Avanços da tecnologia - Cabo Verde - Pages from Livro Noticias que fazem história

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Capítulo sobre audiovisuais, rádios, discos, do livro "Noticias que fazem a história. A música de Cabo Verde pela imprensa ao longo do século XX", da autoria de Gláucia Nogueira, ed. autor, Praia, Cabo Verde, 2007.

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AVANÇOS DA TECNOLOGIA

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Glaucia
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Nogueira, Gláucia. Notícias que fazem a história. A música de Cabo Verde ao longo do século XX. Praia: ed. autor, 2007.
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Evolução dos audiovisuais em Cabo Verde

A música, enquanto elemento da indústria cultural e de lazer, relacio-na-se naturalmente com outras manifestações e com os meios de pro-dução das mesmas. Ao longo do século XX esta indústria dará largos

passos, baseando-se n os avanços da tecnologia. Vale a pena ver os seus pri-mórdios, em Cabo Verde.

Pelas notícias dos jornais do início do século XX, vemos que esta foi uma época de grandes novidades em Cabo Verde, como, de resto, no mundo. A in-trodução da fotografi a na imprensa, a chegada do cinema e do gramofone são aspectos que as notícias e a publicidade da época registaram.

Em Abril de 1912, um anúncio no jornal A Voz de Cabo Verde dá conta da venda de um “cinematographo de salão” por parte de Jacinto Estrela, perso-nagem interessante e multifacetada da cultura cabo-verdiana, que dois anos mais tarde será o autor das primeiras fotografi as publicadas num jornal no ar-quipélago (O Futuro de Cabo Verde, a partir de 16 de Julho de 1914), mostrando paisagens de Santo Antão.

Se o “cinematographo” é ainda dos mais primários, movido a manivela, não chegamos a saber, mas a 4 de Dezembro do ano seguinte, O Futuro refere o cinematógrafo eléctrico de Francisco Morais, que mais uma vez se deslocou à Praia (sem especifi car proveniente de onde). “O seu novo aparelho (Pathé Frères modelo 1913) é o melhor que actualmente se fabrica”, diz o jornal, infor-mando que as sessões serão diárias durante cerca de dez dias.

Como qualquer novidade, naturalmente o cinematógrafo virou moda, e seis meses depois outro aparelho do género, de Freitas & Cia, é referido por esta publicação (2 de Julho de 1914). Pelas notícias não é possível apurar se estas sessões circularam por todas as ilhas, mas pelo menos na Brava as informações publicadas a 10 de Setembro de 1914 relatam “sessões concorridas (...) acom-panhadas de gramofone e instrumental”, o que, diz o correspondente, “livrou-nos um pouco do aborrecimento em que estávamos...”.

Mas o aborrecimento voltou, pelo menos temporariamente. Em 1916, A Voz de Cabo Verde (18 de Dezembro) anuncia que as sessões do cinematógrafo vão recomeçar – pelo que se conclui que tinham sido interrompidas. Terão lugar todos os domingos e os preços serão os mesmos, “apesar da subida enorme” do preço das películas, afi rma o texto.

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Duas semanas antes era posto à venda através deste jornal um gramofone com as seguintes especifi cações: “Com 86 discos double face – Diafragma re-produtor – de safi ra – PATHÉ. Não são precisas agulhas. Em bom estado, tanto a máquina como os discos. Vende-se tudo por preço inferior ao custo só dos discos (trata na redacção).”

Não disponho de informações sobre os anos 20, apesar de pesquisas que en-globam esse período, mas, seja pelo facto de as colecções estarem incompletas, ou eventualmente os temas culturais não serem frequentes, só a partir de 1931, com o Notícias de Cabo Verde (NCV), editado em S. Vicente, é que recomeçamos a ter dados sobre a evolução tecnológica com implicações na cultura.

E é já no seu primeiro número, a 22 de Março de 1931, que surge uma alusão a estes avanços. Neste caso, contra eles: na secção Cartas de Lisboa e sob o título “A mania fonomecânica”, uma carta assinada por Castelo Branco Chaves insur-ge-se contra a “epidemia” que depois da Grande Guerra alastra pelo mundo, a “mania fonomecânica”, “inoculada” por três veículos: a grafonola, a telefonia sem fi os e o cinema sonoro. Já antes, havia o gramofone, “aparelho atormenta-dor dos ouvidos humanos”, na opinião do leitor, que clama contra os avanços e a democratização que representam os meios de comunicação de massa e os apa-relhos sonoros, por deixarem em segundo plano a música executada ao vivo.

Tradição e modernidade dão o tom do momento, pelas páginas deste jor-nal, já desde o seu primeiro número, que sai a 22 de Março de 1931. Enquanto este dá conta de “uma brilhante quadrilha organizada pelo Sr. Augusto Vera-Cruz”, numa festa no liceu Infante D. Henrique, em S. Vicente, outra festa é “abrilhantada pelo jazz-band municipal”, segundo a edição seguinte, na qual um artigo critica a tradição da guisa – “destoada cantilena com que um cres-cido número de homens e mulheres acompanhava um enterro (...) esperamos que as autoridades competentes lhe ponham cobro, por imprópria numa cida-de civilizada”, lê-se.

O quinto número do NCV, em Maio de 1931, publica um extracto de conta do Jazz-Band Caboverdeano, cujos dados revelam que o grupo existia pelo menos desde 1926.

A 3 de Junho de 1933, este jornal recorda a morte do poeta, compositor e jor-nalista Eugénio Tavares, ocorrida três anos antes, e informa que será em bre-ve publicada Uma Partícula da Lira Caboverdeana, obra de B.Léza. São aspectos simbólicos do momento de viragem que se vivia: a época de Tavares passou; B.Léza está em plena actividade.

Os avanços nos meios audiovisuais em meados do século XX não se com-padecem dos conservadores. As novidades sucedem-se, publicitadas pela im-

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prensa, atraindo o público, que não só adere como as reivindica, como veremos adiante. Os aparelhos que contribuem para o lazer já fazem parte dos costu-mes. Temos notícia, no Verão de 1934, pelas páginas do NCV, de um piqueni-que no Mato Inglês, ao som de “músicas de ópera e ligeiras, executadas pelo gramofone”. O relato é de Augusto Casimiro, militar português deportado em Cabo Verde e que se revelou um grande entusiasta da cultura local, sendo-lhe inclusive atribuída a autoria de uma morna.

O Eco de Cabo Verde (ECV), outra publicação que ajuda a conhecer este perío-do, noticia, a 7 de Novembro de 1934, que Ivo Alves abre um cinema em Asso-mada. Uma semana depois, contudo, o mesmo jornal dá conta do precoce fi m da iniciativa: o cinema vai fechar por falta de espectadores. O Éden Park, por sua vez, activo havia cerca de uma década, entrará no ano seguinte na era do cinema sonoro. O equipamento, constante de microfone, altifalantes, e outros elementos, permitirá também a realização de concertos, récitas e conferências. A instalação completa-se cerca de meio ano depois: em Agosto de 1936, ao mesmo tempo que sai o segundo número da Claridade, o cinema mudo já é coisa do passado em S. Vicente.

Entretanto, começa a aparecer – e ao longo do tempo será uma constante – publicidade a aparelhos de rádio. A marca Philips é a primeira a ser anun-ciada, outras aparecerão mais tarde. Coincide com este momento – 1936 – o início das emissões em ondas curtas – 5 kw – pela Emissora Nacional, a partir de Lisboa, a qual, “neste período experimental, emite um programa para as colónias em África”, informa o NCV a 1 de Dezembro.

Cerca de dois anos antes, a 5 de Janeiro de 1935, o ECV, sob o título “Do Fogo à Brava”, trazia o relato de uma viagem de barco em que a noite é passa-da ao som de mornas tocadas ao piano pelo telegrafi sta – enquanto outros a ele se juntam com instrumentos improvisados (garrafas, colheres...) – e “concertos por rádio, numa experiência com o posto transmissor de bordo”.

Em 1939, a Câmara Municipal de S. Vicente adquire um aparelho de rádio com três altifalantes, que, à data da notícia, já se encontra na Praça Serpa Pinto, proporcionando à população “música variada, nacional e estrangeira” (NCV, 15 de Maio). Estas sessões de música na praça eram reivindicadas já em 1934, pelas páginas do ECV (22 de Dezembro), que sugeria, “como se faz em Lou-renço Marques”, que nos dias em que não há banda os Correios proporcionem música à população, com algum dos seus aparelhos-rádio.

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Outras inovações de 1939: aquisição de um aparelho de Raio-X para o hos-pital de São Vicente – “já está decidida superiormente” (NCV, 15 de Maio); inauguração do serviço postal Itália-América do Sul, com escala no Sal, a 21 de Outubro, assinalado com uma mensagem de Mussolini a Salazar, Franco e Getúlio Vargas (23 de Outubro).

Três anos mais tarde, ao mesmo tempo que chegam da metrópole as Forças Expedicionárias que fi cam instaladas em Mindelo, tendo como quartel-general o edifício do actual Centro Nacional de Artesanato, o NCV reivindica: “Cabo Verde precisa de uma emissora” (16 de Março de 1942).

Elas vão chegar, como veremos adiante, mas quanto a 1942, há ainda a dizer que é o ano em que tem início o serviço de telegramas pela Companhia Rádio Marconi e a criação da “companhia cabo-verdiana de fi lmes”. Tendo Henrique Pereira como realizador, Augusto Ferro como técnico e a colaboração de vários jovens, os primeiros trabalhos foram exibidos em Outubro desse ano. O prin-cipal, segundo o jornal, foi O Guarda Vingador. Por esses dias, morria o poeta Pedro Cardoso.

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Os primeiros discos de música cabo-verdiana

A 11 de Julho de 1931, o NCV (nº 9) publica o seguinte anúncio:

Mornas de Cabo Verde

Executadas por caboverdeanos

e gravadas pela Columbia Phonograph Company

A chegar brevemente (talvez em Agosto):

Mal d’Amor (morna), Cidade do Mindelo (polka),

Ribeira Bota (morna), Souvenir dum Carnaval (polka).

*****

Brevemente outras mornas

António Miguel de Carvalho & Cia. – São Vicente

Trata-se, provavelmente, das primeiras gravações de música cabo-verdiana a chegar às ilhas.

O mesmo estabelecimento voltará a anunciar, em Junho de 1933, no mesmo jornal: “Músicas caboverdeanas (mornas, mazurkas, polcas). À venda no escri-tório de António Miguel de Carvalho & Cia. São Vicente” – a publicidade desta empresa aparecerá ao longo de três meses, indicando em algumas inserções os títulos das músicas, mas nunca os intérpretes.

Refere-se provavelmente a estes discos uma notícia (NCV, 12 de Março) so-bre a Semana das Colónias que se realizou em Portugal em 1932, que fala da fraca representação de Cabo Verde, mas faz referência a uma audição de “mor-nas e polcas cabo-verdianas, em discos gravados na América”.

Esses pioneiros são, com boa margem de segurança, o Abrew’s Portuguese Instrumental Trio, o Johnny Perry’s Portuguese Criolo Trio e a Orchestra de No-tias. Temas destes grupos estão incluídos – ao lado de brasileiros e portugue-ses – na compilação Portuguese String Music, organizada por Richard K. Spot-tswood, especialista em discografi a de música étnica produzida nos EUA. O CD foi editado na Inglaterra em 1989 pela Interstate Music, na série Heritage.

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Tango Portuguez e Cabo Verdranos peça nove – polca (sic) são os temas do Abrew’s Portuguese Instrumental Trio, que terão sido gravados, segundo as pesquisas de Spottswood, numa sessão nos estúdios da Columbia em Nova Iorque, em 1931. O grupo, liderado por Augusto Abreu, violinista da ilha do Fogo nascido por volta de 1890 e falecido em Sacramento (Califórnia) na dé-cada de 50, integrava ainda Frank “Bojo” Pina (ao violão) e o porto-rique-nho Angelo (viola de 12 cordas), segundo o site www.oldhatrecords.com/1003Notes.html.

Gravaram oito temas, dois dos quais se encontram neste CD. Cabo Verdra-nos... (de Abreu, sendo que o outro não tem indicação de autor) foi incluído numa outra compilação – Folks, He Sure Do Pull Some Bow! Vintage Fiddle Music 1927-1935 – Blues, Jazz, Stomps, Shuffl es & Rags – editada pela Old Hat Records, nos EUA. O texto sobre o disco no site da editora chama a atenção para a forte infl uência europeia no toque do violinista, ao mesmo tempo que um trecho da música lembra uma canção americana em voga em 1924, Charley, My Boy.

A mais antiga das gravações de Portuguese String Music, segundo o texto de Spottswood na capa do CD, é de 1929: San Vicente-polka, do Johnny Perry’s Portuguese Criolo Trio. Orchestra de Notias, por sua vez, aparece no disco com Cidad de Mindello-polka, da autoria de C. Almeida.

Esta última formação, assim como o trio de Augusto Abreu, é referencia-da numa enciclopédia sobre a música das comunidades imigrantes nos EUA (www.nationmaster.com/encyclopedia/Music-of-immigrant-communities-in-the-United-States), que dá outros exemplos de grupos de cordas crioulo-americanos, como The B-29s e Cape Verdean Serenaders, e de duas big-bands: Creole Vagabonds e Don Verdi Orchestra.

Curiosamente, neste CD que recupera do esquecimento estas quatro gra-vações da virada da década de 20 para a de 30, não consta nenhuma morna. Opção do compilador, naturalmente, a que se pode juntar as condições do material quanto à qualidade do som, já que a publicidade do importador ates-ta que havia discos de mornas. Fica claro, contudo, que na altura a polca e a morna se encontravam em pé de igualdade quanto à sua presença no reper-tório dos grupos.

Ainda sobre discos de música cabo-verdiana na primeira metade do sécu-lo XX, temos, sob o título “Partiu para a América do Norte o Director de um Sexteto Cabo-Verdiano”, a reprodução, no NCV em Janeiro de 1949, de uma notícia de sete meses antes do jornal Ecos de Portugal, editado em Buenos Ai-res: “Adelino de Matos, músico cabo-verdiano que reside há muitos anos na Argentina, formou recentemente em Buenos Aires um excelente sexteto com conterrâneos seus, a que deu o nome de Orquestra Cabo-Verdiana (...)”. Com

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as matrizes das gravações realizadas em Buenos Aires – a marcha Lembrança do Vapor Rio Aguapey e as mornas Mamãe Luzia, Saudades das Ilhas e Veríssimo –, Matos partiu para Bóston para negociar a distribuição dos discos tanto nos Es-tados Unidos – “onde a música cabo-verdiana começa a fazer furor”, segundo o jornal – como noutros países, “um dos quais será a Argentina”.

No início da década de 50, a música de Cabo Verde começa a ser gravada em Portugal, surgindo como pioneiros os nomes de Fernando Quejas e os ir-mãos Silva (Djuta e Adolfo). Só na virada dos anos 50 para os 60 foram feitas em Cabo Verde, nos estúdios da rádio, gravações de música que vieram a ser editadas em discos, fabricados na Europa – os preciosos singles da Casa do Leão, em que se estrearam artistas como Titina, Djosinha e Amândio Cabral, entre outros.

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Histórias da Rádio

As três décadas da RCCV

Cabo Verde começa a ter emissões radiofónicas produzidas localmente na segunda metade dos anos 40, mas já cerca de uma década antes a tecnologia da telefonia sem fi os era, para alguns, uma realidade e para

outros uma reivindicação.

Em Outubro de 1935, quando começa a guerra entre a Itália e a Abissínia, o NCV desdobra-se numa cobertura pormenorizada, a partir da radio-telefonia. Não é de admirar, portanto, que o compositor António Tchitche tenha compos-to na altura a sua histórica morna, Abissínia, cuja letra expressa o desejo de que os etíopes expulsem as forças de Mussolini que haviam ocupado a Eritreia. Graças ao rádio, o acontecimento estava a ser seguido de perto em S. Vicente.

É a partir dessa época que começam a aparecer em Cabo Verde os primeiros anúncios publicitários de receptores de rádio, e a marca Phillips é a pioneira. Contudo, só em 1945 irá aparecer a primeira emissora cabo-verdiana, a Rádio Clube de Cabo Verde (RCCV), na capital.

A RCCV foi fundada na Praia em 1945, pelo Alvará nº 2/945. Em Maio des-se ano, após a publicação dos estatutos no Boletim Ofi cial (BO), a direcção faz circular uma carta convidando pessoas a darem o seu apoio à iniciativa, tornando-se sócios fundadores. Fernando Quejas, que nos facultou a carta re-cebida na altura, foi um dos que aderiu, e iniciou aí a sua carreira de cantor.

A iniciativa surgira em Novembro de 1944, relata num artigo publicado no NJCV, em Maio de 1995, o médico e investigador Henrique Santa Rita Vieira: “O chefe dos serviços dos CTT, Rogado Quintino, facultou, com o acordo do governador João de Figueiredo, um aparelho emissor que se encontrava fora de uso, e graças ao saber de Manuel Tomaz Dias, funcionário da Rádio Marco-ni, as transmissões radiofónicas entraram em actividade.”

Um artigo de três páginas publicado em Cabo Verde – Boletim de Propaganda e Informação em Outubro de 1950 e assinado por Antero Osório recorda também os primórdios da emissora – cujo berço, revela o autor, foi a fi lial da Compa-nhia Rádio Marconi, na Achada Santo António –, quando era chamada sim-plesmente “Rádio Praia”.

Temos poucas informações dos primeiros cinco anos da RCCV, mas a par-tir de 1950 ela adquire mais força. Em Maio desse ano, na mesma altura em

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que é declarada corporação de utilidade pública pelo governo da colónia, a emissora organiza um concurso de conjuntos musicais que desperta grande entusiasmo.

O Boletim (Junho de 1950) revela que o prémio inicial de 500 escudos, que seria o único, acabou por subir para 1.500 para o primeiro lugar, pois as con-tribuições que foram chegando, num total de 4.000 escudos, permitiram com-pensar todos os cinco grupos participantes – cujos nomes, se existiam, e os componentes, infelizmente a publicação não refere.

O concurso realizava-se através de votação dos ouvintes, que deviam en-viar uma senha indicando o seu grupo preferido, o que aconteceu na Praia, no Fogo e na Brava, pois problemas de transporte impossibilitaram a distribuição das senhas em outros pontos do arquipélago, segundo a publicação. Contudo, fi camos a saber que a RCCV chegava a todas as ilhas.

No ano seguinte, na edição de Março desse mensário, é anunciada uma remodelação dos programas. Ao longo de muitas edições, a partir de então, a última página do Boletim é preenchida com a programação da RCCV. O di-rector desta publicação, Bento Levy, foi um dos sócios fundadores da rádio e dirigiu-a em diferentes épocas.

As emissões inicialmente foram diárias, das 18h30 às 20h, e mais tarde pas-saram a começar às 18h. Traziam uma programação variada: música estran-geira das mais variadas origens, fados e guitarradas, a “Revista Feminina”, humor, eventualmente palestras e dois noticiários, um no início e outro no fi m do período de emissão.

Quanto à música cabo-verdiana, fi camos a saber pela programação o que se podia ouvir: Pipita e seus rapazes e grupo Unidos de Belém aparecem frequen-temente, ao longo dos anos 50. Pipita (Pedro Bettencourt), recorde-se, além de músico e professor – manteve durante algum tempo uma escola de música na Praia – é pai dos músicos Mário (Russo) e Quim Bettencourt. O seu grupo aparece por vezes a acompanhar Rui Vera-Cruz em programas de mornas. Fernando Quejas e o Conjunto Florestais aparecem também com frequência, assim como uma formação intitulada Rico’s Creoulo Band, além de concertos da Banda Municipal da Praia, às quintas-feiras.

Temos notícias de concursos musicais também pelos fi nais dos anos 50 e nos 60. O compositor Daniel Rendall informou-nos que as suas irmãs, Bia e Veróni-ca, participavam dessas actividades, e refere os músicos Djedje Matias e Djodja como acompanhantes. O próprio Daniel Rendall veio a participar de um des-ses concursos por volta de 1963. “O concurso decorria nos estúdios da rádio, e a votação era feita por telefone, telegrama ou carta. No fi m, montava-se o pal-co no largo do Ténis, onde na altura não havia nada; por lá passaram muitos

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grupos e cantores”, recorda, lembrando o nome de Ima Costa, que também era locutora da rádio, como uma das intérpretes que participaram. O Arquipélago, em Abril de 1964, dá conta da realização de um desses concursos, mas com a apresentação dos grupos no cine-teatro.

Em 1954, ao completar nove anos de actividades, altura em que Jaime de Figueiredo assume a sua direcção, as instalações da rádio passam para o pri-meiro andar do edifício, recém-construído na praça Alexandre Albuquerque, para ser a sede da SAGA (Sociedade de Abastecimento de Géneros Alimentí-cios). Além dos estúdios, tinha aí a sua sede social, onde se organizavam réci-tas e bailes. No local hoje ocupado pela sede do Banco Comercial do Atlântico, permaneceu durante décadas, mesmo depois de se ter convertido na Rádio Nacional, após a independência.

A vocação de clube recreativo terá, em alguns momentos, praticamente su-plantado a actividade de radiodifusão, pelo que dá a entender o discurso de posse da direcção que entra em funções em 1961, quando Bento Levy volta à RCCV, depois de quase dez anos afastado: “Desejo lembrar que (...) a radio-difusão constitui a função principal do Rádio Clube e que esta não pode ser postergada em benefício exclusivo, ou mesmo prevalecente, da vida social a estabelecer.”

Ao completar um quarto de século, em Maio em 1970, teve lugar uma série de actividades sociais, como um almoço de homenagem aos fundadores e um baile, para além de uma emissão especial, com colaborações de Anastácio Fi-linto Silva, Ramiro Azevedo, Raul Barbosa, entre outros. O Arquipélago destaca ainda um programa de meia hora com o conjunto Doc Bay, formado pelas ir-mãs Benrós de Melo (Georgina e Viviane) e Pedro Bettencourt, já referido nes-tas linhas. A RCCV existiu até a altura da independência. A partir daí, apenas a actividade de radiodifusão se manteve, então como Rádio Nacional.

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Pioneiros

Em S. Vicente, a 21 de Junho de 1947, uma nota na primeira página do NCV informa que a Rádio Clube do Mindelo acaba de inaugurar as suas emissões: são às terças, quintas, sábados e domingos, das 18h às 19h30.

Precisamente dois anos depois, também no mês de Junho, e também no Mindelo, o mesmo jornal noticia a inauguração da chamada “rádio Pedro Afonso” – mais precisamente, posto experimental CR4AC, com emissões das 20h às 22h, às terças, quintas e domingos.

José Pedro Afonso, que como radiotelegrafi sta da armada portuguesa che-gou a S. Vicente no início dos anos 40, acabou fi cando. Trabalhou na Casa do Leão e foi proprietário de um bar. “Verdadeiro entusiasta por tudo quanto se referia à rádio, foi um dos pioneiros da radiodifusão em Cabo Verde, tendo fundado a já extinta estação CR4AG, que foi muito popular na sua época”, recorda-o o jornal O Arquipélago por ocasião do seu falecimento, em 1973, aos 63 anos.

Antes ainda destas duas rádios pioneiras em S. Vicente, terá havido uma outra iniciativa. Segundo o músico mindelense Malaquias Costa nos relatou numa entrevista em 1998, um outro português, chamado Cunha, radiotele-grafi sta nos Correios, foi o primeiro a ensaiar criar uma emissora. “Era em sua casa, e as emissões chegavam apenas às casas vizinhas”, recorda. Cunha deveria passar discos apenas, pois, segundo Malaquias, foi com Pedro Afonso que se começou a usar microfones, o que permitiu que os artistas actuassem em directo.

Para além da sua contribuição para os media cabo-verdianos da altura – em 1951, o NCV felicita-o por ter melhorado os serviços, “fazendo-se ouvir em quase todo o arquipélago” – Pedro Afonso deixou para a música cabo-verdia-na um dos seus três fi lhos, o pianista José Afonso, residente em Lisboa.

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Histórias da Rádio

Rádio Clube do Mindelo

A 21 de Junho de 1947, o NCV noticia, na sua primeira página, a inaugura-ção das emissões da Rádio Clube do Mindelo (RCM). São, nesses primei-ros tempos, às terças, quintas, sábados e domingos, das 18h às 19h30.

Sobre esta emissora que marcou época em S. Vicente, atraindo entusiastas entre a intelectualidade da época, como Gabriel e Dante Mariano, mais tar-de Onésimo Silveira, entre tantos outros que ainda hoje se recordam desses tempos, há, curiosamente, muito pouca informação registada nas páginas da imprensa cabo-verdiana.

O Boletim traz publicidade da RCM em algumas poucas edições – ao con-trário da RCCV, da Praia, que durante muito tempo teve a sua programação publicada mensalmente nesta revista, além de, praticamente desde o início, ter recebido apoio fi nanceiro ofi cial. Em todo o caso, pelos anúncios da RCM fi camos a saber, em Setembro de 1955, que as emissões a partir desta altura são às segundas, quartas e sextas, das 20h às 22h.

Já em Novembro de 1957, a emissora – que se proclama “Voz de S. Vicente ao serviço de Cabo Verde” (Boletim nº 98) – informa num dos seus anúncios que emite diariamente, na banda dos 62 metros, com a frequência de 4.755 kc/s, das 18h30 às 20h.

A página publicitária traz só os destaques da programação (com início às 19h ou às 19h30), mas pode-se concluir que privilegia o desporto, com um programa de actualidades desportivas às segundas-feiras e o relato dos jo-gos aos domingos; às terças há “Música e Palavras – programa de divulgação musical”; às quartas, o “Panorama” caracteriza-se como “crítica construtiva de um cabo-verdiano para os cabo-verdianos”; às quintas há uma “Sinfonia Publicitária”; às sextas, a rubrica “Rádio-cinema” propõe actualidades e crítica cinematográfi ca; e aos sábados há o “Jornal Sonoro”, revista de actualidades. Infelizmente, não aparecem os nomes das pessoas que produzem e apresen-tam estas emissões.

“E ainda os mais diversos programas da Emissora Nacional que nos são fornecidos ao abrigo do plano de intercâmbio daquela estação”, lê-se nesta pá-gina, que informa ainda que brevemente a rádio irá iniciar um serviço semanal de emissões em inglês e italiano, em colaboração com a BBC e a Radiotelevisão Italiana.

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Quanto à música, o anúncio publicita “música variada e de dança, folcló-rica, ligeira, sinfónica, de salão, etc., na sempre renovada discoteca do Rádio Clube do Mindelo”.

Ainda nos anos 50 situam-se as recordações que a cantora Titina nos rela-tou numa entrevista em 2002: “Fiz um programa com o Frank Cavaquinho, era às quintas-feiras na Rádio Clube do Mindelo. O Frank estava sempre a compor, praticamente todas as semanas tínhamos músicas novas. Ele ia lá à minha casa, ensaiávamos e à quinta-feira íamos para a rádio, não era gravado, começávamos a cantar, aquilo era em directo. Evandro de Matos, que dirigia a rádio, era o apresentador. Ele ensinou-me muito.”

Em 1964, a rádio instala um novo emissor, mais potente, informa O Arqui-pélago, em Abril, e três meses mais tarde é anunciado no mesmo periódico a realização de um concurso de mornas e conjuntos musicais. Em Setembro do ano seguinte, informa-se que a RCM comemorou os seus 20 anos de existência com um espectáculo teatral no Éden Park.

A emissora terá sido criada ofi cialmente em 1946 – O Arquipélago assinala em Setembro de 1968 os seus 22 anos e, em Setembro de 1971, os 25 – mas só terá iniciado as transmissões em Junho do ano seguinte, pelo que diz o Notícias atrás referenciado. Nos seus 25 anos, abre um terceiro período diário de emis-são (até então era à tarde e à noite), criando o programa “Paralelo 12” (das 12h às 13h).

Às actividades radiofónicas associavam-se iniciativas de carácter recreativo e cultural, a exemplo do que acontecia com a RCCV e com a Rádio Barlavento (esta nascida no interior de um clube social). O cronista Nena (Manuel Nas-cimento Ramos), autor de Mindelo de Outrora e que tinha a sua farmácia no mesmo edifício onde funcionava a RCM, no alto da rua de Lisboa, recorda-se de bailes, récitas e espectáculos teatrais na sede da emissora.

Sabemos pel’O Arquipélago (07 de Dezembro de 1972), que o conjunto Kings actuaria nesse espaço no réveillon desse ano, enquanto Os Alegres animariam a festa do Grémio.

A “carolice e boa vontade”, segundo Nena, eram os motores do funciona-mento da RCM, que em algumas ocasiões terá sofrido com a censura, em par-ticular, segundo ele, nos últimos tempos antes da independência, o que de-sencorajou alguns dos seus jovens voluntários que, mais tarde, contudo, pela experiência aí adquirida, viriam a tornar-se profi ssionais na Rádio Nacional, que resulta da estatização de todas essas iniciativas privadas que originaram a radiodifusão no arquipélago.

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Capítulo

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Histórias da Rádio

Rádio Barlavento

A direcção do Grémio Recreativo do Mindelo, na altura presidida pelo médico José Duarte Fonseca, reuniu na sua sede, no dia 21 Agosto de 1954, várias personalidades para apresentar a aparelhagem que acaba-

ra de receber para os seus serviços de radiodifusão. O governo na Província apoiou fi nanceiramente a aquisição do equipamento, considerando o Grémio um organismo de utilidade pública, informa a revista Cabo Verde – Boletim de Propaganda e Informação, que publica essa notícia no seu número 60, sob o título “Radiodifusão em S. Vicente”.

Em Junho do ano seguinte, o número 69 da mesma publicação informa que as emissões tiveram início e, um mês depois, que a Rádio Barlavento foi inau-gurada ofi cialmente, com um emissor de 1 kW, emitindo diariamente na ban-da dos 50,2 metros, das 18h30 às 19h30.

Começa assim a história de quase duas décadas de vida da Rádio Barlaven-to, a última a ser criada entre as emissoras pioneiras em Cabo Verde, todas de iniciativa de particular, e a primeira a ser “nacionalizada” pelo PAIGC, ainda durante o período de negociações para a independência – precisamente dez dias antes do acordo fi rmado a 19 de Dezembro de 1974.

Ainda nos seus primeiros anos, dos seus estúdios no edifício onde hoje se encontra o Centro Nacional de Artesanato, na Praça Nova, saíram emissões e gravações que são marcos na produção cultural de Cabo Verde.

As primeiras gravações realizadas no arquipélago e que vieram a ser edita-das em disco foram aí realizadas. Mité Costa, a cantar mornas de Jotamonte e acompanhada por um grupo dirigido por ele próprio, foi a primeira da série de 45 rpm intitulada Mornas de Cabo Verde, editada pela Casa do Leão. Seguiu-se, entre outros, Amândio Cabral, com o disco em que grava, não em seu nome, a hoje célebre Sodade, cuja autoria veio a registar anos depois.

Foi também a partir dos estúdios da Rádio Barlavento que Sérgio Frusoni e Nho Djunga divertiram os mindelenses com o humor acutilante das suas crónicas que, à hora certa, atraíam muita gente para ouvi-las pelos altifalantes colocados no exterior do prédio.

Bem antes disso, foi também nesta emissora, quando completava um ano de existência, em Julho de 1956, que Baltasar Lopes da Silva leu, em duas sessões,

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a sua palestra indignada sobre o que o sociólogo Gilberto Freire escrevera so-bre Cabo Verde. E também um texto emocionado sobre a importância da obra de B.Léza, no dia da morte deste compositor, em 1958.

Ao longo dos anos 60, praticamente nada encontramos nas páginas d’O Ar-quipélago – único órgão de informação generalista em Cabo Verde na altura – sobre a Rádio Barlavento. Só em Dezembro de 1977, quando se comemora o terceiro aniversário da sua guinada de rádio da classe abastada e conservado-ra para instrumento do PAIGC, é que, pelas páginas do Voz di Povo, ela volta a ser notícia, pelo que a nossa pesquisa conseguiu apurar.

No período turbulento em que se desenrolavam as negociações entre o PAIGC e o governo português, a rádio – nascida no interior do clube que reunia a elite de S. Vicente – assumira uma posição contrária à luta pela independência. “Pessoas afectas aos intentos neocoloniais spinolistas se serviam desse meio de comunicação de massas para os seus fi ns manipuladores”, escreve o VP.

Assim, a 9 de Dezembro de 1974, as suas instalações são ocupadas por um grupo que havia dois meses vinha preparando esse momento – como relata, num depoimento publicado em Dezembro de 1985, no Tribuna, o jornalista Júlio Vera-Cruz, que tinha na altura 16 anos – e funda-se então a Rádio Voz de S. Vicente.

“A transformação da Rádio Barlavento em Rádio Voz de S. Vicente foi um acontecimento de peso no processo de descolonização em Cabo Verde, não só por pôr termo à campanha de intoxicação então levada a cabo por certa cama-da da pequena burguesia reaccionária, mas também por dotar o povo de Cabo Verde e o Partido de um instrumento efi caz no esclarecimento, mobilização e organização populares com vista à independência”, lê-se no VP, que noticia que, ao longo de mais de duas semanas, haveria actividades a assinalar o ter-ceiro aniversário da tomada da rádio.

A comemoração dos dez anos foi ainda maior, com uma emissão contínua de 36 horas preparada especialmente para a ocasião, em que actuaram Tra-vadinha, Luís Morais e muitos outros artistas. Numa cerimónia realizada na Escola Preparatória Jorge Barbosa, José Araújo (na altura presidente da Comis-são Nacional de Informação) discursou a recordar o papel que a rádio passou a ter como instrumento de mobilização, na altura.

Corsino Fortes, então secretário de Estado da Comunicação Social, anun-ciou, para dali a alguns meses, o lançamento da Rádio Nacional de Cabo Verde (RNCV), que viria por sua vez a determinar o fi m da Rádio Voz de S. Vicente, ao absorvê-la, como fi zera com a Rádio Clube de Cabo Verde, da Praia. Durará seis anos o regime de “rádio única”: em 1992 regressam as iniciativas privadas que, de lá para cá, não pararam de se multiplicar.

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Capítulo

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Histórias da Rádio

Ouvintes exigentes

Em Outubro de 1950, o Boletim publica um artigo assinado por Antero Osório sobre a Rádio Clube de Cabo Verde, na altura com cinco anos de existência, dando a noção da sua importância naquele momento quanto

à veiculação de notícias e programas culturais.

Para além de Claridade – “que arrancou a sua existência consciente somente a meia dúzia de anos ou pouco mais da forte malha tecida pela resistência pas-siva que paira sobre o ar carregado dos nossos climas” –, do aparecimento de Certeza e do Boletim de Propaganda e Informação, do persistente Notícias de Cabo Verde, o autor coloca a radiodifusão “na cúpula” dos media da época.

Osório exorta a que, no campo material, os responsáveis procurem obter melhoramentos técnicos, a que não faltem com as quotizações e que, no campo moral, façam guerra aos detractores, impedindo “ventilar questões pessoais ou que se travem lutas de parcelas em detrimento das regalias da colectividade”.

Meses depois, Guilherme Rocheteau, em “Caminhos da Radiodifusão” (Bo-letim, Janeiro 1951), ressalta a responsabilidade das rádios face à situação de insularidade e atraso. “Dispondo de duas ou três estações [na altura, a RCCV, a RCM e a Rádio Pedro Afonso] (...) não é cedo de mais que elas cumpram desde já os objectivos da sua superior fi nalidade. Há que lhes determinar uma posição de estabilidade e permanência, nunca as desvirtuando fazendo delas um recreio e um capricho de grupos ou classes, e confi ar-lhes a penetração sistemática de todas as camadas sociais, numa campanha sem precedentes de renovação técnica e de cultura popular”, afi rma.

Rocheteau esclarece o que defi ne como renovação técnica: “A preparação do povo de modo a intervir efectiva e largamente no plano de ressurgimento que um dia se determinar para a agricultura, para a indústria e a economia de Cabo Verde, através dos conhecimentos que lhe permitam transitar dos pro-cessos antiquados aos mais modernos resultados das ciências”.

“Mais facilmente do que pela imprensa, pela Rádio é de se tentar a cons-ciencialização do indivíduo, na luta contra o analfabetismo, na educação téc-nica da grande massa, na necessidade de informação cultural, na assistência científi ca aos trabalhadores, etc.”. Pedia de mais o poeta?

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Notícias Que Fazem a História

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Para outro poeta, Jorge Barbosa, a rádio banalizara-se por volta de 1952. Ou terá sido simplesmente enfado o que o levou a escrever a crónica “Nada aqui acontece (no mesmo Boletim, em Novembro desse ano): “Tudo vem atrasado, as modas, a música, os livros, as cartas dos amigos. Apesar de a rádio encurtar as distâncias, pouco ouvimos as suas novidades. Já lá vai o tempo em que às horas certas dos noticiários e fados da Emissora Nacional, dos comentários da BBC, dos sambas desses muitos PR [posto radiofónico] que há pelo Brasil, a burguesia das nossas cidades e das nossas vilas se concentrava, ávida de sensações, à roda dos aparelhos. E a gente do povo, curiosa, fi cava na rua, de-fronte das janelas, ouvindo também e comentando com a sua fi losofi a e a sua ironia os ecos de terra longe. Agora já não. Já não há aquela pressa nem aquele interesse em escutar a telefonia que permanece fechada a maior parte do tem-po. É que ela se banalizou de mais. Pois aqui nada acontece. Estamos no fi m do mundo, de olhos virados para um futuro que teima em não chegar.”

Sem criticar nenhuma das emissoras cabo-verdianas em particular, o trecho vale pelo que revela do interesse despertado pela rádio nos seus primórdios. Na mes-ma página, Jorge Barbosa desfaz um mal-entendido com pinceladas de bairrismo que quase chega a opor o poeta a Orlando Levy, na altura locutor da RCCV.

Barbosa escrevera num número anterior sobre a intenção de se criar uma nova rádio em S. Vicente – devia referir-se à Rádio Barlavento, que se torna realidade em 1955. “Através desta, então, com as nossas mornas e as nossas poesias, o arquipélago enviará a sua melhor e a sua mais simples mensagem a outras terras e a outros povos”. À reacção de Levy, Jorge Barbosa frisa que seria a melhor mensagem não por ser enviada de S. Vicente, mas por ser “o melhor que nós temos a dar de todos nós – a nossa poesia e a nossa música”.

Ouvintes exigentes foram coisa que não faltou às rádios cabo-verdianas. Em Agosto de 1953, um leitor do Boletim que assina com as iniciais V. J. critica o ex-cesso de música, “que fulaninho dedica a fulaninha com muitas saudades...”, e a falta de programas de interesse mais geral, bem como “a exiguidade das ‘Notícias do Arquipélago’. “Então não acontece mais nada nesta nossa terra senão... o movimento marítimo? Não nascem gémeos nem morrem um desses velhos que mereça a pena dar a notícia? Não há sequer uma cena de pancada-ria ou um choque de automóveis?”, questiona o leitor e ouvinte.

Pelas páginas d’O Arquipélago, anos mais tarde, vamos encontrar, em Fe-vereiro de 1966, um texto de Marlima – “Música Cabo-Verdiana” – sobre um concurso musical promovido pela RCCV e as gravações que são transmitidas na programação. “Atira-nos de vez em quando para o ar com uma música de gaita e ferrinhos detestável, ou mornas e coladeiras sem morabeza e moral pouco judiciosa...”

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Capítulo

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A radiodifusão nunca deixou indiferentes os cabo-verdianos. Ainda que nos primeiros tempos poucos tivessem o privilégio de possuir um receptor, isso não impedia os menos abastados de acompanhar as transmissões, já que grupos de pessoas se reuniam onde houvesse um rádio a funcionar, como vi-mos no trecho de Jorge Barbosa.

É interessante notar, quanto à sua importância, que, já pelos fi nais dos anos 50, o NCV trazia em todas as edições uma coluna intitulada “Rádio-Repórter”, com notícias e comentários sobre os programas e a performance dos locutores das emissoras então existentes.

A partir dos anos 60, refere João Nobre de Oliveira em A Imprensa Cabo-Verdiana 1820-1975, muito mais gente poderá possuir um aparelho de rádio. O historiador atribui aos emigrantes um papel importante nesta mudança.

“Esse fenómeno provocou uma revolução na comunicação social em Cabo Verde. Pelo menos na área da rádio, a comunicação deixou de ser elaborada tendo em vista apenas uma elite interessada, era toda a população que passa-va a ser o destinatário da mensagem radiodifundida”, escreve Oliveira, lem-brando ainda o acesso que se tinha a rádios estrangeiras, facto que o PAIGC não deixou de aproveitar durante a luta pela independência, com a sua Rádio Libertação, emitida a partir de Conacri.

Por sua vez, a rádio fora importante também para a administração colonial. No seu artigo (“História das transmissões radiofónicas na cidade da Praia e re-cinto de lazer”, NJCV, Maio de 1995), o médico Santa Rita Vieira, homem aten-to à realidade do seu tempo, dá como exemplo o facto de que a RCCV, nos seus primeiros tempos, “facilitou a actividade do Governador assoberbado com os problemas resultantes da última crise provocada pela seca. Passou a ter possi-bilidade de transmitir rapidamente aos administradores dos vários concelhos as instruções para aplicação das verbas para melhor acudir aos necessitados”.

A RCCV, considerada corporação de utilidade pública após cinco anos de actividades, foi apoiada fi nanceiramente pelo governo, com verba saída do Orçamento Geral da Metrópole, como dá conta o Boletim de Julho de 1954.

Vinte anos mais tarde, no período de transição para a independência, os mi-litantes do PAIGC tomam o poder na Rádio Barlavento, em S. Vicente. Tirar a emissora das mãos de quem alinhava com o poder colonial constituiu na altu-ra, além das suas implicações concretas na mobilização da população, um acto politicamente simbólico, e também revelador da importância deste veículo.

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Travadinha e seu violino, em 1984, nos dez anos da tomada da Rádio Barlavento. FOTO: VOZ DI POVO

Parede à entrada dos arquivos da

Rádio de Cabo Verde, em S. Vicente, 1998.FOTO: GLÁUCIA NOGUEIRA

Luís Morais em 1984, na comemoração dos dez anos da tomada

da Rádio Barlavento.

FOTO: VOZ DI POVO

Dois dos singles da Casa do Leão: Amândio Cabral e Djosinha/Titina. Gravados na Rádio Barlavento.

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