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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO SOCIOLOGIA AXÓS E ILEQUÊS RITO, MITO E A ESTÉTICA DO CANDOMBLÉ Patrícia Ricardo de Souza Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia, do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Doutor em Sociologia. Orientador: Prof. Dr. J. Reginaldo Prandi. São Paulo, 2007

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO SOCIOLOGIA

AXÓS E ILEQUÊS RITO, MITO E A ESTÉTICA DO CANDOMBLÉ

Patrícia Ricardo de Souza

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia, do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Doutor em Sociologia. Orientador: Prof. Dr. J. Reginaldo Prandi.

São Paulo, 2007

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Resumo O candomblé é uma religião em que a experiência visual é muito valorizada. Essa experiência ganha mais amplitude e força durante as festas públicas, ocasiões em que a religião é celebrada. Nesses momentos, de maneira muito especial, e também no dia-a-dia, a dimensão estética é um aspecto central. A beleza nessa religião é uma intenção e uma busca permanente. É com beleza que se agradam os orixás, e agradá-los é dever religioso. A beleza, no entanto, não é um fim em si: ela está sempre ligada ao sentido. Este trabalho trata da dimensão estética do candomblé em seu aspecto mais visível e plástico, e dos sentidos que essa dimensão revela. Palavras-chave: candomblé, religiões afro-brasileiras, estética, mito, rito.

Abstract Candomblé is a religion in which the visual experience is very intense. This experience is much deeper and stronger during the public festivals when the religion is celebrated. In these moments, in a very special way, and also daily, the esthetic dimension is a central aspect. The beauty in this religion is a purpose and an permanent search. By means of beauty people please the orishas and to do that is a religious obligation. The beauty, meanwhile, is not an itself intention it's always attended with the signification. This work is about the candomblé's esthetic dimension in it's much manifested and plastic face and about the significations that this dimension brings out. Key-words: Candomblé, African-Brazilian religions, esthetic, myth, cult.

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Axó, do iorubá aso: roupa, vestuário, paramento. Ilequê, do iorubá ìlèkè: contas, fio de contas, colar ritual.

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Para Julia e Aníbal, meus pais

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Sumário

Agradecimentos............................................................................................................ 6

Introdução..................................................................................................................... 8

1. Ilequês: os colares rituais ....................................................................................... 12 1.1. Os colares fora do contexto ritual ..........................................................................................13 1.2. Os colares na religião .............................................................................................................14

1.2.1. Os colares na umbanda ............................................................................................14 1.1.2. Os colares no candomblé .........................................................................................16 1.1.3. Os colares no tambor-de-mina .................................................................................40

2. Axós: trajes dos adeptos ......................................................................................... 47 2.1. O traje do dia-a-dia.................................................................................................................50 2.2. O traje de festa........................................................................................................................62

2.2.1. O traje de baiana ......................................................................................................71 2.2.2. A baiana do candomblé............................................................................................76

3. Axó-orixá: roupas e adereços dos deuses............................................................... 89 3.1. Orixá odara .............................................................................................................................89 3.2. Trajes e ferramentas dos orixás..............................................................................................95

4. Fazendo axós: costura e nós ................................................................................. 127 4.1. Os criadores dos trajes..........................................................................................................127 4.2. As zeladoras dos axós...........................................................................................................132

5. Enfeitando os espaços: o barracão e os laços ....................................................... 136 5.1. O templo e as marcas da autoridade.....................................................................................136 5.2. Reafirmando as origens ........................................................................................................142

Conclusão ................................................................................................................. 145

Caderno de imagens ................................................................................................. 151

Índice e créditos das fotos ........................................................................................ 168

Glossário................................................................................................................... 173

Referências bibliográficas ........................................................................................ 178

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AGRADECIMENTOS

Agradeço ao CNPq pela bolsa que financiou parte dessa pesquisa.

A Reginaldo Prandi, meu orientador, por todos esses anos de trabalho, pela

generosidade intelectual, pela confiança depositada, pela amizade e alegria, pela minha

descoberta do mundo acadêmico.

Aos professores e amigos Teresinha Bernardo e Armando Vallado pelas observações e

sugestões importantes em meu exame de qualificação.

À minha família, em especial a meus pais Julia e Aníbal, sem quem absolutamente

nada teria sido possível. A meu irmão André, interlocutor de todas as horas, parceiro na

jornada acadêmica, pelo incentivo e rigor intelectual de sempre.

A todo o povo-de-santo de diversos lugares, aos veneráveis pais e mães-de-santo do

candomblé de São Paulo, que sempre me receberam tão bem em suas casas. Em especial a Pai

Carlito de Oxumarê, Pai Carlinhos de Oxum e Mãe Carmem de Oxum. A Pai Pércio de

Xangô, Pai Francelino de Xapanã e Mãe Neide de Obaluaê, cujos terreiros aparecem nas

imagens que acompanham este trabalho.

Agradeço de modo especial ao Pai Armando Akintundê de Ogum, babalorixá da Casa

das Águas, e aos seus filhos-de-santo pela paciência com minhas infindáveis questões, fotos e

observações, mas sobretudo pela convivência e oportunidade de aprender com eles. Dívidas

que nunca poderei pagar.

Ao Ebômi Jurandir Cseny pelo incentivo e por ceder imagens. A Carlos Globo, com

quem aprendi a fazer fotos digitais, e que esteve comigo em inúmeras festas, incentivando

meu trabalho e produzindo algumas das imagens aqui presentes.

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Aos meus amigos queridos que colaboraram, das mais diversas maneiras, para que este

trabalho chegasse a termo: Alessandra, Rosangela, Cristina, Nia, Júnior, Denise, Rubens e

tantos outros. Grata pelo carinho e apoio.

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Introdução

O candomblé é uma religião em que se celebra por meio da festa dançante (Amaral,

1992; 2002). É na festa com música, dança e comida que os orixás vêm à Terra conviver com

seus filhos humanos, reabrindo as portas de comunicação entre o mundo sagrado em que

vivem os deuses e espíritos e o mundo dos homens. Diz o mito que um dia a fronteira entre

esses mundos foi fechada e só é reaberta por curtos períodos, exatamente durante as

celebrações religiosas. E isso porque os deuses gostam de conviver com os humanos e

participar de sua festa. Manifestados no corpo dos sacerdotes em transe, eles se

confraternizam com os mortais, vestem suas roupas especiais e dançam coreografias que

relembram aventuras narradas por seus mitos.

A festa é o momento em que a experiência visual do candomblé é mais intensa, em

que sua dimensão estética se revela com mais força e maior amplitude. Beleza para ser vista e

gozada, tanto pelos que são da religião como pelos demais, pelos olhares de fora, olhares dos

que não são adeptos mas comparecem aos terreiros para fruir de sua beleza, para apreciar o

que também pode ser tido como um espetáculo (cf. Santos: 2005). Beleza é fundamental na

religião dos orixás. É uma busca incessante, uma intenção que está marcada no mito e que

perpassa e estrutura o ritos.

"A arte não é apenas ornamento exterior com que o culto se revestiria para dissimular o que pode ter de muito austero e de muito rude; mas, por si mesmo, o culto tem algo de estético" (Durkheim, 1989: 455).

O culto, o rito do candomblé, é carregado de uma beleza proposital e necessária. Os

deuses se agradam do que é bonito, e agradar os orixás é dever religioso. Mas, aqui a beleza

não é um fim em si mesmo. Ela tem necessariamente uma finalidade e um sentido que se

relaciona seja aos orixás e seus mitos, seja à identidade, à hierarquia ou à organização interna

do grupo.

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É do aspecto estético, em sua manifestação mais aparente, e de seus sentidos, que o

presente trabalho trata. Optei por fazer um recorte e me ater à manifestação estética em sua

dimensão plástica, material, visível, e ao alcance de todos os olhares. Isso exclui dimensões

estéticas importantes como a dança, que foi estudada por Rosamaria Susanna Barbàra (2001),

e a música, um tema que vem sendo trabalhado por Angela Lühning (1990). Também não

estão aqui tratados os objetos mais estreitamente ligados ao cerimonial mantido em espaços

secretos do terreiro, aos quais somente iniciados têm acesso, ou seja, os altares e

assentamentos das divindades.

No primeiro capítulo trato do elemento estético mais visível, o mais portátil deles, que

são os colares de contas, os ilequês. Abordo os colares fora e dentro do contexto ritual,

procurando os sentidos que eles revelam em termos de identidade e hierarquia no grupo

religioso, além do aspecto propriamente mágico.

No segundo capítulo abordo os trajes dos adeptos tanto no cotidiano da religião quanto

na festa, inclusive jóias e outros elementos que compõem esses trajes. Analiso seus sentidos,

plurais, também no caso do traje de baiana e seus múltiplos usos, religiosos ou profanos.

No terceiro capítulo trato dos protagonistas desse espetáculo, os orixás. Abordo as

relações e o diálogo entre a estética do candomblé e o carnaval. Relaciono um traje de cada

orixá especificamente e valho-me de um mito de cada um a fim de mostrar a relação entre a

estética e a mitologia.

No quarto capítulo cuido da confecção e preparo das roupas e de seus executores.

No quinto, e último capítulo, detenho-me em outros elementos, como o espaço físico

do terreiro e sua decoração onde a religião acontece como expressão estética, o que inclui até

mesmo as comidas sagradas. O objetivo principal é entender o sentido do uso da beleza e sua

manifestação como expressão de religiosidade.

A pesquisa foi realizada de modo mais sistemático entre 2001 e 2006, mas desde 1996

mantive contato com terreiros de candomblé na condição de bolsista de iniciação científica

orientada pelo Prof. Reginaldo Prandi, trabalhando no projeto "Os afro-brasileiros",

financiado pelo CNPq.

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Ao longo de todo esse tempo participei de inúmeras festas e rituais, fazendo

observação sistemática, entrevistas e registro fotográfico. A observação sistemática realizada

em municípios da Grande São Paulo foi complementada com visitas a outros estados.

No Rio de Janeiro visitei uma exposição de colares de candomblé realizada na galeria

Mestre Vitalino e entrevistei o curador da exposição Prof. Roberto Conduru. Na mesma

ocasião estive no Mercado de Madureira, um local de grande concentração de lojas de artigos

para o candomblé.

Em Salvador visitei os terreiros mais antigos, que são em grande medida a origem do

candomblé de São Paulo. Também fui a museus, feiras e lojas de artigos religiosos, e realizei

entrevistas com adeptos, não adeptos e turistas que vão a Salvador também com o objetivo de

conhecer o candomblé.

Empreendi também visitas a diversas lojas de artigos religiosos em São Paulo e

Grande São Paulo, por vezes acompanhando as filhas-de-santo em suas intermináveis buscas

por belos tecidos, rendas, fitas, bordados, contas, canutilhos, pedrarias, firmas e tudo o mais

que a criatividade e a imaginação permitem usar para a confecção de trajes dos filhos-de-

santo e dos deuses.

Realizei nesses lugares entrevistas abertas com pais e mães-de-santo, adeptos de todas

as categorias, pessoas que simplesmente simpatizam com a religião e a conhecem muito ou

quase nada. Entrevistei também pessoas, religiosas e não religiosas, envolvidas na criação e

confecção e venda dos trajes e adereços dos adeptos e dos orixás.

Durante a pesquisa de campo, fui a exposições, espetáculos de dança, performances,

festas em escolas de samba, congressos religiosos, cerimônias ecumênicas e eventos

relacionados ao universo do candomblé e seus orixás. Tudo isso me permitiu conviver com

diversos olhares e me ajudou na percepção dos sentidos da dimensão estética do candomblé e

no amadurecimento de muitas das idéias que apresento a seguir.

As religiões afro-brasileiras apresentam-se em variadas denominações, incluindo o

candomblé, o tambor-de-mina, o batuque, a umbanda e outras menos conhecidas. Cada

modalidade se apresenta estruturada em diferentes ritos ou nações, dependendo da origem

étnica predominante em sua formação. O centro da presente pesquisa é o candomblé de nação

queto, uma das variantes originárias das tradições predominantemente iorubás. Essa

modalidade é, sem sombra de dúvida, a mais estudada, a mais conhecida, e a que tem se

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apresentado como fonte de influência para as demais. Além disso, está muito presente no

processo de expansão do candomblé nordestino em direção ao Sudeste, e conta com uma

produção etnográfica ampla, permitindo referências cruzadas com temas que lançam luz sobre

a questão da estética. É o caso por exemplo, da mitologia dos orixás.

O estudo é sobre o candomblé queto, mas lancei mão de informações sobre outras

religiões afro-brasileiras com o propósito de buscar generalizações e apontar para

especificidades que reforçam a idéia básica desse trabalho, a de que, beleza e ostentação estão

no cerne do culto aos deuses africanos. Odara, palavra de origem iorubá, que significa ao

mesmo tempo bonito e bom, é um emblema.

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1.

ILEQUÊS: OS COLARES RITUAIS

Os colares rituais usados pelos adeptos das religiões afro-brasileiras são, sem dúvida,

um sinal diacrítico importante da pertença a essas religiões. Trata-se mesmo de um elemento

decisivo e constantemente presente e isso se relaciona igualmente ao fato de que na cultura

brasileira os colares de contas estão definitivamente associados a essas religiões.

A associação dos colares rituais às religiões afro-brasileiras também se deve ao fato de

que os colares integravam, e ainda integram, as diversas culturas africanas que foram trazidas

ao novo continente, na África, entretanto, eles eram importantes na distinção não de grupos

religiosos, mas das diversas etnias.

No segmento religioso afro-brasileiro, é especificamente o candomblé o grande

responsável pela associação entre essas religiões e os colares de contas tendo em vista a

visibilidade que essa religião alcançou. Os colares fazem parte, inclusive, dos estereótipos que

a televisão e outros meios de comunicação incansavelmente divulgam.

Para além do âmbito do candomblé e das demais religiões afro-brasileiras os colares

de contas são presença marcante no cotidiano brasileiro de um modo geral, não ficando

restritos ao âmbito religioso.

No candomblé, o colar é chamados genericamente de fio de contas ou de ilequê, termo

de origem iorubá. Alguns tipos, com forma, material usado e destinação ritual próprios,

recebem nomes específicos como brajá, quelê e laguidibá. Na umbanda os colares são

chamados de guias, e no tambor-de-mina, de rosários.

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1.1. Os colares fora do contexto ritual

Conforme diz Solange Godoy (2006: 83):

"Feito dos mais variados materiais como sementes, conchas, coral, pedras (preciosas ou não), vidro, pérolas ou metais, o colar de contas existiu desde sempre".

Nas religiões afro-brasileiras, os colares de contas foram observados desde os

primeiros tempos da religião no país. Usados inicialmente nas comunidades de culto,

acabaram por extravasar os muros dos templos, de tal forma que os colares usados nos ritos,

no cotidiano dos terreiros e em cerimônias religiosas em lugares públicos, são também

freqüentemente vistos fora do contexto ritual.

Por exemplo, eles podem ser observados adornando o pescoço das típicas baianas de

acarajé, que vendem seus bolinhos de feijão fradinho fritos em azeite de dendê por toda parte:

nas ruas das capitais do Nordeste, como também de grandes cidades do Sul e do Sudeste.

Onde quer que estejam, as baianas de acarajé são vistas sempre portando seus muitos colares

multicoloridos. Parece ser essa marca que lhes dá legitimidade.

Trata-se de algo muito interessante porque, obviamente, nem todas as baianas de

acarajé espalhadas pelo Brasil são baianas da Bahia, nem tampouco são todas elas adeptas do

candomblé. Mas é de fato o traje que necessariamente inclui os colares que compõe esse

personagem amplamente conhecido, de presença obrigatória até mesmo nos desfiles de

escolas de samba, em que a ala das baianas é um quesito obrigatório embora não conte pontos

no campeonato dos desfiles. Carmem Miranda levou a baiana e seus colares para as telas de

Hollywood e "tornou a baiana internacional" como dizia o samba-enredo da escola carioca

Império Serrano em 1972.

O traje da baiana, que vemos hoje é, no que diz respeito à forma, praticamente igual ao

que as escravas vestiam em meados do século XIX, especialmente as escravas de ganho que

iam para as ruas vender quitutes em seus tabuleiros. Os tempos são outros mas o traje

permaneceu, inclusive no candomblé.

Um momento importante em que os colares aparecem com força na vida fora dos

muros do terreiro é no carnaval, e para ficar num pequeno exemplo basta citar o famoso bloco

afro Ilê Aiyê e o afoxé Filhos de Gandhy, ambos soteropolitanos. No Ilê, os colares não são

parte obrigatória da indumentária do desfile, mas aparecem em diversas formas e nas cores do

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bloco (verde, vermelho, amarelo e preto). Já no Filhos de Gandhy, os colares de contas branco

e azul intercaladas são parte constituinte da indumentária do afoxé.

Carnaval e venda de acarajé são contextos profanos e o uso dos colares rituais não tem

aí necessariamente conotação religiosa ou mágica, o que é diferente do uso nos contextos

litúrgicos. Fora do contexto ritual, os colares em geral embora não tenham nenhuma dimensão

religiosa ou mágica, podem ser usados como elementos mágicos, como ocorre no uso nos

espelhos retrovisores de automóveis. Das mais diversas cores, arranjos, tamanhos e

procedências, sua presença é bastante difundida e não se restringe aos veículos cujos

proprietários são adeptos das religiões afro-brasileiras. Aqui o uso do colar tem a propriedade

de conceder proteção, e não é por outro motivo, aliás, que católicos muitas vezes também

penduram terços nos espelhos de seus automóveis.

Em que pese o fato de que essa é uma prática corrente entre os fiéis das religiões afro-

brasileiras, é possível afirmar que esse uso do colar é uma prática mais umbandista.

1.2. Os colares na religião

Qualquer que seja a religião afro-brasileira, o uso de colares rituais — os fios de

contas ou guias — é emblemático. Mudam as formas, as cores e mesmo os significados, mas

o fio sempre pode ser visto no pescoço dos devotos. Embora o presente trabalho trate

especificamente do candomblé de nação queto, é interessante uma apresentação do fio de

contas também em outras modalidades religiosas afro-brasileiras.

1.2.1. Os colares na umbanda

A umbanda é a religião afro-brasileira mais difundida, ainda que esteja perdendo

espaço (Prandi, 2003). Seus adeptos declarados representam 0,26% da população, enquanto os

do candomblé somam 0,08% (IBGE 2000). Esse é, por si, um motivo para explicar o fato de

que a maioria dos colares que encontramos em automóveis seja de adeptos dessa religião, mas

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há ao lado disso uma razão que diz respeito à própria constituição da umbanda e do

candomblé.

Na umbanda os ritos são muito importantes, mas menos complexos do que no

candomblé, como também seus repertórios simbólico e mítico são menos elaborados, a

despeito da enorme versatilidade e, portanto, capacidade de transformação, adaptação e

inclusão que essa religião tem. Disso decorre que a umbanda é, em comparação ao

candomblé, visivelmente mais simples com relação aos elementos utilizados em seus ritos,

altares, templos e, igualmente, na indumentária das divindades e adeptos. O que não quer

dizer que aí não se vá encontrar rituais e templos grandiosos, altares muito elaborados e belas

roupas.

Nesse sentido, exatamente porque não há uma diversidade tão grande de elementos

sagrados a serem manipulados quanto no candomblé é que os colares, ou as guias como são

chamados nessa religião, ocupam uma posição de evidência como elemento portador de poder

mágico, do qual são revestidos pelo rito. Vejamos o que diz uma sacerdotisa de umbanda:

"A gente acredita que a guia funciona como um escudo de proteção para o corpo do médium. Então se vai cair alguma carga, alguma demanda, alguma energia negativa, as guias estão ali para... como um espelho: para segurar a carga. Às vezes estoura o fio no meio do trabalho, alguma coisa, como pra refletir de volta também. Então elas funcionam assim" (Mãe Márcia de Iemanjá).

Esse forte caráter mágico dos colares na umbanda se evidencia também pelo fato de

que eles não podem ser sequer tocados por outras pessoas, estranhas ou não à religião. Algo

que, em geral, não ocorre no candomblé.

É, ao meu ver, dessa concepção do colar como um elemento mágico, um amuleto

mesmo, que advém seu uso tão recorrente nos retrovisores dos automóveis. A fala de uma

mãe-de-santo ilustra essa noção entre os umbandistas:

"Eu acho que quase todo mundo que tem carro e é umbandista tem uma guia pendurada no pára-brisa. É proteção pro carro, pra evitar que quebre o carro, que tenha batida, que seja alvo de olho-gordo, de inveja... pra proteção mesmo" (Mãe Márcia de Iemanjá).

Aqui a precisa definição de Pierucci esclarece os termos:

"Chama-se talismã o objeto que serve para atrair a boa sorte. (...) Chama-se amuleto aquele objeto cuja finalidade é proteger, afastar a infelicidade, repelir a urucubaca, o pé-frio, a inveja o mau-olhado. Confeccionado ou preparado magicamente com o fim

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de proteger seu portador das influências malignas, um amuleto funciona como uma espécie de escudo, um 'preservativo mágico'" (2001: 19, 20. Grifos do autor).

É certo que o colar ritual umbandista não é confeccionado e nem concebido

especificamente como um amuleto, mas essa definição se dá através da percepção dos fiéis e

também pelo uso que fazem do objeto. Um uso bastante difundido, inclusive, porque não é

necessário que a pessoa seja adepta da religião para ganhar uma guia, ela pode ser

simplesmente alguém que, mesmo tendo outra religião, busca na umbanda e seus guias alívio

para suas aflições.

Tudo isso reitera o primeiríssimo sentido dos colares nas religiões afro-brasileiras que

é o de dar proteção mágica. E esse sentido não se restringe à umbanda, pois igualmente os

adeptos do candomblé usam os colares em seus automóveis pela mesma razão, mas aí ele

carrega também, para além do caráter de proteção, toda uma ampla gama de significados.

1.1.2. Os colares no candomblé

Não se pode perder de vista que os colares, ou os ilequês como são chamados no

candomblé, cumprem também o papel fundamental de enfeitar, o que certamente não é algo

secundário porque adornar, tornar (mais) bonito é por sinal uma busca constante no

candomblé. De todo modo, a principal finalidade do ilequê é dizer qual é o orixá da pessoa, é

dar identidade. Além do mais eles se destinam também a proteger quem os carrega. Magia e

estética andam de mãos dadas nessa religião.

Há no candomblé uma infinidade de tipos de colares. Esses são em geral compridos,

até a cintura aproximadamente, e são sempre arrematados por um tipo de conta maior,

arredondada ou cilíndrica que recebe o nome de firma. Nas palavras de Raul Lody, "a firma

tem função de firmar o fio de contas – arremate de uso mágico religioso. É uma espécie de

conclusão do discurso simbólico do próprio fio de contas" (Lody, 2003: 242).

O acabamento do ilequê é uma tarefa delicada porque requer conhecimento religioso

para se saber qual firma usar, e para tanto se leva em conta não somente a que orixá pertence

aquele colar específico, bem como a posição sacerdotal que aquele que usará o colar ocupa no

grupo. Exige também certa técnica para que os fios não arrebentem, para que todo o trabalho

não se perca, além de ser necessário muitas vezes bordar contas para que o acabamento fique

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perfeito. O povo-de-santo costuma reparar muito nos detalhes dos ilequês e em seu

acabamento. Ouvi mais de uma vez adeptos do candomblé dizendo que se deveria ter

paciência para fazer um bom acabamento nos colares para que não ficassem "cheios de pontas

soltas aparecendo, como na casa de fulano".

Os materiais empregados na confecção dos ilequês são muitos e variam de acordo com

o orixá, a categoria sacerdotal a que pertence o adepto e seu poder aquisitivo, o gosto de quem

elabora o colar, e também, em grande medida, das preferências do pai ou mãe-de-santo.

É preciso sempre ter em mente que os pais e mães, babalorixás e ialorixás, são as

autoridades máximas dentro do terreiro a qual todos devem obediência e por mais que se

conquiste, com o passar do tempo, uma certa liberdade de criação tudo passa necessariamente

pelo crivo deles. Em função disso pode-se dizer que há um certo estilo em cada terreiro, que é

determinado pelo sumo sacerdote, e seguido pela comunidade, que na prática marca

diferenças estéticas entre as casas, que são na verdade diferenças superficiais, uma vez que

estruturalmente não se pode inovar tanto.

Mas é igualmente importante notar que, se perguntados acerca da razão de ser desse

ou daquele jeito, em geral os sacerdotes recorrem às suas raízes, às suas casas mãe, como um

modo de legitimar suas opções estéticas, e nunca dizem simplesmente que é assim porque

assim eles o preferem. Como sempre se dá nessa religião, a legitimidade remonta aos mais

velhos e à vontade dos orixás.

Há, entretanto, algumas noções e parâmetros que formam e informam, inspiram e

delimitam toda a criação estética do candomblé e que aos poucos se pode perceber e pontuar.

Dentre essas está a de que forma e significado caminham estritamente ligados.

No candomblé quase toda forma está, necessariamente remetida a um significado.

Quase tudo que se vê, e que aos olhos menos atentos pode aparentar ser tão somente um

enfeite — que como já foi dito também é muito importante — tem um significado, ainda que

não possa ser imediatamente apreendido. Nada é por acaso ou por gosto. Em geral o que

parece ter exclusivamente a função de enfeitar é portador de algum significado. No

candomblé como nas culturas africanas, "a experiência estética não se esgota em si mesma,

pois participa de um sistema em que cada objeto tem função e finalidade, com relação ao

sagrado" (Montes, 1999).

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Identidade

Quando um potencial adepto se aproxima do candomblé, o primeiro passo é a consulta

ao oráculo para se saber a qual orixá aquele indivíduo pertence, qual é sua origem mítica.

Uma vez que se sabe qual é o deus particular daquela pessoa, ela receberá um colar que a

identificará como filha do orixá, havendo inclusive uma cerimônia para sacralizar o ilequê,

chamada lavagem de contas.

Isso reforça a idéia de que o colar pode ser tomado como o sinal diacrítico da pertença

às religiões afro-brasileiras e ao candomblé especificamente. Nas trajetórias de inserção dos

adeptos ele aparece como o primeiro elemento material sagrado com o qual se tem contato.

Há na bibliografia muitos registros da lavagem de contas, o que dá testemunho da

importância desse adereço (Querino, 1938; Bastide, 1973; Lima, 1977; Verger, 1999). Trata-

se essencialmente de um rito relativamente simples, em que o colar é sacralizado por meio da

lavagem em uma água em que diversas ervas pertencentes ao orixá do fiel, ao seu pai-de-

santo e ao orixá patrono do terreiro, dentre outras, foram maceradas. A partir desse momento

o colar não será mais um colar qualquer, mas um ilequê sagrado que de alguma forma, e ainda

que tênue, liga esse indivíduo a seu deus pessoal e à comunidade do terreiro.

Nesse sentido, o ritual de lavagem das contas pode ser visto, como aponta Vivaldo da

Costa Lima (1977), como um "rito integratório", uma vez que ele marca a inserção daquele

aspirante, o abiã – que aliás quer dizer literalmente "aquele que vai nascer" — na

comunidade, algo muito importante, pois como uma vez ouvi de um sacerdote, "quando um

abiã chega, enquanto ele não tem um fio de contas ele não se sente parte". É certo, no

entanto, que essa inserção somente se realizará plenamente em termos rituais quando esse

indivíduo passar pelos ritos de iniciação, denominados "feitura-de-santo", o que pode ocorrer

em pouco tempo, levar anos, ou até mesmo nunca chegar a acontecer.

Além do caráter integratório, a lavagem das contas constitui o que se pode chamar de

o primeiro rito de marcação da identidade do abiã. É comum na sociabilidade do terreiro

tentar adivinhar qual é o orixá da pessoa: os mais velhos são consultados, a pessoa é

submetida a uma série de perguntas, seus modos são observados, mas a última palavra é dada

através da consulta que o pai ou mãe-de-santo faz ao jogo de búzios.

Saber de que orixá é o outro permite compreendê-lo em profundidade, entender traços

de seu caráter e comportamento, significa de alguma forma poder classificá-lo de acordo com

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categorias pré-estabelecidas (Augras, 1983; Prandi, 1991; Birman, 1995; Segato, 1995;

Amaral, 2002; Vallado, 2002).

Isso não significa de forma alguma, no entanto, que todos os que pertencem a uma

mesma divindade serão iguais, muito pelo contrário, cada um é uma configuração particular

em que outros elementos tomam parte, mas haverá sempre e indiscutivelmente elementos

muito característicos referidos a cada orixá. Assim é muito comum ouvir num terreiro coisas

do tipo "Ah, aquele é assim mesmo daqui posso ouvir seus passos, também, é de Ogum né?"

ou ainda se alguém derruba panelas e faz um grande barulho: "Eh, lá vem Oiá derrubando

tudo!".

É através do ritual de lavagem das contas que o abiã travará uma primeira

aproximação com a divindade de que sua essência se constitui. Por isso podemos entender a

lavagem de contas como um ritual de marcação da identidade. Todo o longo processo

iniciático levará a uma identificação cada vez mais forte e profunda do fiel com seu deus, com

seu eu profundo, da qual a lavagem das contas constitui o primeiro passo, nas palavras de

Armando Vallado:

"A iniciação ao orixá pode, com certeza, ser entendida como um processo social, controlado pelo grupo do terreiro, de enfatização e internalização de determinados padrões de comportamento, de modo a tornar a identidade do filho-de-santo com o orixá que é considerado seu pai ou sua mãe como uma ligação íntima e pessoal" (Vallado, 2002: 153).

Num mito sobre a invenção do candomblé, os colares aparecem como elemento

importante da identificação dos fiéis com seus deuses, e o momento em que os recebem são

marcos dessa ligação. Diz esse mito que, após a separação entre o Aiê, a Terra dos humanos, e

o Orum o Céu dos orixás, Olorum, o Senhor do Céu, encarregou Oxum que gostava muito de

vir à Terra brincar com as mulheres, de preparar os mortais para que recebessem em seus

corpos os orixás, quando esses quiserem vir conviver novamente com os humanos.

"Oxum fez oferenda a Exu para propiciar sua delicada missão/ ... Veio ao Aiê juntou as mulheres à sua volta,/ banhou seus corpos com ervas preciosas,/ cortou seus cabelos, raspou suas cabeças/ pintou seus corpos./ ... Vestiu-as com belíssimos panos e fartos laços/ enfeitou-as com jóias e coroas./ ... O colo cobriu com voltas e voltas de coloridas contas/ e múltiplas fieiras de búzios, cerâmicas e corais" (Prandi, 2001: 527).

Para que a ligação com o orixá se faça é preciso, nas palavras de Roger Bastide,

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"que exista no colar um certo poder de atração da força divina, uma simpatia preestabelecida; é preciso que as contas sejam um chamado, uma vontade de atração, sem o que a participação não poderá se estabelecer" (Bastide, 1973: 367).

Essa força de atração se concretiza por meio da manipulação mágica, a sacralização do

colar, e igualmente pelo uso do material correto para cada deus em sua especificidade, uma

vez que a cada orixá corresponde um tipo e cor de conta e, dependendo do orixá, da

criatividade daquele que elabora o fio e do poder aquisitivo do filho-de-santo, ele poderá

conter ainda outros materiais.

Tudo isso aponta para uma "propriedade", por assim dizer, do ilequê, que é a de

constituir, e, ao mesmo tempo expressar, a identidade do adepto. Um filho de Ogum na nação

queto, por exemplo, vai usar colares de contas na cor azul-escuro. Pelo colar será reconhecido

como filho de Ogum, deus do ferro fundido, azul-escuro é a cor do minério de ferro, elemento

do orixá. Sabe-se, aliás, que a malaquita tem de fato essa cor.

Uma passagem de Pierre Verger em um texto que trata da viagem que ele e Roger

Bastide fizeram a África em 1958 traz o seguinte relato, que mostra com beleza e precisão o

caráter de identidade e integração de que estão impregnados os colares de contas no

candomblé:

"Pelo fato de sua consagração ao culto de Xangô, Bastide tinha recebido na Bahia um colar de pérolas de vidro vermelhas e brancas alternadas, cores simbólicas de seu deus. Esse colar era considerado por Bastide um 'passaporte' que o creditava a identificava como 'filho de Xangô' junto aos seus correligionários africanos. "Isso, mais do que sábios discursos, serviu efetivamente de laço entre ele e diversas sociedades (egbe) formadas pelas pessoas dedicadas a Xangô em diversas aldeias da África" (Verger, 2003:47).

Usar ilequês significa, de algum modo, por mais tênue que seja, fazer parte do grupo

religioso e ter uma identidade mítica própria.

Certa vez, assisti a uma festa em que um pai-de-santo de outra casa estava sendo

confirmado em um cargo importante que havia recebido naquele templo. Tratava-se de uma

festa esplêndida como a ocasião demandava, e a certa altura Ogum o orixá dono da cabeça do

babalorixá e patrono daquela casa, incorporado no sumo sacerdote, dançava em homenagem

ao pai-de-santo que ora se confirmava como um importante oloiê (alguém que tem um título)

quando tirou um dos colares que carregava e o deu de presente ao sacerdote. Ele agora entrara

para aquela família.

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Receber um ilequê de presente é sinal de estima e reverência; é comum quando há

uma iniciação, que aqueles que estão passando pelo rito confeccionem fios de seu orixá

pessoal para presentear as pessoas que ajudaram em sua obrigação. Os colares de orixás

menos comuns são os mais desejados e quem ganha um colar daquele que está sendo iniciado

faz questão de mostrá-lo a todo o grupo. Trata-se de um gesto muito significativo, uma forma

de agradecer, fazendo com que os presenteados participem do axé de seu próprio deus.

Igualmente através do reconhecimento público, motiva toda a comunidade a perceber e

valorizar o gesto daqueles que se colocaram a serviço.

Os colares que protegem, identificam e integram também indicam a que categoria

sacerdotal cada um pertence. São emblemas de identidade e hierarquia.

Hierarquia

A hierarquia do candomblé, a divisão sacerdotal do trabalho, sua organização em

cargos atribuídos individualmente para o exercício de funções rituais é bastante complexa

(Lima, 1977, Dantas, 1988, Prandi, 1991). Convém retomar sucintamente esse assunto a fim

de expor a relação entre a hierarquia religiosa e os colares rituais.

O candomblé se constitui em comunidades denominadas terreiros. Essas casas, por sua

vez, se organizam de acordo com uma rígida hierarquia estruturada pelo tempo de iniciação e

a categoria sacerdotal a que cada um pertence e a qual não se pode escolher nem tampouco

mudar (Lima, 1977).

São duas as grandes categorias sacerdotais: a daqueles que manifestam os orixás em

transe, os chamados rodantes, e aqueles que não entram em transe, os não-rodantes. Os

rodantes se dividem em iaôs (filhos-de-santo) e ebômis (irmãos mais velhos). Os não-rodantes

em ogãs e equedes. Os diversos oloiês, literalmente os "donos dos cargos", são homens e

mulheres que ocupam uma vasta gama de cargos rituais ou honoríficos. A cada categoria, no

entanto, corresponderá um tipo de inserção na hierarquia da comunidade.

A hierarquia baseada na idade de iniciação é um princípio das sociedades africanas em

que os mais velhos são profundamente respeitados por sua sabedoria. Nessas sociedades

ágrafas são eles os depositários do conhecimento e a eles se deve reverência (Prandi, 2001b).

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Na religião dos orixás os "mais velhos no santo", chamados ebômis, são igualmente

reverenciados. O que conta, para tanto, é o tempo de iniciação e o devido cumprimento das

obrigações rituais. Assim, aquele que se aproxima da religião e ainda não é iniciado pertence

à categoria dos abiãs. Esse nome traz à tona a percepção de que a iniciação representa um

novo nascimento, o nascimento para uma nova vida (Bastide, 1961, Prandi, 1991, Eliade,

1999, Vallado, 2002).

Aqueles que já foram inciados são chamados iaôs e ocupam uma posição

intermediária, se, por um lado, não são mais abiãs, por outro, ainda não cumpriram todas as

suas obrigações rituais, e devem reverência a seus mais velhos.

O longo ciclo iniciático se completa após sete anos e o cumprimento das obrigações de

um, três e por último a de sete anos, em que o iaô finalmente se torna um ebômi e atinge a

senioridade sacerdotal na hierarquia do terreiro. Essa passagem garante-lhe uma série de

prerrogativas, e é expressa simbólica e esteticamente de muitas maneiras.

A categoria sacerdotal dos não-rodantes tem um modo diverso de inserção. Os ogãs e

equedes são escolhidos, o termo usado no candomblé é suspensos, pelos orixás em transe e

enquanto não se iniciam são igualmente abiãs, a despeito de estarem aprendendo com aqueles

que exercem as mesmas funções o seu futuro papel no rito. Quando se iniciam são incluídos

imediatamente na categoria de ebômis, mas, diferente dos ebômis rodantes, esses, com

algumas famosas exceções, nunca poderão abrir seus próprios terreiros e, embora gozem de

muito prestígio na comunidade, assumindo inclusive por vezes uma postura arrogante, estarão

sempre submissos ao pai ou mãe-de-santo.

Essa hierarquia complexa e rígida está em constante movimento em função das

diversas obrigações que sempre ocorrem e que acarretam mudanças na distribuição do poder.

A possibilidade de ascensão no interior do grupo religioso é algo significativo nessa que é,

como já foi dito, uma "religião rica de adeptos pobres" que em sua maioria encontram nela

um espaço de realização conquistado a duras penas, tendo em vista que as obrigações são

sempre caras e, para sua realização, impõem sacrifícios e privações ao fiel que não mede

esforços para agradar aos deuses.

A hierarquia é o tempo todo permeada por tensões. Há no seu interior uma disputa de

poder entre os filhos e nessa disputa cada detalhe pode ser motivo para que rivalidades e

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alianças sejam feitas e desfeitas. Nessa intricada rede, as expressões estéticas do poder

sacerdotal ganham uma dimensão que não se pode supor num primeiro momento.

Uma vez vi um filho-de-santo, com aproximadamente dois anos de iniciado, todo

enciumado de uma abiã da casa. Ela fora suspensa equede do orixá do pai-de-santo. Ao

perceber que o colar da outra tinha como firma um pequeno coral, que é considerado um

material nobre, ele disse em tom irônico: "Poderosa, hein, iaiá!"

A cada momento da trajetória religiosa corresponde um tipo de colar. Observando os

adeptos em uma festa pode-se perceber claramente através dos tipos de ilequês que usam em

que ponto da hierarquia estão situados; nesse contexto privilegiado "a soma das escolhas de

cada membro da comunidade, segundo os limites do culto, resulta em uma curadoria coletiva

da coleção de colares do terreiro" (Conduru, 2002).

Os abiãs são identificados por usarem poucos fios de uma única volta e sem nenhum

enfeite. Comumente esses têm apenas o colar de contas de seu orixá principal, o branco de

Oxalá, orixá da criação, às vezes também de seu orixá secundário, chamado adjuntó, o do

orixá patrono daquela casa e mais algum que eventualmente lhe seja permitido.

Muito diferente são os iaôs, que carregam fios de várias voltas; em geral usam ilequês

de muitas voltas de seu orixá principal, do secundário, adjuntó, de Oxalá, dos orixás de seu

pai ou mãe de santo, e também ainda que apenas um fio simples, dos orixás de seus "irmãos

de barco", aqueles com quem foi iniciado junto. Todos esses também sem nenhum enfeite. O

número de "pernas", que é como se chama cada uma das voltas de um colar, vai depender do

orixá em questão e quem determina isso é o pai ou mãe-de-santo, para tal decisão leva-se em

conta o número do orixá no jogo de búzios.

Independentemente do número de pernas dos colares o iaô invariavelmente usa muitos

fios o que provoca incômodo porque tantos colares juntos somam peso considerável e

atrapalham durante a dança. Em algumas casas os iaôs costumam polvilhar talco nas firmas

dos colares, a parte que fica em contato direto com a nuca, para tentar amenizar o desconforto

causado pelo calor e o atrito dos ilequês com a pele. Obviamente ninguém gosta desse

desconforto, mas os adeptos agem como se esse incômodo, esse sofrimento, fizessem parte da

condição de iaô. Subjaz aqui a noção recorrente no candomblé de que "iaô tem que sofrer".

Todo o processo iniciático, aliás, é marcado pela imposição de sofrimento ao corpo;

dentre outras coisas, a pessoa dorme em esteiras sobre o chão duro, toma banhos frios, come

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com a mão, tem seu cabelo raspado e sua pele perfurada em diversos pontos. Além disso o iaô

tem que andar de cabeça baixa, deitar-se no chão para saudar o pai ou a mãe-de-santo, e

seguir uma etiqueta bastante rígida no que diz respeito ao trato como os iniciados a mais

tempo.

Os adeptos costumam zelar bastante para que as regras que dizem respeito à hierarquia

sacerdotal sejam estritamente cumpridas e estão sempre preocupados com isso. Conversas

sobre o tema "quem toma benção de quem", para ficar em um pequeno exemplo, são

constantes, além, é claro, das reprimendas àqueles que por alguma razão cometem qualquer

deslize.

A importância de se viver cada fase da experiência iniciática é muito enfatizada pelo

povo-de-santo, uma vez que aqui o aprendizado se dá por meio da observação e repetição.

Nessa religião de tradição oral e segredo, a curiosidade não é bem vista e até mesmo uma

pergunta simples pode causar problemas. Afirma-se o tempo todo que não há outro meio de se

aprender e ser um bom filho-de-santo, "verdadeiro conhecedor das coisas do orixá" sem

passar inclusive pelo relativo sofrimento que esse longo processo iniciático implica.

A valorização positiva do sofrimento, no entanto, é pontual, diz sempre respeito ao rito

e não faz parte da visão de mundo do povo-de-santo. Para os adeptos do candomblé o

sofrimento não é um valor, a idéia de ascese puritana é inconcebível assim como a negação do

mundo como o lugar do pecado. Muito pelo contrário, o candomblé valoriza o mundo como

espaço de realização e, como bem mostrou Rita Amaral, diferente das religiões cristãs, nega o

pecado e vive o que ela chamou de "ética da felicidade urgente" (Amaral, 1992, 2002: 75).

As contas e outros materiais de que são feitos os colares não são baratos, ainda mais

porque são grandes as quantidades usadas. Então muitas vezes o número de voltas dos ilequês

também é determinado pelo poder aquisitivo do fiel, que nunca deixará de fazer enorme

esforço para ter tudo que sua iniciação requerer ainda que para isso sejam necessários anos de

economia e a ajuda de irmãos-de-santo e outros amigos e familiares. Quando ainda for

necessário fazer um colar com menos voltas do que seria a princípio determinado, a decisão

não é aleatória, procura-se sempre um submúltiplo do número do orixá. Por exemplo, se o

número do orixá for doze, como é o caso de Xangô, na impossibilidade de se fazer um fio

com doze voltas se fará um de seis, ou mesmo quatro.

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O Quadro 1 indica o número de voltas que um colar dever ter na nação queto de

acordo com o orixá, e com a sua posição na constelação pessoal do indivíduo, ou seja, a de

orixá principal ou adjuntó.

Quadro 1 – A quantidade de voltas dos colares

Orixá Número de voltas se é orixá principal

Número de voltas se é orixá secundário (juntó)

Exu 14 7

Ogum 14 7

Oxóssi 9 6

Ossaim 9 7

Logum Edé 16 8

Omulu 11 7

Nana 9 6

Oxumarê 11 6

Eua 9 6

Xangô 12 6

Oiá 9 7

Oxum 8 5

Obá 9 6

Iemanjá 9 8

Oxaguiã 8 6

Oxalá 10 8

Segundo etnografia na Casa das Águas

Outras adaptações são feitas pelo mesmo motivo, para tanto se lança mão de muita

criatividade e capricho, tomando o cuidado de nunca mudar o que é essencial na composição

dos colares. Um exemplo desse tipo de adaptação que ocorre com freqüência é no caso de

orixás que usam contas de mais de uma cor; as contas rajadas e bicolores são ainda mais caras

do que as simples e nesse caso podem ser substituídas por contas simples, nas cores dos

orixás, dispostas alternadamente. Assim se pode ver um fio do orixá Omulu cujas cores são

vermelho, preto e branco tanto de contas rajadas nessas cores quanto de contas vermelhas,

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pretas e brancas alternadas, sem que isso cause qualquer problema para o adepto, ou desperte

a ira do deus.

Os iaôs também usam no pescoço um outro adereço, que não é exatamente um colar.

Feito de palha-da-costa trançada e bordada com contas da cor de seu orixá principal, termina

em uma espécie de vassoura chamado mocã (do iorubá, minha corda). O mocã é usado para

puxar o iaô em transe e conduzi-lo. É uma peça de uso exclusivo do iaô. Ele a recebe em sua

iniciação e a deixará de usar quando completar seu ciclo iniciático na obrigação de sete anos,

simbolizando a liberdade de movimento do seu orixá. Segundo os sacerdotes entrevistados, o

mocã simboliza esse período de maior submissão do iaô tanto ao orixá, o iaô entra mais em

transe do que o ebômi, quanto aos mais velhos e, igualmente, ao pai ou mãe-de-santo.

Outro colar muito importante que marca a submissão e a relação profunda do iniciado

com seu orixá é o chamado quelê. Trata-se de um colar disposto em formato de gargantilha,

de contas que são sempre exclusivamente do orixá principal da pessoa, de várias voltas,

truncado com firmas. Podem ainda ser de búzios, no caso de Oxumarê e Omulu, ou ferro para

um Ogum específico, mas invariavelmente a prerrogativa da confecção é do sumo sacerdote

do terreiro, que pode eventualmente ser ajudado por pessoas da alta hierarquia. É, dentre

todos os ilequês, talvez aquele cuja sacralidade seja mais densa posto que nem mesmo aquele

que o carrega deve tocá-lo com freqüência.

O quelê era originalmente na África um colar específico do orixá Xangô. No Brasil

ganhou outra atribuição, talvez uma conseqüência de ser Xangô o orixá cultuado na cidade de

Oió, região de onde saíram as fundadoras do candomblé no Brasil (Verger, 1981). Tanto é que

esse é o orixá patrono do terreiro tido como o mais antigo do País, a Casa Branca do Engenho

Velho, em Salvador.

O quelê é usado obrigatoriamente na feitura e também por ocasião das diversas

obrigações pelas quais o adepto passa ao longo de sua trajetória, sempre marcando esses

momentos de passagem em que esse está ligado de modo muito próximo a seu orixá. Tão

importante é o quelê que ele só é usado nas obrigações em que se faz sacrifício de animais de

quatro patas, as chamadas obrigações grandes.

Nos períodos de uso do quelê o iaô fica impedido de fazer inúmeras atividades sob

pena de desagradar sua divindade, que pode se ressentir de algum ato em falso; além do que a

necessidade do cumprimento de todas as obrigações relativas ao quelê é algo sobre o qual

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toda a comunidade adverte o fiel. Exemplos de prescrição são a abstinência sexual, regime

alimentar apropriado, obrigatoriedade de dormir em esteira, de vestir-se de branco cobrindo a

cabeça, impedimento de se sentar em cadeira, e mesmo no ônibus, metrô e até no escritório

etc. Uma restrição importantíssima é que durante o uso do quelê o orixá é mudo. O tempo de

uso do quelê após a iniciação e as obrigações varia de acordo com a casa, com o orixá e com a

categoria sacerdotal, podendo ir de uma semana a até três meses. O quelê é em muitas casas

chamado de "gravata do orixá".

Ainda durante o período de uso do quelê, logo após a saída da iniciação, ocorre o ritual

do panã em que "os iaôs executam simbolicamente todas as atividades da vida corrente"

(Verger, 1999: 110), como que se reeducando para a regressar à vida secular.

Ao término do tempo de uso do quelê a retirada do colar é a ocasião em que o orixá

manifestado vai dar o seu ilá, vai emitir pela primeira vez a sua saudação, o som pelo qual

será reconhecido quando vier em terra na cabeça daquele adepto. Esse momento marca, como

me afirmou um sacerdote "o fim do silêncio da criação da nova vida que agora se manifesta

publicamente, tal como o bebê que chora ao vir ao mundo".

Os ebômis que constituem a mais alta categoria sacerdotal, são os que possuem os

colares mais elaborados do candomblé. De acordo com o princípio da antiguidade, que

associa tempo a sabedoria, quem é mais velho tem mais conhecimento e portanto maior

liberdade, seja dentro do espaço do terreiro em que pode transitar livremente por todos os

quartos sagrados, seja no acesso aos ritos, como também liberdade criativa.

"O saber é ao mesmo tempo o segredo, a necessidade e a capacidade de materializar o conhecimento, transmutando mitos em ritos, práticas e objetos. Quanto mais conhecimento, tanto mais ritos, práticas e objetos" (Lemos, 2002).

Embora tenham, ou devam ter, relativo domínio e conhecimento ritual os ebômis

nunca estão livres de cometerem erros e serem censurados, freqüentemente em público. Uma

vez ouvi um pai-de-santo conversando com seus filhos acerca das falhas que ele tinha notado

na última festa dizer que havia ebômis que sofriam da "síndrome do fio truncado". "Vocês

sabem o que é isso? Funciona assim: um filho vira ebômi, ganha um fio truncado e sai por aí

achando que pode fazer o que lhe dá na telha! Não é bem assim, não..." O fato desse

sacerdote se referir a essa relativa autonomia da categoria dos ebômis como a "síndrome do

fio truncado" reitera o quão emblemáticos são esses colares.

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Os ilequês muito elaborados e enfeitados dos ebômis utilizam uma ampla gama de

materiais, dentre esses o principal são as miçangas que podem ser de vidro translúcido ou

leitoso. A diversidade de materiais, aliás, é algo que vem aumentando com a expansão da

indústria produtora de peças para bijuteria, e o aumento das importações nesse segmento.

Segundo me contou certa vez Reginaldo Prandi, na impossibilidade de adquirir miçangas, os

adeptos da santería em Cuba, num período de importações muito restringidas pelo governo,

chegaram a usar a cobertura de plástico colorido dos fios de telefone cortada em pedacinhos

para confeccionar os fios de seus orixás.

Quanto mais peças importadas das diversas origens melhor. A criatividade sempre

acrescenta novas possibilidades, e vem somar-se ao desejo de ser original e criativo de tal

forma, que atualmente é comum ver fios de ebômis intercalados com corações, peixinhos,

raios e muitos outros elementos que possam relacionar-se ao orixá a que o determinado colar

pertence. Coisa que, como se pode observar nos registros mais antigos, não era comum.

Mais comum e recorrente é, e foi desde muito tempo, o uso de materiais importados da

África, como os corais, o monjolô, o segui, que é um tipo de canutilho azul utilizado para o

orixá Oxaguiã; o laguidibá, que são lâminas de chifre de búfalo, usado para Omulu; o

chamado laguidibá branco, que são lâminas de osso também utilizadas para Oxalá e Oxaguiã;

búzios, além de marfim, âmbar, ferro (para Ogum), e outros tantos tipos de pedras e materiais,

como dente de animais encastoado, casca de coco, pequenas peças em madeira, conchas,

pérolas etc. Ou seja, tantos quantos materiais a imaginação, a criatividade e o desejo de

agradar aos deuses permitir.

Grande parte desses artefatos são importados da África e podem ser encontrados em

casas que vendem artigos para umbanda e candomblé. Há muitas dezenas de locais de

comércio de materiais para umbanda e candomblé em São Paulo e, embora o povo-de-santo

tenha uma complexa rede de comunicação que faz com que sempre se saiba o que comprar e

onde, por vezes quando podem as pessoas vão ao que talvez seja o maior mercado de artigos

para as religiões afro-brasileiras que é o Mercado de Madureira no Rio de Janeiro.

As contas de vidro translúcido ou leitoso são compradas em São Paulo nas muitas

lojas da rua Vinte e Cinco de Março ou da ladeira Porto Geral. Atualmente grande parte das

contas provém de Taiwan ou da China, mas ainda uma parte expressiva delas, e costuma-se

dizer que as de melhor qualidade, são importadas da República Tcheca.

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Já as outras peças de acrílico, vidro, madeira, louça, plástico etc. têm origens variadas

e muitas, inclusive, são de fabricação nacional. É interessante notar que, como me afirmou um

sacerdote, "é chique" entre o povo-de-santo dizer que as coisas são importadas, sinal de status

que eles gostam de exibir, como pude observar, sempre dizendo que se trata de "material

importado". De todo, o modo o que realmente preocupa os fiéis é que sejam a conta e o

material certos, e para tanto se empreende muito esforço e dinheiro também, porque quanto

mais raras e difíceis de encontrar, tanto mais caras serão as miçangas.

Dentre os adeptos do candomblé é sinal de muita distinção e prestígio ter colares de

ebômi. Se por alguma razão vão visitar uma outra casa, eles o fazem portando seus fios mais

importantes, elaborados e ricos. Esses também são os fios escolhidos para serem usados em

eventos públicos em que comparecem com seus trajes rituais, como celebrações ecumênicas,

homenagens diversas, congressos, feiras e até no afoxé que abre o desfile das escolas de

samba de São Paulo. Tive oportunidade de ver uma rica exposição desses colares por ocasião

do IV Congresso do Intecab – Instituto Nacional de Tradição e Cultura Afro-brasileira —

realizado em seis de abril de 2002 em Diadema na grande São Paulo, que tinha como patrono

o orixá Oxóssi. Havia lá muitos líderes religiosos e muitos ebômis ostentando fios do orixá

homenageado, e além de seus colares de senioridade ricamente enfeitados, muitos, inclusive,

com peças em ouro, especialmente quando se tratava de algum filho ou filha de Oxum.

Isso nos remete a um outro valor estruturante da criação estética do candomblé, que é

a ostentação. Professor titular do Departamento de Antropologia da Universidade de São

Paulo, o africano Kabengele Munanga, em comunicação oral, me contou, certa vez, que para

o africano a ostentação é um valor, ou seja, se mostrar, se exibir é nessas culturas algo muito

importante, muito valorizado. Esse é um valor que foi sem dúvida preservado no candomblé e

persiste até os dias de hoje com muito vigor.

Entre o povo-de-santo é muito importante ser visto, chamar a atenção para si, e isso

independe da classe social da qual o fiel faz parte. O candomblé é uma religião em que os

adeptos pobres são a maioria mas em que é possível encontrar pessoas de todos os estratos

sociais, e todas dão importância ao modo como se apresentam, em especial nas festas

públicas.

As festas são ocasiões em que se mostra "o que o grupo é e como pensa" (Amaral,

2002: 32), é "o momento em que os humanos recebem os deuses em sua casa, às vezes até

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mesmo em seu próprio corpo" (idem: 32). São também, como mostrou Rita Amaral, espaço

de sociabilidade e lazer, momento para ver e ser visto, conhecer pessoas, trocar idéias, fazer

fofoca, flertar.

A tudo isso se deve tanto esmero na confecção de tudo o que se vai usar. Desde a

roupa mais simples do dia-a-dia, até o traje de gala, passando pelos colares, tudo tem que ser

bonito e chamativo. Ainda que isso implique, para não falar dos altos custos financeiros, um

grande esforço físico, pois em geral os ilequês são muito pesados, ainda mais quando se usam

vários de uma vez.

Os colares mais pesados são os dos iaôs, que têm mais voltas, com peso que chega a

somar três quilos e meio (para um iaô de Xangô com Oxum, por exemplo). Esse peso no

pescoço forçaria o iaô a andar curvado, de cabeça baixa, em postura de submissão que é

exigida para eles, sobretudo no primeiro período da iniciação. Se non è vero è bene trovato.

Em uma ocasião fui à famosa rua Vinte e Cinco de Março, acompanhando algumas

filhas-de-santo que iam comprar tecidos para roupas de candomblé, e a cada tecido que eu

apontava elas prontamente tinham um julgamento que não deixava dúvidas: "Ah, esse não,

essas flores são muito pequenininhas, nem vai aparecer!" ou então "Ah, essa cor é muito

apagada, desse jeito ninguém vai me ver, menina!".

A combinação do gosto por ser visto e a conseqüente vontade de se exibir que se

expressam nessa estética remetem a uma concepção profunda e vigorosa da religião dos

orixás, pois nas palavras de Prandi:

"O candomblé afirma o mundo, valoriza-o: muito daquilo que é considerado ruim segundo outras religiões, como dinheiro, prazeres (inclusive os da carne), sucesso, dominação, poder para o candomblé é bom" (1991: 214).

A afirmação do mundo faz dessa combinação entre o prazer em ser admirado e o

desejo de se mostrar, que é parte do estilo de vida, da sociabilidade do povo-de-santo, algo

legítimo sobre o qual não há nenhum tipo de restrição, ser bonito é também muito valorizado

(Amaral, 1992, 2002). O julgamento acerca do que é bom por vezes se confunde mesmo com

o belo; por sinal, a palavra iorubá que designa belo é odara que também significa bom. De

uma festa pública diz-se sempre e antes de tudo que "foi linda", que "os orixás estavam muito

bonitos", "que dançavam muito bem", ou seja, o julgamento daquilo que é bom está

inextricavelmente associado ao belo.

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A valorização da beleza é um dos fatores que contribui para a inserção e reprodução

do candomblé na metrópole moderna. Igualmente, muito de sua visibilidade, de seu alcance

simbólico, evidenciado especialmente pelas artes, advém de sua estética plástica exuberante,

que se manifesta sobremaneira na festa pública.

Ser um ebômi é definitivamente ter atingido uma posição em que se pode e mesmo se

deve ostentar. É claro que, mesmo essa ostentação é limitada pelo pai ou mãe-de-santo. Por

mais liberdade criativa que se tenha, conhecimento adquirido, e até mesmo dinheiro, porque

muitos materiais são bastante caros, ainda é o chefe do terreiro que vai efetivamente ditar os

limites do que se pode ou não usar e não só porque é ele quem detém mais conhecimento

ritual, é iniciado a mais tempo, mas igualmente porque os sacerdotes estão sempre

preocupados com a imagem que seus terreiros passam às pessoas de fora, e também porque

ninguém deve ser mais bonito, vestir-se melhor, ter ilequês mais belos do que o sumo

sacerdote, afinal, beleza é poder.

São basicamente dois os colares de distinção do ebômi na nação queto: os brajás e o

hungebe. O brajá tem um formato específico: as muitas voltas de miçangas são unidas a

intervalos regulares por uma firma que pode ser de louça, resina, coral, pedra, búzio ou um

outro material. O número de contas de cada segmento é dado por um múltiplo do número

característico do orixá. A despeito de o ebômi poder ter tantos brajás quanto queira e possa

ter, os mais importantes são do orixá principal e do segundo orixá que se costuma arranjar da

seguinte maneira: o brajá do orixá principal com as contas nas cores do orixá principal da

pessoa e com as firmas nas cores do segundo orixá e o brajá do segundo orixá de modo

inverso. Mas há outras opções de combinação. Brajá, aliás, é um nome de uso hoje

generalizado mas que originalmente designava tão somente os colares de búzios feitos para os

orixás de origem jeje: Nanã, Omulu e Oxumarê.

Observando atentamente uma roda de filhos-de-santo, o xirê, poderá se saber com

facilidade quais são os ebômis apenas verificando quem dentre eles usam brajás. Eles

distinguem e localizam na hierarquia que se expressa publicamente no por ocasião das festas,

qualquer alteração nessa ordem causa muito desconforto entre os fiéis. Uma vez um pai-de-

santo me contou que na sua iniciação sua então mãe-de-santo fez para ele um brajá de Ogum,

seu orixá, e ele saiu na primeira festa depois de iniciado, como ele mesmo disse, "no fim da

fila e com o brajá no pescoço", fato que foi amplamente comentado por seus irmãos de santo,

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fonte de muito ciúmes, discussões e problemas para a mãe-de-santo posto que o uso de brajá

por um iaô é uma incoerência por definição.

É preciso ressaltar, no entanto, que embora os brajás sejam um importante símbolo de

distinção dos ebômis, com o passar do tempo eles acabam preferindo usar ilequês mais leves,

com menos voltas, porém ainda mais elaborados, frutos de sua já comentada, liberdade de

criação. É comum usarem nesses fios elementos mais nobres, freqüentemente mais caros e

preciosos, e sempre relacionados aos orixás em questão.

O hungebe, por sua vez, é por excelência o colar do ebômi; trata-se de um fio de uma

volta, de contas de louça marrom intercaladas com coral. Um colar até bastante simples

comparado aos brajás, mas de suma importância. Vejamos o que nos diz a esse respeito, Leda

de Ogum, 15 anos de santo:

"O hungebe tem uma importância suprema, e ele identifica não o orixá, ele identifica o ebômi. É um fio que a gente recebe no dia que recebe o oiê e ele te acompanha até depois da morte".

De acordo com os entrevistados o hungebe é o único colar que acompanha o morto em

seu caixão, simboliza "a quebra do pacto da vida, da ligação com o mundo dos viventes".

No candomblé queto o hungebe tem uma ligação direta com o orixá Oiá, essa é a cor

dos fios da deusa também, e é essa divindade, de acordo com a mitologia, a encarregada de

levar os espíritos dos mortos, os eguns, para o Além. Daí, segundo alguns sacerdotes, sua

ligação com a vida terrena. Além disso, ainda de acordo com esses, esse fio teria a

propriedade de proteger seu portador da morte tendo em vista que o ebômi também lida com

as intempéries e eventualmente os eguns que atrapalham os seres humanos e devem ser

despachados através de ritos apropriados, além dos ritos fúnebres.

A importância desse colar como expressão estética da senioridade é algo que não se

pode perder de vista e que é muito clara inclusive no cotidiano da comunidade; tanto é assim

que muitas vezes os ebômis não usam qualquer outro fio que os identifiquem a seus orixás

mas nunca deixam de usar o hungebe.

"Ele é a identificação de você ser um ebômi. Se de repente eu não tiver um outro fio de contas, eu tiver só o hungebe, ele é tudo, ele é o principal de tudo. Eu posso não ter um brajá, eu posso não ter um fio truncado, mas se eu tenho meu hungebe vão saber que eu sou do candomblé e que sou uma ebômi" (Leda de Ogum).

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Uma ocasião, em janeiro de 2003, assisti a uma saída de iaô em que havia também um

rapaz dando obrigação de sete anos, e portanto tornando-se um ebômi. Ele foi trazido ao

barracão e, sentado em sua cadeira, aguardava visivelmente emocionado o momento em que o

sacerdote que o homenageava dançando em sua frente e ostentava o colar do ebômi nas mãos,

lhe colocaria o hungebe no pescoço, sinal de sua maioridade sacerdotal, de sua grande

intimidade com os deuses. Se o ilequê funciona como documento de identidade o hungebe é

usado como prova de maioridade.

Algodão ou náilon?

Os colares rituais têm uma dinâmica de circulação, montagem, desmontagem,

remontagem e uso dentro dos terreiros. Muitas vezes acontece, por exemplo, de alguém

comprar um determinado tipo de conta que não é exatamente a cor de seu orixá. Essa conta

fica guardada e um dia mais tarde vai servir a outro filho-de-santo. É muito comum também

que por ocasião da obrigação de sete anos os ilequês de iaô sejam desmontados e remontados

como brajás.

Outra situação bastante usual é daqueles que mudam de axé, que por alguma razão

saem de uma casa e vão para outra em busca de algo que não encontraram anteriormente, e aí

pode ocorrer de a cor de suas contas mudar. Nessas circunstâncias possivelmente as firmas

poderão ser reaproveitadas.

Mais de uma vez pude acompanhar a montagem dos colares no terreiro. Enfiar contas

é um trabalho que pode envolver toda a comunidade que se mobiliza para a iniciação ou em

períodos de obrigação em que fiéis ficam recolhidos no templo. Esses são momentos

privilegiados na sociabilidade do grupo, quando emergem, dentre outros, assuntos como de

onde veio essa ou aquela firma, em que circunstâncias se ganhou esse ou aquele colar, a razão

do uso de determinado material ou cor.

Em mais de uma dessas oportunidades ouvi comentários acerca do tipo de fio utilizado

para se fazer o colar. Na grande maioria das casas pesquisadas de que tive notícia, usa-se fio

de náilon para a confecção dos ilequês, por razões de ordem prática uma vez que esses fios

são muito resistentes, fáceis de se passar nos buracos das miçangas e também não absorvem a

água de folhas, nem o sangue por vezes vertido sobre os fios. Além disso secam rapidamente

e não ficam com mau cheiro.

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Existem, no entanto, algumas casas que usam o chamado cordonê, um fio de algodão

levemente encerado, que não é tão resistente quanto o fio de náilon nem tampouco prático ou

higiênico, uma vez que estraga com facilidade e é muito mais difícil de passar pelas contas. É

no entanto, o fato de absorver a água, o amassi e o sangue sacrificial que segundo alguns

sacerdotes o faz ritualmente mais apropriado que o fio de náilon, porque de acordo com esses,

ao reter esses elementos o cordonê de algodão retém axé.

A discussão subjacente ao uso de um ou outro material é algo muito recorrente nessa

religião de tradição oral, em que cada templo é autônomo, e em que cada pai ou mãe-de-santo

é muito criativo.

O candomblé se formou no Brasil em meados do século XIX como uma organização

original da diáspora de diversos povos africanos e, como religião de dominados, sofreu fortes

pressões que poderiam ter levado à sua extinção. O que se verificou, no entanto, foi que a

religião dos orixás não só sobreviveu como se expandiu e há muito tempo já não é mais uma

religião de negros, mas universal, cujo alcance extrapola, inclusive, os limites das fronteiras

nacionais.

Nesse longo processo de resistência e reprodução, o candomblé sempre se preocupou,

e se preocupa ainda, em preservar-se, em guardar bem os seus segredos, seus ritos, mitos,

enfim, sua tradição (Prandi, 2005).

Manter a tradição, no entanto, não significa ausência de mudanças, uma vez que

mesmo "aquele traço aventado de querer-se permanente da tradição não exclui a sua própria

evolução histórica – mesmo a permanência tem uma história" (Bornheim, 1987: 23). E no

candomblé assim também se faz, a mudança, a ruptura, é necessária à sua conservação e

manutenção. Como assinala Bornheim:

"A tradição só parece ser impertubavelmente ela mesmo na medida em que afasta qualquer possibilidade de ruptura, ela se quer perene e eterna, sem aperceber-se de que a ausência de movimento termina condenando-a à estagnação da morte. A necessidade da ruptura se torna, em conseqüência, imperiosa, para restituir a dinamicidade ao que parecia 'sem vida'" (idem, : 15, grifo meu).

Tratam-se de mudanças, de rupturas, que visam a conservar, restituir a tradição, ou

seja:

"A noção de 'tradição' para o próprio candomblé é, portanto, uma noção que tem a dinâmica como um forte elemento constitutivo, em termos de que a transformação seja

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por meio de abandonos, resgates, acréscimos, substituições, etc. é um mecanismo presente nas várias possibilidades de representação desta religião e que assegura, de resto, sua continuidade nos vários contextos em que se insere" (Silva, 1995: 291).

As mudanças aqui são sempre feitas em nome da manutenção, ou mesmo recuperação

da tradição, ainda que o resultado seja uma "tradição inventada".

"Tradições inventadas" são, de acordo com Eric Hobsbawm, altamente aplicáveis no

caso da "nação", uma inovação histórica comparativamente recente, e seus fenômenos

associados. Por tradição inventada entende-se:

"Um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado" (Hobsbawn, 2002: 9).

Como no candomblé a legitimidade é garantida por meio dessa continuidade em

relação ao passado, pela referência constante aos mais velhos, as novidades, as

transformações, que são introduzidas no processo de reprodução da religião adquirem

necessariamente o status, por assim dizer, de tradição e se configuram, por meio da repetição,

em verdadeiras "tradições inventadas".

É desse modo que um novo modelo de roupa que nunca tenha sido usado em um

determinado terreiro, por exemplo, pode ser introduzido pelo pai-de-santo que simplesmente

tenha visto esse modelo em outra casa, achado bonito e copiado. Logo se ouvirá dizer da

roupa nova que "é assim" porque no terreiro de origem, "é assim que se veste".

Há, no entanto, um espaço efetivamente aberto para as inovações, em que não há a

possibilidade de se afirmar que "é assim porque sempre foi assim". Esse é o caso das

inovações técnicas no âmbito da cozinha, que é central no candomblé porque é lá que as

comidas que alimentam os deuses são preparadas. Há todo um debate dentro da religião se a

adoção alimentos já processados, como o pó de feijão para o preparo do acarajé por exemplo,

ou mesmo de eletrodomésticos modernos que facilitam a preparação das comidas, não seriam

ruins para a religião por caracterizarem um afastamento do modo tradicional de se cozinhar a

comida dos deuses.

Mas a despeito de toda a discussão não se vê, hoje em dia, alguém pilando feijão para

obter a farinha para o acarajé e é possível até que de tão habituados aos pacotes de farinha

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pronta, facilmente encontrados no comércio, que filhos mais novos nem saibam qual era o

processo para produzi-la no passado.

Perguntados acerca disso, a maioria dos sacerdotes afirma não ver nessas inovações

um perigo, pois há a percepção de que elas contribuem para que a vida no santo seja menos

penosa e o dispêndio de tempo com a religião, de um modo geral, seja menor. Algo sem

dúvida muito importante para a manutenção do candomblé e mesmo para arregimentação de

novos adeptos, especialmente em uma cidade tão grande como São Paulo em que talvez o

bem maior de que as pessoas possam dispor seja exatamente tempo livre. Conforme ouvi de

uma mãe-de-santo "O que importa é a fé minha filha! Se vai usar liquidificador ou pilão o

orixá não vai se importar, desde que a comida dele seja feita com os ingredientes certos e

com devoção".

Esse debate, obviamente, não se restringe somente às "coisas da cozinha". O povo-de-

santo está sempre discutindo se a adoção de técnicas e materiais industrializados não seria

prejudicial à religião, não provocaria uma perda paulatina da tradição e conseqüentemente da

força, do axé, a energia vital que move o mundo e sustenta a religião. O uso do náilon vesus

cordonê é apenas uma pequena amostra desse debate, que é o mesmo que se trava em torno de

outros pares de alternativas como usar o liquidificador ou triturar os alimentos no pilão, usar

fogão a gás ou fogão a lenha, comprar farinha pronta para fazer acarajé ou produzi-la,

comprar os ilequês prontos ou enfiá-los etc.

Os ilequês e as cores

Além dos tipos de colares já mencionados é preciso lembrar que eles também podem

ter comprimentos diversos. Em geral eles vão até o umbigo, mas os colares dos orixás

masculinos são usados pelos ebômis atravessados sobre o peito e são, portanto, um pouco

mais compridos. Usar colares atravessados é, de acordo com Mãe Stella, a ialorixá do Axé

Opô Afonjá, uma prerrogativa exclusiva dos filhos de orixás masculinos "independentemente

de tempo de iniciação e condição hierárquica" (Santos, 1995).

Existem também colares de contas mais curtos que se fazem para uso cotidiano, fora

do rito, e igualmente colares de pedras, corais ou outros materiais, usados somente por

ebômis, que podem também ser mais curtos. Uma vez ouvi um sacerdote dizendo que sua

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mãe-de-santo o havia aconselhado a fazer para si alguns colares mais curtos para proteger o

peito, uma parte do corpo simbólica e efetivamente central.

Além da enorme diversidade de materiais que podem ser usados nos ilequês, conforme

já mencionei, é preciso ter em vista que as miçangas também são diferentes. Existem dois

tipos de contas as que são de vidro opaco, leitosas, e as de cristal, que são translúcidas.

As contas translúcidas são usadas, em geral, para as divindades femininas, em

específico as ligadas às águas, como é o caso de Iemanjá e Oxum; esse uso é uma referência à

transparência das águas que essas deusas habitam. Nas palavras de Claude Lèpine "o cristal

evoca por sua transparência as águas doces como as águas salgadas" (1978: 300).

Há o caso especial de Logum Edé, o orixá masculino, que é filho de Oxum com

Oxóssi e usa alternadas, as contas de seu pai, azul-turquesa opacas, e de sua mãe, dourado

translúcido claro. Igualmente também é possível encontrar miçangas translúcidas para um ou

outro orixá masculino em um avatar muito específico, dependendo do templo, mas isso é raro.

Muito da exuberância e diversidade dos colares se deve ao seu colorido, ou

multicolorido, tendo em vista que são muitas as cores usadas. No candomblé queto são

aproximadamente dezesseis as divindades cultuadas e cada uma comporta em geral uma ou

duas cores básicas que podem variar de tom de acordo com a invocação do orixá, a qualidade

como diz o povo-de-santo, conforme se vê no Quadro 2. Nas palavras de Armando Vallado

(2002: 41):

"Qualidade é o termo usado no candomblé para referir-se às múltiplas invocações ou avatares dos orixás. (...) as qualidades referem-se a cultos específicos dos orixá, em que são invocados aspectos míticos da sua biografia mítica, o que inclui suas diferentes idades, suas lutas, seus momentos de glória etc. Também locais geográficos passam a compor a qualidade".

De tal forma que se pode ter um ilequê de Oxum cuja cor é o dourado desde o mais

claro até quase marrom dependendo do avatar da deusa em questão. Nesse sentido Claude

Lèpine (1978: 308) sustenta que tanto mais velho o orixá, mais escuras são as contas e, por

conseqüência, quanto mais jovem, mais claras.

Juana Elbein dos Santos (1975) e Rosa Maria Bernardo (1994) classificam as cores

usadas nos colares e roupas dos orixás de acordo com um sistema tripartite baseado em Victor

Turner (1967), segundo o qual as cores-significado podem ser classificadas a partir do branco,

vermelho e preto do qual todas as outras cores derivariam.

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Assim, de acordo com essa teoria (Santos, 1975: 41), ao vermelho estariam

associados: o corrimento menstrual, o sangue humano ou animal; o azeite de dendê, o ossùn,

um pó ritual vermelho muito usado nas iniciações, o mel; cobre e o bronze. O vermelho

também abrange o amarelo.

Quadro 2 – Os colares e as cores no candomblé de nação queto e na umbanda

Orixás Cores das contas no candomblé de nação queto

Cores das contas na umbanda

Exu vermelho e preto, azul e preto (alternadas)

vermelho e preto (alternadas)

Ogum azul escuro, verde escuro, azul escuro rajado de verde

vermelho

Oxóssi ou Odé azul turquesa verde Ossaim verde e branco (alternadas ou rajadas) - Oxumarê amarelo e preto, laranja e preto, verde

e amarelo (alternadas), búzios -

Obaluaê ou Omulu vermelho, branco e preto (rajadas ou alternadas)

preto e branco, amarelo e preto

Xangô vermelho e branco, marrom e branco (alternadas)

marrom, amarelo, roxo

Oiá ou Iansã marrom, vermelho escuro laranja Obá vermelho e amarelo translúcido,

vermelho escuro, laranja translúcido -

Oxum dourado translúcido dourado translúcido, amarelo, azul escuro

Logum-Edé dourado translúcido e turquesa (alternadas)

-

Euá búzios, vermelho escuro translúcido - Iemanjá vitrificada cristal transparente, ou

alternada com azul ou verde translúcido

vitrificada cristal transparente ou azul claro translúcido

Nanã branca rajadas de azul cobalto, roxo roxo Oxaguiã (Oxalá jovem)

branco e azul real intercaladas -

Oxalufã (Oxalá velho)

branco branco

Ao branco estariam associados: o sêmen, a saliva, o hálito, as secreções, o plasma; a

seiva, o sumo, o álcool e as bebidas brancas derivadas das palmeiras e outros vegetais, o

ìyèrosùn, pó branco de uso ritual, o ori que é uma manteiga vegetal; além de sais, giz, prata e

chumbo.

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Por fim, ao preto estariam associados: cinzas de animais; sumo escuro de alguns

vegetais; o wájì, pó azul escuro também de uso ritual; carvão, ferro e outros minerais. O preto

compreenderia ainda o verde e o azul.

Parece-me muito difícil afirmar, com base na pesquisa de campo, que a determinação

das cores consagradas aos orixás obedeça a princípios cujo simbolismo tem um alcance tão

preciso. As cores estão ligadas às características dos orixás, que por sua vez se depreendem de

sua mitologia, que, como já foi dito, forma e informa a estética do candomblé como um todo e

inclusive as cores dos colares.

Um mito de Xangô expressa claramente essa dinâmica. Diz esse mito que Xangô era

um filho muito rebelde e inconseqüente que causava muito desapontamento em seu pai

Obatalá que vivia recebendo muitas queixas pelos problemas causados pelo filho rebelde.

Obatalá justificava os atos do filho afirmando que Xangô não havia sido criado perto de si,

mas esperava o dia em que ele haveria de submeter-se à sua autoridade. Certa ocasião Xangô

estava na casa de uma de suas mulheres quando teve seu cavalo roubado por Obatalá e,

percebendo o roubo, saiu em encalço do velho e quis enfrentá-lo. Obatalá não se intimidou e

ordenou que Xangô se prostrasse a seus pés e ele, desarmado, atirou-se ao chão e foi

dominado por Obatalá. O velho então desfez o colar de contas vermelhas que Xangô trazia

consigo e "alternou as contas encarnadas de Xangô com as contas brancas de seu próprio

colar. Obatalá entregou a Xangô, o novo colar vermelho e branco. Agora todos saberiam que

aquele era seu filho" (Prandi, 2001: 261, 262).

Esse mito ainda menciona o branco emblemático de Oxalá. Branco, entre os iorubá, é

a cor da criação; Bastide (1961) afirma que os ritos de iniciação se dão sob o signo de Oxalá

pois são também ritos de criação, "uma nova personalidade está em vias de ser modelada"

(idem: 48) e esse patronato de Oxalá sobre a criação é simbolizado pelo uso de roupas brancas

por parte do iaô durante todo o período da iniciação.

Igualmente o rito funerário do axexê é marcado pelo uso de roupas brancas e Bastide

cogita: "Mas, pode-se perguntar se o axexê não seria também uma criação, e por isso mesmo

posta sob o signo de Oxalá" (idem: 99). Criação que nesse caso não é mais a da nova

personalidade, mas a do egum, o espírito ancestral a ser cultuado.

Assim como o branco da criação é de Oxalá, o vermelho está associado ao fogo e à

guerra. Essa é a cor do colar de Xangô, o deus do trovão, de Oiá, a senhora do raio e da

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tempestade, e também de Obá, a terceira esposa de Xangô, igualmente guerreira, que ainda

pode usar laranja ou vermelho e amarelo combinados.

O verde está ligado às plantas e à floresta, é a cor de Ossaim, deus das folhas, e pode

ser usada por algumas qualidades de Ogum e Oxóssi. O dourado, evocando o ouro, a riqueza,é

de Oxum. O transparente das águas é de Iemanjá, podendo ser mesclado com verde ou azul

claro, também transparente. São tonalidades do mar. O azul escuro é a cor de Ogum, que

remete ao minério de ferro, origem do patronato desse deus que é o ferro e a forja. Azul-

turquesa é a cor de Oxóssi, que se por um lado é um caçador que vive nas matas, por outro

lado é irmão mais novo de Ogum, como o povo-de-santo sempre faz questão de enfatizar.

Há ainda o roxo usado para Nanã que parece ser uma menção à morte, que é seu

patronato, e a qual essa cor está ligada entre os católicos. Além do vermelho, branco e preto

de seu filho Omulu que parece estar relacionado também ao simbolismo da morte, portanto

branco, e também é a divindade da terra quente, daí o vermelho e preto. Oxumarê, a serpente,

talvez seja um dos deuses sobre o qual o consenso seja mais difícil, mas suas contas são

sempre bicolores ou multicoloridas, aludindo, segundo me foi dito, à pele das cobras e

também ao arco-íris que é uma de suas representações.

De todo o modo, foi no final do século XIX e começo do XX que o candomblé firmou

sua constituição, definindo costumes rituais até hoje mantidos. Dessa época é a fixação das

cores e é possível que a razão das escolhas já tenha em alguns casos sido esquecida.

Dentro da mesma nação, as cores consagradas aos colares dos orixás variam pouco de

terreiro para terreiro, porque há um amplo conhecimento desse repertório; as variações

maiores ficam por conta dos orixás menos cultuados, mais "raros" como Obá, Euá e mesmo

Oxumarê. O mesmo não acontece com as roupas dos deuses; para essas as possibilidades

cromáticas são muito maiores.

1.1.3. Os colares no tambor-de-mina

Tambor-de-mina é o nome da religião dos voduns no Maranhão. Voduns são os deuses

africanos dos povos jejes ou fons. Tal como o candomblé, trata-se de uma religião iniciática e

sacrificial, em que os adeptos, preparados através dos rituais, manifestam os deuses no transe.

O tambor-de-mina hoje se encontra espalhado pelo Nordeste e também o Norte do País, mas

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tem como matriz cultural dois terreiros que permanecem vivos até hoje em São Luís: a Casa

Grande das Minas e a Casa de Nagô; foi a partir dessas e outras casas tradicionais que a

religião dos voduns se espalhou e se consolidou (Prandi, 1997).

O tambor-de-mina se instalou em São Paulo há quase três décadas. Os voduns e

encantados desembarcaram na metrópole junto com aquele que veio a ser o maior expoente da

mina em São Paulo, pai Francelino de Xapanã, que em 1977 inaugurou a Casa das Minas de

Tóia Jarina (Prandi, 1997).

Pai Francelino é filho-de-santo do já falecido Pai Jorge de Itacy, fundador do Terreiro

de Iemanjá, localizado em São Luís, que, por sua vez, teve origem a partir do Terreiro do

Egito, outro dos mais antigos e importantes templos do tambor-de-mina em São Luís.

Atualmente pai Francelino já tem filhos e netos-de-santo espalhados por São Paulo e

mesmo nas regiões Sul e Norte, toda uma geração de mineiros cuja origem é a bem sucedida

Casa das Minas de Tóia Jarina localizada em Diadema.

O tambor-de-mina difere em diversos aspectos do candomblé tanto queto, como

angola, os mais praticados em São Paulo. As diferenças vão desde a língua ritual para as

cantigas dos voduns, que é o ewe-fon, e abrangem diversos aspectos do rito, como também a

estética. Nesse aspecto talvez os colares sejam um dos pontos mais divergentes em relação ao

candomblé; partindo dessa constatação é que abro aqui um espaço para tratar detidamente dos

colares do tambor-de-mina em São Paulo.

Tanto quanto no candomblé, os colares no tambor-de-mina têm um papel muito

importante no rito, e são bastante valorizados pela beleza exuberante e os diversos

significados que encerram, que vão, como já foi dito em relação ao candomblé, desde o

aspecto da proteção mesmo, passando pela identificação com os deuses, até o posicionamento

na também rígida e complexa hierarquia.

Aqui os colares são igualmente sacralizados através de um ritual de lavagem das

contas, e participam de toda a trajetória do adepto. Mas, nem tudo são semelhanças, e os

colares da mina são estruturalmente diversos daqueles do candomblé quanto à forma.

De saída nota-se que eles são mais compridos do que os colares dos orixás; enquanto

esses costumam ir da nuca até a cintura, no tambor-de-mina eles necessariamente devem ir da

nuca até pelo menos um palmo e meio abaixo da cintura. Também quanto ao material

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utilizado há diferenças evidentes, enquanto no candomblé o tipo de conta mais usado é uma

conta maior, chamada miçangão ou miçanga simplesmente, na mina é muito comum se

usarem contas muito pequenas, são as chamadas miçanguinhas, e às vezes, num mesmo fio é

possível ter contas de dois tamanhos, coisa que não se vê no candomblé. De todo modo, aqui

como lá, também se usa diversos tipos de firmas e materiais.

As cores dos rosários do tambor-de-mina estão mostradas no Quadro 3, em que

também se apresentam os voduns em suas correspondências com os orixás do candomblé.

Quadro 3 – Cores dos colares no tambor-de-mina

Vodum Orixá correspondente Cores das contas e balizas

Elegbara Bara Eleguá

Exu preto e vermelho alternadas com balizas nas mesmas cores

Doçu Ogum azulão leitoso com balizas brancas leitosas Ágüe Oxóssi verde,branco e vermelho com balizas nas

mesmas cores Alogué Ossaim vermelho, marrom, amarelo e preto com balizas

verdes Dã Bessém

Oxumarê verde e amarela alternadas com balizas nas mesmas cores

Xapanã Acóssi–Sapatá

Obaluaê ou Omulu marrom, amarelo, vermelho com balizas nas mesmas cores

Badé Queviossô Averequete

Xangô marrom e branco com balizas vermelhas e azulão ou vermelho e branco com balizas nas mesma cores

Xadantã Xangô Airá branco rajado de vermelho e com balizas azul claro e amarelo gema

Sobô Oiá ou Iansã marrom e azul claro com balizas nas mesmas cores

Navê Oxum dourado translúcido com balizas na mesma cor Boço Jará Logun-Edé vermelho, branco e azul claro com balizas nas

mesmas cores Euá Euá azul claro, branco e rosa com balizas nas

mesmas cores Abê Iemanjá transparente cristal e azul claro translúcido

intercaladas com balizas nas mesmas cores Nanã Nanã branco rajado de azulão e com balizas de búzios Lissá Oxalá branco com balizas brancas

Conforme etnografia na Casa das Minas de Thpya jarina

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No candomblé, por mais elaborados que sejam os colares, eles são fechados somente

na parte que se usa na nuca com uma ou duas firmas; diferente da mina em que os envilacãs

ou rosários, que é como os colares são chamados, têm duas extremidades: a parte que fica na

nuca é chamada de cangoteira e é composta em geral por três firmas cujas cores variam; a

outra extremidade, oposta à cangoteira, que é o fecho propriamente é arrematado por algum

amuleto que pode ser uma figa, uma medalha, uma cruz, um dente de animal encastoado ou

algum outro elemento de acordo com o gosto do filho e de seu pai-de-santo; ou ainda, com

búzios em casos específicos. Em se tratando de não iniciados o fio é fechado por pequenas

firmas nas cores empregadas no fio em questão.

Uma diferença estrutural e muito evidente que diz respeito à forma dos colares da

mina, por oposição aos do candomblé, é que aqui esses são sempre invariavelmente truncados

em seis gomos de cada lado, independente do comprimento que possam ter. Isso inclui até

mesmo os colares dos que ainda não são iniciados, que podem ter tão somente um único fio

branco de Lissá, o vodum ligado à criação, e esse será elaborado dessa forma.

Se na religião dos orixás ter os fios truncados é uma prerrogativa de quem participa da

alta hierarquia do grupo, compondo uma das expressões estéticas mais emblemáticas da

senioridade ritual, na mina não é assim. Isso não significa dizer, de maneira alguma, que aqui

a senioridade ritual não será expressa através dos colares; ela o será de um modo diverso e,

diria, mais nuançado, posto que gradual.

A diferenciação, a expressão estética da categoria sacerdotal a que cada um pertence

não se dá pelo modo como o fio é arranjado mas pelo número de voltas, ou "pernas", que o

colar terá, aumentando de acordo com a ascensão na hierarquia.

Hierarquia

No candomblé o iaô, aquele que está no começo de sua trajetória religiosa, usa colares

de muitas voltas soltas, somente presas pela firma que une as voltas e fecha o ilequê. A

prerrogativa de tê-los truncados é somente daqueles que atingiram o grau de senioridade, na

mina é muito diferente, para não dizer inverso.

No tambor-de-mina, como já foi dito, todos têm fios truncados no entanto o número de

"pernas", as voltas do colar, irão de uma até sete de acordo com o grau de iniciação do fiel.

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Essa também é uma diferença fundamental em relação aos colares do candomblé, posto que lá

o número de voltas do ilequê está ligado ao número de cada orixá no sistema oracular.

O número de pernas dos colares da mina varia da seguinte forma: aquele que está se

aproximando da religião e ainda não passou por nenhum rito de iniciação usa um colar branco

de Lissá, o vodum que corresponde a Oxalá no panteão dos orixás, de uma única volta

truncado com firmas, ou balizas que é como na mina se chamam as firmas, brancas e fechado

também com firmas brancas. Eventualmente também pode ter um fio de seu vodum.

O fiel que já passou pelo ritual de dar comida a cabeça, o bori, tem seus rosários de

duas voltas. O vodúnsi, que é o nome dado ao adepto rodante da mina, recém iniciado, tem

colares de três voltas; quem cumpriu a obrigação de três anos tem rosários de cinco voltas, e

os mesmos terão sete voltas quando se completa propriamente o ciclo iniciático na obrigação

de sete anos.

É possível perceber então que as mudanças na hierarquia no tambor-de-mina são

assinaladas de modo gradual de acordo com o cumprimento das diversas etapas do ciclo

iniciático. Esse fato também constitui uma diferença sensível em relação ao candomblé, uma

vez que lá as obrigações compreendidas entre a iniciação e a última obrigação de sete anos,

não são sinalizadas esteticamente através dos colares.

No candomblé somente a passagem da condição de iaô para a de ebômi, por ocasião

do cumprimento da obrigação de sete anos que encerra a iniciação propriamente dita, é

expressa esteticamente nos colares que passam então a ser truncados, os já mencionados

brajás, e também se recebe o ilequê que é emblemático dessa posição que é o hungebe.

Na mina também existe o hungebe. Aqui esse colar também é marrom, mas é sempre

de miçanguinhas e tem a particularidade de ter búzios intercalados entre as firmas que

compõem a cangoteira e ser arrematado com búzios. Outra particularidade do hungebe da

mina é que ele traça a genealogia do iniciado por meio das firmas utilizadas, que são a partir

da cangoteira: do vodum principal, do segundo vodum, do terceiro vodum do iniciado, e a

última do vodum de quem o iniciou. A cangoteira é feita com balizas da cor do vodum

principal.

Aliás, a palavra hungebe é de origem fon e o colar foi adotado pelo candomblé como

empréstimo do candomblé jeje. O sentido desse colar, no entanto, é bem parecido com o que

lhe é atribuído no candomblé. Ou seja, aqui igualmente o hungebe é tido como o colar mais

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importante, que marca sua filiação à religião, e, como no candomblé, por ocasião da morte

acompanha o morto dentro do caixão.

O que marca uma diferença fundamental, no entanto, em relação ao candomblé é que

no tambor-de-mina o hungebe é dado ao fiel bem no início do ciclo iniciático por ocasião da

realização do bori e o acompanha, aumentando inclusive o número de pernas até chegar a sete

como os outros colares. O fato de ser um fio que se recebe logo no início da trajetória

religiosa significa que para os mineiros ele não tem esse caráter emblemático da senioridade

que tem no candomblé.

A expressão estética da maioridade ritual, por assim dizer, na mina definitivamente

não está ligada à posse de um colar específico como é o caso do hungebe no candomblé, ela

se dá, como se viu, ao longo do processo através do acréscimo no número de voltas dos

rosários.

No tambor-de-mina como na religião dos orixás, o hungebe tem de modo muito

destacado a propriedade conceder proteção, e disso decorre que ele é usado sempre e até

mesmo na vida cotidiana. Por tudo isso, se infere que no tambor-de-mina o caráter de

conceder proteção do hungebe é mais relevante do que a propriedade de distinguir aquele que

o possui.

"Ele é realmente pra acompanhar tudo, tudo, ele faz parte da nossa vida" (Pai Nilson de Navê).

De todo o modo, como no candomblé, a partir do momento em que se torna vodúnsi

gonjaí (equivalente ao grau de ebômi no candomblé) o fiel terá a liberdade de fazer para si

outros colares de materiais diversos, e as pedras são muito apreciadas pelos mineiros, mas

seus fios de contas nunca terão mais do que sete voltas. Nem tampouco ele poderá escolher

algum outro material que não as balizas, ou firmas, de louça, vidro, resina, pedra ou mesmo

corais para intercalar seus fios. Ou seja, o vodúnsi gonjaí tem liberdade para elaborar outros

colares mas não tem tanta liberdade para introduzir elementos diversos em seus colares

essenciais, por assim dizer.

Tudo o que foi dito até aqui diz respeito aos adeptos que entram em transe posto que,

como no candomblé, aqueles que não entram em transe têm também um modo diverso de

inserção na hierarquia do tambor-de-mina.

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Aqui igualmente os huntó (ogãs tocadores) e as vodúnsi poncilê, que correspondem às

equedes, são escolhidos pelos deuses e seu ciclo iniciático se cumpre com a iniciação a partir

da qual integram a categoria mais alta entre os iniciados e têm a prerrogativa de usar os

colares de sete voltas. É preciso ressaltar que até a iniciação, no entanto, os rosários de

rodantes e não-rodantes são iguais.

Os huntós, usam os colares atravessados sobre o peito. Isso tem uma razão de ordem

prática que é não atrapalhar enquanto tocam os tambores. Mas os vodúnsis rodantes somente

podem usar atravessados os fios dos voduns masculinos, quando atingem o grau de vodúnsi

gonjaí e ainda assim, conforme me foi dito, somente se o pai-de-santo assim o permitir.

No tambor-de-mina receber os envilacãs faz parte do rito público o que torna ainda

mais evidente o caráter de consagração que esse gesto tem. Assisti, em dezembro de 2003, a

uma festa de obrigação de três anos de um vodúnsi e confirmação de outros dois ogãs.

Um de cada vez, eles foram trazidos ao barracão sob o pano branco, símbolo da

criação e do nascimento, acompanhados por um casal de pessoas importantes no culto, os

"padrinhos" do iniciado. Atrás do grupo vinha dançando e sorrindo muito uma vodúnsi

poncilê carregando uma bandeja coberta com um belo pano de richelieu. Depois de dar a

volta no barracão, em frente ao poste central o ogã ajoelhou-se, a bandeja foi descoberta e lá

estavam todos os seus colares que lhe foram um a um colocados no pescoço por seu pai-de-

santo, cada um de seus dois padrinhos, e também pelo vodum da mãe pequena da casa. Foi

um momento forte, de muita emoção por parte do filho-de-santo e também da comunidade

que recebia aquele que agora definitivamente integrava o corpo dos sacerdotes da casa.

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2.

AXÓS: TRAJES DOS ADEPTOS

Em obra acadêmica pioneira sobre estética e moda no Brasil, Gilda de Mello e Souza

afirmou que

"a vestimenta é uma linguagem simbólica, um estratagema de que o homem sempre se serviu para tornar inteligíveis uma série de idéias como o estado emocional, as ocasiões sociais, a ocupação ou o nível do portador" (1987: 125).

Ainda que atualmente a enorme facilidade de comunicação torne possível um contato

amplo entre as pessoas, fazendo com que as fronteiras sociais expressas por meio das

vestimentas sejam mais tênues e fluidas, a vestimenta segue firme em seu posto de linguagem

simbólica.

Mesmo numa metrópole como São Paulo, em que tantas misturas culturais se

processam continuamente, grupos de pessoas com interesses comuns podem ser identificados

pelo modo como se vestem, e isso acontece também porque, como afirma Silvia Escorel

(2000: 02)

"O traje propicia a coesão do grupo social na medida em que constitui um código compartilhado. Pois a indumentária, como a linguagem, é um meio de comunicação, elemento fundamental para construção das relações sociais".

Ou seja, o traje também cria e fortalece os laços do grupo social e o ajuda a estabelecer

relações com o todo em que se encontra inserido.

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Nas diversas religiões, a vestimenta é uma linguagem simbólica importante para todo

o grupo religioso. Ainda que em muitas delas a participação não demande um traje especial

para todos os membros, há sempre um cuidado com o vestir para a participação nos ritos.

Um exemplo dos mais ilustrativos nesse sentido é o dos evangélicos tradicionais do

País inteiro; entre esses a saia abaixo dos joelhos e as roupas pouco decotadas para as

mulheres, e o terno e gravata para os homens acabaram se constituindo um traço distintivo da

pertença onde quer que estejam. Essa identidade evangélica sinalizada pelo modo de vestir se

mostra de modo muito marcante nas periferias em que o contraste com os trajes simples dos

outros moradores é forte e também porque é aí que essas igrejas têm maior presença. Os

evangélicos tradicionais indo para o culto estão sempre "bem vestidos" e isso também

expressaria a mudança de vida que a conversão significou para essas pessoas, que muitas

vezes são pobres e se sacrificam para terem essas poucas roupas vistosas.

Vigora também a idéia de que é preciso estar bonito para louvar a Deus, algo que em

parte se perdeu no catolicismo, que hoje ainda aparece quando se diz de alguém que esteja

bem vestido que está com a "roupa de domingo", uma referência ao fato de que antigamente

as pessoas vestiam suas melhores roupas para a missa de domingo, que além de

acontecimento religioso era social, oportunidade de ver e ser visto por todos.

No interior das religiões, os sacerdotes costumam ser distinguidos por seu traje, que

pode, inclusive, expressar posições hierárquicas no corpo sacerdotal, como é o caso do

catolicismo em que determinados paramentos são de uso exclusivo de bispos, outros de

cardeais, e assim por diante.

No candomblé todos os membros são sacerdotes em alguma medida. Embora cada um

precise ser iniciado por outra pessoa, uma vez tendo passado por esse ritual o fiel se

encarregará de cultuar seu orixá específico, assentado em seu altar particular. Embora haja

ocasiões em que rituais são oficiados por outros membros do culto, cada filho é o principal

sacerdote de seu orixá. Ademais a própria experiência do transe é um "contato não-

intermediado com o sagrado" (Goldman, 1987: 88).

Nessa religião, participação demanda, sim, um traje específico, tanto para a vivência

religiosa cotidiana no terreiro quanto para o ritual público, que é a festa. Essa é, aliás, a

ocasião em que a linguagem simbólica da vestimenta se manifesta plenamente.

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As roupas e acessórios do povo-de-santo compõem um código complexo e rico, que

bebe em fontes de inspiração diversas e em que formas e cores concorrem para uma beleza

exuberante e particular. Nessa religião em que o rito é o mais importante e a religiosidade é

vivida e expressada com muita ênfase pela exterioridade, de tal modo que por vezes a forma

acaba embotando o conteúdo (cf. Prandi, 2005: 151).

Todo o vestuário do candomblé tem como referências essenciais a África, de um modo

bastante abrangente porque sabe-se que os escravos trazidos para o Brasil vieram de diversos

lugares do continente africano; o período da escravidão, dadas as condições em que a religião

dos orixás se formou ainda sob o regime escravista, e a moda feminina européia do século

XVIII que era divulgada no Brasil por meio de revistas e mesmo das pessoas que vinham de

suas estadias no velho continente. Essa era uma época em que quase tudo de que se precisava

vinha da Europa e junto um modo de vida e de vestir também, que por sinal, era muito pouco

adaptado ao clima dos trópicos, feito preponderantemente de tecidos grossos e quentes tudo

muito requintado e torturante para as mulheres e homens elegantes da época.

Ao longo do tempo muitas transformações se impuseram ao candomblé, mudanças

devidas ao processo de modernização da sociedade, às inovações tecnológicas, e também

decorrentes de sua universalização, uma vez que desde a década de 1960, com sua chegada a

São Paulo, essa não é mais uma religião somente de negros (Prandi, 1991). Muitos elementos

foram incorporados à estética plástica da religião, no entanto, pode-se dizer que é a partir da

combinação dessas referências citadas que o vestuário das casas-de-santo é composto ainda

hoje.

A moda no candomblé tem um limite bem delimitado, mudanças podem ser

introduzidas no que concerne aos detalhes, aos materiais utilizados mas muito raramente

mudanças estruturais. Em se tratando da forma, não se pode inovar tanto. Até mesmo porque

essa é uma religião que logrou se reproduzir mantendo-se fiel às suas origens; seus trajes não

se modificaram no que diz respeito à forma porque isso seria incorrer no risco de

descaracterização.

De todo modo, elementos se combinam e se sobrepõem, e inovações periféricas são

sempre buscadas — muito de acordo com a lógica da moda, por sinal (Lipovetsky, 1989) —,

nessa que é uma religião brasileira de matriz africana; o que implica dizer que o candomblé

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como tal não existe, nem nunca existiu na África mas surgiu no Brasil sob condições

históricas específicas que fizeram dele uma religião única.

Há no candomblé uma distinção importante no que diz respeito às vestes dos adeptos

que é entre a roupa de festa e o vestuário do dia-a-dia da função religiosa, essa distinção é

muito marcante e me leva a tratar esses "guarda-roupas" separadamente.

2.1. O traje do dia-a-dia

O candomblé é uma religião em que se trabalha intensamente. Muito tempo e esforço

se gasta na preparação e execução dos diversos ritos. Por ocasião de um rito de iniciação, por

exemplo, o fiel passa dias recolhido no terreiro completamente dedicado a seu processo de

renascimento, que é o grande significado da iniciação, e durante esse período é

completamente dependente das pessoas que estão do lado de fora. São essas pessoas que o

alimentam, cuidam de suas roupas e atendem suas mais diversas necessidades.

Tudo isso gera uma série de tarefas que envolvem sempre mais de uma pessoa,

embora exista a chamada mãe criadeira, ou pai criador, que é o iniciado que se encarrega mais

diretamente do cuidado com o iaô que está passando pela iniciação.

Mas, para além disso, o rito de iniciação é feito de uma série de ritos menores quase

diários, para os quais são sempre necessários folhas, comidas, banhos, cantos, danças,

orações, numa série de atividades que envolvem toda a comunidade. Há muito que se apanhar

folhas, cozinhar, limpar, costurar, passar, polir, engomar, bordar, tecer e enfiar contas, e tudo

isso implica disponibilidade e paciência.

O noviço precisa aprender a louvar as divindades corretamente, a cantar e dançar.

Precisa ser socializado no complexo código de etiqueta da religião, necessita saber qual é seu

lugar na comunidade e como deve se dirigir a cada um, deve saber também quais são seus

tabus pessoais, os de sua divindade e aqueles que devem ser seguidos por todos da casa,

precisa, enfim, aprender a "ser do santo" e nesses caminhos necessita sempre ser guiado,

ajudado.

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Um terreiro de candomblé nunca pára de funcionar. Há sempre movimento de clientes

e filhos que acorrem para o jogo de búzios e rituais necessários. Fiéis que eventualmente não

moram na mesma cidade e vêm periodicamente alimentar e cuidar de seus orixás. Filhos-de-

santo passando por rituais e ebós, gente que vem "só para tomar a bênção" do pai ou mãe-de-

santo, arrumar alguma coisa, contribuir de algum modo para a manutenção do templo.

Por tudo isso essa é uma religião que exige participação efetiva dos adeptos, não existe

"filho-de-santo nominal". A adesão ao candomblé obriga o devoto a, dentro de suas

possibilidades ou mesmo para além delas muitas vezes, estar a serviço e participando

efetivamente das muitas tarefas sagradas ou não de que o grupo necessita. Não há outro modo

de inserção e aprendizado aqui que não seja via convivência e observação.

Essa vivência cotidiana menos visível e talvez mais intensa da religião tem um

vestuário próprio. É a chamada roupa de ração. Não se sabe exatamente porque a roupa do

dia-a-dia recebe esse nome, Raul Lody afirma que "o nome roupa de ração vem de roupa que

come, que recebe obrigações durante diferentes rituais religiosos" (Lody, 2003a: 05). Isso se

relaciona ao fato de essa roupa ser mesmo de algum modo "alimentada" pelo sangue dos

animais sacrificados que por vezes impregna a roupa de ração durante os rituais. De todo

modo, o fato é que ela é efetivamente uma roupa de trabalho. E ração significa também roupa

que trabalha, e trabalho duro.

A chegada do filho-de-santo ao terreiro é cercada de cuidados, implicados

essencialmente na limpeza que é efetiva, limpeza do corpo, e também ritual. É preciso deixar

para trás a poeira do mundo profano para adentrar o espaço sagrado, e todo o espaço

intramuros do terreiro é em alguma medida espaço sagrado. De modo que a primeira coisa

que se faz ao chegar ao templo, antes mesmo de cumprimentar as pessoas, é tomar banho e

trocar de roupa. Quando, por alguma razão, não é possível tomar banho, ainda assim

necessariamente se trocará de roupa.

A roupa de ração coloca todos na condição de filhos-de-santo. Ao despir-se de sua

roupa civil e vestir a roupa de ração, o indivíduo deixa de certo modo sua vida do lado de fora

do terreiro. Aqui não há mais o publicitário, nem a doméstica, não há mais distinção entre

aquele que chegou a pé e o que estacionou seu carro importado. Todos são filhos-de-santo

com direitos e deveres, que vivem, é certo, sob a rígida hierarquia religiosa que lhes dita

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inclusive que tarefas devem cumprir, e invariavelmente todos devem colaborar com seu

trabalho para a manutenção do grupo.

Quem não trabalha não colabora de alguma forma e, portanto, está sempre com a

roupa limpinha não é bem visto pelos outros, que certamente tecerão comentários implacáveis

e lançarão olhares atravessados àquele que não se enquadra. É certo que se o fiel que não

ajuda, que não "põe a mão na massa" como diz o povo-de-santo, fizer parte da alta hierarquia

do terreiro, ou tiver laços de amizade ou consangüinidade com o pai ou mãe-de-santo, as

críticas que lhe serão endereçadas serão tanto mais veladas, e talvez até mesmo mais brandas,

mas não deixarão de existir.

Igualmente não se pode ignorar que existem pessoas de estratos superiores,

especialmente mulheres, menos afeitas ao trabalho doméstico, e que com freqüência se furtam

à maioria das tarefas. O modo como o grupo lida com isso depende certamente da posição que

essa pessoa ocupa religiosamente, e das relações que estabelece com os demais. Mas

inevitavelmente as mulheres que se sentirem prejudicadas por essa postura falarão mal

daquela que não coopera. Ela sempre será vista e falada como a "dondoca", a "folgada". Esse

tipo de situação é tanto mais comum entre as mulheres porque elas são a maioria nos terreiros

e porque, como mostrou Patrícia Birman (1995), a elas cabe a extenuante tarefa de

manutenção e reprodução física do terreiro enquanto espaço doméstico, da família-de-santo.

Falar mal do outro, de um modo muito geral, como mostrou Vallado (2003), faz parte

da sociabilidade e da disputa por poder inerente às famílias-de-santo.

"É grande o poder da intriga no candomblé. Fofocas, mexericos e disse-que-disse ocorrem nos terreiros como mecanismo de controle social muito freqüente. Transformam os fatos, polemizam ações, criam reações e disputas baseadas principalmente no imaginário impregnado de informações distorcidas e às vezes maldosas, que até mesmo contêm um princípio verdadeiro. Para temperar os fatos costuma-se transformá-los" (Vallado, 2003:40).

Certa vez, vi um pai-de-santo durante um rápido intervalo no meio de um dia de rituais

intensos e muito trabalho virar para um pequeno grupo de filhas-de-santo, das mais ativas, e

orientá-las em alto e bom som de que quem deveria agora trabalhar eram aqueles que se

encontravam "branquinhos", porque "onde já se viu, com tanto trabalho por fazer essa gente

não sujou um milímetro da roupa ainda?!"

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Estar com a roupa de ração muito suja do sangue sacrificial, de azeite de dendê, de

terra, das folhas, enfim, é como que o emblema da participação. Significa que aquela pessoa

efetivamente trabalhou e portanto partilhou do axé dos rituais.

A despeito de não existir uma relação direta entre a quantidade de trabalho realizada e

o nível de sujeira da roupa, é como se assim fazendo questão de não permanecerem

"branquinhos", os fiéis provassem sua imensa fé nos orixás, mostrassem o quanto eles

trabalham, como são importantes para o grupo. Ao final do dia, sempre dão um jeito de

comentar com os irmãos-de-santo, e de preferência perto do pai ou mãe-de-santo, para que

eles se dêem conta disso, "olha que cor está minha roupa!", para só então se trocarem.

É certo que padrões de higiene e assepsia são cultural e socialmente construídos e,

portanto, dependem de fatores como educação e estrato social de origem, além de mudarem

ao longo do tempo. O que era considerada uma rua limpa, por exemplo, há cem anos atrás

certamente não o seria hoje, dado o avanço do saneamento básico nas cidades do País. É,

portanto, significativo que as pessoas valorizem o fato de estarem com a roupa suja, numa

sociedade que tem a higiene como um valor fortemente relacionado à saúde inclusive.

Isso se relaciona ao fato de que essa não é uma sujeira qualquer, mas um "impuro

sagrado". Como mostrou Mary Douglas (1976), o impuro também pode ser sagrado nas

religiões primitivas. Assim, por exemplo, um orixá que comeu, que recebeu sacrifício de

animais em seu assentamento, que é sua representação material, será depois de certo tempo

lavado, numa cerimônia chamada ossé, mas não deve nunca ser completamente limpo, porque

ao menos um pouquinho do sangue sacrificial deve permanecer sempre: esse é um sinal de

que essa divindade comeu, que ela foi alimentada, cultuada e portanto tem força, tem axé.

Igualmente do assentamento de Exu, que se encontra sempre na entrada dos terreiros, quase

nunca se vêem os ferros posto que esse está sempre completamente coberto por camadas das

sucessivas libações e sacrifícios que lhe são oferecidos.

A sujeira da roupa de ração tem uma dimensão sagrada, confere sacralidade à veste, o

que não impede que existam pessoas que, embora trabalhem muito, tomem cuidado para não

se sujarem e quando isso acontece procurem sempre ter outra roupa para trocar.

Mas de fato, a roupa de ração nunca está completamente limpa porque há sempre

manchas que não se consegue remover, e essas manchas contam do axé partilhado, da história

e a trajetória de cada um dentro da religião.

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Uma vez, conversando na cozinha com as filhas-de-santo, uma delas, uma mulher

muito exuberante e participativa, virou-se e me contou que determinada mancha de azeite de

dendê em sua saia tinha sido feita na iniciação de um rapaz, filho de Xangô, ocasião em que

se tinha trabalhado bastante, mas isso que fora muito importante pois era um novo filho para a

casa, e "os orixás tinham ficado felizes e tido uma bela festa". E ao dizer tudo isso, havia

brilho no olhar, orgulho dela que lá esteve, participando, dando de si e recebendo a força

sagrada dos deuses.

Diferente dos colares e do traje de festa, na roupa de ração não há tantas diferenças

que marquem a hierarquia religiosa, exceto alguns detalhes e, evidentemente, a mãe ou pai-

de-santo que podem mesmo no dia-a-dia trajar roupas bastante elaboradas. De um modo geral,

os filhos-de-santo todos, de acordo com seu gênero, se vestem de modo parecido.

São trajes sempre confortáveis, que não devem limitar os movimentos, uma vez que

mesmo uma simples saudação ao pai ou mãe-de-santo requer, para os iaôs pelo menos, que se

deite no chão. Essa saudação típica se chama dobale, que é a saudação feita pelos filhos de

orixás masculinos, cuja uma forma possível é deitar de bruços no chão com os braços

estendidos ao longo do corpo; ou icá, que é como se chama a saudação feita por filhos de

orixás femininos, em que também se deita no chão de bruços podendo antes se virar para a

direita levando a mão a altura dos rins e em seguida fazer-se o mesmo para a esquerda.

Dobale e icá podem ou não ser acompanhados por uma série de palmas ritmadas em 3-7-3-7-

3-7, chamada paó.

A roupa de ração costuma ser de algodão, ou algum outro tecido barato e fácil de lavar

e passar. Antigamente, e mesmo hoje em alguns lugares, costuma-se chamar genericamente

de morim um tecido de algodão fino e rústico com o qual essas roupas são feitas.

Elas podem ser coloridas, inteiras brancas ou mesclar peças brancas e coloridas. Pode

ter sido confeccionada já como roupa de ração ou ser uma roupa, ou apenas uma peça como

uma saia, por exemplo, que tenha sido bastante usada como traje de festa e assuma um novo

uso como roupa de ração, o que é bastante comum.

Na sociedade diversas peças do vestuário há muito tempo não pertencem a um gênero

exclusivamente. Embora existam variações óbvias entre paletós masculinos e femininos, por

exemplo, trata-se da mesma peça, que tem essencialmente a mesma forma e serve a ambos os

sexos. No candomblé que é uma religião tradicional, cuja origem remonta a meados do século

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XVIII, a distinção de gênero no que diz respeito ao vestuário permanece muito marcada.

Nesse sentido o vestuário difere bastante dos colares que são iguais para homens e mulheres,

as roupas pelo contrário, tanto as de ração quanto de festa são bastante diferentes para ambos.

Aos homens, tanto na festa como no dia-a-dia, cabem trajes com menor número de

peças e com menos detalhes. Assim sua roupa de ração costuma se constituir simplesmente de

camiseta e calça de algodão na altura do tornozelo ou um pouco mais curta, com um cordão

para amarrar na cintura. Podem também usar torços atados à cabeça quando o rito assim o

prescrever, ou, quando o preferirem, um pequeno gorro africano chamado filá. Ao invés de

camiseta, ou camisa, também podem vestir uma bata mais larga e leve, chamada antigamente

de camisolão, que não é tão prática quanto as camisetas, mas é mais confortável no verão.

Há também duas peças estruturalmente iguais, cujo uso é permitido a ambos os

gêneros, que se veste tanto no dia-a-dia quanto na festa: o abadá e o cafetã. Ambas são

túnicas longas, chegando próximo aos tornozelos, bem amplas, de origem árabe. A diferença

está em que quando é bordada em torno do decote e nas barras, e em geral é assim quando se

destina ao uso na festa, chama-se cafetã, caso contrário é o abadá.

Para o uso cotidiano costuma ser de tecido simples e sem bordados, o abadá. Ambas

são peças versáteis muito apreciadas pelo povo-de-santo: são práticas e bonitas, e embora

originalmente sejam peças para serem usadas somente com uma calça ou calçolão, na festa

um ebômi que esteja vestindo um cafetã pode, se quiser, amarrar um ojá na cintura que serve

para segurar os ilequês.

As roupas do candomblé não ficaram imunes à modernização da indústria têxtil. Nos

primórdios da religião predominava o algodão, e mesmo um algodão bastante grosso e

rústico, herança da escravidão, como mostra Verger:

"Usavam os 'ganhadores' ou trabalhadores do 'canto', no serviço diário, vestimenta de pano de algodão grosso de saco de farinha de trigo, ou de sacos de aniagem (tecido de juta usado em sacaria, servindo especialmente naquele tempo para enfardamento de xarque" (1981: 220).

Esses tempos se foram, e atualmente é comum o uso de tecidos e materiais sintéticos,

mais práticos e baratos, e também de peças compradas prontas que substituíram há muito, em

razão da produção em escala e os custos mais baixos, as roupas feitas artesanalmente.

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Embora as peças prontas tenham ganhado espaço por diversas razões, os tecidos

tenham se modificado, a roupa de ração ainda mantêm a forma, a estrutura das roupas dos

escravos tal como se vê registrada na iconografia da época.

Uma coisa muito importante é que as roupas do candomblé tanto de ração quanto de

festa, são roupas inconsúteis. São roupas de amarrar, verdadeiras composições de panos, axós,

de modo que nunca, ou muito raramente, se vêem botões, zíperes, colchetes, velcro ou coisa

parecida nessas vestes.

As saias, por exemplo, têm um cordão ao invés de elástico na cintura, isso garante que

fiquem bem presas e não caiam por mais que se dance ou que alguém inadvertidamente pise

nela prendendo-a, o que é algo muito interessante e recorrente, faz dela uma peça que pode

sempre ser compartilhada, intercambiada.

Inúmeras vezes vi mulheres que foram ao terreiro como convidadas sem terem uma

roupa ritual para vestir e que, tendo sido convidadas a participarem do xirê por alguma razão,

foram vestidas com as roupas emprestadas de outras mulheres. Sempre há uma saia, um pano-

da-costa, um ojá ori a mais que se pode emprestar e que, como são roupas de amarrar, servem

a outra pessoa. Esse é um traço africano nas roupas do candomblé que o tempo e a

modernização não alteraram em nada.

No dia-a-dia da religião as mulheres costumam vestir saia comprida rodada sem

armação, em geral com pelo menos uma renda simples aplicada na barra, ou mesmo um

babado do mesmo tecido, e, na parte de cima: camisu que é como se chama uma blusa bem

simples, sem colarinho ou qualquer tipo de gola; camiseta mesmo ou ainda um zinguê. Essa é

uma peça que consiste em uma tira de tecido retangular, cuja largura cobre somente o tórax da

pessoa e o comprimento deve ser o suficiente para dar uma volta e meia em seu tronco, esse

retângulo de tamanho variável tem nas quatro pontas longas tirinhas do mesmo tecido; para

vestir cruza-se as pontas do retângulo na frente, ou atrás, e amarra-se as pontas arrematando

com um laço. Embora no cotidiano essa peça seja mais usada pelas mulheres, em períodos de

obrigação os homens também podem vesti-la.

Em dias de muito trabalho e calor nos terreiros de São Paulo, pode-se ver as filhas-de-

santo vestindo apenas uma saia comprida presa acima do busto, ao invés da cintura, e uma

calça curta, um calçolão de algodão ou mesmo uma bermuda dispensando assim o uso de

outras peças. O uso de calças por baixo das saias é comum tanto por causa da temperatura,

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como por questões práticas, uma vez que todos os rituais dessa religião implicam em

movimentos de abaixar, levantar, ajoelhar, dançar com passos rápidos muitas vezes, e a roupa

não pode impedir ou dificultar essa coreografia cotidiana.

Ademais, homens e mulheres podem usar torço. O torço, ou turbante, é uma peça

muito importante do vestuário afro-brasileiro de origem árabe, como muitas outras do

vestuário africano e afro-brasileiro, que originalmente tinha a função de proteger a cabeça do

sol.

Torço, turbante, ojá ori

O torço, ou turbante, ou ojá ori, literalmente pano da cabeça, consiste em um pedaço

de tecido cuja largura varia de trinta a cinqüenta centímetros aproximadamente, e o

comprimento é a partir de um metro e meio podendo chegar a até três metros. Os tipos de

tecido variam muito e vão desde o algodão branco mais simples, ao richelieu mais elaborado,

passando por tecidos com fios brilhantes, feitos artesanalmente, ou mesmo pintados à mão.

"Atribui-se o nome (richelieu) a um tipo de renda-bordado em virtude do uso freqüente nos paramentos de Armand-Jean Du Plessis, cardeal e duque de Richelieu. Na iconografia desse religioso e nobre destacam-se as alvas (vestes talares) em rendas e bordados elaboradíssimas. O tipo de peça usado em pleno período do renascimento marca a nobreza e o clero, que, segundo determinava a moda, usavam golas, punhos, barrados, adereços diversos, geralmente em tecido branco ricamente trabalhado, evocando poder e suntuosidade. O uso do richelieu nos terreiros funciona como um indicador de luxo e riqueza de suas cerimônias festivas" (Lody, 1995a: 5).

O richelieu é mesmo muito apreciado pelo povo-de-santo que o utiliza sempre que

pode, ao menos em uma peça da roupa ou num detalhe como a barra de uma calça. Ele é feito

de um tecido de algodão relativamente encorpado sobre o qual se aplica todo tipo de desenho

e esse tecido então é recortado e bordado em torno dos recortes, e de resto também onde não

há recortes, depois é lavado, engomado e passado.

Quanto melhor a qualidade do tecido e mais intrincados forem os desenhos e recortes

mais caro será o richelieu. O tipo mais comum é o branco, mas há coloridos e também os

brancos ou coloridos bordados com fios brilhantes em dourado ou prateado.

Os usos do turbante são muitos, como afirma Silvia Escorel:

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"O uso do turbante deve ser lido como um signo polissêmico, pois se para a aristocracia portuguesa era identificado com a condição de servidão, no antigo Oriente Médio envolver a cabeça com um pano com uma ponta pendente era sinal de distinção" (2000: 30).

Como signo polissêmico, o turbante foi reinterpretado no Brasil, seu uso extrapola os

muros dos terreiros e pode ser visto em diversos formatos e modos de amarrar em

manifestações culturais de origem afro tão plurais como nas baianas do maracatu em

Pernambuco ou em certos grupos de congadeiros em Minas Gerais (Lody, 2003: 284), além

dos blocos afro, como, por exemplo, o soteropolitano Ilê Ayiê.

O Ilê Ayiê, bem como outras entidades ligadas de algum modo ao movimento negro,

promove com relativa freqüência oficinas de torços, onde são ensinados os diferentes tipos de

amarração que se pode fazer nessa peça em tese muito simples, cujo sentido de africanidade é

tão profundo.

No vestuário do candomblé o turbante é muito importante. Embora as mulheres o

usem com mais freqüência os homens também o fazem. Há rituais em quem todos, sem

exceção, devem cobrir a cabeça, como é o caso do rito fúnebre, o axexê, ou quando há algum

tipo de ritual relacionado à morte. Nesses casos, o turbante visa proteger a cabeça, o ori,

daquele que o carrega, uma vez que a morte deve ser sempre afastada no candomblé; dentro

de um terreiro se evita até mesmo pronunciar a palavra morte ou mesmo conjugar o verbo

morrer, tamanha é a aversão.

É muito comum que sacerdotes e sacerdotisas, pessoas da alta hierarquia, usem seus

torços maiores e mais elaborados em aparições públicas, e nesse caso essa peça ajuda a

compor e expressar essa identidade afro-descendente.

Além de fornecer proteção contra o sol, é preciso lembrar que o torço amarrado em

forma de rodilha era um aliado do hábito de carregar as coisas sobre a cabeça, no caso das

ganhadeiras, o tabuleiro com os quitutes, e dos homens negros que, desempenhando sempre

trabalhos difíceis, também carregavam latas, potes e diferentes pacotes sobre a cabeça.

Igualmente no dia-a-dia do candomblé, para além das funções rituais, o torço também

é utilitário, ele mantém os cabelos presos, o que aliás remete a um período em que essa era

uma religião de negros e negras que muitas vezes queriam esconder o seu "cabelo ruim" por

debaixo não só dos turbantes, como dos filás, barretes etc. Essa atitude de esconder o cabelo

por parte dos negros é fruto do "desprezo pelo cabelo dos negros (que) foi cantado em prosa e

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verso constituindo uma das mais bem sucedidas estratégias de dominação da raça dita branca

para submeter os afro-descendentes" (Escorel, 2000: 27).

De todo o modo, se já vai longe o tempo em que as mulheres negras do candomblé

queriam esconder suas "carapinhas" sob os turbantes, ainda hoje elas, sejam negras ou não, se

preocupam muito em arranjar com graça essa peça sobre suas cabeças, seus oris.

Os turbantes podem ser brancos, coloridos, listrados, estampados, terem rendas de

algodão, sintéticas ou de bilro; fitas, franjas, bordados ou mesmo crochê nas pontas.

Os modos de arranjar o turbante variam de acordo com a ocasião e com o portador.

"No Brasil, as diferentes formas de se amarrar um turbante podem corresponder a diferentes etnias e grupos de procedência, bem como a hierarquia dentro da organização religiosa afro-brasileira" (idem: 30).

Quando usado como parte da roupa de ração, o torço não é engomado, é pouco

enfeitado em geral tendo apenas rendas ou bordados estreitos nas pontas, ou ainda

completamente liso e é simplesmente amarrado bem preso à cabeça para todos os fiéis, iaôs e

ebômis. Bem diferente do traje de festa em que a hierarquia se manifesta também no modo de

amarrar o torço.

No traje de baiana, que é o típico traje de festa das mulheres do candomblé, o ojá ori

tem os mesmos usos da roupa de ração, mas há uma diferença quanto a forma. O torço da

roupa de festa costuma ser bem comprido e engomado o que dificulta bastante sua amarração

e ajuste na cabeça, e aqui surge o que se convencionou chamar de torço de "orelhinha".

Sílvia Escorel assinala que o torço usado com uma ponta pendente era sinal de

distinção no Oriente Médio. No candomblé as pontas do turbante não ficam pendentes porque

o ojá ori usado nas festas costuma ser engomado, os turbantes são arranjados de forma que

suas pontas ficam levantadas, são as "orelhas", ou "borboletas" quando as duas pontas ficam

para cima, e somente filhos de orixás femininos usam o torço desse modo, parece uma

referência à feminilidade das deusas. A borboleta é, aliás, um dos símbolos de Iansã.

Filhos de orixás masculinos usam apenas uma ponta do torço levantada. De todo

modo, somente ebômis, ogãs e equedes podem usar o torço dessa forma, com as abas, porque

esse é um sinal importante da senioridade, de distinção.

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Pano-da-costa

No uso cotidiano, e também na festa, as mulheres têm ainda uma outra peça muito

significativa que é o pano-da-costa. Não são todas as casas que adotam o pano-da-costa como

parte da roupa de ração, deixando essa peça para ser usada somente na festa, em casas

tradicionais baianas como o Axé Opô Afonjá, no entanto, ele é peça obrigatória mesmo no

dia-a-dia.

Muito já se escreveu acerca dessa peça, seus significados e usos (Lody, 1977, 1995,

2003, Santos, 1995). Retomo aqui em parte esses escritos a fim de localizar essa peça de suma

importância ritual que aparece tanto no cotidiano quanto no traje de festa.

O pano-da-costa é uma peça muito importante do vestuário feminino no candomblé,

como evidencia a fala de Mãe Stella do Axé Opô Afonjá, um dos candomblés mais antigos e

importantes do Brasil, em um livro em que a ialorixá se dirige à comunidade daquele terreiro:

"o pano-da-costa é a peça de maior significado para uma iniciada, a qual deverá saber usá-la

conforme a ocasião" (Santos, 1995: 44). Ainda Mãe Stella:

"O pano-da-costa é a peça feminina de maior significado histórico. Em conjunto com o torço, faz parte do vestuário da africana, sobrevivência da terra mater, já que a saia, camisu e anáguas são heranças européias, de séculos passados" (idem: 46).

O pano-da-costa é uma peça que na África tem um caráter utilitário, quando ele é

usado para carregar crianças às costas é denominado bamburro "do termo mandinga, 'trazer

ao dorso'" (Escorel, 2000: 133) e que aqui ganhou conotação sagrada. O pano recebe esse

nome por ser um tipo de tecido vindo da Costa dos Escravos.

Originalmente era um pano de tecido de algodão grosso confeccionado pela junção de,

em média, seis tiras compridas medindo aproximadamente 15cm de largura, listrado ou em

padronagem madras tecidas artesanalmente em tear, assim era na África e também no

Nordeste brasileiro. Segundo Escorel (idem: 54)

"Supõe-se que os criadores desses panos de vestir tenham sido os povos mandinga e fula, embora haja também notícias de grandes tecelões entre os jalofos, soninkés, biafares e sossos" e também "quem distribuía os panos eram os mercadores ambulantes ditos djilas, também em sua maioria do grupo mandinga".

No Brasil tem-se notícia de que até a década de 1970 havia um artesão na Bahia que

ainda confeccionava panos-da-costa do modo tradicional (Lody, 1977, 1995). Mestre Abdias

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do Sacramento Nobre, falecido em agosto de 1994 então com oitenta e três anos chegou a

ensinar o ofício à filha, que não logrou muito sucesso.

De toda maneira, e embora as peças artesanais sejam sempre muito valorizadas, até

porque são únicas e exclusivas, é fato que com o avanço da indústria têxtil o pano-da-costa

ganhou modernos tecidos, cores e texturas, apliques, rendas e bordados mas seu uso no

entanto permanece ao longo do tempo.

Um pano-da-costa mede aproximadamente três metros de comprimento por noventa

centímetros de largura. Quando compõe a roupa de ração das iaôs aparece atado ao peito. Em

se tratando de uma ebômi, ou uma equede, pode ser preso na cintura. Há ainda um outro modo

de usar o pano-da-costa que só é permitido a mães e pais-de-santo, ebômis e equedes e ainda a

homens importantes no culto: dobrado sobre o ombro. Esse é o uso comum quando não se

está trabalhando, mas numa festa ou a passeio.

A primeira peça de roupa usada na chegada do orixá no transe é o pano-da-costa.

Quando um orixá toma o corpo de um fiel em um momento qualquer do rito, equedes,

prioritariamente, mas na falta dessas um ebômi ou mesmo um iaô, se encarregam de

imediatamente amarrar o pano-da-costa no orixá ali presente. Se o fiel em transe é um homem

que não está portando pano-da-costa haverá que se providenciar um para poder "amarrar" o

orixá. Há duas maneiras se amarrar: se a divindade for feminina o pano é atado ao peito e,

quando possível, arrematado com um laço, que pode ser para frente ou para trás; se a

divindade é masculina, é amarrado a tiracolo sobre o ombro.

O pano-da-costa é a peça de maior significado litúrgico da roupa dos adeptos, é com

ele que muitas vezes, na falta de um outro pano, se pode secar o suor do rosto dos sacerdotes

em transe, algo muito sagrado, uma vez que é o deus que cavalga aquele corpo. Além do

mais, ele também tem um caráter protetor, sobretudo para as iaôs que ainda não completaram

seu processo iniciático.

Diversas vezes vi as filhas-de-santo correrem e desamarrarem seus panos-da-costa

rápida e desajeitadamente a fim de cobrir alguém da assistência que, por alguma razão, caiu

em transe bruto subitamente, no chamado "bolar no santo", ou mesmo para envolver algum

convidado que, tendo ido abraçar um orixá, estivesse vestindo cores que aquele orixá não

suporta, como é o caso do preto e vermelho para Oxalá e Iemanjá, por exemplo.

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O pano-da-costa também pode servir para forrar uma cadeira para que alguém

importante se sente, para desvirar um orixá em transe, ou até mesmo para aparar pipocas que

Omulu joga sobre os filhos em seu ritual de saúde, o olubajé.

2.2. O traje de festa

Grande parte dos ritos do candomblé acontece longe dos olhos dos não iniciados, e há

inclusive ritos do qual sequer tomam parte os iniciados há pouco tempo, os iaôs. Mas há um

grande momento ritual a que todos, inclusive pessoas não iniciadas têm acesso, a festa

pública, ocasião em que por algum tempo os orixás vêm à Terra na cabeça de seus filhos para

dançarem e serem homenageados.

Como diz Rita Amaral, "a própria vida dentro do terreiro pode ser pensada como a

permanente produção da próxima festa" (Amaral, 2002: 29 grifo da autora) isso acontece

porque "a estrutura religiosa, iniciática leva a isso" (idem, 29). O processo iniciático de um

adepto, da categoria dos que entram em transe, somente se completa com o cumprimento das

obrigações de um, três, cinco e sete anos. Esses momentos são marcados pela festa.

Há uma festa muito importante que se dá por ocasião da iniciação de um novo adepto.

Ao término do período de reclusão em que passou por diversos preceitos, teve seu orixá

fixado em sua cabeça para que possa recebê-lo em transe, a chamada feitura, o iniciado é

apresentado publicamente como iaô. Essa festa é chamada "saída de nome", quando o orixá

diz o seu nome, e isso é algo muito importante porque significa que aquela divindade

efetivamente existe e ocupa o seu espaço naquele terreiro.

Em cada uma das outras obrigações, de um, três e cinco anos, o fiel passa por rituais e

preceitos, mas é a obrigação de sete anos que sinaliza a grande passagem, a mudança de

condição daquele que deixa de ser iaô e passa a ser um ebômi, literalmente um "irmão mais

velho", com todos os direitos e deveres que essa nova condição implica. Esse momento é

marcado sempre por uma grande festa.

Depois se poderá fazer festas por ocasião das obrigações que são múltiplos de sete:

quatorze e vinte um. O povo-de-santo também costuma comemorar vinte e cinco anos de

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iniciação, e assim por diante, mas aí são comemorações e não mais a iniciação se

completando.

Os terreiros têm calendários próprios para seu ciclo de festas que incluem sempre

celebrações para os orixás importantes para a casa, além daquelas que acontecem por ocasião

de iniciações e grandes obrigações. Há um calendário anual que geralmente se organiza de

acordo com as datas de celebração dos santos católicos, sem dúvida herança dos tempos da

escravidão, quando os sincretismos se forjaram.

Em janeiro é comum realizarem-se as festas para Oxóssi. Em fevereiro, antes da

Quaresma, ou em abril por causa de São Jorge, ou ainda em junho por causa de Santo

Antônio, Ogum. No início da quaresma, encerrando as atividades do terreiro ate a páscoa,

Oxaguiã. Em junho são muito recorrentes as festas de Xangô, por causa dos sincretismos com

São João e São Pedro. Depois, em agosto os muitos olubajés que é como é chamada a festa de

Omulu o deus da varíola e da saúde, sincretizado com São Lázaro e São Roque. Em setembro

as festas para os erês, as entidades infantis, por causa de São Cosme e São Damião,

celebrados em 27 de setembro. As deusas, aiabás, costumam ganhar uma festa para si em

dezembro devido ao sincretismos com as invocações de Nossa Senhora, mas essa é uma festa

móvel que pode ocorrer em qualquer outra época do ano. Por fim, em setembro ou dezembro

as águas de Oxalá, encerrando o ano ritual (Amaral, 2002: 33).

Tantas festas demandam muito trabalho, esforço e dinheiro. Para sua realização todos

os filhos são mobilizados. Há muito que fazer desde a perfeita execução dos rituais que

antecedem cada festa, até a limpeza e arrumação da casa, a confecção de roupas para homens

e deuses, a preparação das comidas que são servidas no ajeum, o banquete, depois da festa.

Aquelas pessoas que são amigas da casa, que freqüentam o terreiro sem ter um compromisso

efetivo também são chamadas a ajudar e com freqüência o fazem de bom grado, mesmo

porque colaborar para que a festa dos deuses aconteça é também partilhar de seu axé,

candidatar-se a receber suas bênçãos.

Na sociedade e também no candomblé a festa é um momento de realização e prazer, é

ocasião para se mostrar o que há de melhor e não se mede esforços para que tudo seja

harmonioso. Como me disse um pai-de-santo quando se começa a preparar a próxima festa, a

primeira pergunta que ouve de suas filhas-de-santo é "e que roupa nós vamos vestir?".

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Diz Gilda de Melo e Souza que a festa é uma oportunidade em que a moda, em

especial o vestuário, se manifesta em plenitude e de modo nítido (Souza, 1987), e nesse

sentido é também espaço aberto para a criatividade e, de certa forma, a realização de fantasias

e desejos contidos no cotidiano. Nas palavras de Pierre Verger:

"O candomblé é uma religião de exaltação da personalidade. Ela faz com que as pessoas se sintam honradas. Uma vendedora de acarajé tem prestígio. Compra-se dela com muito respeito porque ela é filha de Oxum, de uma deusa, porque sua deusa baila bem. A gente não se sente humilhado" (Entrevista concedida a Goulart de Andrade em 16/11/1990, apud, Amaral 2002: 47).

Na religião dos orixás todos descendem dos deuses e, não são todos iguais, posto que

herdam de seus "pais" míticos virtudes e defeitos também; e os orixás têm muitas histórias,

conhecidas pelo povo-de-santo através dos mitos que são contados e recontados nos terreiros

desde os tempos da fundação do candomblé (Prandi, 1991). Há também uma vasta literatura

em que os mitos afro-brasileiros estão presentes, com a qual parte expressiva dos fiéis,

especialmente em São Paulo, entra em contato (Verger, 1981, 1985, 1999, Santos, 1976,

Ribeiro, 1978, Augras, 1983, Segato, 1995, Braga, 1988, Prandi, 2000).

A festa do candomblé, "momento em que os humanos recebem os deuses em sua casa"

(Amaral, 2002: 32), é ocasião em que todos os sacerdotes e sacerdotisas da religião

exprimem-se por meio da linguagem da vestimenta e o fazem de modo sempre criativo e

exuberante.

É, como bem assinalou Amaral (1992, 2002), para além do rito sagrado, momento de

sociabilidade e lazer, especialmente porque os adeptos do candomblé são em sua grande

maioria pobres, os terreiros são localizados na periferia distante e para suas festas acorrem

pessoas da região, além dos sempre muitos convidados do pai-de-santo e dos filhos da casa.

Este é um momento em se pode ver e ser visto, e, inclusive, flertar. Ouvi a ialorixá Sandra

Epega de Xangô dizer que "candomblé é danceteria de pobre".

Todos procuram apresentar o seu melhor, dentro de suas posses e muitas vezes para

além delas, porque as roupas do candomblé podem ser muito caras. Para se ter uma idéia, um

traje de festa masculino, calça e túnica em richelieu, que costuma ser mais barato que o traje

feminino, pode custar em média duzentos e cinqüenta reais em uma loja de artigos religiosos,

o que em termos da economia nacional é mais do que a metade de um salário mínimo fixado

em trezentos e cinqüenta reais em 2006.

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Ainda que há muito tempo o candomblé tenha deixado de ser religião somente de

negros e pobres, ele ainda conta com fiéis pobres em sua grande maioria, assim sendo há

filhos-de-santo que passam muito tempo economizando, vivendo de modo muito simples para

poder comprar roupas-de-santo elaboradas e caras.

Além do custo monetário, há todo um investimento em criatividade e capricho quando

se trata de confeccionar as roupas do candomblé, que são muito trabalhosas posto que há

sempre rendas, babados, fitas, brilhos, bordados a serem aplicados. As pessoas caminham

muito, procuram bastante até encontrar tecidos que sejam originais, que tenham belas

estampas, bom caimento, grande parte das vezes a despeito de qualquer conforto, porque

afinal ficar bonito, ficar odara, é o que interessa. Em nome da vaidade, não é incomum usar,

em pleno verão escaldante, roupas de veludo, saias de muitas camadas, capacetes e coroas

pesadas.

É possível ver o povo-de-santo suando muito durante o xirê, sob suas belas roupas de

tecidos grossos e sintéticos nos barracões abafados e quase sempre lotados, e secando-se com

graciosos lenços de richelieu engomado, que na verdade nada secam.

Não são poucas as histórias de pessoas que passam o dia de loja em loja, pegando

retalhos de tecido para levar para a mãe-de-santo ajudar a decidir o que "combina mais", o

que convém para ser usado na festa de determinado orixá. E o que "combina" em geral são

tecidos grossos, para que as roupas fiquem armadas e que acabam por ficar pesadas e

desconfortáveis também. Pode acontecer de nada do que se achou seja do agrado da mãe-de-

santo e aí os filhos retornam à busca quantas vezes for necessário, porque ninguém é dono do

próprio nariz, ninguém se veste por conta própria, essa decisão é muito fortemente controlada

pelos pais e mães-de-santo que para tanto levam em conta também a imagem que querem

apresentar de seu terreiro.

Mas isso pouco importa porque conforto definitivamente não é uma preocupação

quando se trata de estar bonito e bem vestido no candomblé, especialmente para as mulheres.

O povo-de-santo tem uma rede de comunicação ampla e muito articulada, de modo

que, em se tratando de artigos para a religião, todos sabem onde encontrar o que se procura.

Entretanto, vi várias vezes um filho-de-santo perguntar para outro onde ele tinha comprado

determinado tecido, conta ou adereço, e o outro simplesmente desconversar e não contar para

não correr o risco ser copiado, para que sua peça fosse exclusiva.

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Exclusividade e originalidade são uma busca constante. Ouvi durante a pesquisa uma

história em que isso aparece de modo nítido: me contava uma mãe-de-santo que em

determinada época uma filha de Iansã havia comprado para sua deusa um belo corte de tecido,

que levara para a costureira do terreiro, que lhe disse que o tecido não era suficiente para fazer

uma roupa para o orixá. A costureira então se encarregou de comprar um outro tecido e fez

uma bela roupa da qual Iansã se agradou. Passado certo tempo, no entanto, a costureira

apareceu no terreiro vestindo uma saia daquele tecido que a outra mulher tinha comprado para

sua deusa. Nesse instante, Iansã "virou" na cabeça de sua filha e arrancou a saia da outra,

dizendo que aquilo lhe pertencia. Uma amostra de como os deuses podem punir

implacavelmente quem ousa querer enganá-los.

Embora o traje, em todos os terreiros, seja estruturalmente o mesmo no que tange à

forma, há espaço e muita motivação para personalizar as peças para que sejam exclusivas e

únicas. Isso expressa a busca por renovação, que embora limitada, é sempre presente e é

mesmo um imperativo, é a lógica da moda – marcada segundo Lipovetsky (1989) pela

renovação permanente — agindo sobre a estética da religião dos orixás.

A busca pela renovação tanto é uma iniciativa dos sacerdotes quanto de cada um dos

adeptos e assume feições que podem ser mais abrangentes como, por exemplo, a

determinação de que em uma festa específica ninguém vai usar a saia armada, até os pequenos

detalhes de cada roupa, acessórios e paramentos utilizados. De todo modo, é nas vestes dos

orixás que essa renovação pode ser melhor observada.

Muitas vezes o dinheiro é escasso e, mais do que nunca, a criatividade e o capricho se

fazem presentes: certa vez uma filha de Oxum comprou um belo pano estampado de flores

grandes em tons de vermelho e laranja e fez com ele uma saia. Com outro pedaço do mesmo

tecido, recortou milimetricamente as flores da estampa e colou no pano-da-costa branco,

criando um belíssimo efeito, que todos elogiaram, uma solução simples e muito original.

Pode-se passar a noite inteira costurando, bordando, enfeitando uma roupa-de-santo

mas todo o esforço é recompensado quando os pares, o pai-de-santo e também as visitas

reconhecem que se está odara. Conheço uma filha-de-santo que costura as próprias roupas e

também o faz para outros irmãos, é uma mulher simples, que trabalha muito, mora na

periferia e se dedica às roupas-de-santo sempre à noite porque passa os fins-de-semana no

terreiro. Isso lhe custa muito esforço e as horas de descanso. É sempre com muita satisfação,

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no entanto, que ela veste pelo menos uma peça de roupa nova a cada festa em seu terreiro e

sorri sem falsa modéstia quando elogiam suas criações.

Uma possibilidade para se estar bem vestido e gastando menos é a reciclagem da

roupa. Uma peça pode sempre ser transformada, seja por meio de tintura, aplicação de outros

elementos, como um novo bordado. Roupas podem ser desmanchadas e refeitas, e assim uma

saia pode virar bata e ojá ori por exemplo.

Outro artifício muito usado, tendo em vista que as roupas de richelieu compradas

prontas são muito caras é comprar, ao invés de peças de roupas, grandes toalhas de mesa, que

são sempre pedidos nas listas de compras dos irmãos-de-santo, familiares e amigos que

viajam ao Nordeste, onde essas costumam ser mais baratas, para com delas confeccionar as

roupas do candomblé.

Diversas vezes ouvi adeptos que têm um certo poder aquisitivo e belas toalhas de

tecidos nobres para usarem em suas casas contarem que aquela roupa que estavam vestindo

tinha efetivamente sido toalha de mesa por muitos anos. Ao dizerem isso há sempre um tom

de diversão e ao mesmo tempo de orgulho em mostrar que conseguiram, com aquilo que

tinham à mão, elaborar um traje novo e bonito.

Em um dos terreiros pesquisados, aconteceu de os filhos, por motivos rituais, terem

que passar um ano inteiro vestindo somente branco viu-se então uma enorme variedade de

texturas e tipos de tecidos brancos, grande quantidade de bordados, apliques e pinturas, tudo

em nome da originalidade, pois como me disse uma filha dessa casa "Ah minha filha, um ano

inteiro vestindo branco a gente vai ter muito o que inventar, não é?". Essa mesma filha tinha

feito para si um abadá de algodão branco, que ela havia personalizado carimbando com tinta

branca caracóis estilizados de Oxalá.

Isso denota também a importância da cor nas roupas do candomblé. Embora o branco

seja muito usado é fato que o colorido cria efeitos muito bonitos e exuberantes. Uma coisa

que dificilmente se encontra nas roupas do povo-de-santo é estampas discretas e cores

apagadas Vigora aqui a noção de que "é preciso aparecer", chamar a atenção, e portanto

estampas miúdas e tons pastéis não têm vez. Algo que advém da estética africana por sinal,

que é marcada pelo uso das cores fortes e grandes estampas e que também remete ao Brasil

colonial, período de formação do candomblé, pois:

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"Num mundo em que a maior parte das pessoas era analfabeta, ver era experiência da mais importantes: o poder e o prestígio deviam saltar aos olhos; a condição social inscrita no vestuário constituía uma linguagem que não permitia dúvidas, dada a força das alegorias" (Lara, 2000: 180).

Esse é um valor muito forte e enraizado no candomblé, todos se preocupam muito e o

tempo todo com a experiência visual, em mostrar-se e apresentar-se belos e isso impulsiona

fortemente a busca por originalidade, esse é no entanto, sempre um empreendimento

individual, de cada adepto, porque uma coisa é certa: todos querem ser bonitos e todos

querem estar um mais bonito que o outro. Para si, para o grupo, para o pai e a mãe-de-santo e,

sobretudo, para o orixá.

Se os homens descendem dos deuses e se assemelham a eles, e, se entre os deuses

também há rivalidade, é natural que entre os homens ela igualmente exista. Não há nenhum

imperativo ético que obrigue a tolerância nessa religião. É certo que há afinidades, e pessoas

que se aproximam de modo especial por terem sido iniciadas juntas, no mesmo barco como se

diz, mas por mais que seja uma "família-de-santo" a rivalidade é algo sempre presente.

É parte da sociabilidade do candomblé o "falar mal do outro" (Vallado, 2003),

ninguém hesita em criticar alguém que não esteja bem vestido, cuja roupa não esteja bem

passada ou engomada, e também há uma certa competição entre os filhos para estar mais

bonito. Mas essa é uma "competição" que se dá dentro das categorias estabelecidas porque o

uso de determinados tecidos e adereços, os mais elaborados e vistosos sempre, é vetado

àqueles que ainda não são ebômis, o que reforça a noção de que tempo é sabedoria e

prerrogativa, só o tempo garante aos adeptos a liberdade de gozar plenamente as

possibilidades estéticas no vestir-se, podendo também lançar mão do luxo.

De todo modo, o luxo é sempre muito importante na construção da imagem não só de

cada um como do terreiro em relação aos outros, e nesse sentido "toda riqueza exibida é

convertida em prestígio simbólico" (Santos, 2005: 80). Um terreiro é reconhecido pelos outros

também por sua beleza, e aqui o belo e o fausto não se separam.

A preocupação que os filhos estejam sempre bem apresentados, e assim passem uma

boa imagem do terreiro, é uma constante para os pais e mães-de-santo, por isso é comum que

antes de se iniciar uma festa quando ainda na parte interna do terreiro se organiza a fila

ordenada por tempo de iniciação, para iniciar o xirê, o sumo sacerdote passe os filhos em

revista, ou mande alguém fazer isso.

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Numa ocasião um pai-de-santo reuniu seus filhos para uma conversa em que explicava

detalhadamente como queria quer fossem as roupas de ração e de festa de todos os adeptos a

fim de que o xirê "não se transformasse num circo com cada um vestindo-se do modo que

acha certo". Nessa mesma reunião uma mulher que tem o cargo de segunda mãe-pequena foi

encarregada de observar os trajes dos filhos antes que eles saiam no barracão e não permitir a

entrada de "quem estiver com a roupa amassada, feia e fora do que foi determinado!".

Posteriormente vi essa filha cumprindo sua tarefa com fervor, ela mesma impecavelmente

vestida e maquiada, arrumando turbantes, laços, ilequês, panos-da-costa, saias e saiotes dos

filhos da casa e igualmente falando com algum mais relapso que precisava comprar "pelo

menos um ojá ori de richelieu".

Isso mostra o poder que os pais e mães-de-santo exercem inclusive nesse âmbito da

religião. Eles imprimem seu estilo no modo como os filhos se apresentam publicamente, por

maior que seja a casa é sempre notável que haja um determinado modo de ser, um estilo

mesmo, que é seguido pela absoluta maioria, esse estilo é sempre expressão do desejo do

sumo sacerdote. Certamente se algum filho recém chegado não se enquadra ele é criticado

pelos outros e é chamado a trajar-se "de acordo".

Assim, se num candomblé o pai ou mãe-de-santo gosta de turbantes grandes e roupas

brilhantes, por exemplo, isso aparece com muito mais freqüência nas roupas dos filhos-de-

santo. O contrário também é verdade, se é um terreiro em que o pai-de-santo prefere roupas

menos exuberantes e se veste de acordo com esse gosto, os filhos nem têm espaço para

vestirem roupas muito mais ricas porque, não se pode perder de vista, ninguém deve ser mais

bonito ou bem vestido que a mais alta autoridade do grupo.

Conheci um senhor que tinha um "guarda-roupa de santo" muito rico, com diversas

roupas em richelieu com muitos apliques e brilhos e que me contava muito frustrado que,

infelizmente, tinha roupas que nem tinha usado porque no terreiro de que ele agora fazia parte

o pai-de-santo era, nas palavras dele, "muito simplesinho" e ele não podia querer ousar ser

"mais" que ele.

Além do luxo, a beleza também está relacionada com o asseio, o capricho, as roupas

limpas e bem passadas. Engomar e passar roupa, por sinal, são tarefas intermináveis em um

terreiro às vésperas de uma festa. É comum quando se visita os templos em períodos de festa

ver vários saiotes secando ao sol, seja pendurados ou mesmo sobre cadeiras.

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Saiotes cuidadosamente engomados e secos dão um trabalho enorme para passar:

ficam duros e pode-se levar uma hora ou mais para passar um único saiote. Considerando-se

que se usa no mínimo dois saiotes para armar bem uma saia, tem-se uma dimensão do

trabalho envolvido nisso. É característico o farfalhar dos saiotes engomados quando se ouve

atentamente o caminhar de uma filha-de-santo. A impressão que tive quando ouvi esse som

pela primeira vez era que sob a graciosa e leve saia colorida havia algumas saias de lona.

Um pai-de-santo me contou ter ouvido de Professor Agenor Miranda Rocha que mãe

Senhora, antiga mandatária do Axé Opô Afonjá, costumava entrar debaixo das saias das filhas

para ver se os saiotes estavam limpos e bem passados e contar os saiotes que deveriam ser

sete. Não bastava que a roupa estivesse impecável; se os saiotes também não o estivessem, a

filha além de tomar uma forte reprimenda era impedida de participar da roda, de dançar em

público.

Nas casas de fundação mais recente como são as de São Paulo, não observei tanto

rigor, até mesmo porque hoje em dia tem-se o recurso de fazer os saiotes de um tecido mais

leve, próprio para armação, o tule.

Mas é certo que aquele que não segue as normas, e que por alguma razão não está bem

apresentado, será censurado também por seus irmãos, seja seriamente ou por meio da

brincadeira. Vi um filho-de-santo que nunca conseguia amarrar direito seu torço. As pessoas

costumavam brincar e fazer troça de sua incapacidade de se arrumar minimamente, mas na

hora de formar a fila para sair no barracão, mais de um irmão vinha arrumar seu torço e

verificar sua roupa, até porque o desleixo de um pode comprometer a imagem de todo o

grupo, e se há algo que o povo-de-santo gosta de fazer é se vangloriar da beleza de seu

terreiro.

Minha pesquisa no candomblé de São Paulo mostra que todos os terreiros visitados

primam pelo capricho e pelo luxo das roupas. Efetivamente alguns pais e mães-de-santo

imprimem um estilo mais marcado pelo luxo, o brilho, o glamour do que outros. Ademais, é

interessante observar que os terreiros parecem se influenciar uns aos outros na medida em que

se freqüentam, e o estilo da casa depende também dos filhos. Terreiros que têm pessoas com

maior poder aquisitivo e certo aparato intelectual acabam sendo influenciadas por essas que

lideram e acabam também imprimindo sua marca e seu gosto que pode ser um pouco menos

marcado pelo exagero.

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O traje mais emblemático do candomblé é o de baiana, que aparece sobremaneira na

festa e do qual tratarei a seguir.

2.2.1. O traje de baiana

O traje de baiana é uma recriação cultural desenvolvida na diáspora pelos negros

africanos e seus descendentes, "instrumento ao mesmo tempo de resistência ao imperialismo

cultural do branco e de sua inserção social no novo mundo" (Escorel, 2000: 71), que na

dinâmica complexa de transformação da cultura acabou por se tornar um "traje emblemático

da identidade brasileira" (idem: 132).

Há muitas descrições do traje de baiana registradas na bibliografia. Cito a seguir uma

descrição bastante rica e antiga mencionada por Verger:

"Os vestidos de gala das mulheres negras são muito elegantes. A parte superior do vestido, acima da sai, é feita de musselina, simples ou trabalhada, algumas vezes são tão transparente que apenas dissimula o corpo da cintura para o alto. A parte em torno do busto é bordada com uma larga renda; braçadeiras ricamente trabalhadas são presas por um duplo botão de ouro: esta parte superior do vestido é tão frouxa que um ombro da mulher fica sempre nu. A saia do vestido é muito volumosa, formando um círculo completo quando é estendida no chão, a borda inferior é bordada com rendas, onde está ornada com um arabesco branco costurado por dentro; o saiote interior também é bordado com renda. Os pés nus estão enfiados em sapatos que cobrem as extremidades dos artelhos; os saltos são muito altos e finos, não alcançando o calcanhar do pé. O pescoço, carregado de correntes e os dedos com anéis, particularmente aqueles da mão que é mais exibida fora das pregas do xale.

"Um elegante pano da Costa... [de África]... é jogado sobre os ombros. Estes panos, tecidos em estreitas bandas de algodão colorido, de duas a quatro polegadas de largura, ou com riscos de uma só cor, e costurados juntos formam o xale. Os de melhor qualidade, que são importados da costa da África, valem pelo menos 5 libras esterlinas. Os mais caros, e naturalmente os que são os mais preferidos, são de um fundo azulado, com riscos vermelho-escuro. Um grande lenço de rede branca, de renda ou musselina com uma borda de renda branca, ou uma rede preta é muito graciosamente enrolada como um turbante na cabeça, e curiosos brincos complementam esta roupa.

"Apesar de seus ridículos sapatos, as mulheres andam de maneira graciosa e com afetação, na ocasião em que estão elegantemente vestidas" (Wetherell, 1860 apud Verger, 1987: 523, 524).

Trata-se de um traje que não é unívoco, porque seu uso não é sempre o mesmo e

também porque é uma soma de influências de fontes diversas. Veste de muitos usos, é fantasia

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de carnaval, roupa sagrada na festa do candomblé e indumentária de trabalho no caso das

mulheres que vendem acarajé nas ruas de cidades brasileiras, como também daquelas

presentes em cidades turísticas nordestinas e em todo e qualquer evento que enfoque a cultura

nacional.

A baiana é presença marcante na festa popular mais emblemática do País, o carnaval.

Seja vestindo uma ala inteira nas escolas de samba, como no cortejo do maracatu recifense ou

no desfile de blocos afro, como no caso do Ilê Aiyê, desde 1994 pelo menos. A baiana foi

imortalizada por Carmem Miranda como traje típico brasileiro, em imagens que o cinema

difundiu mundo afora.

Em qualquer desses usos, no entanto, a roupa constitui-se essencialmente de saia

ampla, em geral armada, torço e colares de contas. São os elementos presentes na baiana

estilizada de Carmem.

A baiana surgiu como personagem na pele da "Pequena Notável" em 1939, em seu

último filme rodado no Brasil, Banana da Terra, em que interpretava a canção de Dorival

Caymmi O que é que a baiana tem?, acompanhada pelo Bando da Lua. A partir desse, outros

sucessos vieram e assim essa brasileira nascida em Portugal, projetou a imagem da baiana no

mundo inteiro fazendo dessa personagem um ícone de brasilidade amplamente reconhecido.

O Que é que a baiana tem? O Que é que a baiana tem? Tem torço de seda, tem! Tem brincos de ouro tem! Corrente de ouro tem! Tem pano-da-costa, tem! Tem bata rendada, tem! Pulseira de ouro, tem! Tem saia engomada, tem! Sandália enfeitada, tem! Tem graça como ninguém Como ela requebra bem! Quando você se requebrar Caia por cima de mim Caia por cima de mim Caia por cima de mim O Que é que a baiana tem?

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O Que é que a baiana tem? O Que é que a baiana tem? O Que é que a baiana tem? Tem torço de seda, tem! Tem brincos de ouro tem! Corrente de ouro tem! Tem pano-da-costa, tem! Tem bata rendada, tem! Pulseira de ouro, tem! Tem saia engomada, tem! Sandália enfeitada, tem! Só vai no Bonfim quem tem (O Que é que a baiana tem?) Só vai no Bonfim quem tem Só vai no Bonfim quem tem Um rosário de ouro, uma bolota assim Quem não tem balagandãs não vai no Bonfim (Oi, não vai no Bonfim) (Oi, não vai no Bonfim) (Oi, não vai no Bonfim)

O samba de Dorival Caymmi e a etnografia do autor estrangeiro descrevem a baiana

com riqueza de detalhes. É difícil precisar historicamente o surgimento desse traje tal como se

vê hoje no candomblé. Mas sabe-se que derivou das roupas das negras escravas do século

XIX que viviam nas cidades e vendiam seus quitutes em tabuleiros pelas capitais do Nordeste

e também na cidade do Rio de Janeiro. As roupas das ganhadeiras eram, segundo Lody (2001:

44):

"Projeções das roupas de vendeiras portuguesas dos séculos XVIII e XIX, aquelas mulheres que vendiam nas ruas, praças e mercados, principalmente de Lisboa, Porto e Coimbra. (....) Essas roupas portuguesas já haviam incorporado uma afro-islamização acrescida de outras vertentes civilizatórias da Índia e Ásia".

Trata-se de uma roupa que mistura e sobrepõe elementos de origens diversas. A roupa

da baiana junta Oriente e Ocidente quando o torço encontra a saia armada, o traço europeu

inconfundível desse traje, a moda entre as mulheres da sociedade branca urbana desse período

colonial que foi incorporado e eternizado.

Um traje que era, a princípio, das mulheres negras escravas, portanto das classes

subalternas, que logrou alcançar o status de símbolo nacional e foi imortalizado nas religiões

afro-brasileiras, no carnaval e também em seu uso primeiro, o de vender comidas em

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tabuleiros nas ruas. O ofício das baianas de acarajé foi reconhecido como patrimônio cultural

imaterial pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN – em

novembro de 2004, atestando a importância cultural e simbólica do acarajé, que é uma comida

sagrada do orixá Iansã, e das baianas.

"A atividade de produção e comércio é predominantemente feminina, e encontra-se nos espaços públicos de Salvador, principalmente praças, ruas, feiras da cidade e orla marítima, como também nas festas de largo e outras celebrações que marcam a cultura da cidade. A indumentária das baianas, característica dos ritos do candomblé, constitui também um forte elemento de identificação desse ofício, sendo composta por turbantes, panos e colares de conta que simbolizam a intenção religiosa das baianas" (Certidão de tombamento do ofício das baianas de acarajé pelo IPHAN:1. Grifos meus).

A importância do traje para a legitimidade do ofício é algo digno de nota. Em qualquer

lugar que se veja o acarajé sendo vendido, sempre se verá a baiana. O traje de certa maneira

confere legitimidade ao quitute, e isso está patente na certidão de tombamento do ofício das

baianas de acarajé de Salvador. Entre uma medida do governo e prática há, no entanto, uma

distância. Uma notícia veiculada no jornal Folha de S. Paulo em 03/09/2005 dá a medida da

polêmica e traz a fala das próprias baianas de acarajé (grifos meus):

"QUITUTEIRA-MODELO

Vendedoras terão de usar roupas, tabuleiro e guarda-sol de acordo com norma da prefeitura soteropolitana Salvador padroniza baianas do acarajé Para ter o direito de comercializar o produto mais conhecido da culinária baiana, as 4.000 vendedoras de acarajé de Salvador agora terão de usar roupas, tabuleiros e guarda-sol padronizados. Quem não atender às determinações da prefeitura não receberá a licença e terá de sair do mercado, de acordo com a Sesp (Secretaria de Serviços Públicos), órgão da administração municipal que controla o comércio da cidade. A medida vale para todas as quituteiras, inclusive as que não são adeptas do candomblé. 'A descaracterização chegou a tal ponto que as baianas estavam vendendo acarajé com calça jeans. Os bares e barracas de praia também comercializavam o produto, o que gera uma competitividade inadequada com as quituteiras tradicionais', disse o secretário Armando Lessa. Segundo a Sesp, somente as baianas que usarem bata, torço e saia rodada podem vender o bolinho que, em média, custa R$ 3 (com salada e camarão). O tabuleiro (1,40 m x 0,80 m) e o sombreiro (branco, de 2,5 m x 2,5 m) também foram padronizados. O acordo foi assinado por representantes da Abam (Associação das Baianas de Acarajé e Mingau) e a Prefeitura de Salvador, no começo da semana.

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O protocolo estabelece também que as baianas estão proibidas de vender cerveja e refrigerante em seus pontos. As quituteiras só têm licença para comercializar acarajé, abará, cocada, passarinha, doces caseiros, lelê, peixe frito, mingau e bolinho de estudante. 'Proibimos a vinculação das baianas com o comércio das barracas de praia porque muitas vendedoras eram exploradas pelos comerciantes', disse Lessa. Vice-presidente da Abam, Rita Santos disse que pretende convencer a prefeitura a liberar a comercialização de refrigerante e água mineral nos pontos. 'A maioria das baianas tem um filho ou marido desempregado que trabalha com elas. Acho que a prefeitura poderia conceder uma licença em separado, até mesmo em um local próximo do ponto.' Uma das mais conhecidas baianas de acarajé de Salvador, Jaciara de Jesus Santos, 51, a Cira, disse que apóia a decisão. 'Temos de manter a tradição relacionada à origem das mulheres que vendiam o quitute, uma das oferendas sagradas para a orixá Iansã. Acho que, para vender acarajé, tem de se vestir como baiana mesmo. Foi essa tradição que herdei de minha avó e de minha mãe.' Considerado pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) patrimônio cultural brasileiro, o acarajé, bolinho feito de massa de feijão fradinho, teve a sua receita original tombada pelo órgão federal. De acordo com a Abam, por dia, cerca de 50 mil acarajés são consumidos em Salvador".

Para além do ofício do acarajé, e mesmo da lida com os turistas que se dá nas ruas, em

lojas, restaurantes, hotéis, aeroportos, em qualquer ocasião que se queira valorizar a cultura

popular, a identidade nordestina ou mesmo a afro-descendência é comum que se vejam as

baianas. Sejam essas ocasiões coisas tão diversas quanto a inauguração de uma fábrica ou

uma solenidade em homenagem a Zumbi dos Palmares na Esplanada dos Ministérios em

Brasília.

O traje da baiana ganha as ruas como roupa de festa durante o carnaval. Há uma ala

das baianas obrigatória no desfile das escolas de samba. Essa ala não conta pontos, não é um

quesito do desfile, mas sua presença é obrigatória pelo regulamento tanto no desfile do Rio de

Janeiro quanto de São Paulo, que são os maiores do país. A ala das baianas, com as

características que mantêm até hoje, surgiu no desfile das escolas de samba em 1960. O

pioneirismo foi da Estação Primeira de Mangueira, escola de samba carioca.

As baianas, diferente de todo o restante dos componentes de uma escola de samba, que

podem ser mais de três mil, evoluem de modo específico no desfile. Elas não sambam, mas

rodopiam com suas saias muito grandes e armadas, criando um belo efeito. Normalmente hoje

as mulheres que compõem a ala das baianas são senhoras de mais idade da comunidade ligada

à escola, o que faz com que essa seja uma ala muito querida.

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A baiana do candomblé é um pouco diferente da baiana de acarajé e também da baiana

do carnaval. A começar pelo uso que se faz do traje que no primeiro caso é uma roupa de

trabalho, que confere legitimidade ao próprio ofício como se pode apreender da preocupação,

expressa na notícia relatada, em que todas as vendedoras de acarajé mesmo não sendo do

candomblé se vistam de acordo com o traje que é típico e tradicional.

No caso do carnaval, o uso é lúdico, é uma roupa de festa que pode aceitar inúmeras

combinações e possibilidades como se vê a cada novo desfile, dependendo apenas da

criatividade dos carnavalescos. Já houve, inclusive, desfile em que a ala das baianas saiu

vestindo uma saia armada que não era uma saia propriamente, mas uma armação revestida de

plumas e toda vazada. Um outro detalhe é que a baiana do carnaval, nas escolas de samba,

não usa torço propriamente mas uma espécie de capacete, que é um adereço em geral grande e

que tem ligação com o enredo apresentado pela escola.

O traje da baiana no candomblé é sagrado, como toda roupa nessa religião. Uma

roupa-de-santo não deve ser pendurada de qualquer jeito no varal, não deve ser deixada do

avesso, deve "repousar" por um período depois de ter sido usada, até que o suor seque, entre

outras coisas. Outro dado importante é que, embora possa haver bastante inovações no que diz

respeito aos materiais utilizados, não houve mudanças expressivas com relação à forma do

traje de baiana do candomblé.

O traje de baiana usado no candomblé é mais complexo. Há mais peças e mais

elaboração, mais capricho no acabamento e muitos acessórios.

2.2.2. A baiana do candomblé

Um traje de baiana completo, no candomblé, tem: torço, camisu, bata, pano-da-costa, a

saia armada por saiotes, os imprescindíveis colares de conta e também as jóias e bijuterias

sempre presentes em grande quantidade.

"A primeira e marcante identificação da roupa de baiana dá-se pela cabeça coberta com tecido de diferentes formatos, texturas e técnicas de dispor conforme a intenção social, religiosa, étnica, entre muitas outras" (Lody, 2003:5).

Uma intenção importante do torço aqui é demarcar a hierarquia, no caso, com o as

pontas levantadas em sinal de distinção, o chamado torço de "orelhinha" do qual já tratei.

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O camisu é uma peça bastante simples, uma espécie de camisa mais ou menos justa,

sem gola, pouco decotada usada pelas iaôs.

A bata é uma peça também de uso exclusivo das ebômis, e igualmente sinal de

distinção. Uma espécie de camisa bastante ampla e em geral bastante decotada ou vazada

quando é de richelieu, o que faz com que se use por baixo o camisu ou mesmo um zinguê.

Calçolão é o nome dado para uma calça mais curta, na altura do meio da panturrilha

usada por baixo da saia. Em geral é feita de algodão e tem aplicada na barra pelo menos uma

renda simples, quando não tem as barras em richelieu.

Os saiotes que armam a saia são um episódio à parte no candomblé. Há o lendário

caso, já mencionado, do rigor de Mãe Senhora com relação aos saiotes das filhas-de-santo.

Histórias assim fazem parte do folclore da religião, mas o fato é que no uso das roupas

do candomblé vigora sempre uma preocupação muito grande com a forma, com a beleza e

quase nenhuma com a praticidade, a funcionalidade ou o conforto. Embora em casos

específicos isso esteja mudando, especialmente no candomblé de São Paulo, em que tempo

disponível é algo escasso na vida das pessoas.

Um saiote típico tem em média cinco metros de largura, ou de roda, como se diz, e é

feito de algodão. O processo para que ele fique armado é o de lavar e engomar, secar ao sol e

passar. Trata-se de um processo trabalhoso e demorado, o tempo médio que se gasta para

passar um único saiote é de aproximadamente uma hora, e para um bom resultado em termos

de armar uma saia é preciso pelo menos três saiotes bem engomados. E depende do sol: é

preciso que faça bom tempo!

Uma alternativa ao saiote tradicional é o saiote feito de um tecido leve usado na

confecção de roupas de balé e armação de vestidos de noiva, o tule. Esse saiote não precisa

ser engomado nem passado, em geral se constitui de uma base de um tecido de algodão

relativamente encorpado sobre o qual são costuradas camadas de tule muito franzidas. O

resultado final é uma armação razoável sem tanto peso nem desconforto como causam os

saiotes comuns.

Em uma casa vi outra solução para armar a saia um tanto quanto engenhosa, mais

próxima das soluções que o carnaval dá para o traje da baiana. Tratava-se de um saiote de tule

que tinha na barra um grande bambolê de modo que se tinha uma armação para a saia muito

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leve e eficaz. O resultado, no entanto, não era exatamente perfeito porque assim a saia não

fica tão arredondada e perde um pouco da mobilidade. De fato, só vi aquele saiote sendo

usado uma única vez, como de resto os leves e práticos saiotes de tule não são uma inovação

largamente utilizada.

Os saiotes são uma eterna preocupação das filhas-de-santo, e elas estão sempre se

queixando que eles não estão suficientemente engomados, que não armaram bem a saia, e

também vivem perguntando umas às outras se eles não estão aparecendo sob a saia.

Como já disse, a preocupação com a forma impõe o uso de muitos saiotes, e dançar

com eles por horas não é nada confortável. Eles são presos à cintura por cordões que devem

ser muito apertados para que não caiam no meio da festa. É comum ver as filhas-de-santo

retirarem-se do espaço público da festa assim que essa termina, a fim de se livrarem dos

pesados saiotes que lhes deixaram marcas na cintura.

Mas nem todo o incômodo impede uma filha-de-santo de usar quantos saiotes forem

preciso pra ter a saia bem armada. Mesmo quando moram em apartamentos e não têm espaço

para secá-los, e a despeito de toda a dificuldade de transportá-los por longas distâncias, muitas

vezes em transporte público, ou mesmo em condições adversas como numa gravidez. Tudo

porque quanto mais armada, mais bonita a baiana. Ninguém quer ficar com a saia murcha.

Porque não é odara e é sinal de desleixo.

A roupa da festa cria uma dinâmica com a dança, ela é uma roupa para dançar, e não

uma dança qualquer mas o xirê, a dança sagrada dos orixás, para os orixás, e como tal ela

precisa ser bonita e criar belos efeitos quando em movimento.

Os saiotes das baianas de acarajé são sensivelmente diferentes dos das baianas do

candomblé. As vendedoras de acarajé costumam usar saiotes curtos feitos de uma espécie de

plástico ou lona grossa, que quando bem franzida tem o efeito de armar. Sobre esses usam um

saiote de tecido leve que serve de forro para a saia. Desse modo a saia fica armada, mas o

efeito em termos de mobilidade da peça não é o mesmo dos saiotes de goma, não têm a

mesma graça. Trata-se certamente de uma solução que se fez necessária nessa roupa de

trabalho.

Sobre os saiotes vão as saias. As saias rodadas das baianas do candomblé costumam

ser muito vistosas. Junto com os saiotes, são grandemente responsáveis pela beleza dos

movimentos da dança dessa religião. Há extremo zelo com as saias, elas podem ser de tecidos

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diversos desde o caro e elaborado richelieu, com muitos desenhos e muito vazado, como de

chita, seda, damasco, juta, cetim, brocado, organza, lesi, ... enfim, tudo que a indústria têxtil é

capaz de produzir.

De modo geral, procura-se fazer saias de tecidos leves que não pesem muito e para que

não fiquem murchas, mas quando acontece de serem de algum tecido mais encorpado e

pesado, uma solução é engomar moderadamente também a saia; de resto elas devem sempre

ser muito bem limpas e passadas, porque aliadas ao pano-da-costa e o torço, a saia é uma peça

de grande visibilidade. Na festa, o pano-da-costa pode receber uma leve goma também para

que fique um pouco armado, criando um belo efeito.

A outra peça que compõe o traje da baiana é o pano-da-costa, que quando é tecido em

tear recebe o nome de alacá. Esse é usado, como já foi dito, amarrado na altura do busto pelas

iaôs, na cintura ou sobre o ombro pelas ebômis.

Um ebômi pode usar também, se quiser, e normalmente o faz, um ojá medindo

aproximadamente trinta centímetros de largura por três metros de comprimento, em geral do

mesmo tecido do ojá ori, amarrado na cintura da seguinte forma: a faixa dá a volta na cintura,

é cruzada atrás e as pontas são enfiadas por dentro de modo a ficarem pendendo dos lados, na

linha dos braços da pessoa. Esse ojá tem função muito útil de prender os ilequês e impedir

que eles fiquem balançando durante a dança.

Uma vez em tom de brincadeira e lamento um iaô, com muitas voltas de colares no

pescoço e ainda muito longe de ser um ebômi, virou-se pra mim e disse: "Vê? Coitadinho de

mim... com tantos ilequês e não posso usar nada pra prender, nem uma tirinha de tecido....

mas eu chego lá". Isso ilustra o valor que o povo-de-santo dá para cada detalhe da vestimenta

porque sabe que eles têm sentido e marcam a posição na hierarquia sacerdotal.

A significação do traje no candomblé também abrange as cores que em geral são

usadas de acordo com os orixás de cada um. Quando se usa um tecido estampado, procura-se

sempre por motivos que tenham a ver com o orixá, como peixes para os orixás que têm

relação com a água, no caso de Oxum e Iemanjá, por exemplo; quando não, busca-se

estampas geométricas e cuja aparência seja africana. O mesmo acontece com os desenhos das

rendas e bordados a que o povo-de-santo presta muita atenção. Uma vez vi em uma festa um

pai-de-santo que visitava a casa e era filho de Logum Edé trajando uma roupa relativamente

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simples, mas que tinha bordado nas costas da camisa e nas barras da calça um par de faisões

em azul e amarelo, criando um belo efeito e homenageando o seu orixá.

Também fazem parte do traje da baiana as jóias e bijuterias afinal, "quem não tem

balangandãs não vai no Bonfim".

Tem brincos de ouro tem! Corrente de ouro tem!

O povo-de-santo adora se enfeitar. Tanto homens como mulheres valorizam muito as

jóias e bijuterias, vivem cheios de brincos, anéis, braceletes, pulseiras e colares, dentro do

espaço e do momento religioso e freqüentemente também fora dele, manifestando assim a

riqueza e a beleza de seus deuses e deusas e sua satisfação em cultuá-los, o orgulho de ser

filho e filha dos orixás.

O uso dessa profusão de jóias vem de longe, esse é um gosto africano. Como afirma

Godoy, na África Ocidental

"As jóias de ouro eram verdadeiros talismãs. O ouro simbolizava o sol, a vida eterna, sendo o metal ideal par utilização em instrumentos usados em cerimônias religiosas e reais" (2006: 38).

No Brasil esse amor africano às jóias alia-se ao desejo de demonstrar poder dos

senhores coloniais que, para tanto, adornavam suas escravas com vistosas jóias de ouro e

prata, especialmente em festas, procissões, aparições públicas de um modo geral, costume

fartamente registrado pela iconografia da época como se pode ver nos trabalhos de Debret e

Rugendas, por exemplo (cf. Escorel, 2000).

Para as mulheres negras as jóias eram um investimento, uma forma de acumular

dinheiro, uma vez que com a venda de seu ouro elas podiam alforriar-se ou mesmo colaborar

para a alforria de outras pessoas (Januário, 2004; cf. Godoy, 2006,). Mas eram também e

principalmente um emblema de distinção dentro da sociedade escravocrata, isso é de tal modo

importante que adquirir jóias, às custas de muito trabalho evidentemente, era uma das

primeiras providências que as mulheres tomavam ao se libertarem do jugo da escravidão.

O candomblé, grande depositário de concepções e valores africanos que mostrou ser

ao longo do tempo, preservou entre seus adeptos o gosto pela ostentação, a exibição do luxo,

do fausto a "estética da opulência". "A opulência é, em última instância, uma exteriorização

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de luxo e riqueza, mesmo podendo dar uma impressão falsa do que a exibe" (Godoy,

2006:21).

Nada mais luxuoso que uma profusão de jóias ou mesmo imitação de jóias, como as

bijuterias que se podem ver nos braços, tornozelos, orelhas e dedos das mulheres, e dos

homens também, no candomblé de São Paulo.

As jóias podem inclusive ter um caráter de defesa mágica, conforme afirma Pierucci

(2001:21):

"É a mesma insistente idéia de defesa mágica que explica o hábito, ainda hoje vigente entre pessoas de todas as nacionalidades e camadas sociais, de trazer consigo certos signos mágicos — quando não diretamente na pele, em forma de tatuagem —, de ter no bolso ou na bolsa, pendurado no pescoço, nas orelhas, nos braços, tornozelos e dedos, pelo menos um amuleto ou talismã: anéis (em magia, anel é básico), pulseiras e braceletes, correntes, brincos e pingentes (...)".

Além desse caráter duplo que pode ser de defesa — amuleto —, quanto de atrair a

sorte — talismã — sabe-se que um anel, ou uma corrente com um grande pingente com um

compartimento interno, como bem me observou um pai-de-santo, pode servir para carregar

pós mágicos a serem usados em momentos e locais específicos. E se há uma coisa que no

candomblé tem, são os muitos pós mágicos de diversas finalidades.

O anel é uma peça de forte e rico simbolismo. Simboliza de modo muito especial o

poder. No catolicismo, por exemplo, uma insígnia importante do pontificado de um papa é o

chamado anel do Pescador, um anel de ouro com uma gravura única que é recebido pelo sumo

sacerdote na cerimônia em que ele é entronizado papa, e é destruído, também numa

cerimônia, por ocasião de sua morte significando o fim do seu reinado. Bispo também tem o

anel, que é beijado pelos fiéis.

Nesse sentido, vi em algumas casas os filhos-de-santo receberem um anel, em geral de

ouro, com um búzio incrustado por ocasião do decá, a obrigação de sete anos, marcando sua

maioridade ritual. Levando-se em conta que os adeptos do candomblé são em sua maioria

pobres, sabe-se lá que economias fazem e por quais privações não passam para comprar esse

anel tão significativo. E as outras jóias que usam, mas... as jóias são odaras, valem o

sacrifício.

Os anéis com búzios incrustados são muito caros ao povo-de-santo, como aliás o são

anéis em geral, e de preferência de ouro, eterno símbolo de opulência. Os anéis com búzios

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podem ser encomendados aos ourives, e, os mais comuns, que não são jóias, costumam ser

vendidos em casas de artigos religiosos e também em encontros e reuniões em que os adeptos

estejam; tanto homens quanto mulheres gostam e sempre usam anéis mesmo no dia-a-dia.

Freqüentemente as mulheres usam brincos no mesmo modelo do anel.

Algumas vezes, o orixá exige que seu filho use o metal que lhe é próprio, como é o

caso do ouro ou metal amarelo para Oxum e Logum Edé. Note-se que, na África, o cobre era

considerado metal precioso e por isso era atribuído a Oxum. Aqui se deu preferência a uma

liga amarelada, reservando-se o cobre, de tom avermelhado, para Iansã, Obá e Xangô. A

prata é reservada a Iemanjá e Oxalá. Nesses casos os filhos costumam portar cotidianamente

algum adorno desses metais como uma forma de terem sempre presentes as suas divindades.

Pode ser um anel, que nesse caso simbolizaria a união do adepto com sua divindade, como se

dá com as alianças de casamento.

É comum que haja presente nos assentamentos das divindades femininas um

determinado número de anéis, além de pulseiras, e nesse sentido um sacerdote uma vez me

disse que as argolas representam a própria eternidade do orixá, que como o círculo não têm

começo nem fim.

Certa vez ouvi de Professor Agenor que as argolas passaram a ser usadas pelas

mulheres em seus pulsos depois da libertação dos escravos. As argolas que outrora tinham

sido os elos das correntes que as subjugavam, agora eram símbolos de liberdade.

Durante a pesquisa soube do caso de uma filha de Iemanjá que, por ocasião de sua

obrigação, ofereceu à sua deusa um belo anel de ouro branco, e a deusa manifestou-se dizendo

que aceitava a jóia, mas, que a filha o deveria usar também periodicamente.

Um outro dado importante em relação ao fato do povo-de-santo portar muitas jóias se

depreende do que diz Mariano Carneiro da Cunha:

"A metalurgia aplicada à fabricação de adornos e ornamentos pessoais já era fato corrente na África negra antes de qualquer contato com os europeus. (...)

"Portanto os escravos que vieram para o Brasil e para as Américas, sobretudo os que provinham da África ocidental como os Fanti-Axanti, e posteriormente os Yorubá, eram grandes conhecedores das técnicas metalúrgicas.

Destacam-se como fabricantes requintados de jóias e objetos ornamentais de metal os Fanti-Axanti, os Baulê, os Yorubá dentre muitos outros povos na África Ocidental. (...) Conheciam perfeitamente esses africanos as diversas técnicas da ourivesaria e os vários processos de fundição do metal e moldagem.

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"Ante o exposto, pode-se avaliar a diversificação da contribuição africana à ourivesaria brasileira. É claro que aqui chegados esses negros já encontraram uma infra-estrutura portuguesa do trabalho do metal e o produto final apresenta-se como reformulações desses dois componentes" (1983: 1027).

Ou seja, é fato que os africanos que foram trazidos para o Brasil tinham um amplo

conhecimento na fabricação das jóias, porque o faziam e usavam na África, e, no encontro

com a "infra-estrutura portuguesa do trabalho do metal", fundaram mesmo uma tradição, um

estilo em joalheria muito particular. São as chamadas jóias de crioula ou jóias crioulas, que,

de certo modo, permanece no candomblé tanto entre os adeptos quanto como paramento dos

deuses.

Cabe ressaltar que, como nos mostra Solange Godoy (2006), o intercâmbio entre

Portugal e a África é anterior a chegada dos portugueses ao Brasil e a própria joalheria

popular portuguesa é influenciada pelos modelos africanos, do grupo akan especificamente.

"Tanto as (jóias) akans como as portuguesas e brasileiras são assemelhadas em tudo. São leves porque são ocas, são sempre trabalhadas, as bolas podem receber um trabalho de filigrana, que já existe entre os axanti e que já estava desenvolvido em Portugal. É como se, aqui, o modelo se inspirasse nesse intercâmbio estreito que houve" (Folha de S. Paulo 26/11/06).

Essa joalheria crioula caracteriza-se pela exuberância. As peças são sempre grandes e

enfeitadas, símbolos do poder das mulheres negras e do exercício de criatividade dos ourives.

Assim são os brincos em formato de flor, pitanga, barrilzinho, ou mesmo argola,

geralmente trabalhados em filigrana e adornados com pedras ou corais; brincos que "tinham

no seu uso um significado simbólico de proteger a cabeça através dos orifícios mais expostos

aos espíritos malignos" (Godoy, 2006: 71).

As pulseiras, que costumavam cobrir a metade do braço das mulheres negras, são parte

importante da joalheria crioula. Talvez as mais conhecidas sejam as pulseiras de tipo copo,

que se constituem em uma peça única larga que pode ou não ter fecho, trabalhadas em relevo

ou filigrana. Há também a que é chamadas até hoje de pulseiras escravas. Essas são menos

largas que as pulseiras em formato de copo e costumam não ter fecho. Ou ainda, as mais

recorrentes, aquelas feitas de placas quadradas ou retangulares de ouro trabalhado em relevo

ou filigrana unidas entre si por dois ou três elos, que podem ter também corais ou pedras

intercaladas e com fecho. Há também as pulseiras de bolas trabalhadas em filigrana e as

argolas.

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As pulseiras, braceletes e tornozeleiras de metal já eram, antes da chegada dos

portugueses à costa africana, muito características da arte africana. Produzidas em grande

quantidade, chegaram a ser usadas como moeda de troca. Os portugueses lhe deram o nome

genérico de manilhas, e foram elas certamente as peças de joalheria de que se originaram as

modernas pulseiras copos e pulseiras escravas, que desde o século XIX enfeitam os braços e

antebraços de filhas-de-santo e orixás no candomblé. Alberto da Costa e Silva explica que:

"Manilha é um bracelete de metal, geralmente de cobre ou latão, cuja circunferência não se fecha inteiramente, como se fosse um 'C'. Usava-se como adorno nos braços ou nos tornozelos e sobretudo, talvez já antes da chegada dos portugueses aos litorais africanos, como moeda. Variava muito de tamanho, peso e grossura" (Silva, 2002: 9).

Dentre as jóias crioulas também estão as correntes feitas de bolas enfeitadas em

filigrana e os chamados correntões, feitos de argolas lisas ou decoradas, entrelaçadas. Esse

tipo de corrente, aliás, sobrevive ainda hoje de modo muito especial entre as mulheres da

Irmandade da Boa Morte, a confraria católica que persiste e realiza sua festa anual no mês de

agosto na cidade de Cachoeira, no Recôncavo Baiano.

Quando se fala da joalheria do candomblé, no entanto, e mesmo da própria figura da

baiana, são os balangandãs a primeira referência. Afinal, "quem não tem balangandãs não vai

no Bonfim".

Acredita-se que origem do nome balangandã seja onomatopéica, uma referência ao

barulho que as peças do balangandã fazem ao chocar-se durante o movimento da mulher que

carrega a penca.

Peça original e fortemente representativa da brasilidade, o balangandã, ou penca,

constitui um conjunto de pequenos pendentes arranjados em uma peça na forma de semi-

círculo, chamado de galeta ou nave, que é presa a uma corrente ou mesmo simplesmente

fixada na altura da cintura das "baianas de antigamente", as escravas de ganho que

comerciavam pelas ruas, bem como nas das mulheres negras e libertas que ganhavam a vida

dessa forma.

Os balangandãs costumavam ser de prata, chegando a pesar setecentos e cinqüenta

gramas, podendo ter outros materiais como dente de animais, madrepérola, marfim, osso,

pedras e louça. Há uma grande diversidade de pendentes que se pode encontrar nos

balangandãs, dentre esses as diversas frutas: caju, uvas, abacaxi, coco, laranja, romã, pêra;

animais: galo, peixe, cachorro, pomba; objetos: moeda, chave, estrela, coração, cabaça, figa;

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além de bolas de louça, peças cilíndricas, pequenos saquinhos de couro — por vezes contendo

fragmentos do Corão — e uma enorme variedade de outros objetos.

Trata-se de uma peça sincrética por definição uma vez que o simbolismo desses

pendentes combina influências diversas como a cultura árabe e o próprio islã, o catolicismo e,

evidentemente, os orixás do candomblé. Seu sentido mágico deriva do fato de que era

concebido como um amuleto capaz de proteger quem o portasse do mal.

Hoje em dia as pencas não são mais usadas como complemento do traje da baiana,

perderam o seu caráter mágico; algumas das que foram ostentadas como jóias pelas mulheres

negras e mestiças de outrora podem ser vistas em museus como o museu Carlos Costa Pinto

de Salvador, que possui uma bela coleção dessas peças. Fora do âmbito das coleções, os

balangandãs ficaram maiores e se tornaram objetos de decoração, verdadeiros suvenires e

podem ser vistos à venda em diversos lugares turísticos pelo País.

Versões específicas da penca de balangandãs, no entanto, originaram as pencas de

Iemanjá, Oxum, Ogum e outros orixás. A penca de cada um deles reúne numa corrente —

usada na cintura — objetos simbólicos do orixá, como as ferramentas de Ogum, os peixinhos

de Iemanjá e Oxum. Também são usadas para adornar os altares em que estão assentados os

orixás. Cada penca dessas é feita do metal do orixá: ferro para Ogum, metal amarelo para

Oxum, liga prateada para Iemanjá. A penca de raios de Iansã é feita de cobre; a de Oxalá, com

caracóis, de prata.

A permanência da joalheria crioula pode ser vista hoje, se não nos materiais utilizados,

na forma das jóias e bijuterias usadas pelo povo-de-santo. A exuberância é a mesma, que por

sinal também marca inequivocamente os adereços do carnaval, ainda que esses se valham de

outros materiais.

As pulseiras escravas e as argolas de todos os tamanhos — formas modernas das

manilhas —, por exemplo, são muito usadas e sempre em profusão. Os brincos tipo

barrilzinho e pitanga, corais, pedras, correntes grandes de bolas, correntões, anéis enormes,

enfim, o tilintar característico da profusão de peças persiste e é hoje amplificado pela enorme

quantidade de ofertas de itens de diversos materiais que se podem usar para confeccionar tudo

que a imaginação e a criatividade permitir.

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Sandália enfeitada tem!

Outra peça que compõe o traje da baiana é o tamanco. Quase sempre menor que o pé

da dona, o tamanco, o sapato, merece nossa atenção pela riqueza de significados que "usar

sapato" tem, e teve ao longo da história do negro no Brasil.

Sapato é um dos objetos de desejo feminino desde há muito tempo e a indústria

calçadista produz constantemente novidades que são avidamente consumidas. Não por acaso,

uma das maiores feiras de negócios do Brasil é a Francal, a feira de calçados que acontece

todo mês de julho em São Paulo, atraindo gente do setor calçadista do país inteiro e também

do exterior, movimentando milhões de reais.

O sapato é no imaginário feminino, e também no masculino, um verdadeiro fetiche. É

usado pela mulher para deslumbrar, e pelo homem para impressionar. Uma forma de seduzir,

afinal, sabemos desde sempre que foi o sapatinho de cristal que identificou a "eleita" do

príncipe num dos contos de fada mais populares de que se tem notícia; que mulheres de salto

alto são "fatais", são mulheres e não meninas, tanto que nas tradicionais festas de quinze anos,

que marcam um momento de passagem do "desabrochar" da moça, há um ponto alto em que o

pai calça o sapato de salto da filha, um verdadeiro símbolo da feminilidade para quem agora

deixa de ser criança.

No Brasil, escravista, os sapatos eram símbolo da condição de liberto. Pode-se, ver na

iconografia, negros bem vestidos porém descalços. Sinal inequívoco da condição de escravo.

Aliás "o estar descalço foi, desde Roma antiga, um dos traços distintivos do escravo"

(Escorel, 2000: 92). Por outro lado, quando se viam livres, muitas vezes os pés negros não se

davam muito bem com a estreiteza dos sapatos, esses eram então carregados às costas, presos

em uma vara de madeira, a fim de ostentar a condição de homens livres, que, ainda que não

conseguissem calçar, tinham agora o direito de possuir sapatos.

Nas palavras de Maria Cristina Cortez Wissembach:

"Muitas vezes, para os homens negros, o sentido da liberdade inscrevia-se em direções

dissonantes de um eventual sentido imaginado pelos antigos senhores e por aqueles

que pretendiam, na derrocada do escravismo, a solidificação de determinados padrões

de vida e de trabalho. Para eles, a condição de homem livre seria concretizada, de

imediato, na realização de desejos e na posse de objetos que lhes haviam sido

proibidos quando eram escravos" (1998: 53).

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Um desses objetos é o sapato, que chegava a ser exibido com destaque nas salas das

casas pobres dos ex-escravos, em lugar bem visível, como um brasão. Ainda sobre a relação

entre o uso dos sapatos a liberdade nos diz Pierre Verger:

"Se ele é livre, o africano ostenta todos os dias um par de sapatos, símbolo da

liberdade e recordação também da África, onde a sandália é marca e privilégio de

príncipes e reis" (Verger, 1981a: 220).

Privilégio de príncipes e reis em terras africanas, de homens livres no Brasil e de

ebômis no candomblé, porque como já ouvi dizer "iaô não tem querer" e também não usa

sapato, como lembram as palavras de Mãe Stella: "filhos-de-santo com obrigações de três

anos passam a usar chinelos; antes é proibido" (Santos, 1995: 38). Ainda assim esse chinelo

fechado na frente deve ser sem salto e não deve ter enfeites.

Chinelos enfeitados, e saltos somente podem ser usados pelos ebômis. Mais uma

insígnia da maioridade ritual, da liberdade e a autoridade religiosa que o tempo, a vivência e o

devido cumprimento das obrigações rituais conferem ao adepto, afinal "antiguidade é posto".

Isso é tão valorizado pelos fiéis que eu vi durante a pesquisa, em uma obrigação de

sete anos, o sapato da ebômi ser trazido ao barracão sobre uma almofada forrada de cetim e

ser calçado na filha-de-santo pelo próprio pai-de-santo, nos moldes das festas de quinze anos.

Quando se conversa com alguém que começa a preparar a obrigação de sete anos, aliás,

percebe-se logo que uma das primeiras preocupações ao montar o enxoval — que é como se

chama o conjunto de roupas que se usa na iniciação e nas sucessivas obrigações, algo muito

significativo por sinal, que remete ao casamento com os orixás — é com o sapato: como deve

ser, onde se vai comprar, ou de quem se vai ganhar.

Uma vez, vi uma mulher que depois de muitos anos de "suspensa" como equede, após

muitos anos dançar de pés no chão que é como dançam os abiãs, dar finalmente sua obrigação

e calçar na festa de sua saída uma sandália de saltos altíssimos, que ela não costumava usar no

dia-a-dia. Mas aquele era seu grande momento e ela merecia correr o risco de cair do salto.

A história e a trajetória de um adepto do candomblé é toda sinalizada e expressa por

meio da estética. A ascensão religiosa é marcada de modo definitivo pela obrigação de sete

anos, em que o processo de iniciação e também de ascensão religiosa se completam. Essa é

uma profunda transformação para o adepto que ganha direitos e prerrogativas, saber e poder, e

faz questão de daí em diante sempre expressar isso seja pelos poucos fios de conta e muitas

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jóias que agora carrega, pelo torço com abas, pela bata no caso das mulheres, uma série de

detalhes significativos nessa religião em que o código visual é tão complexo.

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3.

AXÓ-ORIXÁ: ROUPAS E ADEREÇOS DOS DEUSES

Axó-orixá é como se diz roupa de orixá, ou roupa-de-santo. Somente os iniciados

podem usar, e quando em transe ritual. Para se iniciar no candomblé é preciso adquirir um

complexo guarda-roupa, juntar todo o enxoval, que inclui as roupas e seus complementos para

uso do próprio iniciado e aqueles destinados a seu orixá. Confeccionar os axós exige

certamente arte, e vesti-los no corpo dos filhos e filhas-de-santo quando esses estão "virados"

no orixá demanda paciência e muita prática, porque a roupa é, de certo modo, montada no

corpo em cada momento de uso. Enquanto as equedes trabalham nos laços, nós e pontos com

algulha para ajustar todas as peças, é comum encontrar-se o orixá substituído, no transe, por

uma entidade infantil, o erê, que colabora, brincalhão, com as equedes, pode ser tratado com

autoridade por elas e fica a disposição o tempo que for necessário. É uma atividade demorada

e não é raro o toque fazer um intervalo longo enquanto se vestem os orixás, liberando a

platéia para um cafezinho e muita conversa, e os ogãs alabês para um descanso de seus

atabaques.

3.1. Orixá odara

Os orixás são as vaidosas divindades do candomblé. Sabe-se que dos inúmeros que

eram cultuados na África sobreviveram no Brasil cerca de duas dezenas, dentre os quais

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dezesseis têm o culto mais difundido, enquanto outros são reverenciados em ocasiões

específicas, ou permanecem apenas na memória dos mais antigos (Prandi, 2001).

No candomblé acredita-se que os seres humanos descendem dos orixás, inclusive

herdando desses seres qualidades e defeitos, trazendo, portando, em si uma parte, um

fragmento da própria divindade. Viver e manifestar essa divindade é algo tangível por meio

do transe, o qual permite ao adepto "multiplicar o eu", de modo que "ele (o fiel) tem um eu

social e múltiplos eus rituais definidos pela religião" (Prandi, 1991: 179). Assim, pode

vivenciar outras experiências, assumir outras "personalidades", digamos, que são restringidas

pelo cotidiano.

Os orixás são divindades com características muito semelhantes às dos humanos, são

antepassados heróicos que viveram aventuras e desventuras. Mas, feitos deuses, foram

imortalizados na memória de seu povo e, nessa condição, já existe um abismo entre eles e

seus devotos. São fortes, vitoriosos, belos, guerreiros, criativos, corajosos, ricos, atraentes; são

portadores, enfim, de uma longa série de atributos e poderes a que seus filhos mortais

aspiram.

Bastide afirma que no transe do candomblé os humanos não vestem uma máscara do

deus, mas "a fisionomia é que plasticamente se transforma numa máscara, apresentando o

semblante estranho dos deuses" (1973: 311). Aqui, segundo ele, "o homem se transmuda em

deus e em seguida toma, se quiser, a roupa do deus" (idem: 312).

Os orixás "tomam suas roupas", são vestidos, paramentados, enfeitados para

"cavalgar" seus filhos, tomar seus corpos e executar suas danças sagradas e com isso instaurar

de novo o tempo sagrado do mito em que suas ações se deram (Eliade, 1999). Por meio da

dança em que executam os atos heróicos que fizeram deles deuses, os orixás revivem o mito,

atualizam, repõem a sua divindade diante dos olhos admirados dos homens e mulheres.

Louvar publicamente os orixás que vêm à Terra porque gostam de conviver com seus

filhos é o cerne da religião. É para esse momento, para essa realização que converge todo o

esforço da "eterna produção da festa" (Amaral, 1992, 2002). Essa é, portanto, a ocasião em

que o esplendor, o luxo, o capricho e a exuberância devem ser praticados com maior vigor.

Afinal, se os filhos dos orixás querem, e devem, estar bonitos na festa o quanto mais não terão

que estar os próprios deuses, que são a razão de ser da festa e da própria religião.

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Ninguém mede esforços para vestir e paramentar seu orixá. As pessoas gastam muitas

vezes o que não têm a fim de comprar brocados, pedrarias, paetês, pulseiras, anéis, belíssimos

richelieus para seus deuses, porque, como disse Bastide, no momento da festa ocorre a

"mudança da lavadeirinha negra, da humilde filha da Bahia, em Iemanjá, deusa dos mares, princesa de reinos fabulosos que estão no fundo dos oceanos, — a transformação do carregador que se esfalfa todos os dias no cais, ombros caídos de tanto carregar sacos de carvão, em Oxóssi, deus das florestas tropicais, dominador dos animais selvagens e dos pássaros do céu" (1973: 312).

Já vai longe o tempo em que os adeptos do candomblé eram exclusivamente negros e

pobres que sofriam forte preconceito; com a universalização da religião ocorrida pelos idos

dos anos de 1960 com a chegada dessa a São Paulo (Prandi, 1991), isso mudou

definitivamente. Mas os deuses não mudaram e nem a condição dessa religião, que permanece

sendo de poucos, demograficamente muito pequena.

A despeito de ser uma religião de poucos adeptos, o candomblé alcançou grande

visibilidade na cultura nacional e isso se deve, em grande parte, à vasta produção cultural que

bebe em suas fontes, que é abrangente e vai da literatura às artes plásticas, passando pelo

cinema, televisão e música, para não falar do próprio carnaval que se inspira fortemente no

candomblé, e dialeticamente é fonte de inspiração também para os terreiros (Prandi, 2005).

De tal modo que a estética do candomblé, suas cores, ritmos e sabores estão o tempo todo

sendo postos e repostos, sendo referência e inspiração na cultura e no imaginário brasileiro.

Isso não acontece por acaso, mas se deve ao fato de o candomblé ter logrado alcançar um alto

grau de preservação de valores, cosmovisões e modos de ser e de viver africanos (Prandi,

2000), o que faz com que ele seja um verdadeiro depositário desse legado.

As religiões em geral, estabelecem com a arte uma relação importante de influência

mútua, de modo que por vezes é difícil perceber onde começa ou termina a influência de uma

pela outra. Nesse sentido Roger Bastide afirma que, a despeito de influenciar todas as

"funções sociais" é sobre a religião que a influência da arte é mais forte (Bastide, 1971b:188).

No Brasil as religiões afro-brasileiras efetivamente influenciam e inspiram as artes em muitas

temáticas e concepções.

Talvez a influência mais evidente das religiões afro-brasileiras sobre a arte se dê no

âmbito da música popular. A música popular brasileira é reconhecida internacionalmente por

sua qualidade e criatividade. Um dos ritmos mais conhecidos e importantes dessa música é o

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samba, cuja origem está ligada ao candomblé, especificamente na cidade do Rio de Janeiro,

para onde o candomblé foi trazido por mães-de-santo baianas (Prandi, 2005), e conforme diz

Caetano Veloso em "Onde o Rio é mais baiano", música gravada em 1998, no álbum Livro:

A Bahia, Estação primeira do Brasil ao ver a Mangueira nela inteira se viu, refletiu-se sua face verdadeira. Que alegria não ter sido em vão que ela expediu as Ciatas pra trazerem o samba pra o Rio (pois o mito surgiu dessa maneira). E agora estamos aqui do outro lado do espelho com o coração na mão pensando em Jamelão no Rio Vermelho. Todo ano, todo ano na festa de Iemanjá presente no dois de fevereiro nós aqui e ele lá isso é a confirmação de que a Mangueira é onde o Rio é mais baiano.

É efetivamente no fazer do samba de roda baiano por compositores cariocas — vários

deles de origem baiana — reunidos nos terreiros das mães que a Bahia "expediu" ao Rio de

Janeiro que o "mito" surgiu. O samba que congrega e é marca importante da identidade

nacional.

Para além dos ritmos, muitas letras da música popular fazem referências às religiões

afro-brasileiras. Uma das primeiras músicas gravadas com citação de elementos das religiões

afro-brasileiras é "Pelo telefone" registrada por Donga, do grupo de compositores que se

encontravam no terreiro de Tia Ciata no Rio, de 1916 (Prandi, 1997; 2005:189). Desde então

com diversos compositores e intérpretes, consagrados ou menos conhecidos, até a produção

da novíssima safra da MPB, é possível encontrar alusões às religiões afro-brasileiras e

também especificamente ao candomblé, suas sacerdotisas, seus templos, seus orixás (Prandi,

2005: cap. 9).

Esse envolvimento das religiões afro-brasileiras com a música popular, que não se

restringe ao candomblé, tem duas faces: por um lado as religiões servem de fonte para a

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música popular e de outro a música traz prestígio a essas religiões por meio de seus

compositores e intérpretes e também colabora na sua divulgação e maior aceitação na

sociedade.

A literatura igualmente tematiza o universo do candomblé. Ao lado de outros nomes

consagrados, como João Ubaldo Ribeiro, a obra de Jorge Amado se destaca. Inspirada na obra

de Jorge Amado, inclusive, há uma produção teledramatúrgica de muito impacto como o caso

da minissérie exibida pela teve Globo em 1985 Tenda dos Milagres, o especial O compadre

de Ogum da mesma emissora exibido em 1995 e mais recentemente, em 2001, a novela Porto

dos Milagres inspirada nos romances Mar Morto e A descoberta da América pelos turcos.

Essa novela exemplifica o vigor e alcance da presença do candomblé no imaginário

nacional por se tratar de uma produção exibida em horário nobre, na maior e mais poderosa

emissora de televisão aberta do País, tendo portanto um alcance muito grande, atingindo fatias

das diversas classes sociais em todo o território nacional. Porto dos Milagres, escrita por

Aguinaldo Silva e Ricardo Linhares, tinha como personagem principal um pescador que era

ogã em um terreiro e tinha também dentre seus personagens Iemanjá "a grande mãe africana

do Brasil" (Vallado, 2002), que ao longo da trama mais de uma vez livrou seu filho querido

de adversidades.

Há também toda uma produção nas artes plásticas, cuja inspiração bebe nas fontes do

sagrado afro-brasileiro tanto com relação aos temas abordados quanto às soluções

encontradas. Aqui incluem-se nomes como Agnaldo dos Santos, Pedro Paulo Leal, Ronaldo

Rêgo, Niobe Xandó, Mário Cravo Júnior, Rubem Valentim, Emanoel Araújo e Mestre Didi

"sacerdote-artista" (Santos, 1999), dentre tantos outros reconhecidos ou anônimos.

A beleza, a plasticidade, é, sem dúvida, uma fonte da força dessa religião que faz com

que ela seja inspiradora e perene a despeito dos reveses que tem sofrido ao longo da história.

Ademais a beleza combina-se ao ludismo e à alegria, que são valores muito caros e marcam o

estilo de vida dos adeptos (Amaral, 1992, 2002).

A beleza plástica e cromática causa sempre uma impressão muito forte quando se vai a

um candomblé pela primeira vez. Ao longo da pesquisa tive a oportunidade de acompanhar, e

mesmo levar para as festas pessoas que nunca tinham travado contato com a religião e

reiteradas vezes ouvir dessas "nossa... como é bonito". Sim, o candomblé é bonito, e beleza

nessa religião se "põe a mesa". Beleza é uma busca constante, é um valor que estrutura e

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norteia, é um desejo permanente, é uma intenção que perpassa tudo. Um tipo de beleza, vale

dizer, muito diferente dos padrões cultivados pelas camadas mais cultas da população, uma

beleza exagerada, exuberante, explícita, que envolve pormenores em profusão, uma beleza

que chega a ser agressiva e até mesmo de mal gosto para os padrões estéticos da classe média.

No Brasil, assim como em Cuba, Haiti e outros países latino-americanos, a religião é

sem dúvida o domínio em que a continuidade dos elementos culturais africanos foi mais

resistente (Munanga, 2000, Montes, 1999, Prandi 2000).

Mariano Carneiro da Cunha, em seu ensaio sobre a arte afro-brasileira, afirma que

[o sincretismo é na realidade] "apenas aparente, porque o essencial da mensagem religiosa continua africano, isto é, a cosmologia ordenadora do real capaz ao mesmo tempo de incorporar novos elementos e permanecer africana" (Cunha, 1983: 997).

Essa cosmologia ordenadora do real se revela especialmente africana no modo como a

religião dos orixás se relaciona com o belo.

Numa das suas muitas passagens em que trata do processo de racionalização no

Ocidente, que é o processo de constituição das diversas ordens da existência humana em

esferas de valor, Weber afirma que diferente da ética religiosa da fraternidade, "a

religiosidade mágica está numa relação muito íntima com a esfera estética" (Weber, 1971:

390, 1984: 544). Segundo sua teoria, as esferas de valor operam de acordo com legalidades

próprias e não são redutíveis umas às outras, a despeito de na prática estabelecerem entre si

relações, acordos, e influências mútuas.

Nesse sentido, parece possível afirmar que a relação que especificamente o

candomblé, uma religião mágica nos termos weberianos, estabelece com a esfera estética diz

respeito à relação muito forte e intricada que essa religião mantém com o valor maior da

esfera estética que é o belo. Aqui essa "relação muito íntima" assume mesmo a feição de uma

indissociabilidade entre a dimensão estética e o sagrado: o belo é um valor estruturante que

perpassa todo o complexo ritual, que se faz presente em todos os momentos. Tal como uma

gramática que organiza a fala sem ser percebida, a dimensão estética pauta a religião dos

orixás em todas as suas expressões.

Isso acontece porque, como afirma Juana Elbein "o conceito estético é utilitário e

dinâmico" e ainda:

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"O conceito estético é utilitário e dinâmico. A música, as cantigas, as danças litúrgicas, os objetos sagrados quer sejam os que fazem parte dos altares — peji — quer sejam os que paramentam os orixás, comportam aspectos artísticos que integram o complexo ritual (...). A manifestação do sagrado se expressa por uma simbologia formal de conteúdo estético. Mas objetos, textos e mitos possuem uma finalidade e uma função. É a expressão estética que 'empresta' sua matéria a fim de que o mito seja revelado (...). O belo não é concebido unicamente como prazer estético: faz parte de todo um sistema" (Santos, 1966, apud Santos, 1975:49).

Não se pode perder de vista, no entanto que o belo é um valor relativo e, nesse sentido,

o que se considera belo no candomblé é fruto de uma concepção muito própria que sofre

influências diversas mas permanece bastante africana, como se pode perceber pelo modo

como essa religião lida com o gosto por ser visto, o valor da ostentação, como já comentei em

capítulo anterior. Ademais é uma estética imbuída do sagrado e o sagrado é conferido pelo

axé que as coisas contêm. "Axé é força vital, energia, princípio da vida, força sagrada dos

orixás" (Prandi, 1996: 5).

A sacralidade da expressão estética, no entanto, é visível aos olhos dos adeptos mas

não é óbvia para quem não conhece a religião.

"Os significados das performances religiosas não são os mesmos para os visitantes e para os participantes do rito. Para os participantes, o drama ritual é a materialização da religião. Durante a encenação ritual, os mitos, as histórias e as crenças tornam-se, para o crente, realidades genuínas; ele as concebe como presenças e não como representação de alguma coisa" (Santos, 2005:24).

O visitante que chega ao terreiro para assistir à festa pode notar que há uma clara

intenção de beleza, desde a entrada no terreiro com as árvores sempre enfeitadas por laços, a

decoração do barracão, depois as belas roupas dos filhos e, o ponto alto, os orixás. Um

convidado não religioso vai ao candomblé para fruir de sua dimensão espetacular, não

necessariamente para comungar com os devotos num ato de fé.

3.2. Trajes e ferramentas dos orixás

A beleza e exuberância dos trajes e insígnias dos orixás ajudam a compor a

apresentação dos deuses, que é o ponto alto de toda festa do candomblé, o que todos querem

ver, e concorre inclusive para a visibilidade da religião no espaço público.

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Eufrazia Santos afirma que

"A dimensão espetacular de suas cerimônias públicas constituiu um dos principais fatores responsáveis pelo aumento da visibilidade social alcançada por essa religião no espaço público, colaborando para a quebra da invisibilidade e do anonimato, impostos inicialmente às religiões de origem negra. Uma presença pública em parte garantida pelo poder de atração das linguagens expressivas integrantes de sua estrutura ritual" (2005: 21).

As roupas e insígnias dos orixás compõem uma das mais ricas linguagens expressivas

do candomblé.

O traje dos orixás, tanto masculinos quanto femininos, têm uma estrutura básica sobre

a qual há muitas variações nos tecidos e materiais usados, nas texturas, cores e acessórios.

Essa estrutura, nas roupas dos adeptos, é composta de uma sobreposição de panos amarrados,

que podem ou não ser arrematados em laços. A arte de vestir os orixás é a arte de amarrar

bem os panos e dar belos laços, de modo que os ojás não fiquem embolados, comprometendo

o visual das amarrações.

A vestimenta básica dos orixás masculinos pode ser composto de: calçolão, saia

armada, uma bata simples e muitas possibilidades de arranjos para os ojás. Também é

possível que o orixá não use a saia armada (herança de um candomblé antigo em que só

mulheres entravam em transe, e como mulheres, vestiam saia). Nesse caso usará uma calça

larga, presa um pouco acima da altura do tornozelo, e na parte de cima uma composição de

panos. Essa composição de panos freqüentemente pode ser feita com três ojás, da seguinte

forma: um sobre cada ombro (formando um xis), terminados em laço um pouco abaixo da

cintura, e um outro mais largo atado ao peito, sobre os outros dois, com o nó para trás. Esses

ojás são chamados também de atacãs. Algumas vezes vi esse atacã maior que fica sobre o

peito ser bordado com motivos do orixá, como um par de oxés, os machados duplos de

Xangô, por exemplo. Sob essa composição pode-se ou não usar um camisu, ou mesmo um

zinguê.

Os orixás masculinos e femininos cuja mitologia contém cenas de guerra podem usar

sobre o atacã que vai sobre o peito o que se convencionou chamar de peitaça. Trata-se de um

geralmente de metal na cor do orixá, prateado, dourado ou vermelho, que traz os motivos do

deus, como um par de espadas cruzadas para Ogum, uma mão de pilão para Oxaguiã ou um

raio para Iansã por exemplo. A peitaça pode ser de tecido ou couro, e então os motivos do

orixá serão bordados com lantejoulas, búzios ou algum outro material.

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Pode-se também usar um pano-da costa preso ao ombro e sobre ele um atacã atado ao

peito, ou mesmo um camisu sob o pano-da-costa usado dessa mesma forma; ou ainda somente

o camisu com um ojá ou uma faixa de couro na cintura e com outros acessórios característicos

do deus sobre os ombros, como o adô, o embornal em que Oxóssi carrega seus pertences.

Já as vestes das deusas têm como base o traje de baiana. São peças comuns no

vestuário de filhas e deusas: calçolão, saias de goma para armação, saia e pano-da-costa; o

que difere é que não há torço, como de resto também os orixás masculinos não o usam, são

substituídos por capacetes ou coroas, conforme o caso.

Há dois tipos de laço no vestuário do candomblé, um que se chama "gravata", que na

verdade não é o laço característico, mas sim um arremate para o nó em que uma das pontas do

ojá passa por debaixo do nó, voltando para a frente, de modo que o nó fica encoberto. O outro

tipo é o laço clássico com as voltas bem abertas. Na nossa sociedade, os laços clássicos são

ligados essencialmente à feminilidade, tanto é que as roupas de meninas são sempre

enfeitadas com os laços. Igualmente no candomblé, as roupas das filhas de orixás femininos e

as das deusas têm muitos laços.

No traje das deusas há normalmente pelo menos dois laços, um na altura da nuca, sob

o adê, a coroa, e outro feito com um ojá amarrado na altura do peito, que pode ter o laço para

a frente ou para trás. Além desses pode-se, por exemplo, amarrar longos ojás na cintura e

terminá-los em graciosos laços que ficam sobre a saia. Um detalhe interessante é que, em

geral, as deusas que têm um caráter marcadamente guerreiro como Obá e Oiá costumam usar

o laço na altura do peito para trás provavelmente para não atrapalhar na execução de suas

danças de luta e caça. As outras deusas, normalmente, usam o laço na frente.

Compõem o traje os acessórios que podem ser muitos e variados dependendo do orixá.

Em geral, além dos ilequês, os orixás usam muitas jóias, como coroas, pulseiras, braceletes, e

no caso dos orixás femininos, podem também usar tornozeleiras e anéis. Essa joalheria usada

pelos orixás é fortemente inspirada e influenciada pela joalheria crioula de que tratei no

capítulo anterior.

Dentre as jóias legitimamente crioulas chamam a atenção as pulseiras copos, que,

segundo Mariano Carneiro da Cunha, apareciam na África Ocidental e eram igualmente

confeccionadas pelos ourives do Nordeste, e no entanto desapareceram dos braços das

mulheres negras seja no candomblé ou fora dele, mas permaneceram na parafernália dos

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orixás e que hoje, se não são mais de ouro, por razões econômicas, podem ser de latão,

flandre, zinco niquelado ou mesmo cobre.

Além das jóias há as ferramentas, os símbolos que cada orixá carrega e que constituem

uma notável continuidade africana, "os símbolos dos orixás (ferramentas) são as mesmas aqui

e lá" (Cunha, 1983: 998). Apesar do sincretismo católico, a iconografia dos santos pouco ou

nada afetou a composição dos artefatos simbólicos dos orixás no Brasil. Ao contrário, as

vezes as ferramentas dos orixás direcionaram o sincretismo, como as flechas de Oxóssi, que o

associaram a São Sebastião, as cobras de Oxumarê a São Bartolomeu, o raio de Iansã a Santa

Bárbara. Discrepante é o caso de Exu, que, uma vez associado ao diabo cristão, ganhou

tridente além de chifres e rabo (Prandi, 2005).

Existe um conjunto de artefatos muito presente na parafernália do candomblé que na

África eram emblemas de realeza e que no Novo Mundo adquiriu status ritual, além de forte

carga simbólica.

"Bastões de mando, espanta-moscas, facas, enxós, machadinhas, espadas, braceletes,

etc., que encontramos em várias sociedades, são símbolos do exercício concreto do

poder e da autoridade. Quem os manipula, manipula os signos e, portanto, os homens"

(Munanga & Manzochi, 1987: 36).

Outro acessório fundamental são as franjas que cobrem o rosto dos filhos em transe de

alguns orixás. São como véus rica e pacientemente confeccionados com muitos fios

normalmente de contas e canutilhos, mas que podem também ser feitos com pequenos búzios,

pérolas, ou mesmo pedras semipreciosas, como vi uma vez numa peça para Oxum. Importante

notar que essa franja em geral é utilizada junto com o adê, a coroa, uma vez que esse tipo de

coroa bordada com contas e véu é um dos atributos mais conhecidos dos reis iorubás

(Thompson, 1970, Neyt & Vanderhaeghe, 2000). A realeza escondia o rosto da vista dos

mortais. O mesmo se faz para muitos orixás especialmente as aiabás (rainhas) e Oxalá.

Quase todos os orixás usam indés, pulseiras de metal em forma de argola, cada um no

seu metal característico. Essas também eram muito usadas pelos reis africanos (Neyt &

Vanderhaeghe, 2000). Além de enfeitarem, o que é muito evidente sobretudo em se tratando

das deusas, têm, segundo um sacerdote entrevistado, um significado ligado à circularidade, à

infinitude do tempo dos deuses, como já foi mencionado. O número de pulseiras que um

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orixá, e mesmo um filho, usa nunca é aleatório, é sempre o número do orixá no sistema

oracular, ou um múltiplo ou submúltiplo desse.

A seguir trato do traje de cada orixá e suas ferramentas como pude auferir na pesquisa

de campo e também na bibliografia (Santos, 1975; Carybé, 1980; Hernández, 1994; Verger,

1997, 1999; Prandi, 2001; Vallado, 2002). Faço a descrição de um traje para cada orixá para

mostrar como ele pode ser construído. A descrição é, contudo, bastante parcial porque para

cada deus há muitos modos de vestir e elaborar o traje. Diferentemente dos colares em que

não há muita variação nas cores para cada orixá, nas roupas tem-se muito mais liberdade

cromática. Além disso, as diferentes qualidades, invocações ou avatares de cada orixá são

indicados por variações nas cores e na composição de vestes e ferramentas.

Procuro salientar a relação dos trajes e as ferramentas dos orixás com os mitos porque

nessa religião de tradição oral eles são a grande fonte do conhecimento que se tem sobre os

deuses. Ademais não se pode negar que os adeptos do candomblé de São Paulo, os pais e

mães-de-santo e aqueles que são criadores dos trajes e de toda a parafernália do culto,

usualmente consultam a mitologia hoje disponível em livros.

Segundo Santos (2005: 81) "a participação crescente da classe média no candomblé foi

responsável pela introdução de novos itens de consumo". Dentre esses itens com certeza se

pode incluir as muitas publicações sobre a religião, o que acabou influenciando também a

estética religiosa.

Elegi para cada orixá um mito significativo com relação à sua expressão estética.

Escolhi relatar cada mito na íntegra e optei usar a grande e completa coletânea de mitos dos

orixás, fruto de longa e ampla pesquisa, publicada por Reginaldo Prandi (2001), o que me

permite ter os mitos relatados num mesmo estilo.

Exu

Traje: calça estampada de azul, branco e vermelho, pano-da-costa amarrado sobre o

ombro direito na mesma estampa da calça, na cintura uma faixa de tecido azul marinho

bordada com búzios e cabaças chamadas adôiran que contêm objetos secretos simbolizando a

dinâmica de Exu.

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Ferramentas: ogó, cetro de madeira em formato fálico com pequenas cabaças

penduradas representando os testículos e fios de búzios simbolizando o sêmen. Apô, sacola de

couro que contêm ervas e outros elementos que simbolizam sua força. Pode usar também o

filá que é um chapéu de couro em forma cônica.

Na África a representação material desse orixá tem a forma fálica, que simboliza a

ligação entre a terra dos humanos o Aiê e o céu dos orixás o Orum. As cabaças significam o

segredo envolvido nessa comunicação com os orixás.

Não por acaso Exu é o patrono da comunicação e é incumbência sua levar os pedidos

dos humanos até os deuses, muito embora para fazer isso sempre exija algo em troca. Há,

inclusive, muitos mitos que mostram a função mensageira de Exu e igualmente sua

personalidade travessa. Exu está sempre provocando a discórdia que leva à transformação.

Ele é o princípio dinâmico da religião dos orixás, nada se faz sem Exu; tanto é assim

que em qualquer ritual ele é o primeiro a ser louvado.

Dois camponeses amigos puseram-se bem cedo A trabalhar em suas roças, Mas um e outro deixaram de louvar Exu. Exu, que sempre lhes havia dado chuva e boas colheitas! Exu ficou furioso. Usando um boné pontudo, de um lado branco e do outro vermelho, Exu caminhou na divisa das roças Tendo um à sua direita e o outro à sua esquerda. Passou entre os dois amigos e os cumprimentou enfaticamente. Os camponeses entreolharam-se. Quem era o desconhecido? "Quem é o estrangeiro de barrete branco?", perguntou um. "Quem é o desconhecido de barrete vermelho?", questionou o outro. "O barrete era banco, branco", frisou um. "Não o barrete era vermelho", garantiu o outro. Branco. Vermelho. Branco. Vermelho. Para um, o desconhecido usava um boné branco, Para outro, um boné vermelho. Começaram a discutir sobre a cor do barrete. Branco. Vermelho. Branco. Vermelho.

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Terminaram brigando a golpes de enxada, mataram-se mutuamente. Exu cantava e dançava. Exu estava vingado. (Prandi, 2001: 48,49)

Esse mito mostra o caráter trickster de Exu e que toda a confusão começa por conta de

seu chapéu bicolor.

Ogum

Traje: calça azul escuro, pano-da-costa estampado em branco azul e verde amarrado

sobre o ombro esquerdo, atacã prateado atado ao peito, folhas de mariô, palmeira, desfiadas

presas na cintura. Capacete de metal branco ou de palha arrematado com penas. Pulseiras

copos e braceletes prateados.

Ferramentas: sabre, idá, em ferro, aço, zinco niquelado ou outro metal branco.

Ogum é o deus dos ferreiros na África e seu culto foi muito difundido no Brasil. É o

orixá da metalurgia, dos caminhos e da guerra.

Há em seu repertório muitas danças vigorosas em que dramatiza essa atividade com

sua espada. Além da espada que é por excelência o emblema de Ogum, ele também pode

carregar presa na roupa uma penca de ferro com miniaturas de diversas ferramentas para a

agricultura, que na África é seu patronato. No Brasil poucos se lembram de Ogum como

agricultor mas a representação africana do orixá não mudou.

Ogum também pode usar uma espécie de diadema ou pequena coroa de acordo com a

qualidade cultuada, mas em geral usa um capacete de guerreiro. Esse adorno caracteriza o

senhor da guerra que é Ogum, o portador da espada que destrói e as ferramentas que edificam,

simbolizando os atributos "desse deus simultaneamente civilizador e destruidor" (Neyt &

Vanderhaeghe, 2000: 93). Ogum Alacorô, que usa a pequena coroa, é lembrança de que o rei

da cidade de Irê não podia usar a coroa completa dos reis tributários da cidade de Ilê Ifé,

considerada a primeira cidade iorubá. Só usava uma meia coroa chamada acorô, daí o nome

Alacorô, o senhor da pequena coroa.

No começo do mundo, eram as mulheres que mandavam na Terra

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e eram elas que dominavam os homens. A mulher manejava o homem com o dedo mindinho. As mulheres tinham o poder e o segredo. Iansã tinha inventado o mistério da sociedade dos egunguns, a sociedade de culto aos antepassados, e os homens estavam sempre submissos ao poder feminino. Quando as mulheres queriam humilhar seus maridos, elas se reuniam com Iansã debaixo de uma árvore. Iansã tinha um macaco ensinado. Ela o fazia aterrorizar os homens. Sim, mandava eu ele fizesse coisas para assustar os maridos. Quando viam ali na árvore O macaco fazendo as coisas a mando de Iansã, os homens se apavoravam e se submetiam ao poder feminino. Finalmente, um dia os homens resolveram acabar com aquela humilhação de estarem sempre submissos ao poder de suas mulheres. Os homens consultaram Orunmilá e ele mandou fazer um ebó. O sacrifício era de galos, uma roupa, uma espada, um chapéu. Ogum era quem deveria levar o sacrifício, a ser oferecido sob a árvore das mulheres. Ogum foi bem cedo à árvore, antes da chegada das mulheres. Ali ofereceu os galos, vestiu a roupa e o chapéu e empunhou a espada. Quando as mulheres chegaram e viram aquele homem forte vestido como um poderoso e armado até os dentes, exibindo aos quatro ventos seu porte de guerreiro, elas saíram a correr e a correr num pânico incontrolável. A vista do homem assumindo o poder era terrificante. As mulheres não suportaram tal visão. Iansã foi a primeira a fugir de espanto. Uma das mulheres, de medo, correu tanto que desapareceu da face da Terra para sempre. Desde esse dia o poder pertence aos homens. E os homens expulsaram as mulheres das sociedades secretas. Porque a posse do segredo é agora dos homens. Iansã, no entanto, ainda é a rainha do culto dos egunguns. (Prandi, 2001: 106,107).

Há outros orixás que também são guerreiros, mas esse é o domínio de Ogum por

excelência e sua apresentação sempre lembra um soldado em combate, "vestido como um

poderoso e armado até os dentes".

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Oxóssi

Traje: calça azul-turquesa, dois atacãs em xis sobre os ombros e um sobre o peito

estampados em azul e verde, uma faixa de couro com apliques em pele de cabrito presa na

cintura, chapéu de couro. Pulseiras copos e braceletes revestidos de tecido azul-turquesa com

aplique de pele de cabrito e búzios bordados.

Ferramentas: ofá, eruquerê, um par de ogês, bilala e chapéu adornado com penas e

plumas de caça.

Ofá é uma ferramenta em forma de arco e flecha, própria do orixá caçador, que em sua

dança dramatiza essa atividade, como também o cavalgar. Eruquerê, espanta-mosca, uma

espécie de cetro com uma base feita de couro com pêlos de rabo de touro ou cavalo. Como foi

dito, na África é um emblema da realeza e assume um caráter ritual importante, pois detém

poderes sobrenaturais. Com ele o orixá caçador "tem o poder de controlar e manejar todo o

tipo de espíritos da floresta" (Santos, 1975: 94).

Um par de ogês, os chifres, com os quais ele, batendo um no outro, produz força

sobrenatural conforme conta o mito. Bilala é uma chibata com tiras de couro. Também pode

levar a tiracolo o adô, bolsa de couro que usa para carregar seus pertences.

Oxóssi caçava todo dia. Todo dia ia à mata em busca de caça. Mas tinha dia em que tudo era proibido. As mulheres não vendiam no mercado. Os homens não cultivavam os campos. Os pescadores não pescavam. Os guerreiros não guerreavam. Os adivinhos não adivinhavam. Os ogãs sacrificadores não matavam as oferendas. Os caçadores não caçavam. Era o grande dia das proibições, era dia de euó. Oxóssi ia à mata todo dia para a caça. Mas tinha um dia em que tudo era tabu. Oxóssi naquele dia não podia caçar. Mas Oxóssi só pensava em si e contrariou as determinações de Olodumare. Penetrou na floresta e pôs-se a lançar flechas indiscriminadamente. De repente, surgiu diante dele uma fera, uma visão bestial, que Oxóssi desejou ardentemente abater. Antes que Oxóssi lançasse sua flecha,

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a besta transformou-se em Odudua. Oxóssi entendeu o sentido dos tabus daquele dia. O caçador aterrorizado gritou petrificado, o arco esticado como se fosse atirar. Ali ficou Oxóssi, o arco retesado, o gesto de ataque parado no ar. Ali ficou para sempre seu ofá, seu arco e flecha. O ofá do caçador, o ofá do orixá. (Prandi, 2001: 119,120).

Esse mito relata como surgiu o ofá, o símbolo máximo de Oxóssi. Outros orixás

podem carregar o ofá sempre simbolizando a caça, que é o domínio do rei de Ketu.

Logum Edé

Traje: calçolão azul-turquesa, saia armada azul-turquesa com bordados dourados,

camisu azul-turquesa, atacãs dourados em forma de xis sobre os ombros arrematados em laço,

outro atacã dourado mais largo sobre o peito arrematado em laço nas costas. Coroa dourada,

franja de canutilhos dourados intercalados com contas azul-turquesa. Pulseiras copos e

braceletes dourados.

Ferramentas: idá, ofá, bilala e abebé. Também pode usar o adô, bolsa de couro a

tiracolo.

Logum Edé é um orixá jovem, o mais jovem do panteão, e muito bonito. Seu domínio

é a mata que margeia os rios. Filho de Erinlé, no Brasil confundido com Oxóssi, ou

considerado uma de suas qualidades e Oxum. Usa os emblemas de seus pais em metal

dourado e como sua mãe usa coroa com franja.

Sua dança tanto pode ser de caça como a de Erinlé, quanto pode ser dengosa e calma

como o doce correr do rio que Oxum evoca em seus movimentos.

Herda também as patronagens de seus pais: a fartura de alimentos proporcionada por

Erinlé, e riqueza proporcionada por Oxum. Logum Edé é tido como o orixá da boa sorte.

Um dia Oxum Ipondá conheceu o caçador Erinlé e por ele se apaixonou perdidamente. Mas Erinlé não quis saber de Oxum. Oxum não desistiu e procurou um babalaô.

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Ele disse que Erinlé só se sentia atraído pelas mulheres da floresta, nunca pelas do rio. Oxum pagou o babalaô e arquitetou um plano: Embebeu seu corpo em mel e rolou pelo chão da mata. Agora sim, disfarçada de mulher da mata, Procurou de novo o seu amor. Erinlé se apaixonou por ela no momento em que a viu. Um dia, esquecendo-se das palavras do adivinho, Ipondá convidou Erinlé para um banho no rio. Mas as águas lavaram o mel de seu corpo e as folhas do disfarce se desprenderam. Erinlé percebeu imediatamente como tinha sido enganado e abandonou Oxum para sempre. Foi-se embora sem olhar para trás. Oxum estava grávida; deu à luz Logum Edé. Logum Edé é metade Oxum, a metade rio, e é metade Erinlé, a metade mato. Suas metades nunca podem se encontrar e ele habita num tempo o rio e noutro tempo habita o mato. Com o ofá, arco e flecha que herdou do pai, ele caça. No abebé, espelho que recebeu da mãe, ele se mira. (Prandi, 2001: 136, 137).

Esse mito mostra a origem mítica de Logum Edé e como ele, por ser filho de Oxum e

Erinlé, recebe de seus pais as cores e as ferramentas que usa.

Ossaim

Traje: calçolão branco, camisu branco, um atacã verde amarrado sobre o peito com

laço tipo gravata para trás, muitas folhas presas sobre os ombros, na cintura e nas mãos.

Capacete de palha bordado com búzios cuja parte posterior pende um longo chumaço de palha

da costa. Braceletes e pulseiras tipo copo em palha, bordadas com búzios.

Ferramentas: mão de pilão, com a qual pila as folhas para fazer os remédios e uma

lança curta. Atós, cabaças nas quais carrega seus pós medicinais e uma bolsa onde leva as

folhas que pertencem aos outros orixás. Uma haste encimada por um pássaro e circundada por

um feixe de seis lanças é seu símbolo maior.

Embora haja poucos adeptos que entrem em transe desse orixá, seu culto é

fundamental no candomblé. Costuma-se dizer "kossi ewe, kossi orisa", "sem folha, não tem

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orixá", uma vez que as folhas são uma fonte importantíssima de axé. Atribui-se inclusive a

eficácia do rito à capacidade do sacerdote de conhecer quais as folhas certas para cada orixá.

Desde pequeno Ossaim andava metido mata adentro. Conhecia todas as folhas e seus segredos. De cada qual sabia o encantamento apropriado. Sabia empregá-las na cura de doenças e outros males e com elas preparava beberagens, banhos e ungüentos, que carregava consigo em miraculosas cabacinhas. Um dia Ossaim resolveu partir pelo mundo, sempre portando seus mágicos atós, as cabacinhas. Sua fama o antecipava. Por onde andava era aclamado o grande curandeiro. Certa vez salvou a vida de um rei, que em troca quis lhe dar muitas riquezas. Ossaim não aceitou nada daquilo, somente recebia os honorários justos que eram pagos a qualquer médico ou feiticeiro. Tempos depois sua mãe caiu enferma e seus irmãos foram buscá-lo para tratar dela. Ossaim chegou com suas folhas e atós de remédios, Mas estipulou um pagamento de sete búzios pela cura. Os irmãos se espantaram com a exigência, porém mesmo a contragosto, pagaram a quantia pedida e a mãe foi salva. O dinheiro era parte da magia, que tem seus encantamentos, fórmulas e preceitos, que nem mesmo Ossaim pode mudar. Ossaim curou a mãe e seguiu o seu caminho, como a folha que é livre e o vento leva. (Prandi, 2001: 154, 155).

Esse mito mostra as cabaças, os atós em que Ossaim guarda os seus remédios, e

também menciona os búzios. Dois elementos sempre presentes no traje dele, é comum

inclusive, Ossaim usar um colar todo feito de búzios.

Iroco

Traje: calçolão branco, saia armada de juta fina crua, dois atacãs de juta fina crua em

xis, terminados em laço, um atacã verde sobre o peito terminado em laço nas costas. Capacete

de palha bordado com búzios. Pulseiras copos e braceletes de palha bordados com búzios.

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Ferramentas: uma forquilha do galho da gameleira branca, que é sua árvore no Brasil.

Iroco é o deus das velhas e grandes árvores. No Brasil foi associado à gameleira

branca. Aqui não são todos os terreiros que o cultuam e muito raros são seus filhos, mas a

Iroco cabe um patronato muito importante em tempos de aquecimento global: é ele quem

cuida da ecologia.

Era uma vez uma mulher sem filhos, que ansiava desesperadamente por um herdeiro. Ela foi consultar o babalaô e o babalaô lhe disse como proceder. Ela deveria ir à árvore de Iroco e a Iroco oferecer um sacrifício. Comidas e bebidas que ele prescreveu e a mulher concordou em oferecer. Com panos vistosos ela fez laços e com os laços enfeitou o pé de Iroco. Aos seus pés depositou o seu ebó, tudo como mandara o adivinho. Mas de importante preceito ela se esqueceu. A mulher que queria ter um filho deu tudo a Iroco, quase tudo. O babalaô mandara que nos três dias antes do ebó ela deixasse de ter relações sexuais. Só então, assim, com o corpo limpo, deveria entregar o ebó aos pés da árvore sagrada. A mulher disso se esqueceu e não negou deitar-se com o marido nos três dias que precediam o ebó. Iroco irritou-se com a ofensa, abriu uma grande boca em seu grosso tronco e engoliu quase totalmente a mulher, deixando de fora só os ombros e a cabeça. A mulher gritava feito louca por ajuda e toda a aldeia correu para o velho Iroco. Todos assistiam ao desespero da mulher. O babalaô foi também até a árvore e fez seu jogo e o jogo que o babalaô fez para a mulher revelou sua ofensa, sua oferta com o corpo sujo, porque para fazer oferenda a Iroco é preciso ter o corpo limpo e isso ela não tinha. Mas a mulher estava arrependida e a grande árvore deixou que ela fosse liberada. Toda a aldeia ali reunida regozijou-se pela mulher. Todos cantaram e dançaram de alegria.

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Todos deram vivas a Iroco. Tempos depois a mulher percebeu que estava grávida e preparou novos laços de vistosos panos e enfeitou agradecida a planta imensa. Tudo ofereceu-lhe do melhor, antes resguardando-se para ter o corpo limpo. Quando nasceu o filho tão esperado, ela foi ao babalaô e ele leu o futuro da criança: deveria ser iniciada para Iroco. Assim foi feito e Iroco teve muitos devotos. E seu tronco está sempre enfeitado e aos seus pés não faltam oferendas. (Prandi, 2001: 169-171).

As árvores dos terreiros são sempre enfeitadas com laços de tecidos brancos ou

estampados em muitas cores. A gameleira de Iroco, quando existente no terreiro, recebe

ornamentação mais caprichada, pois a árvore é o orixá.

Nanã

Traje: calçolão branco, saia armada de richelieu branco, pano-da-costa lilás claro preso

na altura do peito, bata de richelieu branco, ojá terminado em laço na frente, na altura do

peito, de tecido branco com richelieu nas pontas. Adê de palha bordado com búzios e franja

de palha-da-costa. Pulseiras copos e braceletes de palha bordados com búzios.

Ferramentas: ibiri, cetro em formato de J com a curva fechada, feito das nervuras de

folhas do dendezeiro, presas com tecido ou couro, decorado com búzios e miçangas. Espada

curta.

Nanã e seus filhos Omulu e Oxumarê fazem parte do panteão dos orixás da terra.

Esses são originalmente voduns, os deuses dos fons do Daomé, que foram incorporados ao

panteão dos orixás.

É um orixá muito antigo, e sua regência principal é a morte e o mundo dos ancestrais.

Nanã domina a lama do fundo das águas: a terra úmida, fecundada, matéria-prima da qual se

origina o ser humano e para onde ele volta, tornando possíveis os renascimentos.

O ibiri é um cetro de mando, e também pode ser utilizado como arma. Como a lama

de Nanã é a origem de todos os seres humanos, o ibiri por seu formato representa, conforme

me foi dito por um pai-de-santo, o útero grávido. Segundo Elbein (1999), o feixe de nervuras

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que forma o ibiri representa também a coletividade dos ancestrais. Em sua coreografia Nanã

nina o ibiri como se fosse uma criança, numa dança muito bonita que faz pensar que a deusa

está embalando em seus braços toda a humanidade. A mãe de Obaluaê e Oxumarê também é

uma rainha que usa coroa, adê de palha, e franja cobrindo o rosto.

Dizem que quando Olorum encarregou Oxalá de fazer o mundo e modelar o ser humano, o orixá tentou vários caminhos. Tentou fazer o homem de ar, como ele. Não deu certo, pois o homem logo se desvaneceu. Tentou fazer de pau, mas a criatura ficou dura. De pedra ainda a tentativa foi pior. Fez de fogo e o homem se consumiu. Tentou azeite, água e até vinho-de-palma, e nada. Foi então que Nanã Burucu veio em seu socorro. Apontou para o fundo do lago com seu ibiri, seu cetro e arma, e de lá retirou uma porção de lama. Nanã deu a porção de lama a Oxalá, o barro do fundo da lagoa onde morava ela, a lama sob as águas, que é de Nanã. Oxalá criou o homem, o modelou no barro. Com o sopro de Olorum ele caminhou. Com a ajuda dos orixás povoou a Terra. Mas tem um dia que o homem morre e seu corpo tem que retornar à terra, voltar à natureza de Nanã Burucu. Nanã deu a matéria no começo mas quer de volta no final tudo o que é seu. (Prandi, 2001: 196, 197).

Esse mito narra como Nanã forneceu a matéria-prima para a modelagem do homem e

esclarece como ela ganhou por isso o patronato sobre a morte. O fato dessa deusa ter o roxo

entre suas cores principais talvez se explique por ser o roxo a cor da morte no catolicismo.

Omulu ou Obaluaê

Traje: calçolão branco, saia armada de juta fina, atacã branco sobre o peito e azê, uma

espécie de capuz feito de palha-da-costa cujo comprimento é o mesmo da saia, enfeitado com

cabacinhas. Capacete de palha bordado com búzios.

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Ferramentas: xaxará, vassoura estilizada de nervuras das folhas do dendezeiro, presas

com tecido ou couro e decorada com búzios e contas. Esim-ocô, que é uma lança de ferro,

uma espécie de bengala de madeira chamada kumon que normalmente tem na extremidade um

rosto entalhado.

Deus da varíola, usa uma veste muito diferente dos outros orixás composta de um

capuz de palha-da-costa, azê, que cobre todo o seu corpo marcado pela doença. É dele o poder

de curar as enfermidades. Também está associado, como sua mãe Nanã, à morte e aos eguns,

os espíritos dos ancestrais, daí mais um sentido de sua roupa ser de palha-da-costa, que é um

elemento sempre presente nos rituais que envolvem a morte e os eguns.

Com o xaxará Obaluaê "varre" a peste, as impurezas e os males sobrenaturais.

Quando Omulu era um menino de uns doze anos, saiu de casa e foi para o mundo para fazer a vida. De cidade em cidade, de vila em vila, ele ia oferecendo seus serviços, procurando emprego. Mas Omulu não conseguia nada. Ninguém lhe dava o que fazer, ninguém o empregava. E ele teve que pedir esmola, mas ao menino ninguém dava nada, nem do que comer, nem do que beber. Tinha um cachorro que o acompanhava e só. Omulu e seu cachorro retiraram-se no mato e foram viver com as cobras. Omulu comia o que a mata dava: frutas, folhas, raízes. Mas os espinhos da floresta feriam o menino. As picadas de mosquito cobriam-lhe o corpo. Omulu ficou coberto de chagas. Só o cachorro confortava Omulu, lambendo-lhe as feridas. Um dia, quando dormia, Omulu escutou uma voz: "Estás pronto. Levanta e vai cuidar do povo". Omulu viu que todas as feridas estavam cicatrizadas. Não tinha dores nem febre. juntou as cabacinhas, os atós, onde guardava água e remédios que aprendera a usar com a floresta, agradeceu a Olorum e partiu. Naquele tempo uma peste infestava a Terra.

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Por todo lado estava morrendo gente. Todas as aldeias enterravam seus mortos. Os pais de Omulu foram ao babalaô e ele disse que Omulu estava vivo e que ele traria a cura para a peste. Todo lugar aonde chegava, a fama precedia Omulu. Todos esperavam-no com festa, pois ele curava. Os que antes lhe negaram até mesmo água de beber agora imploravam por sua cura. Ele curava todos, afastava a peste. Então dizia que se protegessem. levando na mão uma folha de dracena, o peregum, e pintando a cabeça com efum, ossum, e uági, os pós branco, vermelho e azul usados nos rituais e encantamentos. Curava os doentes com o xaxará varria a peste para fora da casa, para que a praga não pegasse outras pessoas da família. Limpava casa e aldeias com mágica vassoura de fibras de coqueiro, seu instrumento de cura, seu símbolo, seu cetro, o xaxará. Quando chegou em casa, Omulu curou os pais e todos estavam felizes. Todos cantavam e louvavam o curandeiro e todos o chamaram de Obaluaê, todos davam vivas ao Senhor da Terra, Obaluaê. (Prandi, 2001: 204- 206).

Esse mito narra como Omulu ganhou o domínio sobre a cura e usa seu xaxará para

varrer a enfermidade. Há danças em que o orixá aponta as chagas em seu próprio corpo e

igualmente em que afasta a enfermidade com seu poderoso cetro.

Oxumarê

Traje: calçolão branco, saia armada branca com detalhes em dourado, atacã branco e

dourado amarrado sobre o peito terminado em trança nas costas. Capacete em palha bordado

com búzios e guizos do qual pende uma longa trança de palha-da-costa toda bordada de

búzios e guizos cuja ponta é presa no braço. Argolas douradas e braceletes de palha bordados

com búzios e guizos.

Os guizos são sempre muito presentes no traje de Oxumarê, talvez por seu som

lembrar o da serpente.

Ferramentas: alfanje e cobras de metal, usa também uma espécie de cetro em formato

de meia-lua atravessado por uma flecha, com a qual ele fura as nuvens e provoca a chuva.

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Oxumarê é o filho bonito de Nanã. Conta o mito que ela escondeu Omulu, o filho feio,

sob as palhas, e pregou Oxumarê, o belo, no céu para que ele fosse sempre visto e tivesse sua

beleza admirada por todos. Foi assim que ele se transformou no arco-íris. Oxumarê também é

a serpente, é Dã do panteão jeje.

Oxum era mulher de Xangô, mas vivia enrabichada por Oxumarê. Oxumarê era o mais bonito e atraente moço do lugar e Xangô ficou embriagado de ciúme. Um dia, não suportando mais a idéia de perder Oxum para Oxumarê, Xangô chamou o possível rival para um duelo. Lutaram por três dias e três noites. Xangô era o mais hábil dos guerreiros e já ganhara muitas guerras e vencera muitas lutas. Oxumarê usava seu poder de dominar as cobras. Às vezes transformava-se em uma delas e escapava dos golpes mortais do machado de Xangô. Mas Xangô venceu. Xangô matou Oxumarê. Muitos choraram a morte do moço tão bonito. Nanã, a inconformada mãe de Oxumarê, foi procurar a ajuda de Olodumare. Tão bonito era Oxumarê que o Senhor Supremo se condoeu e transformou Oxumarê no arco-íris. Oxumarê, o rei dos astros, ficou para sempre vivo lá no céu. (Prandi, 2001: 228, 229).

Esse mito diz que Oxumarê às vezes se transforma na própria serpente. Há uma dança

em que o orixá apresenta-se como se fosse uma cobra, o som dos guizos, sempre presentes em

seu traje, faz reforçar essa simbolização. O mito também retrata a ligação de Oxumarê com

Nanã e Omulu. É comum a essa família de orixás de origem jeje o uso da palha nas

vestimentas.

Euá

Traje: calçolão, saia armada dourado-escuro, pano-da-costa vermelho preso na cintura,

laço na cintura arrematado para frente, ojá dourado e vermelho sobre o peito arrematado em

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laço para trás. Ojá dourado terminado em laço na nuca, adê de palha-da-costa tingida de

vermelho bordado com búzios e franja de palha.

Ferramentas: pulseiras tipo escrava, espada e ofá pendurado sobre a roupa. Aracolé,

chocalho de cabaça coberto por búzios encimado por uma lança, e ofá.

Euá, assim como Exu, Ossaim e Obá, tem muito poucos filhos. Acredita-se no

candomblé que tenha praticamente se perdido a fórmula para se iniciar alguém de Euá, que é

do conhecimento de poucos, e com isso seu culto seria muito restrito.

Euá domina os cemitérios, e também é senhora do horizonte, do encontro entre a terra

e o céu. É a deusa das fontes.

Conta um de seus mitos que Euá se transformou em nascente para saciar a sede de

seus filhos que estavam perdidos na floresta. Outro mito diz que Xangô deu de presente a Euá

uma cabaça cheia de mistérios. Essa cabaça enfeitada com fileiras de búzios encimada por

uma lança, o aracolé, é sua insígnia. Ela conteria os segredos de Euá. O ofá se deve ao fato

de ela também ser uma caçadora.

Euá, filha de Obatalá, vivia enclausurada em seu palácio. O amor de Obatalá por ela era possessivo. A fama de sua beleza chegava a toda parte, inclusive aos ouvidos de Xangô. Mulherengo como era, Xangô planejou seduzir Euá. Empregou-se no palácio para cuidar dos jardins. Um dia Euá apareceu na janela e deslumbrou-se com o jardineiro. Euá nunca vira um homem assim tão fascinante. Xangô deu muitos presentes a Euá. Deu-lhe uma cabaça enfeitada com búzios, com uma cobra por fora e mil mistérios por dentro, um pequeno mundo de segredos, um adô. E Euá entregou-se a Xangô. Dizem que o amor de Xangô fez Euá muito infeliz e que ela renegou sua paixão. Decidiu se retirar do mundo dos vivos e pediu ao pai que a enviasse a um lugar distante, onde homem algum pudesse vê-la novamente. Obatalá deu então a Euá o reino dos mortos, que os vivos temem e evitam. Desde então é ela quem domina o cemitério. Ali ela entrega a Oiá os cadáveres dos humanos,

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os mortos que conduz a Orixá Ocô e que Orixá Ocô devora pra que voltem novamente à terra, à terra de Nanã de que foram um dia feitos. Ninguém incomoda Euá no cemitério. (Prandi, 2001: 241).

Esse mito fala da beleza de Euá pela qual Xangô se encantou e deu a ela seu aracolé.

Xangô

Traje: calçolão branco, saia armada de richelieu branco, atacã vermelho com bordado

de uma coroa em fio vermelho brilhante, terminado em laço tipo gravata para as costas. Coroa

em cobre. Braceletes e pulseiras copos revestidos de tecido vermelho bordados com pedraria.

Ferramentas: oxé, machado duplo, e xere, chocalho de metal.

Xangô é um dos orixás mais populares do Brasil. Havia muitos devotos desse orixá

dentre os africanos que iniciaram o candomblé, talvez por isso haja uma grande quantidade de

oxés nas coleções de arte africana e arte afro-brasileira de muitos museus, como o Museu

Nacional, no Rio de Janeiro, e o MAE, Museu de Arqueologia e Etnologia, em São Paulo.

Xangô teria sido rei de Oió, por isso em todos os seus avatares ele aparece portando a

coroa, que é o símbolo máximo da realeza. Na África rei é também o mais alto magistrado,

daí a lâmina dupla do oxé que evoca a justiça, da qual Xangô é patrono. O oxé é também,

obviamente, uma arma.

O xere, é um chocalho ritual em geral de metal vermelho, cujo barulho imita a chuva e

que tem a função de chamar Xangô. Em sua dança ele também pode soar o xere.

Xangô e seus homens lutavam com um inimigo implacável. Os guerreiros de Xangô, capturados pelo inimigo, eram mutilados e torturados até a morte, sem piedade ou compaixão. As atrocidades já não tinham limites. O inimigo mandava entregar a Xangô seus homens aos pedaços. Xangô estava desesperado e enfurecido. Xangô subiu no alto de uma pedreira perto do acampamento e dali consultou Orunmilá sobre o que fazer. Xangô pediu ajuda a Orunmilá. Xangô estava irado e começou a bater nas pedras com o oxé, bater com seu machado duplo.

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O machado arrancava das pedras faíscas, que acendiam no ar famintas línguas de fogo, que devoravam os soldados inimigos. A guerra perdida foi se transformando em vitória. Xangô ganhou a guerra. Os chefes inimigos que haviam ordenado o massacre dos soldados de Xangô foram dizimados por um raio que Xangô disparou no auge da fúria. Mas os soldados inimigos que sobreviveram foram poupados por Xangô. A partir daí, o senso de justiça de Xangô foi admirado e cantado por todos. Através dos séculos, os orixás e os homens têm recorrido a Xangô para resolver todo tipo de pendência, julgar as discordâncias e administrar a justiça. (Prandi, 2001: 245).

Esse mito mostra a essência de Xangô e seu oxé com o qual ele faz a guerra e também

a justiça.

Oiá ou Iansã

Traje: calçolão vermelho, saia armada vermelha com bordados dourados, pano-da-

costa vermelho também bordado atado ao peito, ojá em tecido brilhante vermelho amarrado

para trás na altura do peito arrematado em laço nas costas, ojá do mesmo tecido arrematado

em laço na nuca. Adê de cobre com franja de canutilhos vermelhos brilhantes.

Ferramentas: espada, idá, e eruexim, um espanta-moscas semelhante ao de Oxóssi

confeccionado com rabo de cavalo. Um par de ogês, os chifres que seus filhos fazem soar

para chamá-la.

Oiá é a esposa preferida de Xangô, costuma acompanhá-lo em suas muitas batalhas e

por causa de seu caráter guerreiro ela usa espada, sempre em metal vermelho, de que também

são feitos seus braceletes e coroa. O orixá da tempestade usa franja cobrindo o rosto pois é

uma rainha.

Seu outro emblema o eruexim, além de ser sinal de sua realeza, é o artefato com o qual

conduz os eguns, os espíritos dos mortos ao outro mundo, e também os afasta dos humanos

quando necessário.

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Oiá era uma mulher muito desejada, que além de bela, sedutora e guerreira preparava deliciosos acarajés como ninguém. Um dia Xangô raptou Oiá da casa de Ogum. Voltando de uma caçada, Ogum ficou ciente do ocorrido e mandou uma mensagem a Xangô: iria buscar sua mulher. Começava a rivalidade pela conquista de Oiá. Os dois preparavam-se para o litígio. Cada um consultou Ifá e fez as oferendas necessárias e ambos colocaram as oferendas numa estrada. Ogum ofereceu inhames e farofa. Xangô, por sua vez, ofereceu amalá e orogbôs, Ogum apresentou-se com sete escravos e Xangô com doze. Ogum não se amedrontou e ambos partiram para a luta. Antes, porém, comeram das comidas oferecidas. Começaram a lutar e nunca mais pararam. E até hoje dessa guerra muitas aventuras são contadas. Nessa luta Oiá ganhou de Ogum uma espada e nunca mais deixou de ser uma guerreira. Muitas aventuras dessa guerra são contadas E todas falam de uma Oiá guerreira e amante, Sempre disputada por Xangô e Ogum, os seus amados. (Prandi, 2001: 307).

Esse mito trata da beleza de Oiá e mostra como ela ganhou de Ogum a espada com a

qual faz a sua guerra.

Obá

Traje: calçolão vermelho, saia armada em tons de vermelho laranja e amarelo; pano-

da-costa de tecido vermelho brilhante com bordado dourado preso na cintura, atacã do

mesmo tecido atado ao peito terminado em laço nas costas, peitaça de cobre com escudo em

relevo sobre o atacã, outro ojá do mesmo tecido terminado em laço na nuca. Adê de cobre

com franja de canutilhos vermelhos brilhantes. Indés de cobre em ambos os braços.

Ferramentas: espada, ofá e escudo circular em cobre.

Obá é a primeira esposa de Xangô, também casado com Oiá e Oxum.

Obá usa o escudo com o qual dança cobrindo a orelha que ela teria mutilado, enganada

por Oxum, como conta seu mito mais difundido. Além do escudo, porta espada por ser

guerreira. Pode ainda usar o ofá porque teria vivido um tempo com Oxóssi, com quem

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aprendeu as artes da caça. Todos os seus adereços são de cobre e ela também usa coroa com

franja.

Obá e Oxum competiam pelo amor de Xangô. Cada semana, uma das esposas cuidava de Xangô, fazia sua comida, servia à sua mesa. Oxum era a esposa mais amada e Obá imitava Oxum em tudo, inclusive nas artes da cozinha, pois o amor de Xangô começava pelos pratos que comia. Oxum não gostava de ver Obá copiando suas receitas e decidiu vencer definitivamente a rival. Um dia convidou Obá à sua casa, onde a recebeu usando um lenço na cabeça, amarrado de modo a esconder as orelhas. Oxum mostrou a Obá o alguidar onde preparava uma fumegante sopa, na qual boiavam dois apetitosos cogumelos. Disse à curiosa Obá que eram suas próprias orelhas, orelhas que ela cortara, segredou cumplicemente. Xangô havia de se deleitar com a iguaria. Não tardou para que ambas testemunhassem o sucesso da receita. O marido veio comer e o fez com gula, se fartou. Elogiou sem parar os dotes culinários da mulher. Obá quase morreu de ciúme. Na semana seguinte, Obá preparou a mesma comida, cortou uma de suas orelhas e pôs para cozinhar. Xangô, ao ver a orelha no prato, sentiu engulhos. Enojado, jogou tudo no chão e quis bater na esposa, que chorava. Oxum chegou nesse momento, exibindo suas intactas orelhas. Obá num segundo entendeu tudo, odiou a outra mais do que nunca. Envergonhada e enraivecida, precipitou-se sobre Oxum e ambas se envolveram numa briga que não tinha fim. Xangô já não suportava tanta discórdia em casa E esse incidente só fez aumentar a sua raiva. Ameaçou de morte as briguentas esposas, perseguiu-as. Ambas tentaram fugir da cólera do esposo. Xangô procurou alcançá-las, lançou o raio contra elas, mas elas corriam e corriam, embrenhando-se nos matos, ficando cada vez mais distantes, mais inalcançáveis. Conta-se delas que acabaram transformadas em rios. E de fato, onde se juntam o rio Oxum e o rio Obá, a correnteza é uma feroz tormenta de águas que disputam o mesmo leito. (Prandi, 2001: 314-316).

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Esse é o mito mais conhecido de Obá que narra sua eterna rivalidade com Oxum, diz-

se mesmo que na África o encontro dos rios Oxum e Obá resulta numa estrondosa pororoca

por conta da rivalidade entre ambas. Mostra também seu caráter guerreiro e porque ela usa

escudo, para proteger e esconder a orelha mutilada.

Oxum

Traje: calçolão branco, saia armada de tecido dourado com bordados em dourado

escuro, bata de richelieu branco, pano-da-costa de richelieu branco com dourado preso na

altura do peito, um ojá dourado terminado em laço na frente na altura do peito, outro ojá do

mesmo tecido sobre cabeça terminado em laço na nuca. Adê dourado com franja de canutilhos

dourados brilhantes, intercalados com miçangas douradas em tom mais claro. Braceletes e

argolas douradas nos braços.

Ferramentas: abebé, leque de metal amarelo com um espelho no centro, e espada

pequena.

Oxum é a mais nova das esposas de Xangô, belíssima e extremamente vaidosa. Todos

os seus adereços são dourados porque essa é a cor do ouro, o metal símbolo da riqueza

material que ela governa.

Trata-se de uma deusa extremamente sedutora e vaidosa. O abebé, um tipo de leque

com espelho, é sua insígnia mais importante. Oxum também é uma guerreira e por isso muitas

vezes carrega espada.

Oxum é certamente o orixá que mais encarna os atributos típicos da feminilidade e

talvez por isso, aliada à vaidade que costuma ser uma característica de seus filhos, ela é

sempre apresentada com muitos enfeites dentre os quais destacam-se peixes dourados que ela

pode trazer pendurados na saia.

Oxum morava perto da lagoa, perto da ossá. Todos os dias Oxum ia à lagoa se banhar; todos os dias ia polir suas pulseiras, seus indés; todos os dias lavava na lagoa seu idá. Oxum caminhava junto às margens, sobre as pedras cobertas pelas águas rasas da beira da lagoa. E as pedras brutas alisavam os seus pés

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e seus pés nas pedras ficavam mais formosos, tão macios. Oxum ia à lagoa sempre esperando um amor, que viria um dia, espreitando, apreciar sua beleza. Oxum caminhava nua, esperando pelo homem que viria um dia espiar sua exuberância. Oxum ia à lagoa brunir os seus indés e na lagoa lavava seu punhal, seu idá. Ia banhar seu corpo arredondado, lavar os seus cabelos, lixar seus pés nas rochas ásperas da ossá. Oxum ia desnuda, pensando num amor a conquistar. Tanto foi Oxum à ossá que as pedras se gastaram com o seu caminhar. Viraram seixos rolados pelo tempo, modelados e alisados sob os pés do orixá. Aí um dia aproximou-se da lagoa um belo caçador e Oxum logo por ele se enamorou. Dentro da lagoa Oxum dançou suas danças, dançou para o jovem caçador danças de amor, de sedução. E o caçador deixou-se atrair por tanto encanto. O caçador perdidamente enamorou-se de Oxum. Não via o rosto dela, encoberto pela cascata de contas que escondia sua face do olhar dos curiosos, mas podia antecipar sua formosura. E chamou Oxum à terra, ao prazer do amor. Quando Oxum saía da água para entregar-se ao caçador. as contas que lhe cobriam o rosto voaram com o vento e a face de Oxum se descobriu para ele. Terrível surpresa! Oxum, a que gastara com os pés as pedras de tanto caminhar para o zelo da beleza, transformando pedras brutas em lisíssimos otás, e que não sentira passar o tempo que foi necessário para rochas brutas transformarem-se em seixos rolados, Oxum, sim Oxum estava velha. Muito velha. Muito feia. Olhos desbotados e sem viço na face gasta e enrugada pelo tempo. Era uma mulher muito velha e muito feia. A mais feia e velha de todas as mulheres; o caçador nem podia acreditar. Não era a mulher bela que o extasiara. Não era a mais doce das belezas que quisera arrebatar. Assustado e ofendido pelo espetáculo, ferido pela decepção, temeroso da feia visão, gritou o caçador: "É a mulher-pássaro, a velha feiticeira! É a terrível mulher-pássaro, Iá Mi Oxorongá!".

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O caçador havia confundido Oxum envelhecida com uma das temidas feiticeiras, as Iá Mi Oxorongá. E mais clamava o ainda assustado caçador: "Preciso ir à aldeia avisar a todos. Que é aqui que mora então a terrível velha-mãe. Aquela cujo nome já é ruim pronunciar!". Oxum estava pasma. Surpresa. Enfurecida. O ardil do tempo fora mais do que funesto. O tempo se esgotara e Oxum não percebera, todo o tempo apurando sua beleza. Todo o tempo banhando seus cabelos, polindo seu punhal, lavando seus indés. Oxum não podia deixar a aldeia saber desse segredo. Que Oxum envelhecera. Oxum Ijimu. Velha e feia. Oxum matou o caçador com seu idá e depois lançou-se atormentada ao lago. E nas águas da ossá Oxum se transformou num peixe. Mas a memória de sua beleza ficou inscrita em cada um dos seixos polidos por seus pés. A beleza de Oxum ficou para sempre nos otás. Quando as águas estão altas na lagoa, Oxum, o peixe, nada para as bordas da ossá e ali junto aos seus otás rememora vaidosa sua beleza. (Prandi, 2001: 327-329).

Esse mito mostra a formosura e a vaidade de Oxum que passou o tempo lavando e

polindo suas pulseiras na lagoa. Há uma dança em que a se deusa abaixa e se banha como se

estivesse em sua ossá. É um momento em que os fiéis correm para ela e seguram as pontas da

saia da deusa balançando levemente, criando assim um belíssimo efeito.

Iemanjá

Traje: calçolão prateado ou branco, saia armada em tecido muito fino e leve em

diversos tons de azul-claro com rendas brancas na barra, pano-da-costa do mesmo tecido

também com rendas preso na altura do peito, um ojá de tecido prateado arrematado com um

enorme laço na frente, outro ojá do mesmo tecido sobre a cabeça arrematado com laço na

nuca. Adê prateado com franja de pequeninas pérolas, bracelete prateado e delicadas pulseiras

de miçangas translúcidas azul-claro e pérolas.

Ferramentas: abano de metal branco e espada pequena.

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Iemanjá na África era a deusa do rio Ogum (não confundir com o orixá Ogum). Neste

lado do Atlântico Iemanjá ganhou o governo sobre o mar, que na África pertencia a Olocum,

não cultuada no Brasil. É sobretudo como a divindade do mar que seu culto ficou conhecido,

tendo sido muito difundido por todo o País pela umbanda (Vallado, 2002 ).

Algumas de suas danças lembram o movimento das ondas do mar. Mas Iemanjá

também assume algumas vezes um caráter guerreiro. Por isso usa espada.

Seu leque de metal branco às vezes tem espelho. Ela o usa para dramatizar uma cena

de vaidade, como Oxum, se mirando no espelho.

Xangô, o filho de Iemanjá, era briguento e andava pelo mundo destruindo tudo o que aparecesse diante dele. Preocupada, Iemanjá foi vê-lo e o repreendeu por seu comportamento. Iemanjá Sessu era uma grande mãe, sempre preocupada com a família, e queria endireitar o caráter de Xangô. Xangô não gostou da reprimenda. Em resposta aos clamores de Iemanjá, botou fogo pela boca, nariz e ouvidos. O corpo de Iemanjá começou a crescer diante do filho, as espumas de suas saias se avolumaram assustadoramente, e levantou ondas, vagalhões e marés apavorantes que derrubaram Xangô e quase o afogaram. As ondas rugiam e ameaçavam toda a Terra. Xangô se apavorou com a fúria da mãe, Xangô saiu gritando: "Onón komí Iyámi!". "Me dás medo, mãe!" Xangô agora teme e respeita Iemanjá profundamente, anda na linha e faz tudo o que ela manda. Mas se alguém falar mal de Xangô a Iemanjá, Sessu logo se irrita e defende o filho, que só ela pode, evidentemente, castigar. (Prandi, 2001: 393,394).

Esse mito nos informa que Iemanjá é mãe de Xangô e narra que as espumas de suas

saias se avolumaram levantando enormes ondas. Há danças muito delicadas e bonitas em que

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Iemanjá reproduz os movimentos sas ondas do mar. Todo seu vestuário têm elementos ligados

ao mar desde pérolas, até peixes estampados ou bordados.

Oxaguiã

Traje: calça em tecido branco brilhante, dois atacãs em xis de tecido brilhante azul

terminados em laço na altura da cintura, outro atacã atado ao peito e terminado em laço tipo

gravata nas costas do mesmo tecido branco da calça. Peitaça de metal branco com um pombo

em relevo, adê prateado encimado por um pombo, franja de canutilhos brancos brilhantes que

lhe cobre a parte superior da face.

Ferramentas: mão de pilão, espada e escudo de metal branco.

Conta o mito que Oxaguiã gostava muito de inhame amassado mas o preparo da

iguaria era muito demorado o que o irritava profundamente. Ele então inventou o pilão para

socar o inhame e assim pôde se fartar de sua comida predileta.

A invenção do pilão significa a criação da cultura material com a qual se completa a

criação do homem por Oxalá. Oxaguiã dança com a mão de pilão rememorando seu mito. As

vezes também usa um capacete de metal branco com pássaros afixados, símbolos da criação e

da realeza (cf. Neyt & Vandehaeghe, 2000).

Em muitos candomblés, Oxaguiã é cultuado como um Oxalá jovem e guerreiro, mas

seus demais atributos são os mesmos.

Oxaguiã, rei de Ejigbô, o Elejigbô, chamado "Orixá-Comedor-de-Inhame-Pilado", inventou o pilão para saborear mais facilmente seus prediletos inhames. Todo o povo do seu reino adotou sua preferência. Todo o povo de Ejigbô comia inhame pilado. E tanto se comia inhame em Ejigbô que já não se dava conta de plantá-lo. E assim, grande fome se abateu sobre o povo de Oxalá. Oxaguiã foi consultar Exu, que o mandou fazer sacrifícios e procurar o ferreiro Ogum, que naquele tempo vivia nas terras de Ijexá. O que podia fazer Ogum

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para que o povo de Ejigbô tivesse mais inhame?, consultou Oxaguiã. Ogum pediu sacrifícios e logo deu a solução. Em sua forja, Ogum fez ferramentas de ferro. Fez a enxada e o enxadão, a foice e apá, fez o ancinho, o rastelo, o arado. "leve isso ao seu povo, Elejigbô, e o trabalho na plantação vai ser mais fácil. Vão colher muitos inhames, mais do que agora quando plantam com as mãos", disse Ogum. E assim foi feito e nunca se plantou tanto inhame e nunca se colheu tanto inhame. E a fome acabou. O povo de Ejigbô, agradecido, cultuou Ogum e ofereceu a ele banquetes de inhames e cachorros, caracóis, feijão-preto regado com azeite-de-dendê e cebolas. Ogum disse a Oxaguiã: "Na casa de seu pai todos se vestem de branco, por isso também assim me visto para receber as oferendas". E o povo o louvava e Ogum ficou feliz. E o povo cantava. "A ka lónì fun Ògúnja mojuba". "Hoje fazemos sacrifício de cachorros a Ogum, Ogunjá, Ogum que come cachorro, nós te saudamos". Oxaguiã disse a Ogum: "Meu povo nunca há de se esquecer de sua dádiva. Dê-me um laço de seu abadá azul, Ogum, para eu usar com o meu axó funfun, minha roupa branca. Vamos sempre nos lembrar de Ogunjá". E, do reino de Ejigbô até as terras de Ijexá, todos cantaram e dançaram. (Prandi, 2001: 91, 92).

Esse mito mostra a amizade de Oxaguiã com Ogum, de onde teria saído o azul das

roupas e também das contas de Oxaguiã. Narra também a invenção do pilão por Oxaguiã, a

criação da cultura material, daí ser a mão de pilão sua insígnia.

Oxalufã

Traje: calçolão branco, saia armada de richelieu branco, pano-da-costa também de

richelieu branco preso na altura do peito, um atacã em tecido branco sobre o peito terminado

em laço nas costas. Adê revestido de tecido branco e bordado com miçangas prateadas, franja

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de miçanguinhas brancas, pulseiras copos e braceletes brancos bordados com miçangas

prateadas.

Ferramentas: opaxorô, cajado prateado com pingentes.

Oxalufã é o velho Oxalá, senhor da criação do homem, senhor do princípio da vida,

muito respeitado e querido tanto pelos devotos quanto pelos outros orixás. Também é

chamado Obatalá ou simplesmente Oxalá.

Muito velho e lento, Oxalufã dança recurvado, apoiando-se em seu cajado, o opaxorô.

O opaxorô é a insígnia máxima de Oxalufã, simboliza a criação, é sempre de metal branco

com pingentes em forma de sinos e pássaros. Segundo Claude Lépine, "o pombo, em

particular, é o pássaro que representa o 'poder do orixá' " (1989: 35).

Um dia Oxalufã, que vivia com seu filho Oxaguiã, velho e curvado por sua idade avançada, resolveu viajar a Oió em visita a Xangô, seu outro filho. Foi consultar um babalaô para saber acerca do passeio. O adivinho recomendou-lhe não seguir viagem, pois a jornada seria desastrosa e poderia acabar muito mal. Mesmo assim, Oxalufã, por teimosia, resolveu não renunciar à sua intenção. O adivinho aconselhou-o então a levar consigo três panos brancos, limo-da-costa e sabão-da-costa. E disse a Oxalá ser imperativo tudo aceitar com calma e fazer tudo o que lhe pedissem ao longo da estrada. Com tal postura talvez pudesse não perder a vida no caminho. Em sua caminhada, Oxalufã encontrou Exu três vezes. Três vezes Exu solicitou ajuda ao velho rei para carregar seu fardo pesadíssimo de dendê, cola e carvão, o qual Exu acabou, nas três vezes, derrubando em cima de Oxalufã. Três vezes Oxalufã ajudou Exu a carregar seus fardos sujos. E por três vezes Exu fez Oxalufã sujar-se de azeite-de-dendê, de carvão, e outras substâncias enodoantes. Três vezes Oxalufã ajudou Exu. Três vezes suportou calado as armadilhas de Exu Três vezes foi Oxalufã no rio mais próximo lavar-se e trocar as vestes. Finalmente chegou Oxalá à cidade de Oió. Na entrada viu um cavalo perdido, que ele reconheceu como o cavalo que havia presenteado a Xangô.

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Tentou amansar o animal para amarrá-lo e devolvê-lo ao amigo. Mas nesse momento chegaram alguns soldados do rei à procura do animal perdido. Viram Oxalufã com o cavalo e pensaram tratar-se do ladrão do animal. Maltrataram e prenderam Oxalufã. Sempre calado, o orixá deixou-se levar prisioneiro. Magoado e desgostoso foi arrastado ao cárcere sem comiseração. O tempo passou e Oxalufã continuava preso e sem direito de defesa. Humilhado, decidiu que aquele povo presunçoso e injusto merecia uma lição. E o velho orixá usou de seus poderes e vingou-se de Oió Assim, Oió viveu por longos sete anos a mais profunda seca. As mulheres e os campos tornaram-se estéreis e muitas doenças incuráveis assolaram o reino. O rei Xangô, em desespero, consultou o babalaô da corte e soube que um velho sofria injustamente como prisioneiro, pagando por um crime que não cometera. Disse-lhe também que o velho nunca havia reclamado, mas que sua vingança tinha sido a mais terrível. Xangô correu imediatamente para a prisão. Para seu espanto, o velho aprisionado era Oxalufã. Xangô ordenou que trouxessem água do rio para lavar o rei, água limpa e fresca das fontes para banhar o velho orixá. Que lavassem seu corpo e o untassem com limo-da-costa. Que providenciassem os panos mais alvos para envolvê-lo. O rei de Oió mandou seus súditos vestirem-se de branco também. E determinou que todos permanecessem em silêncio. Pois era preciso, respeitosamente, pedir perdão a Oxalufã. Xangô vestiu-se também de branco e nas suas costas carregou o velho rei. E o levou para as festas em sua homenagem e todo o povo saudava Oxalá e todo o povo saudava Airá, o Xangô Branco. Depois Oxalufã voltou para casa e Oxaguiã ofereceu um grande banquete em celebração pelo retorno do pai. Terminadas as homenagens, Oxalá partiu de volta para casa. Caminhava lentamente, apoiando-se no opaxorô, comprido báculo de lenho que o ajuda a se locomover. Seus acompanhantes cobriam-no com o branco alá, alvo pálio que protege o velho roxa da luz e do calor do sol. Quando Oxalufã chegou em casa, Oxaguiã realizou muitos festejos para celebrar o retorno do velho pai. (Prandi, 2001: 519 – 522)

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Esse mito, como outros, trata da importância do branco para Oxalá. Branco é a cor da

criação e Oxalá é o único orixá que não pode usar outra cor em suas vestes. Apesar de quase

todos os orixás poderem se vestir de branco. Entretanto, usa uma pena vermelha, o ecodidé,

do papagaio-da-costa.

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4.

FAZENDO AXÓS: COSTURA E NÓS

A importância do vestuário é tão grande que o cuidado dele é atribuição de mulheres

que não entram em transe mas que são confirmadas num cargo de alto prestígio. São as

equedes, que vestem os orixás e depois dançam com eles no barracão. Seu trabalho é

recompensado com sua inclusão na alta hierarquia do terreiro. Criar os axós e os assessórios

sagrados é outra atribuição de relevo. Muitos adeptos, além de artistas e comerciantes

simpatizantes, fazem do trabalho artesanal de fabrico de ferramentas e da comercialização de

todo tipo de objeto ritual um meio de vida.

4.1. Os criadores dos trajes

Os trajes dos orixás num primeiro momento têm um custo financeiro elevado. E

geralmente é preciso comprar tudo de uma vez, as roupas, acessórios e ferramentas. Os trajes

podem ser comprados prontos, e nesse caso são ainda mais caros; ou, como é mais comum,

podem ser feitos pelo fiel ou pessoas do próprio terreiro.

Em todo terreiro há gente que sabe costurar, ainda que não profissionalmente.

Recebendo remuneração, são encarregadas de fazer as roupas dos deuses sob orientação e

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supervisão dos pais e mães-de-santo. Para que tudo esteja do seu gosto; afinal, os orixás

devem ser a expressão máxima de beleza de um terreiro.

Além de poder dispor de bons materiais, vale sempre o empenho de cada um, a

criatividade e o talento de transformar o que muitas vezes pode ser um tecido simples em

roupas muito bonitas. Presenciei uma saída de uma iaô de Oxum, cuja deusa vestia uma

vistosa roupa branca e dourada que parecia estar coberta de pó de ouro. O pai-de-santo dessa

casa depois me disse que depois foi muito trabalhoso limpar a casa inteira, que ficara toda

brilhando com o glitter da roupa de Oxum.

O processo de iniciação também é o de "multiplicação do eu" social por meio da

assunção dos eus sagrados que fazem sentido para o grupo religioso. Dentre esses eus

sagrados o do orixá é o mais esplendoroso, e tem vida exatamente durante o transe do orixá:

"não é o pobre, é o deus; não é o que se sente culpado e recalcado, mas sim o que tudo pode, o que afasta as frustrações que uma vida social, na maioria das vezes amesquinhada pela falta de dinheiro, conforto e de repertórios culturais que ele distingue como importantes, lhe impõe na vida fora da religião" (Prandi, 1991: 182, 183).

Esse é um dos trunfos dessa religião. A expansão do eu que ela promove por meio da

adoção desses eus sagrados é reparadora e também constitui uma grande possibilidade de

expressão individual, oportunidade para realizar desejos de brilhar e de ser o centro das

atenções, de bailar e ser aclamado, enfim... de ser deus e deusa.

Procura-se manifestar essa divindade da melhor maneira possível dentro das

possibilidades estéticas do próprio orixá — uma vez que a cada um compete determinadas

cores e materiais —, dos limites impostos pela posição que se ocupa na hierarquia e também

pelo pai ou mãe-de-santo. Além, é claro, das limitações financeiras de cada um. Mas os

adeptos sempre acreditam que todo esforço, sacrifício e dedicação para vestir bem o orixá são

válidos. E fazem listas para arrecadar contribuições de irmãos-de-santo e de amigos. Disse-me

uma iaô, empregada doméstica de pouquíssimos recursos financeiros: "Tudo foi doação. Uma

colega minha, que trabalha na mesma casa que eu, me disse que coisa de orixá ela não ia me

dar de jeito nenhum, porque ela é de uma igreja pentecostal, mas me deu dez quilos de arroz

que tinha na minha lista de iniciação. E isso me ajudou demais."

Vigora a percepção de que tudo o que se faz é para agradar os deuses e assim obter

seus favores, e eles se agradam do que é bonito, é com beleza que se louva os orixás. A

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riqueza, o luxo, a opulência integram o ideal de culto no candomblé. Essa noção vem da

África, onde a opulência deve ser sempre mostrada, ostentada. Soma-se a isso o barroco,

estilo artístico marcado por muita ornamentação que influenciou fortemente o País no tempo

de sua formação. Disso tudo resulta uma estética marcada pelo excesso, pelo "muito", pelo

over e igualmente pela manifestação da riqueza.

"Identifico a existência de uma estética barroca no interior dos terreiros, uma idéia de belo que revela o gosto pelo aparato, pelo luxo, pelo ornamento, pelo brilho, pelo fausto. A elaboração estética de muitas festas de candomblé, tal como na arte barroca, visa igualmente maravilhar, surpreender. A adoção desse estilo barroco faz com que o belo muitas vezes seja identificado com o extravagante. Essa estética reflete-se entre outros aspectos na idealização e confecção de roupas rituais" (Santos, 2005: 76).

Essa mesma concepção perpassa a criação estética do carnaval. Aliás carnaval e

candomblé se aproximam e se influenciam no que diz respeito à expressão estética.

"É visível o diálogo entre os terreiros de candomblé e o universo das escolas de samba, diálogo que se reflete na idealização e confecção das roupas rituais, destacando-se o uso crescente de plumas, lantejoulas, areia brilhante, canutilhos e paetês. Esse diálogo não se circunscreve ao traje de baiana já há muito tempo incorporado à estética carnavalesca. Falo aqui de um padrão estético das escolas de samba, que valoriza o brilho e o aparato; abusa do contraste das cores e estimula o exagero das formas" (Santos, 2005: 76).

Essa dupla influência acontece também porque muitas vezes são as mesmas pessoas

que produzem os adereços para o candomblé e para as escolas de samba. Essa aproximação é

visível especialmente quando os trajes dos orixás são feitos com muitas pedrarias e contas

bordadas, segundo um padrão estético de escola de samba, muito marcado pelo brilho, pelo

contraste de cores e o exagero das formas.

"Notadamente no Rio de Janeiro e em São Paulo, onde os profissionais que ditam a moda no candomblé são, em geral, os mesmos produtores estéticos das escolas de samba, não é difícil perceber como o desfile de carnaval antecipa as preferências em desenho e material que vestirão e adornarão os orixás em transe nos barracões de candomblé daquele ano" (Prandi, 2005: 152).

A preocupação com a chamada "carnavalização" do candomblé é recorrente entre

muitos pais e mães-de-santo. É comum dizerem uns das casas dos outros que "mais parece um

carnaval", uma acusação que remete à perda ou afastamento da tradição, numa excessiva

valorização dos elementos estéticos em detrimento do sentido religioso do culto (cf. Santos,

2005: 77). Algo que, portanto, não seria bem visto. Mas é fato que se pode observar por toda

parte. Assim, quando um velho pai ou mãe fala do passado, vai logo dizendo que "no meu

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tempo não era assim; orixá era vestido com madrasto, não tinha isso de usar lantejoula e

paetê, muito menos pluma. Era mesmo com as penas do rabo de galo que se enfeitava o

capacete de Ogum. E ficava odara demais. Agora todo mundo quer comprar na ladeira Porto

Geral..."

Muitos têm em vista que o excesso e mesmo o uso de determinados materiais pode

fazer com que a estética se aproxime perigosamente do carnavalesco, o que às vezes acaba

sendo inevitável, uma vez que candomblé e carnaval bebem numa mesma fonte estética.

Os adeptos e criadores, no entanto, procuram se defender dessa "acusação",

reafirmando sempre a sacralidade dos trajes dos orixás. Afinal como ouvi na pesquisa,

"carnaval é carnaval, candomblé é outra coisa".

"Então eu acho que o capricho e a delicadeza das formas... é muito importante. Você não perde a raiz, não perde a estrutura, não perde a essência do orixá, mas você cria uma nova forma de ver o orixá aproveitando os novos materiais que nós temos. Sem cair no carnavalesco. Porque você veja, a roupa do orixá, por mais bonita, por mais rica que ela seja e por mais adereços que ela tenha, ela não é uma fantasia de carnaval. Porque a fantasia de carnaval, mesmo riquíssima, ela tem a estrutura para o carnaval. Mesmo que saia uma pessoa vestida no carnaval expressando um orixá ela sempre tem um... ar de carnaval, um ar de brincadeira, mesmo que a fantasia seja riquíssima. Então, às vezes as pessoas falam: ah... mas a roupa fica meio carnavalesca se tiver muita coisa. Eu acho que não tem uma coisa a ver com a outra. Eu acho que o que é feito pro orixá não tem lado carnavalesco. É outro sentido..." (Carlito de Oxumarê).

No candomblé, como no carnaval, bonito é o que é abundante em detalhes, enfeites e

brilho, ou seja, tudo que promove a "exuberância barroca de sua estética" (Santos: 2005: 14).

Seja esse brilho ouro, prata, latão, cobre ou mesmo lantejoula, strass ou glitter.

"Acho que a riqueza... fazer a roupa do orixá com riqueza, não significa que você perdeu a humildade. Que você perdeu a simplicidade, que você perdeu a devoção. Porque às vezes as pessoas falam: não, mas você... coloca roupas tão luxuosas...o santo é a natureza... Eu concordo que o santo é a natureza, mas quando essa partícula da natureza vem à Terra, se manifesta no corpo de alguém, você quer agradar. Eu acho que a forma da gente agradar é essa: criando... as roupas bonitas, criando adereços bonitos, eu acho que isso é o mais importante" (Carlito de Oxumarê).

A opulência praticada nos terreiros chama a atenção, e causa a impressão de que o

candomblé é uma religião muito rica e, portanto, para poucos, ou, como já ouvi, religião de

"pessoas esnobes". Essa é uma "religião de deuses ricos e adeptos pobres" (Prandi, 1991,

Amaral, 1992; 2002) o que constitui uma contradição forte e evidente mas talvez se explique

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em si mesma, vale todo o sacrifício para que o deus seja rico, esplendoroso, exatamente

porque ele manifesta o oposto da vida difícil do adepto e também porque fazer um enorme

esforço para vestir bem o deus manifesta a própria fé no orixá.

Durante a pesquisa ouvi histórias de pessoas que efetivamente tinham uma vida muito

simples, mas profundo orgulho da riqueza de suas roupas de candomblé e de seus orixás.

Visitei a casa de uma filha-de-santo que me mostrou orgulhosa mais da metade de seu

humilde guarda-roupas ocupado pelos trajes do candomblé, enquanto suas roupas "civis"

encontravam-se todas espremidas numa única parte do armário.

Uma coisa comum no candomblé é o chamado "baú do santo". As pessoas guardam

suas roupas e a de seus orixás em baús que são conservados em suas casas ou nos terreiros.

Uma vez, durante pesquisa num terreiro muito antigo na Bahia, fui recebida na casa de uma

filha daquela casa que ficava no próprio terreiro; tratava-se de um espaço muito pequeno e

humilde mas lá estava, ocupando boa parte do espaço exíguo, o baú com as coisas do orixá

dela, que ela fez questão de nos mostrar e de me alertar o tempo todo: "Venha mais pra cá,

minha filha, não fique muito perto do baú de Euá não..."

A seguir uma fala do babalorixá Carlito de Oxumarê, que com sua mãe carnal, ialorixá

Carmen de Oxum, dirige um dos mais belos terreiros da grande São Paulo:

"Eu acho que na verdade o que a gente faz é agradar o orixá. Aí vem aquele outro lado também de a pessoa falar assim: ah, mas santo é humildade, simplicidade... eu até concordo que seja simplicidade e humildade... do filho, e não do deus. O deus ele deve ser exaltado. É um deus. Então você faz pra exaltar o deus. Se eu pudesse vestir meus orixás todo em ouro e brilhantes eu faria".

Eufrazia Santos (2005) afirma que o luxo do candomblé, a opulência também está

ligada ao fato dessa riqueza estar associada no imaginário do povo-de-santo ao tema da

realeza, que é comum a muitos orixás.

"Muitas vezes o luxo das cerimônias reflete uma leitura muito comum ao povo de santo que associa o espetáculo do fausto ao tema da realeza, uma vez que o panteão yorubá é composto por reis e rainhas. Não existe, portanto, uma condenação moral do luxo, ele é um meio entre outros para fazer declarações rituais" (2005: 58, grifo meu).

Ou seja, não há condenação moral do luxo porque aqui os valores desse mundo são

afirmados e também, em última instância, porque tudo é feito "para exaltar o deus", é uma

declaração de fé e amor.

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Um outro dado importante é que às vezes as pessoas envolvidas na criação dos trajes

dos orixás têm experiências também com a criação dos vestidos de gala, sobretudo vestidos de

noiva, e vestir o orixá partilha com o vestir a noiva a idéia de que esse é um momento de

glória. A roupa é a expressão material de um momento importantíssima na vida: uma noiva

não se faz sem seu vestido, o orixá não se faz sem o seu belo axó. Disse um sacerdote que "o

orixá gosta de ser visto; se não ele não vinha na festa... ele só vinha no dia dos rituais,

dançava dentro do quarto e pronto".

4.2. As zeladoras dos axós

Dentre os cargos de pessoas que não entram em transe há um cargo feminino muito

importante e que diz respeito diretamente ao cuidado com os orixás: equede. Na língua

iorubá, equede quer dizer "a segunda pessoa do orixá", são mulheres escolhidas para servirem

aos orixás da casa.

As equedes são confirmadas em seus cargos por meio de um rito que também é de

iniciação, porém mais simplificado que o rito de iniciação de quem entra em transe. Em geral

as equedes, assim como os ogãs, ficam menos tempo recolhidas para a iniciação, e não

necessariamente têm o cabelo todo raspado. A equede e o ogã, assim que confirmados em

seus cargos, passam a integrar a alta hierarquia do terreiro. Tocar os atabaques, sacrificar os

animais, fazer os despachos, que são atribuições masculinas, cuidar das roupas e ferramentas

dos orixás, que são atribuições femininas, são tarefas decisivas e indispensáveis aos ritos.

A função básica de uma equede é vestir os orixás, dançar com eles, cuidar deles, zelar

por suas roupas e assessórios. Elas lustram com afinco as ferramentas, lavam, engomam e

passam as roupas. São especialistas na arte dos laços e dos nós; suas principais virtudes são:

ordem, capricho e paciência.

Passar roupa é uma atribuição feminina no candomblé, tarefa interminável executada

em grande parte pelas equedes que fazem isso, pelo menos teoricamente, melhor do que

todos. É comum antes de uma festa as equedes se reunirem para dividir as muitas tarefas

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envolvidas em preparar os trajes dos orixás. Para que tudo esteja pronto e o mais organizado

possível na hora os vestir para que entrem em cena.

Vestir o orixá é algo muito maior e profundo do que o vestir cotidiano; é um ato

religioso. Significa, nas palavras de Eufrazia Santos, "dar-lhe uma forma, uma identidade,

ligá-lo a uma cor, a um conjunto de insígnias" (Santos, 2005:40). E tudo isso é

responsabilidade das equedes. Nos bastidores, o vestir é um momento importante e tenso para

elas, porque em última instância são elas as responsáveis pela boa apresentação do orixá em

público, pela beleza e harmonia do traje, que deve permanecer no lugar, em ordem, sem nada

caindo, desamarrando. Um saiote que teime em aparecer durante a dança é uma vergonha para

a equede. E não se pode esquecer que os orixás dançam, e muitas vezes executam danças

muito agitadas, que põem qualquer roupa em risco.

Parte importante do treinamento de uma equede é exatamente aprender a vestir o

orixá, saber que peças compõem o traje de cada um, como essa roupa é montada, o que se

veste primeiro, o que se veste depois, como dar os muitos nós e laços e todos os outros

artifícios que se usa para conseguir um belo efeito nas roupas em termos de laços bem

abertos, panos-da-costa bem armados e ao mesmo tempo bem presos. Deve aprender,

sobretudo, que todo o belo efeito alcançado no vestiário tem que resistir aos movimentos

bruscos das danças sob os olhares atentos e críticos dos que lotam o barracão.

O maior pesadelo de uma equede é que a roupa do orixá caia, desamarre, despenque,

ou simplesmente não fique bonita para a festa. Vestir o orixá é uma tarefa difícil também

porque em geral as os trajes têm muitas peças, muitos detalhes, há a preocupação constante

que as roupas fiquem bem presas e para isso freqüentemente lança-se mão do uso de alfinetes

e de pontos com linha e agulha. Tudo deve ser feito sem ferir o filho-de-santo, para que

depois que o orixá o deixe ele não esteja machucado.

Além desse "trabalho dos bastidores", cabe às equedes dançar com os orixás, secar-

lhes a fronte, servir-lhes água... enfim, permanecer sempre junto deles e estar muito atentas às

necessidades dos orixás durante a apresentação. A equede se preocupa também com o que

ocorre depois que os orixás são recolhidos aos roncós, porque uma atribuição muito

importante da equede é justamente a de mandar o orixá de volta para o Orum e trazer o filho-

de-santo à consciência.

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Elas são sacerdotisas do culto presentes em todos os ritos importantes, até porque

nunca se sabe quando um orixá pode aparecer e elas são as principais auxiliares deles; são

preferencialmente elas que ouvem o que eventualmente eles têm a dizer e ficam encarregadas

de transmitirem adiante seus desígnios e mensagens.

Em momentos de ritos internos como também na festa pública, as equedes sempre

portam seus adjás, as sinetas rituais. Na festa pública o som do adjá tem a função de guiar, de

conduzir o orixá durante a dança. O som do adjá, segundo ouvi de um pai-de-santo, é "a

música que fala aos deuses, para que eles nos ouçam e atendam nossos pedidos". Tocar adjá

é algo muito importante que só deve ser feito pelas equedes, ou pessoas da alta hierarquia do

terreiro. Na obrigação de sete anos um fiel que entre em transe receberá também um adjá e o

tocará em público como mais um sinal de sua maioridade ritual.

Há uma disputa de poder inerente ao trabalho das equedes, principalmente no que diz

respeito aos orixás do pai ou mãe-de-santo, dos quais sempre se quer estar perto, seja

cuidando das roupas e ferramentas, seja dançando com eles na festa, ou mesmo atendendo

seus desejos e transmitindo suas mensagens ao grupo.

Em terreiros grandes e organizados, há muitas equedes confirmadas. A regra é que

cada orixá tenha a sua equede, mas nem sempre isso é possível. Em geral os orixás dos babás

e ialorixás têm mais de uma equede e a ordem de importância dessas obedece ao princípio do

tempo de iniciação: aquelas que são confirmadas por último dificilmente têm acesso aos

orixás dos sumos sacerdotes, porque quem ocupa o espaço é quem chegou primeiro. Isso é

motivo de rusgas e de muito ciúme entre as equedes. O ciúme, a disputa e o falatório são,

aliás, coisas que permeiam cotidianamente as relações no candomblé (cf. Vallado, 2003),

independentemente de cargo, função ou antigüidade. Mas entre as equedes também vale a

idéia de que "antiguidade é posto", e as mais velhas no santo são ou devem ser as mais

respeitadas.

A despeito de ocuparem esse papel relevante, as equedes usam roupas mais simples, o

que não quer dizer que não sejam ricas e muito elaboradas. Não costumam usar o traje de

baiana, até mesmo pela questão prática de que seria difícil vestir os orixás nos quartos

apertados usando roupa armada que ocupa espaço e dificulta os movimentos. Elas costumam

usar cafetãs, saias retas e batas ou mesmo roupas parecidas com vestidos retos, tudo muito

simples se comparado ao traje de baiana.

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São de um lado os criadores, que fazem os axós e seus complementos, e de outro as

equedes, que cuidam dos trajes e os "montam" no corpo dos iniciados em transe, as duas

pontas do processo de trazer para o palco do barracão os deuses que encantam os homens com

sua beleza.

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5.

ENFEITANDO OS ESPAÇOS: O BARRACÃO E OS LAÇOS

A dimensão pública do candomblé é a face da religião de que este trabalho se ocupa, e

essa dimensão se realiza no espaço público do terreiro, que não escapa da intenção de beleza e

desse casamento entre o belo e o significado que perpassa toda a religião.

O espaço público compreende as dependências abertas a todas as pessoas que vão ao

terreiro. Isso inclui o assentamento de Exu próximo à porta; o grande palco da religião que é o

barracão, lugar onde a festa se realiza; partes do quintal e do jardim, quando existentes; salas

e dependências reservadas a visitas e residentes. São vedados aos não-inciados os quartos-de-

santo (ilês-orixás), pequenas capelas que guardam os altares (assentamentos dos orixás ou

ibás-orixás) e onde se fazem as oferendas; a clausura (roncó), em que ficam recolhidos os

iniciados nos períodos de obrigação; a cozinha sagrada, cujo acesso pode ser mais liberal; o

local do terreiro onde se cultuam os espíritos dos mortos ilustres (eguns). Os vestiários, onde

em dia de obrigação ou festa sempre se pode encontrar um filho em transe sendo vestido com

os paramentos adequados, também pode ter o acesso restringido, assim como outras

dependências usadas para acomodar os filhos-de-santo quando pernoitam no terreiro, e partes

do quintal onde se cultivam ervas sagradas.

5.1. O templo e as marcas da autoridade

Na língua iorubá, templo é ilê axé, e é assim que são oficialmente designadas as casas

de culto aos orixás no Brasil. Contudo, o templo é comumente chamado de terreiro,

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lembrança dos primeiros tempos do candomblé, quando se dançava em terreno aberto, de

chão de terra, isto é, no terreiro, no quintal, localizado em lugar ermo da cidade, ou no meio

do mato, para evitar a curiosidade alheia, sobretudo a da polícia. Para se protegerem das

intempéries, com o tempo se construía um telhado, geralmente de sapé, sem paredes laterais:

o barracão.

O barracão

Barracão é a construção maior existente em todo terreiro. Trata-se de uma sala, em

geral retangular em cujo centro há normalmente uma marcação: um desenho no chão, ou uma

cabaça pendurada no teto, ou, como é bastante comum, uma pilastra, um poste central. Muito

já se falou sobre o poste central, em torno do qual se dança em roda, o peristilo, e que

representaria a ligação da terra com o céu (Bastide, 1973, Eliade, 1999).

O nome barracão remete à precariedade, à rusticidade que marcou o início do

candomblé e que pode ser encontrada mesmo ainda hoje nas periferias das cidades onde

preferencialmente se instalam os candomblés: barracões de terra batida, paredes de tijolos à

vista, telhas de zinco ou amianto, aberturas nas paredes desguarnecidas de janela.

Interessante notar que barracão também é o nome dado aos galpões em que as escolas

de samba produzem seu carnaval. Esses podem ser grandes galpões onde se dispõe inclusive

de lugar para dormir e cozinhar, ou um espaço improvisado sob uma ponte ou viaduto.

Há uma fala muito recorrente no candomblé segundo a qual "orixá é humildade". Os

orixás até podem ser humildes, mas seus filhos efetivamente não o são e, como se viu,

simplicidade não é um atributo dessa religião de deuses que se vestem como reis e rainhas,

ainda que de pés no chão. Ter um amplo e belo barracão é parte do ideal de todo pai e mãe-

de-santo, o que demanda sempre muito esforço, porque implica em altos custos financeiros,

desde a aquisição do terreno até a construção das dependências do terreiro. É comum que os

terreiros estejam sempre em construção e reforma.

Fruto desse esforço são os barracões amplos, muito bem acabados, com piso revestido,

bem pintados, com janelas amplas e decoradas com belas cortinas, com assentos confortáveis

para a assistência, equipados com ventiladores e sistema de som.

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Freqüentemente o barracão também é chamado de sala. Ouvi de um informante que

era preciso "limpar o barracão para o orixá sair na sala". Barracão é o espaço que os adeptos

que utilizam cotidianamente e do qual cuidam com muito esmero em dias de festa para que o

orixá venha a público, realize sua performance, encante a todos. Quando se trata da festa

pública não é mais simplesmente o barracão, é o palco em que todos interagem.

"O barracão funciona como um teatro no qual os papéis são construídos com base nos mitos, no figurino, no conjunto de signos rituais, posturas e gestos. Cada papel exige a realização de comportamentos específicos" (Santos, 2005: 121).

Na festa o barracão "transforma-se" em sala. Sala é o espaço público de uma casa por

excelência, em que todos convivem, e, muito importante, onde se exibe o que se tem de

melhor porque é aí que as visitas são recebidas.

Há inclusive uma categoria de ogãs, cargo de homens não rodantes, chamada "ogã de

sala". Esses são em geral falantes e simpáticos, encarregados de literalmente "fazer sala" e

cuidar da segurança. Recebem as pessoas na festa, providenciam para que sejam acomodadas,

conversam com as visitas mais importantes nos intervalos, enfim, cuidam para que a festa

tenha um certo ritmo, para que as pessoas sejam bem recebidas e tudo corra bem.

Receber bem as visitas, aliás, é sempre uma preocupação dos pais e mães-de-santo,

pois, se falar mal do outro faz parte da sociabilidade do povo-de-santo (Braga, 1998; Vallado,

2003), é igualmente necessário que esse outro seja sempre muito bem recebido. No mínimo

para que "não fale mal de nós", como se isso fosse possível.

O barracão divide-se basicamente em dois espaços: um destinado à dança sagrada,

tanto dos fiéis quanto dos orixás, e outro para acomodar a assistência. Esse espaço da

assistência em grandes e tradicionais terreiros pode ser separado por sexo, como se fazia nas

igrejas católicas antes do Concílio Vaticano II. Além disso, há necessariamente um espaço

destinado a acomodar os tambores sagrados, em número de três, onde se juntam também os

tocadores dos outros instrumentos: o agogô e o xequerê. Ademais, por menor que seja o

barracão, há sempre espaço destacado para pelo menos uma grande cadeira destinada ao pai

ou mãe-de-santo.

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A cadeira

A cadeira é um símbolo de prestígio e poder desde há muito tempo. Assim são os

imemoriais tronos dos reis e papas, assim são as cadeiras dos chefes de estado, assim são os

bancos africanos que se pode ver em coleções de museus espalhados pelo mundo. E assim são

as cadeiras no candomblé. Como se pergunta Pierucci em um ensaio sobre uma exposição do

artista plástico Francisco Melo:

"Alguém tem dúvida (...) que quanto mais poderoso o indivíduo, mais tempo ele fica sentado em seu trono, com maior destaque para sua cadeira/ cátedra/ catedral? Entronizado não quer dizer sentado? Por acaso alguém governa de pé?" (1998: 140).

Sentar-se em cadeira na religião dos orixás é algo muito significativo. Só pode se

sentar em cadeiras, ou mesmo bancos, quem faz parte da alta hierarquia do grupo. Numa festa

pública, por exemplo, mesmo para comer, quem não é da alta hierarquia deve sentar-se no

chão sobre esteiras. Somente ebômis se sentam em cadeiras.

Olhando os registros do candomblé percebe-se que desde sempre os sacerdotes dessa

religião fizeram-se retratar sentados em suas cadeiras freqüentemente dotadas de enorme

espaldar, quando não, inteiras forradas de veludo vermelho como verdadeiros tronos devem

ser.

Esse é um registro, aliás, presente na mídia e no imaginário. Fotos antigas e novas

costumam mostrar as mães e os pais-de-santo sempre sentados. Painho, personagem do

humorista Chico Anysio, uma caricatura de pai-de-santo de candomblé, aparecia nos

programas humorísticos da TV sentado em sua enorme cadeira, rodeado de suas também

fictícias filhas-de-santo a lhe abanarem como a um verdadeiro rei.

Que ninguém se engane, pais e mães-de-santo são mesmo reis e rainhas em seus

terreiros. Fazem valer cada uma de suas vontades e nunca se intimidam, e não se cansam de

dizer que quem não quiser cumprir suas determinações é livre para procurar outro caminho.

Além da cadeira do pai ou mãe-de-santo, que é sempre a maior e posta em nível mais

alto que o do chão, pode haver outras cadeiras destinadas aos ebômis, ogãs e equedes da casa,

que também podem ser usadas por visitas ilustres. Aliás, os ebômis e demais dignitários do

terreiro, quando confirmados perante a comunidade reunida em festa, são sentados na cadeira

pelo pai ou mãe-de-santo. Para isso, ganham a sua cadeira particular. Na falta de uma cadeira

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específica, pode-se cobrir uma cadeira comum com uma renda, ou um pano-da-costa e isso

sinaliza tratar-se de um assento especial destinado a alguém importante.

Uma das maiores gafes que se pode cometer no candomblé é sentar-se

inadvertidamente numa dessas cadeiras. Certa vez me contou um pai-de-santo, furioso, que

nunca mais convidaria determinado pai-de-santo para sua casa porque ele tinha visto, no filme

que fizeram da festa, aquele babalorixá, evidentemente sem ter sido convidado, se sentar na

cadeira reservada ao chefe da casa: "onde já se viu tamanha cara de pau?".

"No sistema ritual do candomblé, o assento constitui um indicador de status de ambas as classes, por isso existe uma certa preocupação estética na escolha das cadeiras ostentadas publicamente como símbolos de poder" (Santos, 2005: 61).

A cadeira do pai-de-santo simboliza seu poder tão fortemente que mesmo quando ele

não está sentado nela, e algum orixá vai se retirar do barracão, a divindade em transe se dirige

à cadeira e se inclina diante dela numa reverência.

Quadros, esculturas

Outro elemento presente na decoração do barracão que aponta por um lado para o

refinamento estético e por outro para a legitimação, pelo prestígio que conferem, são as obras

de arte.

Em muitas casas se vêem máscaras, esculturas e bastões de mando africanos expostos

com destaque no barracão, bem como artesanato nacional de inspiração africana e mesmo

obras de artistas renomados como Mestre Didi, além de reprodução de obras assinadas e

anônimas. Em um barracão simples, de chão de cimento, paredes de blocos e ainda sem

janelas, vi cópias de ilustrações de Pedro Rafael para o livro Caminhos de Odu, do Professor

Agenor Miranda Rocha (2001), bastante ampliadas e aplicadas numa parede de destaque.

Freqüentemente se vêem os orixás e suas insígnias, como o abebé de Oxum ou o a

mão de pilão de Oxaguiã, pintados em tamanhos grandes nas paredes. É possível observar

também quadros com representações dos orixás. Algo interessante nessas imagens dos orixás:

muitas vezes eles aparecem influenciados pelo sincretismo católico, como uma casta Iemanjá

branca lembrando Nossa Senhora, às vezes ao lado de outras imagens mais "africanas",

deuses negros semi-desnudos e sensuais. Ao lado dos orixás podem aparecer os animais e

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elementos que representam os deuses, como os peixes das deusas da água, a serpente de

Oxumarê, o pombo de Oxalá.

A decoração do barracão pode incluir ainda bandeirinhas penduradas no teto. Na

cultura nacional as bandeirinhas expressam sempre o caráter festivo das manifestações e

festas populares (cf. Santos, 2005).

Por ocasião da festa, a decoração varia de acordo com o orixá homenageado. São

sempre usados materiais, cores e formas relacionados de modo que pode-se ter numa festa de

aiabás, por exemplo, muitos potes e quartilhões de cerâmica enfeitados com laços repletos de

flores coloridas. Numa festa de Oxóssi, espigas de milho e muitas folhas presas na parede e

mesmo no teto. Num olubajé, a festa de Omulu, pode-se ter fios e fios de pipoca pendurados

por todo o barracão.

Laços e sabores

Os orixás precisam ser alimentados, e muita comida lhes é oferecida a fim de

estabelecer com eles o pacto por meio do qual concedem a seus filhos o axé, a energia que

proporciona a vida. Cada um tem suas preferências e cozinhar para os deuses é tarefa

complexa e fundamental. Parte desse trabalho implica fazer com que as comidas oferecidas

estejam bonitas, bem apresentadas, e harmoniosamente dispostas nos pratos. Mais de uma

vez, vi as filhas-de-santo revirando a cozinha inteira do terreiro à procura "daquela travessa

bonita" para colocar a comida de um orixá. O candomblé se vale de variada coleção de

recipientes de barros, louça e cerâmica vendidos nas lojas de umbanda e candomblé, alguns

deles com o formato herdado de tempos antigos, como os alguidares, as quartinhas, vários

tipos de potes e quartilhões que povoavam as cozinhas do Brasil colonial. Essas vasilhas são

elementos importantes na arrumação estética das comidas e bebidas oferecidas, comumente

enfeitadas com laços de tecidos e arranjos de palha-da-costa.

Mesmo a comida que é despachada depois de ter permanecido o tempo necessário aos

pés dos orixás é contemplada com a preocupação com a beleza. Bacias, cestos e balaios

dessas comidas, com o cheiro forte de alimento que ficou dias exposto, costumam ser

cobertos com delicadas rendas e enfeitados com flores antes de serem levados a um rio, à

mata, ao mar, a uma estrada, enfim, ao lugar que se presume ser ideal para o orixá

presenteado.

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Algo muito presente no candomblé são os laços, eles estão por toda a parte, seja no

traje dos filhos-de-santo como dos orixás, como já foi dito. Mas não só nas roupas, os laços

estão nos portões, portas e janelas, nas árvores, nos atabaques, nas travessas de comida que

vão ser oferecidas aos orixás ou servidas aos humanos, nos animais que vão ser sacrificados,

nas cadeiras, pilastras, paredes e assentamentos. Embelezando e sacralizando.

O laço quer tornar bonito, enfeitar, e sua presença sempre sinaliza que se trata do

sagrado, simboliza a união do belo e do sagrado, nada mais emblemático nessa religião.

5.2. Reafirmando as origens

A origem iniciática do fundador de um terreiro é fundamental para a legitimação

daquela comunidade de culto. Origem, raiz, genealogia são brasões de prestígio e

reconhecimento. É de onde se veio, qual a linhagem a que se pertence. De um modo geral a

legitimidade no candomblé paulista ainda está associada aos grandes e tradicionais terreiros

nordestinos, por mais que a religião tenha tentado criar aqui os seus próprios caminhos (cf.

Prandi, 1991). É preciso, portanto, exibir marcas dessa raiz e isso se faz também no barracão.

Inúmeras vezes vi pessoas da religião sendo apresentadas umas às outras, e depois de

poucos minutos surgir a pergunta "mas você é filho de quem?", ou seja, qual a sua raiz, de

onde vem a sua casa, qual a sua linhagem. A resposta deve incluir a "árvore genealógica de

santo" da pessoa, que costuma dizer de quem é filha e de quem é neta, pelo menos.

Isso se reflete na estética do barracão. Não se pode perder de vista que esse é o espaço

público, a sala em que as visitas são recebidas, onde se pode e mesmo se deve demonstrar e,

mais do que isso, ostentar a identidade do grupo, o prestígio de seu sumo sacerdote e de sua

linhagem, a força de sua raiz, o bom gosto, o apuro estético e o axé do terreiro.

No sentido da afirmação da origem é que fotos de pessoas ilustres, em geral, dos pais e

mães-de-santo importantes que são parte da linhagem daquela casa costumam ser afixadas

com destaque no barracão. Certa vez em uma festa das aiabás em um terreiro da grande São

Paulo um enorme retrato de Mãe Menininha do Gantois havia sido removido de uma parede e

trazido ao centro do barracão, junto ao poste central, enfeitado por uma profusão de flores,

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numa evidente homenagem àquela que havia sido a mãe-de-santo do babalorixá, mas também

num ato de afirmação da origem da casa.

Outra fonte de legitimidade, usual no candomblé paulista, eu diria, são os certificados.

É comum se verem emoldurados e afixados nas paredes certificados de participação do pai ou

mãe-de-santo em atividades de formação como cursos, congressos religiosos e cerimônias

promovidas muitas vezes pelo poder público. Os certificados afixados em alguns ambientes

de trabalham funcionam como um atestado de qualidade dos profissionais; aqui, a exposição

dos certificados na sala igualmente procura atestar a articulação da religião com o mundo,

afirmar a importância da liderança do grupo e sua inserção, e portanto do próprio candomblé,

na sociedade ampla, branca e escolarizada. Também visam a indicar o aperfeiçoamento

profissional do sacerdote nas coisas da religião.

Isso parece incompatível como uma religião em que o valor maior é a oralidade, em

que a educação formal e o conhecimento livresco são irrelevantes para o aprendizado

religioso. De fato, era assim. Há mudanças em curso que visam a inserir a religião nas práticas

correntes da sociedade, buscando-se a educação formal para se ser respeitado e reconhecido, a

despeito das tensões entre tradição e mudança que perpassam a religião, como já assinalei.

Interessante que hoje o candomblé já conta com vários pais e mães-de-santo com diplomas de

mestrado e doutorado, em geral em ciências humanas, obtidos nas melhores universidades.

"A rigor existe quase uma tradição de se quebrar a tradição, com a inclusão de elementos novos no contexto ritual, e o binômio tradição e mudança encontra, no próprio grupo religioso, suas justificativas e tudo leva a crer que a mudança engendra a continuidade da tradição mesmo que nisto esteja identificado algum tipo de contradição formal" (Braga, 1998: 32).

Não raro, sacerdotes influentes recebem comendas de órgãos do governo, prêmios e

medalhas de reconhecimento de entidades culturais, diplomas de cidadania da cidade em que

vivem outorgados por câmaras de vereadores, sem contar as comendas atribuídas por dezenas

de associações fundadas com esse fim. Tudo isso vai para as paredes do barracão, em belas e

caras molduras em que as cores do orixás do pai ou mãe-de-santo da casa são novamente

afirmadas. O barracão, afinal, é a sala de visitas do candomblé.

Num dia de festa, é imperativo arrumar o barracão, fazer a decoração com as cores e

elementos dos orixás homenageados naquela cerimônia. É um momento importante do

exercício estético sempre presente na mente de quem aprendeu que meras intenções e rezas

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silenciosas não chegam ao ouvido dos orixás. É preciso oferecer o belo, o gostoso, o que dá

prazer. Tudo tem que estar odara. Sempre há no terreiro alguém com a necessária habilidade

para dar um toque especial à decoração. E não é preciso gastar muito dinheiro, o importante é

saber aproveitar o material disponível. Como observou certa vez a antropóloga Maria Lúcia

Montes durante uma festa no terreiro paulistano do falecido pai Doda de Ossaim: "Nas mãos

desses meninos, bastam uns ramos colhidos ali no mato, uns panos estampados, uns abanos de

palha e o que tiver à mão, e tudo se transforma. Como num passe de mágica, o barracão feio

se transforma num salão de palácio digno de reis e rainhas."

É para usufruir disso tudo que os orixás, conforme conta a mitologia, de vez em

quando deixam o Orum e vêm ao Aiê para momentos de convivência prazerosa com os

mortais. A beleza que se produz, que se vê e de que se usufrui é a beleza ideal do candomblé,

e não outra. Ainda que em sua produção se valha de artigos os mais modernos, onde até um

corte de tecido adamascado trazido de Milão pode ser utilizado, o belo do candomblé busca as

formas e arranjos essenciais na tradição estética africana, ou no que sobrou dela na memória,

por sinal cultivada com a dedicação de uma religião que é, antes de mais nada, fundada no

conhecimento de transmissão oral. Afinal, ainda que hoje sejam cultuados também por

adeptos que não podem ser classificados etnicamente como afro-descendentes, os orixás são

deuses africanos.

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CONCLUSÃO

O candomblé, religião formada no Brasil no final do período escravista, chamou a

atenção dos pesquisadores desde praticamente sua consolidação no final do século XIX.

Durante um século, praticamente, se manteve restrito aos seus lugares de origem, porém, mais

recentemente veio a se espalhar e se enraizar em diferentes regiões do território nacional,

sobretudo o Sudeste, e mesmo fora do Brasil, chegando aos países do Cone Sul, a Portugal,

Itália, Espanha, Suíça etc. Tem sido fonte importante de inspiração para a arte popular

brasileira, o que inclui a música e o carnaval, a literatura, o teatro, o cinema e a televisão, as

artes plásticas e mesmo a culinária. Para falar apenas das influências em âmbito meramente

não religioso. Apesar de religião de poucos adeptos, reunindo menos de meio por cento da

população brasileira, o candomblé tem grande visibilidade e é vasta a produção científica

sobre ele, produzida por estudiosos brasileiros e estrangeiros.

Este trabalho se propôs a estudar a dimensão do belo na religião dos orixás e suas

expressões concretizadas numa estética exuberante, que estabelece relações com outras

manifestações de matriz africana como o carnaval, e que não tem um fim em si mesma, mas

que aponta sempre na direção do sagrado.

A beleza do candomblé pode ser percebida e gozada como um espetáculo (cf. Santos,

2005). Na prática religiosa, no entanto, longe de ser um aspecto acessório, ela se mostra

central, constitui-se num valor estruturante. É por meio da beleza que se louvam os orixás.

Para chegar aos orixás, os ritos têm que ser odaras, palavra de origem iorubá que significa

bonito e, ao mesmo tempo, bom. Bonito e bom no candomblé não se separam.

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Uma beleza que é em grande parte vista pelos adeptos e não adeptos na festa,

momento maior de expressão do grupo religioso, mas não só. Como valor estruturante, a

preocupação com o belo está presente em todos os momentos do rito. Qual não foi o meu

espanto ao ver pela primeira vez as comidas prontas para serem oferecidas aos orixás. Era

uma verdadeira coleção de cores, harmoniosamente dispostas nos pratos enfeitados.

A expressão da beleza varia de terreiro para terreiro e mesmo ao longo do tempo. Uma

mudança significativa nesse sentido foi a adoção recente de um tipo de vestuário mais

simplificado para os filhos-de-santo e também para os orixás, marcado por menos volume, e

portanto usando menos o traje de baiana e mais as batas, os abadás e os cafetãs. Isso não

significa menos elaboração, mas um estilo mais próximo da África, real ou imaginária,

decorrente do processo de africanização do candomblé em tempos recentes (cf. Prandi, 1991).

Esse estilo, no entanto, se mescla ao tradicional e o resultado é uma composição

sempre marcada pelo fausto, pela opulência, que é expressão da concepção de beleza do

candomblé e herança africana incontestável. O que se observa é o que Solange Godoy chamou

de "estética da opulência": o que é bonito é sempre o rico, o muito enfeitado, bem longe do

minimalismo clean e muito mais próximo do barroco.

A beleza é uma busca constante de todo o grupo, e de cada um dos filhos-de-santo.

Isso implica gastos, muito trabalho e algum desconforto, mas todo sacrifício é válido. Afinal,

são os filhos de deuses que festivamente se vestem com a espuma do mar, as cores do arco-

íris, as folhas das árvores, as mais belas plumas, o ouro, o vento, e que vêm à Terra se

confraternizar com os humanos. Os belos ilequês, os ricos axós com seus muitos laços e nós

são a garantia da continuidade dessa presença dos deuses entre seus filhos humanos.

Para concluir, nada mais explícito que o mito de Onilé. Orixá pouco conhecido no

Brasil, Onilé recebe, no entanto, homenagens em candomblés mais tradicionais e em terreiros

africanizados. Onilé quer dizer a Dona da Terra, Senhora do Planeta. Contado pelo Professor

Agenor Miranda Rocha, um dos mais importantes adeptos da religião dos orixás no Brasil,

falecido em 2004 aos 96 de idade e iniciado aos cinco anos no candomblé por mãe Aninha

Obabií, fundadora do Axé Opô Afonjá, o mito foi incluído no livro Mitologia dos orixás, de

Reginaldo Prandi (2001). Emblematicamente, mostra como o vestir-se para se apresentar em

público é tão importante para o africano, inclusive quando os personagens são os próprios

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orixás. Atesta, especialmente, que a força, o poder, o axé se casam com a beleza, o capricho, a

criatividade e a exuberância do vestuário. Para se ter poder, é preciso estar odara.

Onilé era a filha mais recatada e discreta de Olodumare. Vivia trancada em casa do pai e quase ninguém a via. Quase nem se sabia de sua existência. Quando os orixás e seus irmãos se reuniam no palácio do grande pai para as grandes audiências em que Olodumare comunicava suas decisões, Onilé fazia um buraco no chão e se escondia, pois sabia que as reuniões sempre terminavam em festa, com muita música e dança ao som dos atabaques. Onilé não se sentia bem no meio dos outros. Um dia o grande deus mandou os seus arautos avisarem: haveria uma grande reunião no palácio e os orixás deviam comparecer ricamente vestidos, pois ele iria distribuir entre os filhos as riquezas do mundo e depois haveria muita comida, música e dança. Por todos os lugares os mensageiros gritaram essa ordem e todos se prepararam com esmero para o grande acontecimento. Quando chegou por fim o grande dia, cada orixá dirigiu-se ao palácio na maior ostentação, cada um mais belamente vestido que o outro, pois este era o desejo de Olodumare. Iemanjá chegou vestida com a espuma do mar, os braços ornados de pulseiras de algas marinhas, a cabeça cingida por uma diadema de corais e pérolas, o pescoço emoldurado por uma cascata de madrepérola. Oxóssi escolheu uma túnica de ramos macios, enfeitada de peles e plumas dos mais exóticos animais. Ossaim vestiu-se com um manto de folhas perfumadas. Ogum preferiu uma couraça de aço brilhante, enfeitada com tenras folhas de palmeira. Oxum escolheu cobrir-se de ouro, trazendo nos cabelos as águas verdes dos rios. As roupas de Oxumarê mostravam todas as cores, trazendo nas mãos os pingos frescos da chuva. Iansã escolheu para vestir-se um sibilante vento e adornou os cabelos com raios que colheu da tempestade. Xangô não fez por menos e cobriu-se com o trovão. Oxalá trazia o corpo envolto em fibras alvíssimas de algodão e a testa ostentando uma nobre pena vermelha de papagaio. E assim por diante. Não houve quem não usasse toda a criatividade para apresentar-se ao grande pai com a roupa mais bonita. Nunca se vira antes tanta ostentação, tanta beleza, tanto luxo.

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Cada orixá que chegava ao palácio de Olodumare provocava um clamor de admiração, que se ouvia por todas as terras existentes. Os orixás encantaram o mundo com suas vestes. Menos Onilé. Onilé não se preocupou em vestir-se bem. Onilé não se interessou por nada. Onilé não se mostrou para ninguém. Onilé recolheu-se a uma funda cova que cavou no chão. Quando todos os orixás haviam chegado, Olodumare mandou que fossem acomodados confortavelmente, sentados em esteiras dispostas ao redor do trono. Ele disse então à assembléia que todos eram bem-vindos. Que todos os filhos haviam cumprido seu desejo e que estavam tão bonitos que ele não saberia escolher qual seria o mais vistoso e belo. Tinha todas as riquezas do mundo para dar a eles, mas nem sabia como começar a distribuição. Olorum refletiu por um bom tempo e disse que seus próprios filhos tinham feito suas escolhas. Ao escolherem o que achavam o melhor da natureza, para com aquela riqueza se apresentar perante o pai, eles mesmos já tinham feito a divisão do mundo. Então Iemanjá ficava com o mar, Oxum com o ouro e os rios. A Oxóssi deu as matas e todos os seus bichos, reservando as folhas para Ossaim. Deu a Iansã o raio e a Xangô o trovão. Fez Oxalá dono de tudo o que é branco e puro, de tudo o que é o princípio, deu-lhe a criação do homem. Destinou a Oxumarê o arco-íris e a chuva. A Ogum deu o ferro e tudo o que se faz com ele, inclusive a guerra. E assim por diante. Confirmou Exu no cargo de mensageiro dos deuses, pois nenhum outro era capaz de se movimentar como ele. Mas como Exu se cobrira todo com búzios para a reunião, e como búzio era dinheiro, Olodumare também dava a ele o patronato do mercado e o governo das trocas. Olodumare deu assim a cada orixá um pedaço do mundo, uma parte da natureza, um governo particular. Dividiu de acordo com o gosto de cada um. E disse que a partir de então cada um seria o dono e governador daquela parte da natureza. Assim, sempre que um ser humano tivesse alguma necessidade relacionada com uma daquelas partes da natureza,

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deveria pagar uma prenda ao orixá que a possuísse. Pagaria em oferendas de comida, bebida ou outra coisa que fosse da predileção do orixá. Os orixás, que tudo tinham ouvido em silêncio, começaram a comemorar, cantando e dançando de júbilo. Era grande o alarido na corte, a festa começava. Mas Olorum-Olodumare levantou-se e pediu silêncio, pois a divisão do mundo ainda não estava concluída. Disse que faltava ainda a mais importante das atribuições. Que era preciso dar a um dos filhos o governo da Terra, o mundo no qual os humanos viviam e onde produziam as comidas, bebidas e tudo o mais que deveriam ofertar aos orixás. Disse que dava a Terra a quem se vestia da própria Terra. Quem seria?, perguntavam-se todos. "Onilé", respondeu Olodumare. "Onilé?", todos se espantaram. Como, se ela nem sequer viera à grande reunião? Nenhum dos presentes a vira até então. Nenhum sequer notara a sua ausência. "Pois Onilé está entre nós", disse Olodumare, e mandou que todos olhassem no fundo da cova, onde se abrigava, vestida de terra, a discreta e recatada filha. Ali estava Onilé, em sua roupa de terra. Onilé, a que também foi chamada de Ilé, o país, o planeta. Olodumare disse que cada um que habitava a Terra pagasse tributo a Onilé, pois ela era a mãe de todos, o abrigo, a casa. A humanidade não sobreviveria sem Onilé. Afinal, onde ficava cada uma das riquezas que Olodumare partilhara com os filhos orixás? "Tudo está na Terra", disse Olodumare. "O mar e os rios, o ferro e o ouro, os animais e as plantas, tudo", continuou. "Até mesmo o ar e o vento, a chuva e o arco-íris, tudo existe porque a Terra existe, assim como as coisas criadas para controlar os homens e os outros seres vivos que habitam o planeta, como a vida, a saúde, a doença e mesmo a morte." Pois então, que cada um pagasse tributo a Onilé, foi a sentença final de Olodumare. Onilé, orixá da Terra, receberia mais presentes que os outros. Deveria ter oferendas dos vivos e dos mortos, pois na Terra também repousam os corpos dos que já não vivem. Onilé, também chamada Aiê, a Terra, deveria ser propiciada sempre, para que o mundo dos humanos nunca fosse destruído. Todos os presentes aplaudiram as palavras de Olodumare. Todos os orixás aclamaram Onilé.

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Todos os humanos propiciaram a mãe Terra. E então Olodumare retirou-se do mundo para sempre e deixou o governo de tudo por conta de seus filhos orixás. (Prandi, 2001: 410-415).

Bastide dizia que os mitos dos orixás podiam ser lidos nas coreografias executadas no

barracão dos candomblés pelos orixás incorporados nos filhos-de-santo. A dança perpetuando

o mito, mesmo quando ele já não pode, muitas vezes, ser lembrado por meio de palavras. O

que este estudo mostra é que o mito também está inscrito nas roupas, nos adereços, nos

arranjos estéticos e na maneira de conceber, construir e expressar o belo à moda africana em

qualquer momento do ritual ou de sua preparação. Por isso, o rito, o mito e a estética do

candomblé não se separam. Juntos são esteio e sentido dessa religião negra hoje enraizada

numa sociedade de gosto predominantemente branco, mas que bebe nessas fontes para

construir, a partir de sua diversidade cultural, sua própria identidade, a identidade brasileira.

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CADERNO DE IMAGENS

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ÍNDICE E CRÉDITOS DAS FOTOS

Prancha 1. Exu, Ogum

À direita Exu dançando com seu ogó, Casa das Águas, 2000. À esquerda acima duas manifestações de Ogum com seu capacete de metal, Ilê Alaketu Axé Airá, 2006. À esquerda abaixo, no centro, Ogum Onirê uma invocação de Ogum que é rei de Irê e seu diadema de búzios, Casa da Águas, 2004. Embaixo Ogum executando sua dança de guerra empunhando a folha de palmeira, Casa da Águas, 2006. Foto de Exu de Reginaldo Prandi. Foto de Ogum com a folha de palmeira de Carlos Alexandre Matioli Globo. Demais fotos de Ogum de Patrícia Ricardo de Souza. Prancha 2. Iroco, Ossaim, Logum Edé, Oxóssi, Oxumarê

Acima à esquerda Iroco com a forquilha de gameleira branca, Ilê Alaketu Axé Airá, 2006. Acima no centro Ossaim e suas folhas e búzios, Ilê Alaketu Axé Airá, 2001. À direita acima Logum Edé em seu traje azul e dourado, com a coroa que recebeu de Oxum, Casa da Águas, 2003. Abaixo à esquerda Oxóssi em sua roupa de peles e plumas, Ilê Alaketu Axé Airá, 2006. Abaixo à direita Oxumarê com seus guizos e portando as serpentes, Casa das Águas, 2005. Foto de Ossaim de Reginaldo Prandi. Demais fotos de Patrícia Ricardo de Souza. Prancha 3. Oiá/Iansã

Acima à esquerda Oiá com sua espada de raio, Ilê Alaketu Axé Airá, 2006. Acima à direita Oiá em sua invocação Igbale aquela que se veste de branco e conduz os espíritos dos mortos ao Orum, Ilê Alaketu Axé Airá, 2006. Abaixo Oiá executando sua graciosa e rápida dança afastando os eguns, Casa das Águas, 2004. Fotos de Patrícia Ricardo de Souza.

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Prancha 4. Oxum, Iemanjá

Acima à esquerda Oxum tomando banho no rio, Casa da Águas, 2005. Acima à direita Oxum toda de dourado, parecendo vestir-se de ouro, Casa das Águas, 2003. Abaixo à esquerda a vaidosa Oxum mirando-se no espelho, Casa das Águas, 2005. Abaixo à direita Iemanjá com um adê e abebé em formato de peixe, Ilê Alaketu Axé Airá, 2006. Fotos de Patrícia Ricardo de Souza. Prancha 5. Xangô, Oxum

Acima à direita e à esquerda Xangô, com seu traje feito de retalhos, Ilê Alaketu Axé Airá, 2004. Abaixo diversos trajes para o mesmo orixá: Oxum em diversas invocações, Casa das Águas, 2003. Fotos de Patrícia Ricardo de Souza. Prancha 6. Obá, Nanã, Aiabás

Acima à esquerda a rainha Obá com todo seu cobre reluzente e suas muitas armas: o escudo, a espada e o ofá, Ilê Alaketu Axé Airá, 2004. No centro Nanã, ninando seu ibiri, Ilê Alaketu Axé Airá, 2001. Abaixo uma coleção de cores, as rainhas: (da esquerda para a direita) duas Oxum, Iemanjá e duas Oiá, Casa das Águas, 2004. Foto de Nanã de Reginaldo Prandi. Demais fotos de Patrícia Ricardo de Souza. Prancha 7. Euá, Iemanjá

Acima à direita Euá em uma linda roupa bordada de búzios, segurando seu misterioso aracolê, Ilê Alaketu Axé Airá, 2006. Abaixo à esquerda Iemanjá de azul e prata, ao fundo a equede dançando junto, Ilê Alaketu Axé Airá, 2006. Abaixo à direita Iemanjá trajando branco e prata numa festa de Oxalá, Casa das Águas, 2006. Fotos de Euá e Iemanjá de azul de Patrícia Ricardo de Souza. Foto de Iemanjá de branco de Carlos Alexandre Matioli Globo. Prancha 8. Xapanã, Omulu, Olubajé

Acima à esquerda Xapanã em terreiro de tambor-de-mina, Casa das Minas de Thoya Jarina, 2005. Acima à direita Omulu com seus trajes de palha, Ilê Olá Omin Axé Opô Araká, 2005. Abaixo a comida do Olubajé, Ilê Axé Obaluaê, 2006. Fotos de Patrícia Ricardo de Souza.

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Prancha 9. Oxaguiã, Oxalufã

Acima à esquerda dois Oxaguiã com Airá e Oxalufã ao fundo, Casa das Águas, 2004. Acima à direita Oxaguiã pilando o inhame, encenando o mito da criação da cultura material, Casa das Águas, 2004. Abaixo à esquerda Oxaguiã com a mão de pilão e espada, o rei também faz a guerra, Casa das Águas, 2006. Abaixo à direita uma representação de Oxalufã em um espetáculo no Sesc Pelourinho, em Salvador, Bahia, em dezembro de 2004. Foto de Oxaguiã com a espada de Carlos Alexandre Matioli Globo. Demais fotos de Patrícia Ricardo de Souza. Prancha 10. Baianas.

Acima à esquerda baianas de acarajé, São Paulo, 2006. Acima à direita baiana recepcionando clientes em restaurante de Salvador, Bahia, 2004. No centro baianas trabalhando no Salão do Turismo, São Paulo em 2006. Abaixo uma parte da ala das baianas de escola de samba de São Paulo, 2004. Fotos de Patrícia Ricardo de Souza. Prancha 11. Ferramentas

Acima e abaixo: coleção de ferros de diversos orixás, Feira de São Joaquim, Salvador, Bahia, 2004. Fotos de Patrícia Ricardo de Souza. Prancha 12. Jóias, laços, ferramentas.

Acima penca de balangandãs em prata, Casa de Jorge Amado, Salvador, 2004. No centro à esquerda o ibiri de Nanã, Mercado de Madureira, Rio de Janeiro, 2002. No centro à direita os laços, que tudo sacralizam numa profusão de cores, adornam a gameleira branca, árvore de Iroco, no Ilê Alaketu Axé Airá, 2004. Abaixo à esquerda uma coleção de oxés de Xangô, Ilê Alaketu Axé Airá, 2004. Abaixo no centro as serpentes e o cetro com o qual Oxumarê fura a nuvem e provoca a chuva, Casa das Águas, 2005. Abaixo à direita os típicos anéis com búzios incrustados muito usados no candomblé, Congresso do Intecab em Diadema, 2002. Fotos de Patrícia Ricardo de Souza. Prancha 13. Adês

Acima duas vitrines de coroas para diversos orixás, fotografadas no Mercado de Madureira, Rio de Janeiro, 2002. A proximidade com a estética do carnaval é notável. Abaixo uma vitrine também com coroas diversas, fotografada numa galeria de Salvador, Bahia, 2004. Fotos de Patrícia Ricardo de Souza.

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Prancha 14. Potes, quartinhas, alguidares

Acima e abaixo diversos tipos de recipientes de barro usados no candomblé, fotografados numa olaria do interior paulista, que abastece lojas de candomblé e umbanda de produtos feitos de barro, 2005. Fotos de Jurandir Cseny. Prancha 15. Axós

Acima e abaixo roupas para todos os gostos e bolsos: o comércio de roupas para os adeptos. Foto realizada numa galeria em Salvador, Bahia, 2004. Fotos de Patrícia Ricardo de Souza. Prancha 16. Ilequês, peitaças, abebés

Acima os colares e outras peças para confecção dos fios. Abaixo os fios de contas, abebés, peitaças, pulseiras. Ambas as fotos realizadas numa galeria em Salvador, Bahia, 2004. Fotos de Patrícia Ricardo de Souza. TERREIROS FOTOGRAFADOS ILÊ ALAKETU AXÉ AIRÁ Babalorixá Pércio Geraldo da Silva de Airá Rua Antônio Batistini, 260 Bairro Batistini São Bernardo do Campo – SP CASA DAS ÁGUAS Babalorixá Armando Akintundê Vallado Rua Dolomita, 195 Jardim Miraflores – Amador Bueno Itapevi – SP CASA DAS MINAS DE THOYA JARINA Toy Francelino de Xapanã Rua Itália, 462 Jardim das Nações Diadema – SP ILÊ AXÉ OBALUAÊ Ialorixá Neide de Oliveira Silva Rua Emboabas, 194 Jardim das Oliveiras Itapecerica da Serra – SP

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ILÊ OLÁ OMIN AXÉ OPÔ ARAKÁ Ialorixá Carmen de Melo Cordeiro de Oxum e Babalorixá Carlito Maciel de Oxumarê Rua 10, 270 Jardim Porto Novo São Bernardo do Campo — SP

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GLOSSÁRIO

Entre parênteses, o termo iorubá original, quando é o caso. Em iorubá, as vogais grafadas a, e, o são abertas. Ausência de sinal indica vogal fechada. A letra S ou s soa como x na palavra orixá. Cada sílaba tem tom alto, médio ou baixo, indicado graficamente por acento na vogal: (`) para tom baixo, (´) para tom alto. Sílaba sem esses sinais tem tom médio.

Abebé (abíá): leque de metal; ferramenta dos orixás femininos.

Abiã (abíá): participante do candomblé ainda não iniciado. Iniciante, postulante.

Acarajé (àkàrà): bolinho de feijão fradinho, temperado, frito em azeite de dendê.

Acorô (Akoro): coroa de Ogum.

Adê (adé): coroa.

Adjá (ààjá): espécie de instrumento ritual, campainha metálica.

Adjuntó: segundo orixá que rege a cabeça de uma pessoa; também chamado juntó.

Adô (àdo): embornal dos orixás caçadores.

Agogô (agogo): instrumento rítmico composto de duas campainhas metálicas.

Aiabá (ayaba): rainha, esposa do rei; orixá feminino.

Aiê (ayé): Terra, mundo dos homens. Outro nome para o orixá Onilé.

Alá (àlà): pano branco, pálio de Oxalá.

Alacá: pano-da-costa feito de tiras costuradas. Ver pano-da-costa.

Alabê (alagbè): literalmente, dono da cabaça (chocalho). Homem escolhido pelo orixá para tocar os tambores no terreiro.

Amalá (àmala): comida predileta de Xangô, à base de quiabo, camarão seco e azeite de dendê.

Amassi: infusão resultante da maceração de ervas consideradas sagradas para utilização em banhos e na lavagem dos objetos sagrados dos orixás.

Aracolé: cabaça de mistérios de Euá.

Ató (ató): pequena cabaça usada para guardar remédios, símbolo de Ossaim e Omulu, orixás ligados às folhas.

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Axé (àsé): força sagrada; força vital que emana da natureza. Também a comunidade do terreiro, origem ou raiz familiar; poder sacerdotal; poder.

Axexê (àsèsè,àjèjé): ritual celebrado após a morte de um membro do terreiro.

Axó (aso): roupa.

Azê: capuz de palha com o qual Omulu se veste.

Babalaô (babálawo): sacerdote de Orunmilá; sacerdote do oráculo; adivinho.

Babalorixá (bàbálòrìsà): pai-de-santo. Chefe do terreiro, o sacerdote supremo da casa.

Bilala (bílálà): chibata usada por Oxóssi e Logum Edé.

Bori (borí): cerimônia pela qual se cultua a cabeça (ori); significa dar comida à cabeça. É um ebó à cabeça.

Bori (ebòorí): sacrifício à cabeça.

Brajá: colar de contas truncado com firmas que marca a senioridade ritual do adepto.

Cangoteira: a extremidade dos colares rituais do tambor-de-mina que fica na nuca.

Dã: outro nome para Oxumarê.

Decá: obrigação de sete anos que dá a senioridade própria do ebômi.

Ebó (ebò): sacrifício, oferenda, despacho.

Ebômi (egbonmi): literalmente "meu irmão mais velho". Estágio alcançado por um filho ou filha-de-santo após sete anos de feitura.

Ecodidé (ekódide): pena vermelha de um papagaio africano, edidé (edide), ou papagaio-da-costa.

Edum ará (edùn àrá): pedra de raio de Xangô.

Efum (efun): giz, pó branco ritual.

Egum (Ègún): antepassado, espírito do morto. Pode ser também a parte do indivíduo que sobrevive à sua morte e que pode ser cultuada. Alguns orixás são eguns divinizados.

Egungum (Egúngún): o mesmo que egum.

Envilacã: colar ritual no tambor-de-mina. Ver rosário.

Equede (èkejì): literalmente, a segunda; sacerdotisa não-rodante, cuja função é cuidar dos orixás em transe e de seus objetos de culto. É suspensa em público pelo orixá e passa pela cerimônia de confirmação.

Erê (ère): espírito infantil que substitui o orixá em transe em certos momentos, como no ato de vestir a divindade.

Erinlé (Erinlé): orixá da caça, pai de Logum Edé; o mesmo que Inlé.

Euá (Yèwá): orixá das fontes; dona dos cemitérios.

Euê (ewé): folha.

Euó (ewò): interdição religiosa; tabu; quizila.

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Exu (Èsù): orixá mensageiro; dono das encruzilhadas e guardião da porta do terreiro, é sempre o primeiro a ser homenageado.

Filá (filá): gorro usado pelos homens.

Funfum (funfun): branco.

Hungebe: colar ritual muito importante de contas marrons.

Huntó: cargo equivalente ao ogã que toca os tambores no terreiro. Ver alabê.

Iá Mi Oxorongá (Ìyámi Òsòròngà): feiticeiras, mães ancestrais.

Ialorixá (iyálòrìsà): mãe-de-santo; chefe do terreiro; sacerdotisa suprema da casa.

Iansã (Yánsàn): outro nome para Oiá; literalmente a mãe dos nove filhos.

Iaô (iyàwò): iniciado rodante que ainda não passou pela obrigação de sete anos.

Ibá (igbá): cabaça; assentamento ou altar do orixá.

Ibiri (ibiri): cetro ritual de Nanã.

Idá (idà): espada, punhal.

Iemanjá (Yemoja, Yémánjá): orixá do mar, mãe dos orixás.

Ifá (Ifá): outro nome para Orunmilá; também os apetrechos do babalaô e o próprio oráculo.

Ilê (ilé): casa.

Ilê axé (ilé àse): templo, terreiro de candomblé.

Ilequê (ìlèkè): colar ritual no candomblé.

Indé (idè): pulseira.

Iroco (Ìrókò): árvore africana sagrada (Chlorophora excelsa, Moraceae). No Brasil, gameleira-branca (Ficus maxima M., Moraceae). O orixá dessa árvore.

Iruquerê (ìrùkèrè): espanta-mosca feito com rabo de cavalo ou outro animal, usado por reis africanos como símbolo de poder e por alguns orixás, especialmente Oiá e Oxóssi.

Juntó: o mesmo que adjuntó.

Logum Edé (Lógunède, Logunede, Ológún-ede): orixá da caça e da pesca; filho de Erinlé e Oxum.

Mariô (màrìwò): folha nova da palmeira de dendê.

Nanã, Nanã Burucu (Náná, Nàná Buruku): orixá do fundo dos lagos.

Obá (Òbà): orixá do rio Obá.

Obaluaê (Obalúayé): orixá da varíola, das pestes, doenças e também da saúde.

Obatalá (Obàtálá): literalmente, Rei do Pano Branco; orixá da Criação; criador do homem; considerado o maior dos orixás.

Odara (ó dára): bom, bonito.

Odé (Ode): caçador; nome genérico para os orixás caçadores.

Odudua (Odùdúwà): orixá da criação; criador da Terra. masculino ou feminino.

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Ofá (ofà): arco e flecha; ferramenta primordialmente de Oxóssi, que pode ser usada por outros orixás caçadores

Ogã (ògá): literalmente, senhor, chefe, autoridade; no candomblé, cargo masculino de iniciados não-rodantes.Ver alabê.

Ogó (ògo): bastão de madeira geralmente em formato fálico, usado por Exu.

Ogum (Ògún): orixá da metalurgia, da agricultura e da guerra.

Oiá (Oya): orixá dos ventos, do raio, da tempestade.

Oiê (oyè): cargo, posto hierárquico, título.

Ojá (òjá): pano de amarrar, laço, lenço.

Olocum (Olókun): na África orixá dos mares, mãe de Iemanjá.

Olodumare (Olódùmaré): Deus Supremo. Criou os orixás e deu a eles as atribuições de criar e controlar o mundo.

Oloiê (oloiyè): literalmente "o dono do cargo". Homens ou mulheres que são escolhidos para desempenhar alguma função dentro da hierarquia do terreiro.

Olorum (Olórun): literalmente, Dono do Céu; nome pelo qual é denominado preferencialmente no Brasil o Deus Supremo.

Olubajé (Olúgbàje): festa de Omulu, literalmente, o banquete do rei.

Omulu (Omolu): outro nome para Obaluaê.

Onilé (Onílè): literalmente, Dona de Ilê, dona da Terra. Orixá feminino pouco conhecido no Brasil.

Opaxorô (òpásooró): báculo ou longo bastão de metal prateado usado por Oxalá.

Ori (Orí): cabeça; destino.

Ori (òrí): manteiga vegetal usada para untar a pele, limo-da-costa.

Orixá (òrisà): divindade, deus do panteão iorubá.

Orobô (orógbó): noz de cola amarga, falso obi (Garcinia gnetoides, Guttiferae), fruto usado no culto a Xangô.

Orum (òrum): Céu, mundo sobrenatural, mundo dos orixás; cada um dos nove mundos paralelos na concepção iorubá.

Orunmilá (Òrúnmìlà): orixá do oráculo.

Ossá (osa): lagoa, lago, mar.

Ossé (Òsè): dia santo, dia em que se lavam os assentamentos dos orixás.

Ossaim (Osányìn): orixá das folhas; orixá que cura com as ervas.

Ossum (osun): pó vermelho usado ritual, giz.

Otá (ota): pedra; seixo usado para assentar o orixá.

Oxaguiã (Òsagiyán): Oxalá jovem; orixá da Criação da cultura material.

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Oxalá (Òrìsànlá): Grande Orixá, outro nome para Obatalá; nome preferencial de Obatalá no Brasil.

Oxalufã (Òrìsá Olufón): Oxalá velho; nome pelo qual Obatalá é referido no Brasil.

Oxé (osé): machado duplo de Xangô.

Oxóssi (Òsóòsi): orixá da caça.

Oxum (Òsun): orixá do rio Oxum; deusa das águas doces, do ouro, da beleza e da vaidade.

Oxumarê (Òsùmàrè): orixá do arco-íris.

Pano-da-costa: faixa que se usa a tiracolo ou amarrada no torso ou na cintura.

Paó (pa owó): bater palma; palmas ritmadas em tom respeitoso; saudação aos orixás ou iniciados da alta hierarquia, que se faz prostrando-se no chão.

Peji: capela ou quarto dos assentamentos dos orixás.

Peregum (pèrègùn): a planta da dracena (Dracaena fragrans, Agavaceae).

Quelê (kelè): pequeno colar de miçangas nas cores do orixá, que é colocado no pescoço do filho-de-santo no momento da iniciação, e de grandes obrigações, significando sua sujeição a esse deus.

Roncó: clausura; espaço reservado ao recolhimento dos iniciados em período de obrigação.

Rosário: nome dos colares rituais no tambor-de-mina; ver envilacã.

Uági (wáji): pó azul ritual.

Vodum (do fon: vodun): divindade, deus do panteão jeje (ewê-fon).

Vodúnsi gonjaí: o iniciado rodante que já completou a obrigação de sete anos no tambor-de-mina.

Vodúnsi poncilê: sacerdotisa não-rodante no tambor-de-mina cuja função é cuidar dos voduns e encantados em transe e também de seus objetos de culto; é suspensa em público pelo vodum e passa pela cerimônia de confirmação.

Vodúnsi: o iniciado rodante no tambor-de-mina.

Xangô (Sàngó): orixá do trovão e da justiça.

Xapanã (Sànpònnà): outro nome para Obaluaê.

Xaxará (sàsàra): vassoura-cetro de Omulu.

Xequerê (sekeré): chocalho feito com cabaça e coberta por uma rede de contas.

Xere (séré): chocalho usado no culto de Xangô.

Xirê (sirè): brincar; cerimônia pública do candomblé em que a roda formada pelos filhos-de-santo canta e dança, louvando todos os orixás.

Zinguê: faixa de tecido retangular de cerca de trinta centímetros de largura por dois metros de comprimento com que se envolve o tronco dos iniciados.

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Patrícia Ricardo de Souza [email protected]

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