Baila Comigo
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Bailacomigo
Texto PEDRO FERNANDES [email protected] REJANE CARNEIRO [email protected]
“Sentindo o frio em minha alma, te convideipra dançar...” Bailes ainda são sinônimo de romance.E a Muito descortina alguns desses amores,nascidos nas pistas de dança de salão da cidade
Um salão à meia-luz e casais a rodopiar na pista de ma-
deira. Saias se espalham e pés se entrelaçam com ele-
gância e experiência. Ali, o amor busca companhia,
nasce e termina para começar de novo, sem data de
validade. O Clube Comercial, na Avenida Sete, em seus
132 anos de existência, confirmados pela placa na fa-
chada e pelo rótulo do isopor das cervejas, já viu muitos deles em suas
diversas expressões. Platônicos, correspondidos, proibidos e aqueles
que não pertencem mais a este mundo.
Na porta, o aviso que diz não ser permitida a entrada de pessoas
trajando bermuda, shorts ou boné é mera formalidade. Quem freqüen-
ta o Comercial sabe que tem que estar elegante. É o que confirma o
presidente, Mário Ivo Farias, 80, que, há 50 anos, faz parte do clube.
Seu Mário é sociólogo e ensinou durante muitos anos em colégios pú-
blicos de Salvador. Hoje sua vida é o Comercial. Está sempre lá. Dança
e toma as suas na mesa com uma placa que diz "diretoria", sem a com-
panhia da mulher, que é crente.
Foi Seu Mário quem promoveu a reforma estrutural do lugar, fun-
dado por caixeiros-viajantes que, mais tarde, tornaram-se proprietá-
rios de casas comerciais. No térreo, há um insuspeito restaurante a qui-
lo que funciona durante o dia. Mas, à noite, é só subir as escadarias de
corrimãos dourados, encimadas por uma cúpula de vitrais, para des-
cobrir uma pérola perdida no centro da cidade. Tudo tem um ar de nos-
talgia viva. Daquela que não dói.
A sensação é que as coisas estão em seus lugares porque tem gente
que ainda vê sentido em mantê-las assim. "O clube estava caído. Foram
me buscar em casa para assumir a presidência", conta. No primeiro
andar, ficam o bar e a pista de danças, cercada por mesas e cadeiras de
plástico, dessas de praia. No segundo, acontecem aulas de dança três
vezes por semana.
Dona Norma Bastos, 68, é uma das alunas. Cabelo cortadinho curto,
acaju, sapatilhas douradas. Enquanto Geraldo Marrom e banda em-
balam os pares, ela se senta numa cadeira mais afastada. Está des-
cansando um pouco. Começou há dois anos, mas já dança faz tempo.
"Adoro dançar. Ainda menina, ia às matinês do Cruz Vermelha". Quan-
do o marido era vivo também davam seus rodopios. As aulas vieram
para ocupar o tempo e a cabeça da falta que ele faz. Conheceram-se
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pulando atrás de um trio elétrico. Ele ainda
era recruta do exército.
Hoje, ela vai aos bailes na companhia da
turma, como chama o seu grupo de ami-
gas. Dança com que m lhe tira como par ou
com os instrutores. Mas nada de paqueras.
Vai ser difícil concorrer com a memória do
seu grande amor.
Velho demais, também, ela não quer.
Pensa em alguém que a leve para jantar e
de quem não seja preciso trocar as fraldas.
"A rapaziada não quer nada. Ou só quer
saber de sexo ou de dinheiro", diz . Ainda
lembra as palavras do marido: "Solidão
não é coisa boa, mas não deixe o Ricardão
tomar seu dinheiro".
Se há quem lamente suas perdas, há
quem as comemore. “Há 20 anos que es-
tou me divertindo”. Sentada sob reflexos
do globo espelhado que oscila no teto da
casa de seresta Lugar Comum, na Avenida
Sete, a viúva Eunice Francisca dos Santos,
68, ri do próprio “chiste”. Só depois da
morte do marido, ela começou a viver.
Às quintas e aos sábados, dona Eunice
se dá a chance de encontrar um par que a
leve pela pista de danças. Mas a coisa fica
por aí. “Nunca namorei ninguém”, diz. O
clima do lugar é mais propício aos namoros
estabelecidos que às paqueras.
A casa existe há 22 anos. Antes era um
restaurante, mas, há dez, o proprietário,
Braulino Péres, 60, resolveu enveredar pe-
lo ramo do entretenimento. Assim, os exe-
cutivos e comerciantes deram lugar a ca-
valheiros perfumados e damas pintadas
para a noite e seus perigos. Hoje, Paulo Hu-
mildes e Banda embalam os casais.
De preto, scarpin de verniz combinando
e muita maquiagem, Lúcia Cavalcanti, 55
anos revelados, mas não necessariamente
os únicos já vividos, empresta um pouco do
seu glamour ao salão. Não traz preocupa-
ções no rosto. Divorciada há 14 anos e fla-
nando pela vida, com sua bela pensão e
renda de apartamentos alugados, não en-
cana. Já amou de novo e voltou a perder.
“Todo ser humano tem que deixar uma re-
serva de amor dentro de si, para quando
faltar o carinho de outra pessoa”.
Logo se levanta, depois de um “adoro
essa música”. O parceiro a faz girar e ela
pede: “Não exagere”. Sorri com facilidade
e faz caras e bocas para a câmera enquanto
dança. Quando soube que seu parceiro
não autorizou que usássemos a imagem
dele, se indignou. “Que idiota. Não tem
importância. Danço com outro”.
QUER DANÇAR?A música continua a rolar no Clube Co-
mercial. Perfídia, Torturas de Amor, Perfu-
me de Gardênia. Num canto, um funcioná-
rio monitora o volume num decibelímetro.
É sexta-feira, mas, ainda assim, a vizinhan-
ça costuma implicar. Mais tarde, ainda vai
tocar forró e outros estilos musicais, todos
adaptados ao ritmo da seresta.
Casais se espalham pelas zonas de pe-
numbra. Alguns buscam mais privacidade,
pois talvez tenham mais satisfações a dar.
São esses os mesmos que, na pista, fogem
da lente da reportagem. Quem está soltei-
ro senta mais perto da luz. Dá para ver, no
rosto das que ainda estão sentadas, a von-
tade de serem tiradas para dançar.
Norma Lúcia, 60, e Evaílton Santos, 77: encontro no baile e casamento marcado
«A rapaziada nãoquer nada. Ousó quer sexoou dinheiro»Norma Bastos, 68 anos
Ruth Muricy, 74,
e João Batista
Nascimento, 77:
paquera que
virou namoro
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Em setembro do ano passado, o clube quase fecha de vez, não
fosse o esforço de seu Ruy Costa, 76, um senhor boa-praça, com
cheiro de colônia, que assumiu a presidência e renegociou as dí-
vidas. Dos 500 sócios, apenas três ainda pagavam mensalidade.
As serestas, às sextas e aos domingos, são a fonte de renda atual
do clube. Aos poucos, os sócios anistiados estão voltando, e o pú-
blico externo, redescobrindo a pista esquecida. "A nossa pretensão
é recuperar o glamour que tínhamos antes".
O local tem duas pistas. Uma fica num salão interno, com chão
de mármore e portões de madeira nobre. A outra, numa espécie de
pátio mourisco com vista para o céu. Em uma das extremidades, os
músicos tentam levantar a escassa platéia. Domingo é mais vazio
mesmo. Tem até microfonia no meio de uma canção para tornar a
cena um pouco mais melancólica.
Vendo dona Djanira Telles, 80, dar seus passinhos, acompanha-
da por seu Manoel Telles, 80, dá para saber de onde vem a teimosia
em não deixar que as tais glórias do passado se percam. É a mesma
teimosia que os mantém juntos desde que, há 60 anos, ela disse
sim, quando ele a tirou para dançar. Lembrar a música que tocava,
ela não lembra. O que ele disse? Repito mais alto, tentando so-
brepor minha voz a La Barca. "Nos acertamos", é tudo que sabe.
PERSONAL DANCERHoje, com a escassez de parceiros, e as
damas tendo que se virar com outras da-
mas, o clube oferece o serviço de profissio-
nais. Do primeiro andar, Seu Ruy me apon-
ta pelo menos dois deles.
Fábio Dourado, 24, ganha R$ 40 por cin-
co horas de baile. Ele dança há seis anos e
também atua como personal dancer,
quando uma mulher o contrata para dan-
ças exclusivas, também por R$ 40.
Quem o contrata são mulheres que não
querem ficar na expectativa de ser convi-
dadas. Ele também atende em domicílio.
Três aulas custam R$ 50. Pergunto se cos-
tumam paquerá-lo, e ele diz que é raro.
Na pista, o outro personal dancer p a s sa
a noite inteira com a mesma dama. Olhos
nos olhos. Sentam-se, tomam cerveja e
sorriem, vendo fotos numa câmera. Com a
minha aproximação, ela fica arredia.
Nada que se compare ao Lugar Comum.
Ao primeiro flash, houve quem se retirasse
do bar. Senhores mais exaltados exigiram
ter suas fotos apagadas. "Minha mulher
não sabe que estou aqui. Nossa relação já
não está boa", explica um deles.
Seu Amílton Ferreira, 53, um dos fre-
qüentadores, conta que, numa outra se-
resta, uma rede de TV foi fazer uma ma-
téria. Quando a câmera foi ligada, metade
da festa foi se esconder nos banheiros.
Mais alguns minutos e nos pedem para
não fazer mais fotos.
Mas há quem não se incomode, como
uma dupla do Comercial, que, embora pa-
recesse se esconder, ousou dizer o nome
do seu amor. Só não quiseram dizer os
seus. Já se conhecem há um ano. Ela, 47, é
contadora e divorciada. Ele, 54, é comer-
ciante. "Se você não é meu namorado, fi-
lho, pode dizer que é casado", ela sugere.
Ele sorri constrangido e orgulhoso, e con-
firma. "Só não me complique". «
IRACEMA CHEQUER | AG. A TARDE
Lúcia Cavalcanti, 55, e Amílton Ferreira, 53, no Lugar Comum: em ritmo de bolero
ONDE DANÇARClube ComercialAv. 7 de Setembro,710, Centro71 3329-4816Lugar ComumTv. do Rosário, 5, Av. 7de Setembro, Centro71 3329-4865Clube Fantoche daEuterpeRua Democrata, LargoDois de Julho, 4571 3321-1055
Clarice Regina dos Santos, 65, é uma de-
las. Olhos e blusa verdes, cabelos veme-
lhos e muitos anéis. Freqüenta o clube há
20 anos e prefere ir aos domingos, quando
é mais cheio. Foi casada durante 30 anos,
teve cinco filhos e, um dia, cheia dos abusos
do marido, que a prendia num claustro do-
méstico, juntou os meninos e foi embora.
Foi trabalhar como auxiliar de enferma-
gem e conseguiu cuidar de todos. "Basta
ter coragem que nada é difícil". Lança seus
olhares por aí, mas "tem que tomar cuida-
do porque muitos são casados. Também
surgem mais novos, mas não gosto".
Teve mais sorte dona Ruth Muricy, 74,
professora aposentada que, há três anos,
namora seu João Batista Nascimento, 77,
estofador aposentado, mas ainda na ativa.
Eles se conheceram no baile do Santa Rita,
em Matatu. Antes de lançar a rede, ele fi-
cou por três meses admirando-a. "Eu ficava
olhando, feito a cobra que quer dar o bote
na jia", diz, com sua poesia popular. Quan-
do se resolveu, a chamou para uma dança.
Dona Ruth veio com aquela conversa de
não saber dançar, e ele resolveu com um
eficaz "não tem importância". Perguntou
sobre o marido. Desquitada. Ele também.
Ela o achou arrumado e cheiroso.
Cada um continua vivendo em sua casa.
Nos fins de semana, eles saem para dançar.
Sempre muito elegantes. Ela de longo, co-
que, redinha e pulseira de strass. Ele de ca-
misa vermelha e mocassins pretos. Há os
dias em que ela prefere sossego. Então, o
libera para ir para onde quiser. Em geral,
alguma seresta.
Enquanto procuro outras pessoas com
quem conversar e observo os casais, al-
guém me caça pelo salão. Ele me pede para
ver minhas anotações e quer fazer uma re-
tificação em uma fala. É que certa data as-
sociada a uma certa companhia se chocaria
com o seu tempo de casado.
Seu Evaílton dos Santos, 77, também
era comprometido quando conheceu Nor-
ma Lúcia Góes, 60. Mas logo lhe disse a rea-
lidade. "A gente era separado de cama há
muito tempo, mas não era de mal". Estão
juntos há sete anos. Desde aquele dia em
que quase deixava a seresta do Sesi do Ca-
minho de Areia, na Cidade Baixa, e a viu,
apenas de costas, dançando com outro.
"Vou tirá-la para dançar. Se tiver compro-
misso, vou embora", pensou.
Norma era divorciada. Teve outro na-
morado que "não deu certo", mas ainda
estava à procura. Seu Evaílton se aproxi-
mou, chamou para dançar e, quando de-
ram as mãos, a orquestra parou. O que res-
tou foi uma conversa. "Hoje estamos
aqui". E noivos. Com um ano de namoro,
ele lhe deu o anel e devem casar em 2010.
Enquanto esperam, dançam. No domingo,
lá estavam eles. Dessa vez no Fantoche da
Euterpe, no Largo Dois de Julho.
GLÓRIAS ANTIGASHomens fantasiados de cavaleiros ro-
manos e mulheres vestidas de rainhas em
carnavais remotos. Na sala da presidência
do Fantoche, troféus empoeirados e estre-
las esquecidas, como Wilza Carla e Clóvis
Bornái, vêem seus sucessos ganhar tons
amarelados em fotos tiradas nas décadas
de 50 a 70.
Djanira Telles, 80, diz que só dança com o marido há 60 anos: “Nos acertamos”
IRACEMA CHEQUER | AG. A TARDE
«Minha mulher nãosabe que estou aqui.Nossa relação jánão está boa»Anônimo, no Lugar Comum