela
‘velha rua moderna’ de Berman ou do ‘balé das calçadas’ de Jane Jacobs” (MAGNANI 2012:
p. 254), pois a vida pública contemporânea teria outros espaços. Porém, para o estudo da
paisagem, é importante que o foco permaneça nos espaços públicos, resistindo à tentação de
seguir o circuito e adentrar a vida privada. Se a ausência das categorias etnográficas nos
espaços públicos indica a “deterioração dos espaços e equipamentos públicos com a
consequente privatização da vida coletiva, segregação, evitação de contatos, confinamento
em ambientes e redes sociais restritos, situações de preconceito e discriminação” (MAGNANI,
2012: p. 254), essa constatação já seria uma válida experiência de campo e traria reflexões
igualmente ricas para se pensar no âmbito da paisagem.
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EXPRESSÕES DO MULTICULTURALISMO NA PAISAGEM
Para finalizar, vamos retomar algumas reflexões sobre o objeto do mestrado, as expressões
do multiculturalismo na paisagem. Para Conan (2009) a paisagem evoca os sentimentos
compartilhados entre membros do mesmo grupo, estabelecendo o emblema que representa a
identidade coletiva:
A paisagem é um símbolo do grupo que se torna coeso ao apropriar-se,
mediante formas de experiência ritualizadas, de um lugar que lhe
assinala uma identidade esquemática, e o valor que lhe é atribuído é um
símbolo dos ideais coletivos do grupo. Por sua materialidade, pelo valor
de representação e pelo sentido que lhe é adicionado, ele constitui um
emblema do grupo.4
De acordo com o autor, esse ato de apropriar é exercer o direito de propriedade sobre um
território através de ritos que produzem sentimentos, símbolos e ideais comuns, partilhados
pelos membros do grupo que os pratica. E cada grupo que exerce uma relação de
propriedade sobre um território é suscetível de fazer do próprio território seu emblema. Sendo
assim, não raramente, os conflitos de interesse entre diferentes grupos sociais manifestam-se
espacialmente e convergem nos espaços públicos e na paisagem.
Ainda mais, Hayden (1996) encontra na origem da formação das identidades as memórias
sociais e coletivas, e explica como elas se transmitem através da paisagem:
Identidades são intimamente ligadas às memórias: tanto às nossas
memórias pessoais (de onde viemos e onde temos vivido) quanto às
memórias sociais e coletivas interconectadas às histórias das nossas
famílias, vizinhança, colegas de trabalho e comunidades étnicas.
Paisagem urbana é o armazém para essas memórias sociais, porque
fatores naturais como colinas e portos, assim como as ruas, edifícios e
padrões de assentamento, enquadram as vidas de muitas pessoas e
perduram várias gerações (HAYDEN, 1996: p. 9).5
Assim, adicionando à paisagem as significações da memória e identidade, evidenciam-se
nela elementos essenciais a serem trabalhados para atingir o pleno reconhecimento do
multiculturalismo, tais como a conciliação de interesses territoriais, a criação de emblemas
coletivos e a preservação das memórias sociais.
4 CONAN, Michel, L`Invention des Identités Perdues, in: BERQUE, Augustin (dir.), Cinq propositions pour une
théorie du paysage. Ed. Champ Vallon, Seyssel, 2009, p. 37. Tradução do Prof. Dr. Vladimir Bartalini.
5 HAYDEN, 1996 – p. 9. Tradução nossa.
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Em suma, as expressões do multiculturalismo na paisagem podem assinalar a existência dos
seguintes fatores:
Unidade de identidade contra a tendência de dissolução da mesma;
Emblema (valor de representação)
Memórias sociais e coletivas
Desejo de apropriar
Acolhimento e pertencimento
Essas expressões do multiculturalismo na paisagem podem se apresentar sob diversos
aspectos: toponímia de logradouros, espaços públicos voltados ao lazer, atividades em
grupos e seus locais, monumentos, jardins e edifícios, entre outros. E as observações no
campo realizadas através do olhar etnográfico e da análise segundo as categorias
etnográficas podem ajudar a detectar a sutil presença dessas expressões e, mais tarde,
auxiliar na sua compreensão e na contextualização.
REFERÊNCIAS
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