Aulas Afrânio(1999)

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Direito Processual Penal

Aulas ministradas pelo professor Afrnio Silva Jardim em 1999

Alexandre Helvcio Ferreira Monteiro Machado

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NDICE ANALTICO Aula 1, do dia 08/03/1999 Jurisdio no processo penal; caractersticas e princpios da jurisdio Pgina 05 Aula 2, do dia 15/03/1999 Processo: Natureza Jurdica, caractersticas, efeitos e classificao Pgina 06 Aula 3, do dia 22/03/1999 A lide no processo; pressupostos processuais; sistemas processuais penais Pgina 08 Aula 4, do dia 29/03/1999 Princpios e caractersticas do sistema processual penal; inqurito policial: finalidade e princpios Pgina 11 Aula 5, do dia 06/04/1999 Inqurito policial: incio. VPIs. Tramitao. Atuao do juiz no inqurito policial Pgina 14 Aula 6, do dia 12/04/1999 Atuao do Ministrio Pblico nas investigaes. Arquivamento e desarquivamento do inqurito policial: legitimao, procedimento, natureza e efeitos Pgina 19 Aula 7, do dia 19/04/1999 Ao: conceito, natureza jurdica, condies para seu exerccio, elementos identificadores e classificao Pgina 24 Aula 8, do dia 26/04/1999 Ao penal condenatria; ao penal nos crimes contra a liberdade sexual. Denncia: requisitos, rejeio. Imputao alternativa. Pgina 29

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Aula 9, do dia 10/05/1999 Ao penal pblica condicionada. Representao do ofendido e requisio do Ministro da Justia: natureza jurdica, legitimao, procedimento, retratao, extenso subjetiva da representao Pgina 32 Aula 10, do dia 17/05/1999 Arquivamento implcito. Ao penal privada subsidiria da pblica: crtica, ampliao dos eu espectro de ao, possibilidade de atuao do Ministrio Pblico (vertentes e efeitos das mesmas) Pgina 36 Aula 11, do dia 24/05/1999 Ao penal privada Exclusiva; crtica, legitimao. Requerimento do ofendido. Queixa: requisitos formais, rejeio. Princpios da ao penal privada. Decadncia, renncia, perdo e perempo Pgina 39 Aula 12, do dia 31/05/1999 Competncia no processo penal. Competncia e atribuio. Tipos de competncia. Competncia de Justia Pgina 44 Aula 13, do dia 07/06/1999 Competncia de foro. Competncia de Juzo Pgina 48 Aula 14, do dia 14/06/1999 Modificao da competncia: prorrogao, delegao. Conexo e continncia Pgina 52 Aula 15, do dia 21/06/1999 Preveno. Unidade de processo e de julgamento: excees. Perpetuatio jurisdictionis. Pgina 56 Aula 16, do dia 09/08/1999 Prova: conceito e caractersticas. Sujeito e meios de prova. Procedimento de prova. Sistemas de valorao da prova. Princpios do sistema da prova processual penal Pgina 59

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Aula 17, do dia 16/08/1999 Provas ilcitas: problemtica antes e aps a atual Constituio da Repblica. Provas ilcitas por derivao. nus da prova no processo penal. Prova indiciria. Priso. Possibilidades. Hora da priso Pgina 63 Aula 18, do dia 13/09/1999 Uso da fora para efetuar a priso. Priso especial. Priso domiciliar. Priso provisria. Priso em decorrncia de sentena condenatria recorrvel: natureza jurdica e constitucionalidade. Priso em decorrncia da pronncia: constitucionalidade Pgina 68 Aula 19, do dia 20/09/1999 Maus antecedentes. Priso temporria e priso preventiva. Hipteses da priso em flagrante Pgina 73 Aula 20, do dia 25/09/1999 Auto de priso em flagrante: requisitos formais, procedimento; existncia na ao penal privada e nos crimes habituais. Natureza cautelar da priso em flagrante. Liberdade provisria: espcies, cabimento, problemtica em nosso sistema processual penal Pgina 78 Aula 21, do dia 27/09/1999 Fiana: legitimao, cabimento, finalidade; quebramento, cassao e perdimento. Rito. Processo e procedimento. Sistemtica procedimental penal brasileira. Rito ordinrio. Pgina 83 Aula 22, do dia 29/09/1999 Ritos sumrio, da Lei de Combate aos Entorpecentes e de Abuso de Autoridade Pgina 89 Aula 23, do dia 04/10/1999 Rito Sumarissimo (Lei n.o 9.099/95): contradies, competncia dos Juizados. Termo Circunstanciado. Proposta de transao oral: natureza jurdica e cabimento na ao penal privada. Suspenso condicional do processo: natureza jurdica Pgina 94 Aula 24, do dia 25/10/1999

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Sentena e Coisa Julgada no processo penal Pgina 100 Aula 25, do dia 08/11/1999 Teoria Geral dos Recursos no processo penal. Recurso: conceito, princpios, classificao, efeitos. Juzo de admissibilidade dos recursos: requisitos Pgina 109 Aula 26, do dia 22/11/1999 Apelao; Recurso em sentido estrito; Embargos de declarao Pgina 117 Aula 27, do dia 29/11/1999 Habeas Corpus; Embargos infringentes; Protesto por novo Jri Pgina 125 Aula 28, do dia 13/12/1999 Carta testemunhvel; Nulidades no processo penal Pgina 131

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Introduo

Falar em Afrnio Silva Jardim significa dizer, sem dvida alguma, excelncia na arte de ensinar. De fato o professor de Direito Processual Penal de nossa faculdade transcende o simples lecionar e incorpora em si mesmo a necessidade que o magistrio possui em si e que o leva a ser quase um verdadeiro sacerdcio: a busca constante da reestruturao do saber de forma a torn-lo mais acessvel para todos os que dele precisam. A viso que se tem do Direito e da parte processual penal quando Afrnio ministra as suas aulas crtica (no melhor sentido de um termo muito desgastado ultimamente por nossa sociedade, quando mal sabe ela que no est sabendo us-lo) e conduz o aluno a um constante repensar tambm sobre o prprio conhecimento, no sentido de propor novas teses dentro dos sistema processual penal vigente e de, definitivamente, no aceitar argumentos de autoridade, pelo simples fato de que deve imperar nas convices jurdicas uma razo que as norteie para a funcionalidade, isto , para que sejam justas enquanto eficazes para todos. Ao dizermos isto no se pode, contudo, esquecer justamente do outro detalhe que faz de Afrnio Silva Jardim um doutrinador na verdadeira acepo da palavra: ele no se esquiva de dialogar com os pobres mortais pois, ao ver a misso do Direito como verdadeiro evangelho social (principalmente em uma sociedade que tanto se orgulha de ser garantista e democrtica), faz passar tal pensamento da teoria para a prtica, no se acha algum acima do bem e do mal, que pode mais que a massa ignara apenas porque se especializou num campo do saber. Acima de tudo Afrnio vive como um ser humano normal, faz o que qualquer ser humano normal faz, vive as mesmas premncias que ns vivemos e reflete isto em seu prprio comportamento, o que faz no s de sua aula como tambm de seu carisma fenmenos imperdveis que de vez em quando (e no mais que isto) nos passam pela frente. Por isto, a hora esta para todos, no sentido de sermos convidados a entrar no mundo do processo penal sem o desejo histrico de ser o bambamb do saber livresco, mas sim com a vontade de se saber porque as coisas so assim e como elas devem ser. Neste momento o estudante de Direito recupera aquilo que ele mesmo se negara com o tradicional esquema de aulas: a sua capacidade de raciocnio e a sua misso como representante de uma sociedade inculta que dele precisa e a qual deve servir at mesmo para a sua prpria sobrevivncia. Sem perfeies, pois todos ns erramos. Mas que bom que possamos ser seres humanos (e no maquininhas meramente armazenadoras de conhecimento) para errarmos... e para colhermos os louros dos nossos acertos.

Dedicatria

Ao meu grande amigo Daniel Gonalves Cople, que me cedeu generosamente as duas primeiras aulas para o devido complemento neste arquivo. Ao professor Afrnio Silva Jardim pelo xito na transmisso dos conhecimentos abaixo. A todos os meus grandes amigos, a quem este arquivo foi gradativamente passado para o estudo para as provas de processo penal.

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Aula 1, do dia 08/03/1999: Programa: jurisdio penal, processo penal (sistemas), inqurito policial, teoria geral da ao, competncia e teoria da prova; 2o semestre priso, sentena, recurso, etc. Interrogatrio, depoimento de testemunhas esto no Cdigo, citao, etc. Bibliografia: Cdigo de Processo Penal; Fernando da Costa Tourinho Filho (4 volumes), Processo Penal, Editora Saraiva; Hlio Bastos Tornaghi (2 volumes), Curso de Processo Penal; Direito Processual Penal, Afrnio Silva Jardim, 1 volume, Tpicos de Processo Penal. PROVA: de trs a quatro questes genricas, sistemticas, compreenso de princpios, discorrer bem. JURISDIO NO PROCESSO PENAL: O processo o instrumento da jurisdio, ou seja, por meio dele o Estado presta jurisdio. Jurisdio dizer o direito, o que a prpria palavra significa. Diferenciar a jurisdio da atividade jurisdicional e da atividade administrativa sempre uma tarefa difcil. A atividade legislativa se caracteriza pela elaborao de regras genricas e abstratas regulando comportamento social (h, porm, a sentena normativa na justia trabalhista, que estabelece regra para toda uma categoria profissional). A atividade jurisdicional, via de regra, se realiza sobre situaes concretas. Mas mais tormentoso separar o ato administrativo do ato jurisdicional. Ambas so atividades concretas sobre situaes concretas (jurisdio voluntria, por exemplo, atividade administrativa que o legislador imputou ao juiz), aplicam o Direito ao caso concreto (jurisdio voluntria no jurisdio, sua sentena no faz coisa julgada, h uma ao para atac-la). Na dcada de 1920, comeou-se a entender na Alemanha que no haveria diferena entre atos administrativos e atos jurisdicionais, que ambos seriam servios pblicos, enfim, que ontologicamente uma e outra atividades no se diferenciavam. Entretanto, isto implicaria prejuzo separao de poderes e o Direito Processual perderia a sua autonomia por falta de objeto prprio, o que seria til ao totalitarismo, vez que o Poder Judicirio passaria a fazer parte do Executivo, tratado sob a gide do Direito Administrativo). Como, ento, sairmos desta situao? A caracterstica marcante da jurisdio a substitutividade (Chiovenda e Carnelutti explicam isto): o homem vive em sociedade, surgindo conflito de interesses a partir da apropriao de bens, o que pressupe a escassez dos mesmos, havendo trs formas de resoluo destes. A primeira delas a auto-tutela ou autodefesa (o titular do interesse age para resolver o conflito em seu interesse, as partes em litgio agem para resolv-lo no seu interesse. Trata-se de um forma desagregada e primitiva de resoluo de conflitos, sendo atualmente crime no Direito Moderno (exerccio arbitrrio das prprias razes): proibida a auto-tutela, salvo em casos excepcionais como a legtima defesa, o estado de necessidade, o direito de reteno no esbulho possessrio e a legtima defesa da posse). A Segunda maneira a auto-composio. Aqui o conflito resolvido por atividade das partes em litgio, por meio do consenso, da renncia ao direito litigioso e at da transao, cedendo cada um, neste caso, um pouco via consenso, fazendo-se concesses recprocas (em Direito Civil trata-se de causa extintiva da obrigao), forma prevista na CLT, no CPC, etc. Porm, o acordo pode no ocorrer por vontade livre, porque as pessoas no so iguais na sociedade (h juizes que quase impem o acordo, no sendo iguais as partes). O Supremo Tribunal Federal entendeu que no inconstitucional a lei de arbitragem em Direito Civil, uma espcie de justia privada em que o

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rbitro decide como se fosse sentena transitada em julgado, mas este modo de julgar deve ser discutido, principalmente quando imposto no contrato de adeso, no h livre manifestao de vontade. A auto-composio nem sempre alcanada, pois as partes podem permanecer irredutveis ou o prprio Direito probe a renncia, em caso de direitos indisponveis (exemplo: direitos da personalidade, o direito liberdade fsica) ou ser indisponvel por qualidade especial de seu titular (exemplo: os bens de incapazes). A terceira forma de composio de conflitos o processo, em que surge a atividade de um terceiro imparcial, qual seja, o Estado-juiz. Logo, a jurisdio caracteriza um conflito de interesses e nela um terceiro (Estado-juiz) substitui a atividade das partes para resolver o conflito, dizendo quem tem direito. Na jurisdio voluntria no h conflito de interesses; se h um requerimento de alvar, como venda de bens de incapaz, a administrao pblica de interesse privado feita perante o juiz. H um conflito e a atividade substitutiva para a resoluo do mesmo (hipteses que no representem conflito necessitando de atividade substitutiva, no precisam de ser relegadas ao Judicirio). Na jurisdio voluntria, a vontade do juiz apenas necessria para a validade do negcio jurdico. Quem pede um alvar administrao, inclusive com um processo administrativo, no est em caso de jurisdio, pois a administrao decide como uma parte envolvida, no havendo conflito. Assim, a existncia de um conflito e a presena do Estado-juiz, um terceiro imparcial que resolve o conflito, so as caractersticas tradicionais da jurisdio. Passadas a lide e a substitutividade, englobadas num primeiro plano caracterizador, a Segunda caracterstica da jurisdio a inrcia. A jurisdio no espontnea, deve haver a provocao por meio do exerccio do direito de ao, sendo espontnea apenas a atividade administrativa, que age de ofcio. O fundamento da inrcia a imparcialidade do julgador. Alm disso, sendo um direito disponvel pode no haver interesse em ser exercido o direito de ao. Mesmo em caso de Direito Pblico, criam-se outros mecanismos, mas no instaurado pelo juiz (aps ao do Ministrio Pblico), pode dar notcia-crime, ficando impedido. Devemos distinguir imparcialidade de neutralidade. O juiz no neutro por estar inserido na sociedade, com suas ideologias e seus valores, por estar, enfim, preso a uma circunstncia. Outra caracterstica diferenciadora das atividades administrativa e jurisdicional o fato de que declaratria a atividade jurisdicional, no sentido de que ela no cria o direito, mas declara o preexistente. At a sentena constitutiva teria em vista uma regra jurdica prevista anteriormente para constituir uma relao jurdica ou desconstitu-la. Se o juiz criasse o direito estaria ele aplicando uma regra de forma retroativa. O ato administrativo cria o direito, enquanto que a jurisdio declara o direito preexistente. Numa viso ampla do Direito, no s a norma estatal (h direito no costume, como bem mostra a fila, no positivada, mas positivado um recurso ao costume), como tambm os princpios gerais do Direito, alguns positivados e outros que se extraem do sistema, daria jurisdio um carter de fato declaratrio. Exemplo: se o legislador imputasse uma pena maior ao furto, se comparada com a do homicdio, esta imputao seria inconstitucional em virtude do princpio da proporcionalidade da pena. Outro caso: a proibio da pena de morte estaria acima da Constituio pelos valores cunhados ao longo da histria de repdio do fascismo, por exemplo, podendo ser inconstitucional a Constituio nesse sentido. Logo, numa viso abrangente de Direito, a jurisdio declara este direito. Outra caracterstica da atividade jurisdicional a definitividade. O Judicirio decide o conflito para que ele seja resolvido. Assim, em certo momento a sentena ter de se tornar imutvel. A deciso de que no cabe mais recurso imutvel. Sem esta caracterstica no haveria composio de conflitos. Por sua vez, os atos administrativos e as leis podem ser revogados, anulados. Finalmente a jurisdio una: pode haver diviso de competncias, mas s jurisdio una, do Estado Brasileiro, refletindo o exerccio do poder poltico. No podemos colocar como diferencial da jurisdio o seu carter pblico, uma vez que as demais atividades tambm o so.

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Passemos ento aos princpios da jurisdio. O primeiro deles o princpio do juiz natural (artigo 5o, XXXVII e LIII, CF). So vedados os tribunais de exceo. Por esta alcunha devemos entender os tribunais criados aps o fato-base do conflito para julgar casos genericamente considerados. Houve, claro, excees, como o Tribunal de Nuremberg. Aqui dentro devemos fazer um adendo. que se fala no princpio do promotor natural, ou seja, busca-se levar ao Ministrio Pblico essa garantia em prol dos jurisdicionados, devendo haver uma imparcialidade no Ministrio Pblico, havendo os mesmos casos de impedimento e as mesmas garantias, como a inamovibilidade dos cargos, que so passadas aos juizes. O promotor natural o que atua num rgo do Ministrio Pblico, tendo atribuies genricas e abstratamente previstas em lei. Se um juiz quiser tirar frias, precisando ser substitudo, esta escolha dever ser feita por critrios previamente expressos em lei, sob pena de prejuzo a este princpio. Assim, o juiz e o promotor a atuarem no caso devem ser determinados por critrios proporcionais expressos em lei anterior ao fato, genericamente e abstratamente considerados. Pelo princpio da inevitabilidade, a jurisdio a emanao da soberania nacional, no havendo como se furtar a ela, todos estando a ela sujeitos. O terceiro princpio o princpio da indeclinabilidade das decises, oposto do direito de acesso ao Poder Judicirio. O Estado-juiz no poder deixar de decidir leso ou ameaa a direito (artigo 5o, XXXV, CF). Assim, a jurisdio um poder por ser inevitvel e um dever por ser indeclinvel. A jurisdio o poder-dever de cada Estado de, substituindo a atividade das partes, resolver determinado conflito de interesses que lhe apresentado (inrcia), aplicando o direito no caso concreto. Aula 2, do dia 15/03/1999: Na ltima aula falamos sobre jurisdio, que tem como caracterstica marcante a substitutividade. Vimos a teoria do conflito e as formas de resoluo deste. Passemos ento ao processo. Quanto sua natureza, dizer que o processo o instrumento da jurisdio dar uma noo insuficiente ao caso. Vrias teorias forma formuladas para explicar a natureza do processo. Os romanos sustentaram a sua natureza contratual. Hoje, com a Lei n.o 9.307/96, que fala da Arbitragem, j est deixando de ser um absurdo esta idia. Para os romanos o dever de jurisdio decorria do delito, quase delito e do contrato, fontes das obrigaes. Perceberam eles que no processo surgem direitos e deveres e procuraram compreender que fonte era esta. Deve-se ter em vista que no havia Direito Pblico romano, o Direito poca era um Direito basicamente civil. As partes indicavam um rbitro por meio da littis contestatio; s depois o pretor passou a indicar o rbitro para a sim, numa terceira fase, ele mesmo, pretor, passar a ser o rbitro daquela contenda. Assim, foi sendo publicizada a atividade jurisdicional e processual. Posteriormente desenvolveram a teoria de que o processo era um quase-contrato. Hoje predomina a teoria do processo como uma relao jurdica (Oskar von Blow), havendo tambm a teoria do processo como instituio (Jaime Guasp) e a teoria do processo como uma situao jurdica (James Goldschmidt). A relao jurdica um liame reconhecido pelo Direito criando direitos e deveres para os sujeitos ativo e passivo, respectivamente. Para a teoria que diz ser o processo uma instituio, no h uma relao jurdica, mas um conjunto de relaes jurdicas (exemplo disso seria a petio de juntada que faz surgir direitos e deveres, caso seja ela deferida ou no: se for deferida, deve-se citar o adversrio); cada ato do processo cria direitos e deveres, o processo um feixe de micro-relaes jurdicas, da ser ele uma instituio como seria o casamento, um negcio jurdico de que decorre uma srie de relaes, direitos e deveres. O problema definir o conceito de instituio: da

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prevalecer a teoria da relao jurdica, mas deve-se ter em vista que o processo um conjunto de relaes jurdicas. A escola paulista, da qual Enrico Tullio Liebman foi o grande lder, trabalhou com a idia do dualismo jurdico, com a existncia de um direito material que regula de forma primria a relao jurdica, e o direito processual, que seria instrumental, regulando a conduta dos sujeitos que atuam no processo para que seja realizado o direito material, sendo aplicado no caso concreto e resolvido o conflito. Observe-se que chamar o Direito Processual de Direito Adjetivo negar a sua autonomia, mas trata-se com certeza de um Direito Instrumental. Alguns negaram este dualismo jurdico, dizendo que se uma pessoa tem o seu direito subjetivo violado, o que h uma perspectiva, surgindo outra situao jurdica, em que Direito o que est declarado na sentena. Assim, haveria um Direito Judicirio; quando surge o litgio, no h mais direito, mas sim uma expectativa de direito. A lei seria a matria-prima para o juiz realizar a sentena. Liebman critica a teoria por no explicar o processo, apenas questionando a prpria existncia do Direito Material. Desta forma, prevalece a teoria que diz ser o processo uma relao jurdica, um liame reconhecido pelo Direito criando deveres e direitos para os seus sujeitos, tendo caractersticas prprias, diferentes da relao jurdica de Direito Material alegada pelo autor, que pode nem existir, sendo autnoma a relao jurdica processual em face da material (eis a primeira caracterstica da relao processual), vez que a relao de Direito Material alegada pode nem existir, sendo isto decidido na deciso, apesar de ter havido processo, pois a relao de Direito Processual independe da relao jurdica de Direito Material, havendo uma autonomia (caso da ao declaratria negativa, cujo objetivo declarar a inexistncia de uma relao jurdica de Direito Material). A Segunda caracterstica a de que o processo possui trs atores, quais sejam, o juiz, o autor e o ru. A terceira caracterstica a de que as normas processuais so de Direito Pblico, fora, portanto, do poder dispositivo das partes, havendo interesse pblico no respeito s suas normas. Logo, a relao processual de autonomia pblica, mas complexa (formada por microrelaes) e progressiva (vai sendo desenvolvida ao longo do tempo; seria, portanto, um conjunto de relaes), alm de ser triangular (a idia do processo como instituio est presente ao defini-lo como uma relao jurdica complexa e progressiva). Define-se o processo como o conjunto de atos por meio dos quais o Estado presta jurisdio e resolve os conflitos, aplicando o Direito ao caso concreto. Alguns autores contornam isto, dizendo que sob aspecto intrnseco o processo uma relao jurdica, e sob um aspecto extrnseco o processo um conjunto de atos, o que no resolve, pois deve ele possuir uma nica natureza. Outros autores entendem que o erro tentar enquadrar a natureza jurdica do processo numa categoria primria e conhecida. Assim, a natureza jurdica do processo seria ele mesmo, processo, pois cria relaes jurdicas, mas ele mesmo uma categoria primria, no a prpria relao jurdica, mas a cria (no confundir o criador com a criatura, o fato jurdico com o direito de que ele decorre, etc.). Lembremo-nos aqui da Teoria Tridimensional do Direito, que v o Direito como norma que se refere abstratamente a um fato, passando a ser jurdico ao se realizar, incidindo a norma sobre um fato social e de acordo com um valor considerado, produzindo efeitos. A norma prev o fato por fazer um juzo de valor a seu respeito. Desta forma, o ato processual no a relao jurdica, mas fonte desta; no relao jurdica, mas cria relaes jurdicas autnomas, pblicas, etc. Conclumos ento este debate afirmando que o processo seria um conjunto de atos agrupados de forma sistemtica ou teleolgica, por meio dos quais o Estado presta jurisdio, resolvendo um conflito de interesses, aplicando-se o Direito ao caso concreto. Logo, o processo um ato agrupado de forma orgnica mas finalista, com o fim de prestar jurisdio, de resolver aquele conflito.

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No artificial compreender um ser composto pelo conjunto de seres porque agrupados de forma sistmica, no se confundindo com a soma das unidades (exemplo, um automvel). A teoria do sistema, tendo em vista um fim preestabelecido (no processo h uma srie de atos, como os de petio, citao, sentena, agrupados de forma sistmica, de acordo com um fim prvio). Passemos ento aos efeitos que surgem da relao processual. So eles: A) Faculdade Jurdica (Processual) B) Direito Subjetivo (Processual) Dever ou obrigao C) Direito Potestativo (Processual) sujeio D) nus (Processual) A faculdade jurdica o campo de liberdade que se tem, a conduta humana dominada pela vontade, sendo isso uma faculdade. H uma faculdade regulada pelo Direito (exemplo, a faculdade de se fazer um testamento, de se vender um bem, dentre outras coisas). ela unilateral (exemplo: a comunicao de uma parte que se mudou no processo; se no o faz, revel). O Direito Subjetivo, por sua vez, uma espcie de faculdade, a de cobrar de outrem uma prestao. bilateral, vez que ao direito se antepe um dever, h uma relao entre o sujeito ativo e o sujeito passivo, tendo este o dever de realizar prestao (que se tiver cunho patrimonial se chama obrigao; quando no tiver ela este cunho usa-se a palavra dever, e no obrigao).Assim, direito subjetivo a faculdade de exigir de outrem uma prestao (ao um direito subjetivo porque se exige do Estado a prestao da jurisdio, vale dizer, ao direito subjetivo de ao corresponde o dever jurdico pblico de jurisdio). O Direito Potestativo tambm uma faculdade, mas pela qual no se cobra uma prestao, vez que a produo de efeitos jurdicos decorre da vontade do sujeito ativo: o sujeito passivo se submete, havendo sujeio (exemplo, o contrato por prazo indeterminado resolvido por notificao unilateral vide a denncia vazia). Por fim, o nus processual seria a obrigao perante si prprio. A lei faculta a atividade a ser desempenhada em interesse prprio. Exemplo: no basta alegar o fato, deve-se provar, desempenhar a atividade em seu interesse, no sendo ilcito no provar. Deste modo, o nus uma faculdade jurdica atribuda a uma das partes para desempenhar uma atividade em interesse prprio (exemplo: a contestao o nus do ru, um nus processual; o recurso nessa perspectiva um nus processual). Passemos agora a outra e no menos traumtica distino conceitual, qual seja, a que separa o processo do procedimento. O processo seria um conjunto de atos agrupados de forma sistmica e teleolgica. O procedimento o rumo, a direo, o rito que os atos do processo devem tomar por imposio legal, a seqncia de atos. Os processos podem ser de conhecimento, de execuo e cautelares; os procedimentos podem ser comuns e especiais (sumrio, sumarssimo, etc.). A ao pode no ser denominada ao de rito sumrio em face de... O processo pode ser de conhecimento, de execuo e cautelar (espcies do gnero processo). No processo de conhecimento, ou de cognio, o juiz funciona como se fosse um historiador, verificando os fatos passados, visando a conhecer os fatos para buscar a norma jurdica que regula o litgio. No processo de execuo (movido por meio da ao de execuo, o que se busca conformar os fatos ao direito reconhecido na sentena). No processo cautelar se trabalha com os dois requisitos, quais sejam, o fumus boni iuris (a fumaa de um bom direito), e o periculum in mora, o perigo da demora da deciso. Com este processo se preserva uma situao de fato para que depois o juiz diga o direito no caso concreto, o credor no se satisfaz apenas com o status quo. Em caso de ttulo executivo e prova de dilapidao do patrimnio, pede-se arresto do apartamento de forma cautelar e, aps, satisfaz o direito no processo de execuo. Portanto, no tutela satisfativa ou tutela antecipada (exemplo: a priso preventiva se d num processo cautelar, mas no tutela

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antecipada). Desta maneira, preserva-se a situao de fato, para que o direito possa ser aplicado quando for dito pelo juiz. O processo cautelar o instrumento do instrumento. Aula 3, do dia 22/03/1999: Questo da lide no processo penal At agora temos explicado a jurisdio e o processo pela Teoria do Conflito. O Estado resolve o conflito de interesses entre as partes pela jurisdio, e o processo o meio de realizao da jurisdio para a soluo do conflito de interesses. Sem este conflito de interesses no h lide, no h processo, mas apenas jurisdio voluntria (no ontologicamente um processo, mas por poltica legislativa submete-se tal atividade ao juiz). Toda a doutrina tem explicado tais fenmenos dando lide e ao conflito de interesses um papel principal. Mas esta teoria sofre ataques. O primeiro ataque Teoria do Conflito de interesses foi proferido por Francesco Carnelutti. O conflito de interesses que surge na sociedade no resolvido pelo juiz em sua natureza. Limita-se ele a aquilo que ser julgado pelo que o autor e o ru alegarem no processo. O juiz s vai resolver o conflito de interesses balizado pela pretenso do autor e pela resistncia do ru. No pode o juiz julgar ultra petita, extra petita ou citra petita. Lide, ento, seria o conflito de interesses no das relaes scio-econmicas, mas da pretenso do interessado em face da resistncia do ru. Pretenso, em sentido tcnico, a exigncia de subordinao de interesse alheio ao interesse prprio; a exigncia que o autor faz ao juiz de que ele faa prevalecer seus interesses face ao ru. a vontade do autor em juzo de exigir a sua vantagem diante do ru. Se o ru resiste, cria-se a lide. A pretenso se caracteriza por meio de um pedido. Pela petio inicial sabemos o que o autor pretende. Quando no h lide no h processo, apenas jurisdio voluntria. esta uma atividade administrativa entregue por opo poltica ao julgador. A lide seria essencial idia de processo. S que os autores, quando vo enumerar os pressupostos de existncia do processo, no incluem neles a lide. Ora, se sem lide no h processo, ela um pressuposto de existncia do processo. Desta forma, se no se faz esta incluso, a premissa falsa e estamos falando para as paredes ou ento, ela verdadeira e os doutrinadores fizeram um grave equvoco. Outro pressuposto a existncia de trs sujeitos no processo, quais sejam, o autor e o ru (que geram o conflito de interesses), o juiz (quem julga o caso) e a demanda (a questo a ser decidida pelo juiz). H tambm a idia de demanda (o ato de ajuizar a pretenso). Frederico Marques disse que a lide o objeto e o contedo do processo, e nele deve ficar resolvida. Pedimos licena ao grande mestre para analisarmos criticamente esta informao. Na verdade, ela est eivada de erro. A lide no pode ser, ao mesmo tempo, objeto e contedo do processo. Pode um ser possuir duas naturezas? No. Ou a lide objeto, ou contedo, ou no nenhuma das duas coisas. Objeto o ponto de convergncia de uma atividade. O contedo o que est dentro do objeto de anlise. Penso que a lide no nem objeto nem contedo do processo. Se a lide fosse contedo do processo, este deveria ser oco, quando no o ; se fosse a lide objeto do processo, este no possuiria um norte para se fixar. que h situaes em que no se detecta a lide. Vamos a alguns exemplos. O primeiro deles o processo de execuo. A execuo comum (quando certa contra credor insolvente). Se ele no pode pagar, entra-se com uma ao de execuo. Vai o credor a juzo com uma petio inicial (cumprindo os requisitos legais) para pagar a dvida em 24 horas, sob pena de penhora dos bens. Se o executado paga o que deve, onde est a lide? Mas pode ele no pagar, diro alguns. Est certo, ele no paga: se no paga, ou indica bens penhora, ou ento, caso no o faa, o juiz o far. Faz-se o leilo, um arrematante compra o bem, deposita-se o valor do crdito num banco, ficando disposio do credor. Acabou-se a execuo. Mais uma vez: onde est a lide? Os insistentes diro: Ah, mas o devedor pode entrar a qualquer momento com os embargos

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execuo!. Os embargos execuo no so a contestao do processo de execuo, mas sim uma ao autnoma. A a doutrina vem e, para salvar a noo de lide, amplia o seu conceito. Lide no seria s o conflito de interesses balizado pela pretenso do autor e pela resistncia do ru, mas seria tambm qualquer pretenso insatisfeita. Ora, no nos engana isto, pois definir de forma to genrica o que lide retira dela a sua essncia conceptual, o conflito de interesses. como definir um cachorro como um animal de quatro patas vrios animais tm esta caracterstica. Ao tentarem salvar o conceito de lide, os doutos o puseram a perigo. Desnaturou-se o conceito de lide, que tem por base o conflito de interesses, para que coubessem todos os outros casos neste conceito e no deu certo. A ao de resciso criminal e a ao rescisria so aes autnomas, que correm por fora dos processos que lhes deram ensejo, processos que fizeram coisa julgada. Aqui a pretenso no est satisfeita, mas no h conflito de interesses. Dizer, ento, que lide pretenso insatisfeita esquecer o conflito de interesses excludentes, antagnicos, divergentes. Outro caso: se o ru for citado e ele reconhece a procedncia jurdica do pedido do autor, h lide? No. Extingue-se o processo com o julgamento do mrito. H uma sentena de mrito extinguido o processo sem lide. Mas se esta sentena extinguiu o processo, houve o processo, apesar de no ter havido lide. Antes de o ru possuir a oportunidade de resistir pretenso autoral, o que configura o conflito de interesses (e, portanto, a lide), j h processo. J foi exercido o direito de ao. Alguns diro: Se o autor foi ao juiz sinal de que o ru se negara a pagar, havendo resistncia pr-processual, havendo conflito de interesses, logo, lide.. J dissemos aqui que lide no o conflito da vida social, mas sim o conflito levado apreciao do juiz. Vamos a mais um caso: A no quer receber de B o pagamento da dvida fora dos tribunais porque antes B pagara com cheque sem fundos outra dvida junto a A. Assim, A vai ao tribunal. Aqui tambm no h lide, porque falta interesse em agir de A. O processo extinto sem julgamento do mrito; contudo, em tendo sido o processo extinto, houve processo, sem ter havido a lide. s vezes at o ru no processo penal confessa o crime. Mas h a nomeao de defensor ao ru. Lide forada essa, no? Carnelutti diz que no processo penal no h lide. Tratar-se-ia de jurisdio voluntria. E at o livro de Luso Soares diz em seu ttulo, O processo penal como jurisdio voluntria. Carnelutti diz que no h lide no processo penal porque no h conflito de interesses, o autor no quer o mal do ru: o Ministrio Pblico quer conden-lo para reeduc-lo (a idia de que o juiz atuaria como um educador), readaptando-o vida social. Alguns replicaram esta teoria de Carnelutti dizendo: Mas e os pases em que h pena de morte ao ru? Alis, e quanto a questo da pena? Ser que o ru quer ficar na cadeia? Esta linha de pensamento que fez Alfredo Buzaid se equivocar na elaborao do Cdigo de Processo Civil, pondo casos de jurisdio contenciosa como de jurisdio voluntria (caso da interdio) e vice-versa. Por isso Jaime Guasp e outros autores entendem que no essencial ao processo haver lide. Normalmente h, mas no se exige que ela esteja em todos eles. A lide uma categoria acidental, e no essencial noo de processo. Trabalha-se, ento, com a idia de pretenso como ncleo. Se ela ou no resistida, depois se averigua isto. Mas a idia de pretenso slida a exigncia que o autor faz em juzo de subordinar o ru a certos interesses. Por ela criam-se relaes jurdicas entre os sujeitos. Mas o ru no contestou ainda? No importa: j h ao, j h jurisdio, j h processo. Da mesma forma, a jurisdio contenciosa se separa da jurisdio voluntria pela noo de pretenso. Havendo pretenso, h jurisdio se no houver mero ato administrativo que por opo poltica foi repassado ao juiz. Quais so ento os pressupostos de existncia do processo? Demanda (o ato de ajuizar a pretenso), o rgo jurisdicional e as partes. Lide, para ns, no um pressuposto de existncia do processo. E os pressupostos de validade? Se existe, o requisito pode ou no valer. O juiz deve ser competente e imparcial, no-suspeito, no-impedido. As partes devem ser capazes. Se forem incapazes, devero ser representadas ou assistidas. O doente mental pode ser parte, suprida a sua incapacidade pelo curador. A demanda, por sua vez, deve ser regularmente apresentada

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(regularidade formal). H requisitos para que a petio inicial seja vlida (deve conter partes, pedido, causa de pedir, dentre outros requisitos). A demanda deve possuir regularidade formal. Eis os pressupostos de validade do processo penal. A estrutura do processo penal deve se dar sempre defendendo dois valores: a busca da verdade real e a imparcialidade do juiz. No processo penal o primeiro valor prevalece. No processo civil a verdade formal, h presunes (se o ru no impugnar os fatos apresentados na inicial, estes presumem-se verdadeiros artigo 302, CPC; julga-se antecipadamente a lide). No processo penal o juiz no pode se ater a verdades jurdicas, pois esto em jogo interesses indisponveis, em punir quem praticou o crime. Trata-se de um compromisso social que h aqui. Qualquer do povo pode impetrar habeas corpus a favor da vtima. Busca-se sempre a verdade aqui, no havendo tcnicas de presuno. O juiz no um mero espectador, devendo produzir provas. Mas ao fazer isto pode ele perder a sua imparcialidade. Como, ento, pode-se buscar a verdade real e atender aos interesses pblicos do processo penal sem se ferir a imparcialidade do juiz? Faamos uma pequena retrospectiva que mostra como as sociedades se comportaram face a este problema. Como era o Estado organizado no processo penal romano? O Direito uma superestrutura, regula, no plano da norma, as relaes das pessoas em sociedade. Primeiro vem o fato (econmico, normalmente); depois, o Direito vem atrs. O Direito , em essncia, conservador, por tutelar situaes que esto em constante mutao. A sociedade romana era liberal-individualista, o Estado era mnimo, sem interveno nas relaes privadas. Por isto no h Direito Administrativo (se no h a interveno do Estado nas vidas particulares no h porque haver tal matria). Idem face aos Direitos Constitucional e Comercial. Em Roma s havia o Direito Civil. Por isto quase todos os institutos de Direito Civil tm razes aqui. A sociedade romana era individualista. O pater familias englobava quatrocentas, quinhentas pessoas. O pai resolvia as questes daquela microrealidade. O crime em Roma era visto como um problema da vtima. Hoje sabemos que da sociedade, da os crimes de ao penal pblica incondicionada: no se pune o indivduo s porque a vtima quer. Trata-se de um problema da sociedade, h interesses socialmente relevantes e indisponveis aqui. O Direito Penal tinha uma viso privatista e, via de conseqncia, a ao penal era privada. A vtima tinha de fazer a acusao em praa pblica, trazendo testemunhas e acusando perante o pretor romano. A lei de Talio foi o primeiro progresso ao limitar a reao leso provocada pelo agente (a proporcionalidade, enfim, chegara at aqui). O processo penal era acusatrio, dependia da acusao da parte privada. Havia, claro, juiz, autor e ru. O juiz era desinteressado em conhecer a verdade e em produzir a prova atinente ao caso. Se a parte provasse o que dizia, excelente; no provasse, problema dela. As partes eram iguais, havia o contraditrio, mas fcil perceber que tal processo era insatisfatrio. Num segundo momento, para certas infraes penais, percebeu o poder poltico que isto no iria funcionar. que a vtima poderia ser dbil face ao acusador. E a, quais seriam as chances daquela em face deste no processo? Percebeu-se que o processo no pode ficar s ao af da vtima, dbil, podendo ela ser corrompida, sendo que s vezes no tem condio de produzir provas. Houve, ento, um avano. Que se criou para estas infraes? A ao privada popular. Para estes crimes qualquer cidado romano tem legitimao ativa. Ampliou-se esta possibilidade. Mas no adianta muito. que era (e ) custoso demais mover a ao contra estes criminosos, e o xito era duvidoso. Na Idade Mdia passou-se ao sistema inquisitrio, sistema antagnico ao sistema acusatrio. O processo inquisitrio linear. Juiz e autor no plo ativo, ru no plo a ser investigado, o objeto da acusao. A dialtica do 8 ou 80. Sempre se evoluiu pelo oposto. Pelo processo draconiano o juiz colhe provas, acusa, age sem ser s um espectador do caso. Por qu? Foucault esclarece a questo. No havia nem os Estados Modernos. O senhor feudal reinava em sua base territorial; o poder real era dbil. Da a existncia de uma nica legislao uniforme poca, qual fosse, o Cdigo Cannico (os reis eram catlicos). Com o tempo, os reis passaram a acumular poderes temporais em suas mos, e a Igreja, que iria perder a sua fora dentro em breve, tenta se modificar. Da a contrareforma. O Cdigo Cannico confundia crimes com pecados. O juiz, tendo o conhecimento dos

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fatos, instaura de ofcio o processo, pouco importando o que faa a vtima. A priso existia para que o ru no fugisse impedindo o juiz de colher as provas e de fazer o processo. O juiz aqui procura a prova no para ele, mas para provar aos outros que a acusao legtima. Havia at as ordlias (provas de Deus), muitas delas absurdas. Coube a Cesare Bonesana, Marqus de Beccaria, rever esta barbrie do processo penal. Passado o perodo obscurantista, o processo penal revigorado pelo Humanismo e pelo Renascimento. O Iluminismo, mais tarde, com o Baro de Montesquieu, trava este poder ilimitado que s gera arbitrariedades. Muda-se a barbrie do processo penal. A evoluo se dar com a dialtica entre os processos inquisitivo e acusatrio. A parte deve acusar, para que o juiz no deixe de ser juiz ao julgar a causa. Mas deve o crime ser de ao pblica para representar os interesses sociais. Como o juiz no pode acusar, passou-se aos procuradores do rei esta funo. Eram estes funcionrios pblicos que fiscalizavam as ordens do rei no tocante sua aplicao aos feudos. Por isto o rei nomeou os custos legis (fiscais da lei). Se a acusao deve ser pblica, os procuradores do rei o fariam. Eis uma viso mais publicista: o Estado acusa e o juiz fica na sua posio inicial, no pedestal da imparcialidade. Desta forma, a acusao passa a ser pblica, mas sem ser feita pelo juiz. Paralelamente ao sistema em questo h o sistema misto, do juizado de instruo, que surgiu nos pases europeus. No juizado de instruo, h uma primeira fase inquisitria(o juiz instaura o processo e colhe prova) e depois, colhida a prova, o Ministrio Pblico instaura a Segunda fase, acusatria, no juizado especial. Mas a primeira fase inquisitria. Por isto a polcia subordinada ao juiz. Este neste sistema um superdelegado. O Cdigo de Processo Criminal do Imprio adotou este sistema. Mas quem julga no deve acusar. Cada um na sua, eis o lema que este sistema no segue. O juiz que investiga um policial travestido de juiz, e isto no funciona, mormente em uma estrutura terceiro-mundista como a nossa. Este sistema possui muitos defeitos uma vez que no conseguiu se afastar do processo inquisitrio (os delegados e a polcia como um todo esto submetidos ao juiz neste esquema). Vrias Cartas Magnas tentaram no mundo retirar a competncia de acusao para o Ministrio Pblico. E conseguiram. Assim, cabe ao Ministrio Pblico aqui chefiar a ao policial, no mais o juiz. O sistema de nosso atual Cdigo de Processo Penal o sistema acusatrio pblico. Mas h vestgios do sistema acusatrio privado (ao penal de iniciativa privada). Crtica a este ltimo tipo de ao que a vtima pode renunciar queixa, pode perdoar o querelado. Ora, se faz isso, no h interesse pblico aqui. Se houvesse, o interesse da sociedade teria de ser consultado. Logo, no se trata de caso para ao penal. E h, ainda no nosso atual sistema, vestgios do sistema inquisitrio. Mas no digamos que o nosso sistema misto, para no confundirmos com o sistema do juizado de instruo. O nosso sistema tem vestgios do sistema inquisitrio, faa-se justia, j que em 1941 o Ministrio Pblico no tinha a fora de hoje, bem como no havia concurso pblico e todas aquelas garantias dadas aos juizes: os procuradores e promotores eram nomeados politicamente. Assim, preferiu o legislador dar poderes mais amplos ao juiz (seno no aconteceria o processo penal). Fernando da Costa Tourinho Filho fala de funes anmalas, por no serem prprias do juiz no processo acusatrio. Pode o juiz, pelo artigo 5o, II, do Cdigo de Processo Penal, requerer o inqurito policial ao delegado. isto um ato de julgar? No; portanto, no deveria ser um ato do juiz. Outro caso o do artigo 13, II, do mesmo diploma. Pode o juiz requerer diligncias ao delegado, isto julgar? De novo, no. Isto investigar o processo. Antes da ao penal ser instaurada o juiz no deve se intrometer e investigar de sua conta o caso, pois isto da competncia do Ministrio Pblico. Veremos depois a constitucionalidade das regras expostas no Cdigo. Mas basicamente isto: o sistema adotado no Brasil para os processos penais acusatrio pblico, com vestgios do sistema acusatrio privado da poca romana, e do sistema inquisitrio (ainda que disso discordemos, pelo fato de que no deve o juiz possuir funes de julgar). Na prxima aula, princpios processuais e inqurito policial. At l.

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Aula 4, do dia 29/03/1999: Falamos na aula passada sobre a estrutura do processo penal, que caminhou do sistema acusatrio privado da Roma Antiga para o sistema inquisitrio do Mediovolo e, depois, a sntese, o sistema acusatrio pblico, sendo que na Europa verifica-se a existncia do sistema misto, do juizado de instruo. O nosso sistema, como dissemos, um sistema acusatrio pblico, decorrente de vrios princpios extrados da Carta Magna que explicam a existncia deste sistema. Veremos agora os princpios e a matria a que eles se referem (princpios da inevitabilidade, da indeclinabilidade). Quais so os princpios atuantes sobre o processo penal? O primeiro deles o princpio da imparcialidade; os outros dele decorrem. Falemos, portanto, do princpio da imparcialidade, ou da neutralidade do juiz. O juiz deve ser imparcial e eqidistante das partes, dos interesses em jogo, no pode possuir interesses pessoais naquela controvrsia. Em razo disso a magistratura possui, desde a Revoluo Francesa, aquelas garantias face ao Poder Executivo, quais sejam, a inamovibilidade dos cargos (no pode o juiz ser deslocado para uma comarca longnqua porque decidiu diferentemente do que seus superiores queriam), a vitaliciedade (os juizes s so destitudos por deciso de um tribunal, assegurada ampla defesa) e a irredutibilidade dos vencimentos (os juizes no podem ser compelidos a receberem menos por suas posies na hora das sentenas) artigo 95, I, II e III, CF. At o juiz natural est aqui (no pode haver tribunais encomendados). No processo civil h outros casos em que se verifica a imparcialidade do juiz, afastando-o do caso (casos de impedimento e de suspeio, dentre outros casos). No processo penal, como vimos, forte o princpio da verdade real, qual seja, o juiz deve procurar a verdade nos fatos, colhendo o mximo de provas, sem presumir nada, para que possa ele emitir uma sentena justa, em razo da gravidade da matria e dos interesses presentes. Mas adotando-se a ferro e fogo este lema, o sistema acusatrio perde, vez que o juiz, ao se envolver demais com a causa, passa a ser, alm de no-neutro, parcial. Em verdade, a neutralidade no elimina a parcialidade, o juzo de valor do juiz. O que deve ser eliminado aqui o julgamento baseado em interesses prprios dele, como a pessoa que est julgando, e no os interesses do Estado na resoluo daquele conflito, para a entrega da melhor prestao jurisdicional. O segundo princpio do processo penal o do contraditrio (sempre houve no processo penal; depois foi estendido ao processo civil e, pela Carta Magna de 1988, passou at para o processo administrativo). O princpio do contraditrio citado junto com o princpio da ampla defesa (ao menos a nossa Carta Magna assim o faz artigo 5o, LV). O processo deve ser uma estrutura dialtica ( tese do autor deve corresponder uma anttese do ru, cabendo ao julgador fazer a sntese dos fatos apresentados, entregando a prestao jurisdicional). O processo se desenvolve nesta dialtica, da qual se extrai uma deciso. O contraditrio a cincia bilateral (h autor e ru, duas partes, portanto) dos atos do processo, com a possibilidade de ambas as partes impugnarem-nos. Assim, divide-se o contraditrio em dois atos, quais sejam, a comunicao (deve-se saber do ato para poder se opor a ele) e a possibilidade de se opor (para que seus interesses possam ser defendidos). Quanto mais as partes se digladiarem no processo, e mais provas produzirem, mais o juiz poder se distanciar da lide sem comprometer a qualidade do seu julgamento (da ser o contraditrio um corolrio do princpio da imparcialidade do juiz). O processo comea com a acusao do autor (Estado ou ofendido), vindo depois a defesa prvia do ru. No nosso sistema, contudo, o juiz no inerte, podendo suplementarmente, alm das provas das partes, produzir as suas provas, mas respeitando a ordem processual. Primeiro o autor deve produzir as suas provas; depois, a vez do ru. Caso fique dvida sobre um ponto relevante, o juiz faz a produo de provas ex officio. O juiz no deve, logo aps aceitar a denncia, pedir a produo de provas (se o faz, denota parcialidade).

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Com o contraditrio, pem-se as partes vis a vis, demonstrando os seus interesses, cabendo ao juiz, suplementarmente e em caso de dvida, produzir prova. Outro princpio que rege o processo penal o princpio da ampla defesa. No processo inquisitrio no havia chance de defesa do ru. Tratava-se de um processo fechado, com o ru l no calabouo, tendo ele apenas a chance de confessar se cometeu ou no o crime. No sistema acusatrio, por sua vez, a ampla defesa essencial. Nem lei federal pode restringir este direito, vez que ele se encontra positivado na Carta Magna. Mas a ampla defesa deve se dar de acordo com a lei. O Direito, ento, limita substancialmente a ampla defesa. A defesa no pode tudo. Exemplo: o ru tem vinte e quatro horas para apelar (isto difcil). No sendo a lei que rege a ampla defesa inconstitucional, deve ela ser exercitada dentro da lei e at da tica. No vale tudo para a defesa. Se o ru est ali para se defender de uma suposta infrao lei, no pode ele jamais se defender infringindo a lei. Caluniar pessoas, acusar inocentes, ameaar testemunhas, isto no est encoberto pelo princpio da ampla defesa, que deve respeitar o sistema legal. O quarto princpio em matria de processo penal seria o da igualdade das partes, da isonomia processual. um consectrio lgico do princpio da imparcialidade do juiz e do contraditrio. Para haver um efetivo contraditrio, s partes deve se dar um mesmo tratamento, seno o processo fica capenga. As partes tm direitos e deveres processuais, devem possuir ao menos a igualdade formal. Claro que a vida econmica as coloca como desiguais (materialmente), e isso o processo acabar refletindo. Uma parte defendida com grandes recursos por um grande escritrio; a outra parte defendida por um advogado incipiente. Assim, este princpio deve ser mitigado. As leis processuais tratam de desigualar as partes para igual-las materialmente, descumprindo o princpio na sua aparncia para alcana-lo em sua essncia. Exemplo disso o artigo 188 do Cdigo de Processo Civil: computar-se- em qudruplo o prazo para contestar e em dobro para recorrer quando a parte for a Fazenda Pblica ou o Ministrio Pblico. O Ministrio pblico tem prazo em qudruplo para contestar e em dobro para recorrer. Pela quantidade dos processos e o interesse que se defende, no o preceito inconstitucional. A Defensoria, no processo penal, tem prazo em dobro para tais atos, pelos mesmos motivos. E h certos recursos que s a defesa pode fazer. A defesa deve possuir certas prerrogativas para tornar eficaz o contraditrio do processo. O quinto princpio do sistema acusatrio do processo penal o da publicidade dos atos processuais. Enquanto no sistema inquisitrio os atos eram fechados e silenciosos, no sistema acusatrio a acusao era feita em praa pblica, e hoje, nos tribunais. As audincias, sesses e os atos processuais sero, em regra, pblicos e se realizaro nas sedes dos juzos e tribunais, com assistncia dos escrives, do secretrio, do oficial de justia que servir de porteiro, em dia e hora certos, ou previamente designados (artigo 792, caput, CPP). Os atos sero pblicos, salvo por questes de ordem ntima ou quando o sigilo for importante. Mas o processo no pode ser todo sigiloso. A publicidade, em regras, plena, s em certos casos sendo restrita, no que no inconstitucional esta determinao excepcional. Mais: os julgamentos so feitos a portas abertas; em certos casos, para que se evitem as balbrdias, os julgadores restringem o acesso aos tribunais. Outro princpio que atua aqui o princpio da oralidade ou da escritura. Citamos os dois juntos uma vez que no h mais um processo no mundo que seja todo oral ou todo escrito. H, sim, predominncia de uma caracterstica sobre a outra, mas no mais que isto. O processo do sistema inquisitrio era escrito e o do sistema acusatrio, oral. Mas podia ser o contrrio. Hoje, como j dissemos, verifica-se predominncia. No processo ordinrio o rito praticamente todo escrito; nos juizados especiais e no Tribunal do Jri os atos so mais orais (nos Juizados Especiais criminais at a denncia oral). Pelo princpio do duplo grau de jurisdio, depreendido da Carta Magna, ainda que no esteja nela escrito, as partes devem ter pelo menos uma possibilidade de recorrer da deciso em um outro tribunal. Quem sabe se o juiz a quo est realmente certo em sua sentena? O problema do nosso sistema a infinidade de recursos que perpetua os conflitos e faz demorar a entrega da prestao jurisdicional s partes.

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Finalmente fala-se no princpio da instrumentalidade das formas, que significa que os atos processuais no so um fim em si mesmos, so meios para se atingir um objetivo. O Direito Processual instrumental, existe para a aplicao do Direito Material no caso concreto. Se o Cdigo Penal desaparecesse o Cdigo de Processo Penal no teria serventia alguma, pois ele um conjunto sistemtico de princpios para a resoluo de conflitos que se criam com base nas infraes s leis penais. Assim, se o ato processual formalmente irregular, invlido, mas atingiu a sua finalidade, no h que declarar nulo ou anulvel o ato. Se a citao errada gera a defesa do ru (que se d por acusado), no h porque se anular a citao. Podemos, ento, concluir que o nosso processo penal praticamente todo acusatrio pblico. Mas ainda temos a ao penal privada, vestgio do sistema acusatrio privado do Direito Romano. Pensamos que aqui no h interesses para a instaurao de uma ao. Se crime, o interesse da sociedade, e no do indivduo, que se move s vezes por interesses mesquinhos. Diriam alguns: Ah, mas e a indenizao?. Que v ao juzo cvel, o mais adequado para indenizaes. O processo penal se d em prol da sociedade, e no da vtima. Se no h um forte interesse social para que a conduta seja criminosa, que seja ela descriminalizada, ao invs de se falar em ao penal privada. Ah, mas o interesse da privacidade da parte pode ser mais forte que o interesse estatal. Para isto h a ao penal pblica condicionada representao do ofendido. Se a parte der consentimento ao Estado, este passa a tocar o barco da ao penal sozinho. A ao penal privada uma viso privatista do processo penal; vestgio do sistema acusatrio privado do Direito Romano. O nosso sistema processual penal , portanto, acusatrio pblico, mas h vestgios do inquisitorialismo. Tourinho Filho fala de funes anmalas entregues ao juiz no processo acusatrio. So funes que normalmente no seriam entregues ao juiz, comprometendo a sua imparcialidade. Pelo Cdigo de Processo Penal o juiz, nas contravenes, poderia fazer acusao de ofcio, sem a manifestao da vtima (artigo 26, CPP a ao penal, nas contravenes, ser iniciada com o auto de priso em flagrante ou por meio de portaria expedida pela autoridade judiciria ou policial). S com a Carta Magna de 1988 isto foi revogado, vez que a ao penal pblica passou a ser exclusiva do Ministrio Pblico so funes institucionais do Ministrio Pblico: promover, privativamente, a ao penal pblica, na forma da lei. Assim, o juiz no pode mais mover ao penal. O artigo 5o, II, do Cdigo de Processo Penal d poder ao juiz para que pea de ofcio autoridade policial para que se abra inqurito nos crimes de ao pblica o inqurito policial ser iniciado: mediante requisio da autoridade judiciria ou do Ministrio Pblico, ou a requerimento do ofendido ou de quem tiver qualidade para represent-lo. Ora, isto no uma funo do juiz, que deve atuar no processo, e no na fase persecutria, pr-processual. Claro que em 1941 a situao no era assim. O Ministrio Pblico nem estatuto tinha, e eram seus quadros formados no por concursos pblicos, mas por nomeaes polticas. Assim, poderia ceder facilmente a interesses maiores. Da o poder concedido ao juiz na poca pelo nosso atual Cdigo de Processo Penal. Pelo artigo 13 do mesmo diploma o juiz pode requisitar, no curso do processo, diligncias autoridade policial. Incumbir autoridade policial: realizar as diligncias requisitadas pelo juiz ou pelo Ministrio Pblico. No pode o juiz antes do processo querer quase assumir a presidncia do inqurito, atuar apurando os fatos, pois estas so funes persecutrias pr-processuais. Se assim age, o juiz j demonstra que tem um interesse escuso no caso, quer provar algo, deixando de ser imparcial. Pelo artigo 10 o destinatrio primeiro do inqurito o juiz (o juiz aquele a quem o delegado se refere a investigao), e cabe ao juiz dar novo prazo para se fazerem as investigaes do inqurito. Ora, quem deveria possuir o interesse aqui a parte, em saber das acusaes. O juiz s tem que conhecer disso aps a instaurao do processo penal. Assim, a lei processual penal registra vrias impurezas no sistema acusatrio, impurezas de ordem inquisitria. INQURITO POLICIAL Vejo o nosso sistema de inqurito (inquisitivo) como uma opo que nosso legislador fez ao lado do sistema acusatrio pblico para o processo penal. No sistema

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misto no h espao para o inqurito. O processo se inicia por ato do juiz, que investiga dentro do processo. No nosso sistema, no. S se investiga por provocao (verifica-se a inrcia, aqui). H, pois, necessidade de acusao a ser entregue ao juiz, quer seja ela uma denncia (formulada pelo Ministrio Pblico, nos crimes de ao penal pblica) ou uma queixa (formulada pelo ofendido, nos crimes de ao penal privada). O juiz no pode de per si investigar os fatos, como um persecutor pblico. Esta no a sua funo. Mas diz o artigo 41 do CPP que a denncia ou queixa conter a exposio do fato criminoso, com todas as suas circunstncias, a qualificao do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identific-lo, a classificao do crime e, quando necessrio, o rol das testemunhas. A denncia, ento, deve conter o apanhado dos fatos ocorridos, dentre outras circunstncias (testemunhas, classificao do crime, etc.).Como algum pode denunciar ou dar queixa se no conhece o fato? Se a acusao no for especfica, individualizada, o ru no vai poder se defender. Como, ento, formular este ato sem a colheita dos fatos? Impossvel. Eis a razo do inqurito, da investigao. Assim, o inqurito leva ao autor que ele deve falar na sua acusao contra o ru. O titular do direito tem o direito de conhecer aquilo que pode usar contra o ru. O inqurito tambm tem uma outra finalidade, qual seja, a de dar lastro probatrio mnimo acusao. No nosso sistema no se admite ao penal pblica ou privada sem vir acompanhada de prova (a justa causa). No se pode exercer ao penal sem prova, no se admite acusao temerria ou leviana. que no processo penal o simples fato de ser ru j um dano irreparvel ou de difcil reparao ao acusado. A estima que a pessoa goza em sociedade afetada pela imputao criminosa. Mas no h a presuno de inocncia dos indivduos (artigo 5o, LVII, CF)? Replica-se: Mas quer a sociedade saber disso? Assim, o juiz deve resguardar e limitar esse direito de ao, cabendo ao autor ter o direito de entrar em juzo desde que traga provas (este o seu dever para tal). Deveria haver na Constituio da Repblica dispositivo que dissesse: no se admite acusao pblica ou privada sem prova mnima, sem justa causa. E onde se busca a prova mnima para que se d lastro acusao? No inqurito.Com base no inqurito o Ministrio Pblico oferecer a denncia ou arquivar aquele. No Juizado Especial Criminal no h inqurito, mas h o termo circunstanciado, que possui o mesmo papel de prova mnima. O inqurito visa a dar o lastro ao regular exerccio da ao. Ento o inqurito indispensvel, certo? Errado. H certos casos em que se dispensa o inqurito, colocando-se as peas de informao em seu lugar, corroborando o princpio de que no pode haver instaurao de ao sem prvia prova. Indispensvel a prvia prova, e no o inqurito. O rgo do Ministrio Pblico dispensar o inqurito, se com a representao forem oferecidos elementos que o habilitem a promover a ao penal e, neste caso, oferecer a denncia no prazo de 15 (quinze) dias (artigo 39, 5o, CPP). Fala-se da ao pblica condicionada representao do ofendido aqui. O rgo do Ministrio Pblico dispensar o inqurito se, com a representao, forem fornecidos elementos necessrios propositura da ao penal, devendo fazer a denncia em, no mximo, quinze dias. A parte j pode entregar as provas ao Ministrio Pblico, e pode o MP evitar a instaurao de inqurito. O artigo 46, 1 o, diz que quando o Ministrio Pblico dispensar o inqurito policial, o prazo para o oferecimento da denncia contar-se- da data em que tiver recebido as peas de informaes ou a representao. Quando o Ministrio Pblico dispensar o inqurito policial o prazo para se oferecer a denncia contar da data em que se receberem as peas de informaes ou a representao. Mas isso se d, diro alguns, porque na ao penal pblica condicionada, tal qual na ao penal privada, o autor pode trazer as provas do caso; normal. E na ao penal pblica incondicionada? Pode no haver inqurito, sim, e de vrias maneiras. Qualquer pessoa do povo poder provocar a iniciativa do Ministrio Pblico, nos casos em que caiba a ao pblica, fornecendo-lhe, por escrito, informaes sobre o fato e a autoria e indicando o tempo, o lugar e os elementos de convico (artigo 27, CPP). Qualquer um do povo pode faz-lo, e havendo um suporte probatrio mnimo, no necessrio o inqurito. As provas ilcitas no servem nem como prova no processo, nem como meio para a sua viabilidade (para se instaurar inqurito). O Ministrio Pblico

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pode colher peas de informao, desde que o faa suplementarmente, sem presidir de fato o inqurito policial. Na verdade, a Constituio da Repblica e o Cdigo de Processo Penal do poderes persecutrios ao Ministrio Pblico. Este rgo no pode desistir da ao penal em havendo justa prova (artigo 42, CPP). Para tal, ento, deve haver a produo de prova. Se a autoridade policial no pode faz-la plenamente, cabe ao Ministrio Pblico produzir este resduo probatrio que ficou a descoberto. O que no pode acontecer o Ministrio Pblico fazer s vezes o papel de polcia. Qualquer do povo, ento, pode comunicar ao Ministrio Pblico da ocorrncia de um crime, podendo-se, se houver provas cabais, dispensar aquele o inqurito. Quando, em autos ou papis de que conhecerem, os juizes ou tribunais verificarem a existncia de crime de ao pblica, remetero ao Ministrio Pblico as cpias e os documentos necessrios ao oferecimento da denncia (artigo 40, CPP). Assim, o juiz tem o dever de comunicar ao Ministrio Pblico crime de ao penal pblica quando este estiver comprovado nos termos dos autos que ele, juiz, estiver analisando. A Lei das Contravenes Penais (Decreto-lei 3.688/41) diz ser contraveno o fato de autoridade pblica tomar conhecimento de um crime de ao pblica e no dar conhecimento ao Ministrio Pblico (artigo 66,I).As Comisses Parlamentares de Inqurito (CPIs), tendo provado fatos criminosos por meio de documentos e percias, enviaro ao Ministrio Pblico tais documentos, que podem dispensar o inqurito policial. Como se instaura o inqurito? Quais so os princpios que fundamentam o inqurito policial? So princpios antitticos, opostos aos princpios que regem o processo penal. Enquanto o processo penal contraditrio, o inqurito inquisitrio. No h, no inqurito policial, uma acusao formal contra quem quer que seja; no h relao jurdica processual (autor, ru, juiz, isto s h no processo). O inqurito a apurao do fato tpico, e com as provas quem acusa pode passar a ser acusado. Trata-se de uma investigao unilateral da polcia, do Estado, do Executivo. No h aqui interrogatrio, no h testemunhas, no h processo. O inqurito pode no gerar denncia. Mas em qualquer hiptese ele no pune ningum, s faz a autoridade policial um relatrio ao Ministrio Pblico, que pode desistir da queixa, mandando arquivar o inqurito, ou pedir a denncia. O delegado faz mais ou menos o que o advogado faz no cvel, ou seja, buscar a verdade dos fatos antes de instaurar a ao. No se pode transformar o inqurito em um contraditrio porque aquela prova vale para o julgamento, podendo-se condenar algum sem a presena do juiz se fssemos levar este desvario at o fim, o que no permitido, visto que no estamos em um sistema misto (do juizado de instruo). O inqurito no contraditrio nem inquisitivo, embora o artigo 14 do Cdigo diga que o ofendido, ou seu representante legal, e o indiciado podero requerer qualquer diligncia, que ser realizada, ou no, a juzo da autoridade. Assim, o indiciado e o ofendido (este de per si ou por seu representante) podem requerer diligncias autoridade policial, diligncias que podero ou no ser feitas, a juzo daquela. Seria uma burrice que o legislador impedisse que as pessoas envolvidas pudessem trazer provas para o caso. Mas essa diligncia ser realizada ao talante do delegado, a autoridade do inqurito. No h direito prova, com base no direito ampla defesa, no inqurito. At porque s vezes o indiciado ou o ofendido esto ali para desviar a ateno da autoridade policial dos rumos certos da investigao. O problema do sistema inquisitivo que o inqurito vai documentar a acusao, vai se refletir no processo. E, uma vez indo para dentro do processo, a prova colhida pela autoridade policial ser valorada pelo juiz. Assim, isto macula seriamente a sua imparcialidade. Mas o inqurito no necessrio, diro alguns. H inquritos arquivados pelo caso em si, h inquritos arquivados por falta de provas. Mas quando no o so, rebatem no processo. Diz a doutrina que o no pode o juiz condenar a pessoa exclusivamente com base na prova do inqurito. Mas, se isto dito, admite-se, ao menos, que a prova inquisitorial possa ser prova do juiz. Mais: os juizes condenam com base no inqurito, dizendo que as provas do juzo no infirmam as provas colhidas no inqurito, quando as provas do juzo deveriam possuir a primazia para a formao do convencimento do juiz. Pode ser

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que a convico do juiz se faa com o inqurito. Muitas vezes, alis, os inquritos so mais volumosos que os processos penais. Ada Pellegrini Grinover sugeria um novo dispositivo processual aqui, que diria que a autoridade policial, ao receber o comunicado da ocorrncia do crime, deve fazer todas as provas do processo, salvo as percias que compem o processo e as provas no-repetidas. Imaginem um caso de leso corporal leve. Se passasse o tempo e nada se fizesse, as marcas da leso sumiriam. Assim, seria importante fazer a prova logo aps a ocorrncia do crime. O inqurito, ento, tem esta importncia. Assim, evita-se a hipocrisia ao se tratar do assunto, quanto ao fato de o inqurito no dever formar na teoria, mas formar na prtica, o convencimento do juiz. No se pode minimizar arbitrariamente o inqurito e zerar toda a investigao policial porque, de cada dez pessoas condendadas a serem submetidas a este procedimento, sete seriam absolvidas. Sem a questo fascista desta considerao, ainda assim deve-se dizer: estaria esta sociedade organizada querendo isto? O nosso sistema processual penal acusatrio pblico, com forte presena inquisitria. Passemos ao segundo princpio do inqurito, qual seja, o sigilo. Se o processo (todos os atos processuais, em regra) so pblicos, diz o artigo 20 que a autoridade assegurar no inqurito o sigilo necessrio elucidao do fato ou exigido pelo interesse da sociedade; nos atestados de antecedentes que lhe forem solicitados, a autoridade policial no poder mencionar quaisquer anotaes referentes instaurao de inqurito contra os requerentes, salvo no caso de existir condenao anterior. O inqurito, portanto, deve ser sigiloso. lgico que devemos ver isso cum grano salis. Em primeiro lugar, h atos que no podem ser sigilosos (caso de um retrato falado preso no inqurito, escondido, que seria uma burrice, devendo este retrato ser noticiado). Do outro lado h o trabalho da imprensa, a liberdade de opinio, e muitas vezes a imprensa quebra o sigilo da polcia. Pelo direito do sigilo da fonte (garantido pela Constituio da Repblica), no raramente vemos reprteres com traficantes. Mas s vezes os processos s andam por presso social gerada pela imprensa. Em segundo lugar, deve haver a prerrogativa do advogado do acusado, prevista no Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil. Desde o Estatuto antigo os advogados podem consultar todos e quaisquer autos, ainda que no possuam eles a procurao de seus clientes, podendo fazer anotaes do inqurito, e mesmo que estejam conclusos para serem remetidos autoridade judiciria. O sigilo no vale para os advogados. Esta lei, em sendo posterior ao Cdigo de Processo Penal, mitiga o entendimento do princpio do sigilo. O artigo 21 fala da incomunicabilidade do preso indiciado, mas aqui ressalvou-se o estatuto da OAB. A incomunicabilidade do indiciado depender sempre de despacho nos autos e somente ser permitida quando o interesse da sociedade ou a convenincia da investigao o exigir; a incomunicabilidade, que no exceder de 3 (trs) dias, ser decretada por despacho fundamentado do juiz, a requerimento da autoridade policial, ou do rgo do Ministrio Pblico, respeitado, em qualquer hiptese, o disposto no artigo 89, III, do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (artigo 21, CPP). O antigo artigo 89, III, do Estatuto da OAB dizia que o advogado tem direito a entrevistar o preso indiciado reservadamente, com ou sem procurao (at para que possa peg-la com o preso). Claro que isto deve valer em termos. No pode o advogado chegar s quatro da manh querendo falar com o preso. As delegacias tm horrios certos de funcionamento. Essa questo da incomunicabilidade do preso questionvel hoje. Mas a Constituio Federal, no captulo do estado de defesa, diz que, aps serem vedadas certas garantias individuais, vedada a incomunicabilidade do preso. Na vigncia do Estado de defesa vedada a incomunicabilidade do preso (artigo 136, 3o, IV, CF). Alguns, com base nisto, pregam que o preceito do Cdigo de Processo Penal foi revogado. Entendo que no. A Carta Magna veda a incomunicabiidade do preso no estado de defesa porque foram suspensas garantias individuais, de forma que esta vedao compensa aquelas suspenses, evitando-se barbaridades ao preso. Quando a ordem constitucional est plena, no h porque se suspender a incomunicabilidade do preso. Finalmente, o princpio da escritura tambm rege o inqurito. Todas as peas do inqurito policial sero, num s processado, reduzidas a escrito ou datilografadas e, neste caso, rubricadas

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pela autoridade (artigo 9o, CPP). O inqurito ser obrigatoriamente escrito. Ali registrar-se-o as provas que comprovaro ser necessria a ao penal. At a prxima aula. Aula 5, do dia 06/04/1999: Se ns fizermos a seguinte pergunta: Como se inicia o inqurito policial?, no h condies de responder. necessrio que se conhea que infrao penal ser investigada no inqurito policial. Alis, para as contravenes no h mais aquele, visto que estas so consideradas infraes penais de menor potencial lesivo, passando competncia dos Juizados Especiais Criminais, caso em que no h mais inqurito, mas sim um termo circunstanciado. Alm das contravenes, os crimes cuja pena mxima (cominada pelo legislador) de at um ano tambm so submetidos aos Juizados Especiais Criminais, tambm sendo considerados infraes penais de menor potencial lesivo, no havendo, ento, inqurito policial, mas sim o termo circunstanciado. Por outro lado, se o crime a ser investigado crime de ao privada, o inqurito se inicia de outra forma; uma outra forma tambm se verifica quando o crime de ao penal pblica condicionada. Assim, dependendo do crime o inqurito policial se inicia de forma diferente, sendo que em certos casos nem inqurito policial h. Comecemos pelo mais simples dos casos. Se o crime for de ao penal de iniciativa privada vale o disposto no Cdigo de Processo Penal, artigo 5o, 5o, que diz: nos crimes de ao penal privada, a autoridade policial somente poder proceder a inqurito a requerimento de quem tenha qualidade para intent-la. Assim, para que se instaure o inqurito policial aqui, necessrio que aquele que possua legitimidade para exercer a ao penal privada faa requerimento basicamente o ofendido (a vtima), ou seja, ele mesmo ou seu representante legal. E se o ofendido morrer (caso de morte decorrente de calnia, por exemplo)? Como se faz aqui? No caso de morte do ofendido ou quando declarado ausente por deciso judicial, o direito de oferecer queixa ou prosseguir na ao passar ao cnjuge, ascendente, descendente ou irmo. Mas, em no ocorrendo isto, vale o artigo 5o, 5o, CPP. A regra que s o ofendido ou o representante legal possa requerer a instaurao de inqurito policial. Detalhe: queixa a petio inicial dos crimes de ao penal privada, pela qual a vtima de crime desta natureza pede em juzo que o Estado preste tutela jurisdicional ao caso. Assim, a vtima faz na delegacia um requerimento para a instaurao de um inqurito policial. No se trata apenas de uma questo terminolgica, pois a queixa deve ser apresentada em juzo num prazo de seis meses (prazo decadencial artigo 103, CP), seno verifica-se uma causa de extino da punibilidade (artigo 107, IV, CP). Acontece que o advogado, no familiarizado com o processo penal, vai delegacia, faz o requerimento e fica sentado em bero esplndido, quando deveria ele ir a juzo oferecer a queixa. Conta-se o prazo decadencial a partir do dia em que o ofendido sabe quem foi o autor desta conduta. E se o inqurito se destinar a apurar crime de ao penal pblica condicionada representao do ofendido? Se o crime no for de menor potencial lesivo (comumente o ), s se instaura o inqurito com a representao da vtima. O inqurito, nos crimes em que a ao pblica depender de representao, no poder sem ela ser iniciado (artigo 5o, 4o, CPP). E se o inqurito policial se destinar a apurar crime de ao penal pblica condicionada requisio do Ministro da Justia? O Cdigo de Processo Penal no tratou deste assunto. H, portanto, uma lacuna, e em a havendo, que se faa a aplicao analgica. A lei processual penal admitir interpretao extensiva e aplicao analgica, bem como o suplemento dos princpios gerais de Direito (artigo 3o, CPP). Aqui no h o problema do Direito Penal, do nullum crimen nulla poena sine lege stricta (princpio da reserva legal, que tem como um de seus quatro corolrios a vedao do uso da analogia para se criarem crimes, ou seja, ou est na lei a conduta incriminadora e crime, ou ento no est ela na lei e no crime). No processo penal no h discusso nem sobre quem beneficiado pela analogia (se ela in bonam partem ou se in malam partem). Por analogia, vale a deciso do artigo 5o, 4o do CPP, vale dizer, deve haver a requisio do Ministro da Justia para que o delegado instaure o inqurito policial.

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E se o crime for de ao penal pblica incondicionada? O que se exige para que se instaure o inqurito policial? Esta a regra geral dos casos. A so tantas as formas para se iniciar inqurito policial que precisamos de organiz-las sistematicamente: INQURITO PARA APURAR CRIME DE AO PENAL PBLICA INCONDICIONADA: 1) DE OFCIO: 1.1) CONHECIMENTO PRPRIO DA AUTORIDADE; 1.2) AUTO DE RESISTNCIA; 3) AUTO DE PRISO EM FLAGRANTE; 1.4) NOTCIA DE QUALQUER DO POVO. 2) MEDIANTE PROVOCAO: 2.1) REQUISIO DO JUIZ (?); 2.2) REQUISIO DO MINISTRIO PBLICO; 2.3) REQUERIMENTO DO OFENDIDO. Em alguns casos o delegado instaura em razo do cargo; em outros casos ele o faz mediante requerimento da parte. So, ao todo, sete formas de se instaurar um inqurito policial. Comecemos pelos casos em que h provocao. O primeiro deles, o requerimento do ofendido. No de se espantar: tambm admitido para se abrir inqurito aqui. Aplica-se a todos os tipos de aes penais. A diferena que na ao penal de iniciativa privada ele a nica forma para que se instaure o inqurito policial, enquanto que na ao penal pblica incondicionada ele uma das formas para tal. Contudo, diga-se que aqui, se o delegado souber do caso, ele deve instaurar ex officio o inqurito policial. Os autores colocam nomes confusos para o ato do ofendido, quais sejam, notitia criminis postulanda ou delatio criminis. De fato o ofendido vai delegacia de polcia comunicar o fato autoridade; os nomes no esto errados. Mas o Cdigo fala em requerimento do ofendido. Para que complicar os termos, ento? O segundo subcaso a requisio do Ministrio Pblico. Aqui trata-se de requisio, e no de requerimento. So diferentes um do outro. O requerimento pode ser deferido ou indeferido pelo delegado. O Cdigo, alis, prev isto. Se o delegado indeferir o requerimento, o ofendido pode recorrer ao chefe de polcia (em recurso administrativo). Isto pouco usado. Normalmente se isso ocorre d-se notitia criminis ao promotor (o que mais correto). A o Ministrio Pblico, verificando o caso, verificar se a conduta tpica. Se o for, deve de ofcio mandar o delegado instaurar o inqurito policial. Pela requisio do Ministrio Pblico o delegado tem de instaurar o inqurito policial, sob pena, segundo este entendimento majoritrio, de haver crime de desobedincia (artigo 330, CP). No h, claro, hierarquia entre ambos. So duas carreiras distintas as que comparamos aqui. Um no pode afastar o outro do cargo. Mas h dependncia funcional. O Ministrio Pblico deve defender a ordem jurdica (artigo 128, caput, CF), e guardio da ao penal pblica (artigo 129, I, CF). Assim, cabe a ele instaur-la; desta maneira, deve possuir os meios para que o faa (Teoria dos poderes implcitos). Assim, pode o Ministrio Pblico exigir que o delegado instaure o inqurito policial. O delegado s pode se escusar de cumprir esta ordem se for ela manifestamente ilegal. Exemplo: O Ministrio Pblico mandou o delegado instaurar um inqurito policial em crime de ao penal privada sem o requerimento do ofendido (pea vital para a abertura do mesmo), uma ordem claramente ilegal. O terceiro subcaso a requisio do juiz. O inciso II do artigo 5o fala tanto da requisio do Ministrio Pblico como da requisio do juiz. Nos crimes de ao pblica o inqurito policial ser iniciado: mediante requisio da autoridade judiciria ou do Ministrio Pblico, ou a requerimento do ofendido ou de quem tiver qualidade para represent-lo (artigo 5o, II, CPP). Por que o (?)? que alguns autores entendem que os artigos que estabelecem as funes anmalas do juiz no foram recepcionados pela Carta Magna, esto revogados por ela e pelo sistema acusatrio pblico consagrado pela mesma. De fato as crticas procedem: o juiz no deveria poder investigar, pois estaria elaborando antes do processo penal, em que lhe lcito liderar, um juzo de valor, com o que est deixando de ser imparcial. Melhor seria que o juiz, ao saber do crime, noticiasse o Ministrio Pblico, por dois motivos, quais sejam: 1o) o juiz deixaria de investigar o caso e se manteria eqidistante das partes; e 2o) noticia ao Ministrio Pblico, que pode dispensar o inqurito

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policial e propor a denncia (no inqurito policial o caso pode ficar at trinta dias parado), o que deve ser evitado. Agora, os meios de inicio por iniciativa da autoridade policial ex officio. O primeiro deles a notcia de qualquer do povo. Qualquer pessoa do povo que tiver conhecimento da existncia de infrao penal em que caiba ao pblica poder, verbalmente ou por escrito, comunic-la autoridade policial, e esta, verificada a procedncia das informaes, mandar instaurar inqurito (artigo 5o, 3o, CPP). Devemos fazer alguns reparos letra da lei. Em primeiro lugar, qualquer pessoa do povo seriam s as pessoas fsicas, certo? Penso que podemos estender este preceito tambm s pessoas jurdicas, porque elas podem ser vtimas de crime (ladres roubam computadores da Shell do Brasil S.A.). Deve, ento a pessoa jurdica poder requerer a instaurao do inqurito policial e at poder dar queixa em juzo. Depois fala o Cdigo em ao pblica do delegado. Ora, s o inqurito policial da ao penal pblica incondicionada est aqui o da ao penal pblica condicionada representao do ofendido depende da iniciativa deste, no sentido de que faa ele representao. E no finalzinho do 3o h o trecho e esta (autoridade policial), Verificada a Procedncia das Informaes, mandar instaurar inqurito... Aqui abre-se um parntese para o exame das VPIs (verificaes preliminares de investigaes). As VPIs so um prtica que eu reputo ilegal, seja com o nome de VPI, seja com o nome de sindicncia policial, seja com o nome de investigao preliminar. neste finzinho de pargrafo que se buscou esta sigla: verificada a procedncia das informaes, instaurar a autoridade policial inqurito. O que ocorre aqui? A autoridade policial faz um registro de ocorrncia. O delegado, muitas vezes, ao invs de mandar instaurar o inqurito policial, manda instaurar investigao prvia ao mesmo. Assim, cria-se uma investigao para se saber se necessrio haver investigao. Argumenta a polcia: Se para tudo que chegar aqui for feito inqurito policial o Ministrio Pblico ficar assoberbado de inquritos policiais, a quantidade deles dobraria. Seria um altrusmo pensar que a polcia queira trabalhar tanto para poupar o Ministrio Pblico... Retrucam os mesmos policiais: que em muitos casos no h provas do crime, estando o inqurito fadado ao arquivamento e gastando tempo e dinheiro toa. Instaura-se a VPI para se confirmar que o inqurito policial no vai dar em nada. Mas pelo sistema do Cdigo de Processo Penal (e a matria de Direito Pblico, com o que o Estado s pode agir at onde a lei d base s suas aes, at onde ela tutela prerrogativas), no se permite que a autoridade faa a instaurao desta investigao preliminar ao inqurito. Diz o artigo 4o do Cdigo de Processo Penal: a polcia judiciria ser exercida pelas autoridades policiais no territrio de suas respectivas circunscries e ter por fim a apurao das infraes penais e da sua autoria. Este artigo, ento, diz que o inqurito policial deve apurar as circunstncias do crime e da sua autoria. No procede a Segunda alegao. A prova, muitas vezes, logra ser alcanada no inqurito policial. O legislador s falou deste. E das VPIs? No existem na lei. Logo, no deveriam existir. Mas alguns entendem que ela est na parte final do artigo 5o, 3o do CPP (Verificada a Procedncia das Informaes). E a? O que parece aqui que o delegado deve verificar in loco, pessoalmente, se a descrio do delator procede, se no se trata de um trote ou de uma brincadeira de mau gosto. Assim, deve o delegado ir ao local tomar as providncias de praxe. Isto o Cdigo de Processo Penal diz: uma pessoa comunica o delegado e este, verificando a procedncia das informaes, na prtica, instaura o inqurito. Mas os delegados no fazem isso. Instauram antes as VPIs sem tratamento legal algum, muitas vezes presididas pelo detetive-inspetor (nem pelos policiais), fazem todas os procedimentos do inqurito na VPI, decide-se pelo inqurito e faz-se tudo de novo. Perde-se todo o tempo, as partes podem ter esquecido de detalhes dos fatos, ou terem at sumido ou morrido, dificultando as apuraes do caso. Pior: pode ficar a VPI suspensa e arquivada, fora de controle do juiz e do Ministrio Pblico, que no tm acesso s investigaes. O inqurito sofre controle, distribudo e consta de uma central de inquritos, a do Ministrio Pblico. A VPI no possui este controle. A VPI, para mim, nada mais do que um inqurito travestido de nome para burlar as regras do Cdigo de Processo Penal. Diz este, no artigo 17, que a autoridade policial no poder arquivar autos de inqurito. Dizem as autoridades policiais: Ah, s o inqurito no pode ser arquivado pelo policial: assim, se ns

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estivermos tratando de VPI, esta pode ser arquivada ou ento suspendem-se as investigaes. A VPI to inquisitria e to submetida autoridade policial quanto o inqurito policial. Deveria ela, ento, possuir o tratamento de inqurito policial, mas no possui. Mas mesmo que a VPI tivesse esse sentido que a polcia d (a interpretao esdrxula do artigo 5o, 3o do CPP, autorizando-a a fazer VPIs), s poderia ela ser feita se houvesse um requerimento de qualquer do povo. Assim, restringe-se legalmente a VPI a outros tipos de pedido (em casos de requisies, nem pensar). E mesmo que s se admitisse a VPI por tal hiptese, no pode ela ficar suspensa ou arquivada na delegacia de polcia. Se no for geradora de inqurito, ao menos pea de informao (elementos, laudos, percias ali geradas), um tipo de prova, e como tal no poderia ficar na delegacia de polcia sem controle algum, pois o artigo 28 estende o arquivamento do inqurito policial s peas de informao. Se o rgo do Ministrio Pblico, ao invs de apresentar a denncia, requerer o arquivamento do inqurito policial ou de quaisquer peas de informao, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razes invocadas, far remessa do inqurito ou peas de informao ao procurador-geral, e este oferecer a denncia, designar outro rgo do Ministrio Pblico para oferec-la, ou insistir no pedido de arquivamento, ao qual s ento estar o juiz obrigado a atender (artigo 28, CPP). Vejam bem: o promotor tambm no pode arquivar elementos de prova. Deve arquivar ao menos como arquivamento. Assim, a VPI, sendo ao menos uma pea de informao, devendo ser distribuda ao Ministrio Pblico, deve ser distribuda ao Ministrio Pblico para que este v ao juiz pedir a demanda ou arquiv-la. Ora, no pode ficar suspensa ou arquivada, como diz a lei. Assim, deve ser submetida, por equiparao legal, ao mesmo tratamento do inqurito policial. Outro meio de instaurao do inqurito o auto de priso em flagrante. Importante perceber que este inicia o inqurito policial. As pessoas pensam que um e outro so a mesma coisa. O auto de priso em flagrante uma das formas pelas quais se inicia o inqurito policial. que, no mais das vezes, no h mais nada a fazer, e o delegado remete os autos ao Ministrio Pblico. No caso, h eqivalncia, pois aqui s consta do inqurito o auto de priso em flagrante. Resultando das respostas fundada a suspeita contra o conduzido, a autoridade mandar recolh-lo priso, exceto no caso de livrar-se solto ou de prestar fiana, e prosseguir nos autos do inqurito ou processo, se para isso for competente; se no o for, enviar os autos autoridade que o seja (artigo 304, 1o, CPP). Resolvida a questo da priso, lavrado o flagrante, prosseguir o delegado os autos do inqurito. O auto de priso em flagrante inicia o inqurito, e depois o delegado de polcia continua com este, fazendo as diligncias necessrias. O artigo 10 claro a respeito deste assunto: o inqurito dever terminar no prazo de 10 (dez) dias, se o indiciado tiver sido preso em flagrante, ou estiver preso preventivamente, contado o prazo, nesta hiptese, a partir do dia em que se executar a ordem de priso, ou no prazo de 30 (trinta) dias, quando estiver solto, mediante fiana ou sem ela. Se a pessoa tiver sido indiciada por auto de priso em flagrante, o prazo mais curto. Logo, o auto de priso em flagrante inicia o inqurito. Aquele parte deste, no so a mesma coisa. Mas pode o inqurito se iniciar com o auto de resistncia. Se houver, ainda que por parte de terceiros, resistncia priso em flagrante ou determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o auxiliarem podero usar dos meios necessrios para defender-se ou para vencer a resistncia, do que tudo se lavrar auto subscrito tambm por duas testemunhas (artigo 292, CPP). um artigo muito criticado, pois d margem a abusos. Ento diante de resistncia pode-se usar de um pouco de fora para efetuar a priso. Resistir a priso legal, alis, crime (artigo 329, CP, crime de resistncia). lgico que a doutrina e a jurisprudncia dizem que para resistir ao crime a conduta deve ser ativa, no omissiva. Se o agressor sentar no cho e o policial tiver de arrast-lo no se trata de resistncia. O legislador autorizou o uso da fora para o policial se defender da agresso do suposto criminoso e at vencer a resistncia do mesmo usando de fora para fazer a sua priso. No ser permitido o emprego de fora, salvo a indispensvel no caso de resistncia ou de tentativa de fuga do preso (artigo 284, CPP). Ento, no limite da necessidade a polcia pode usar da fora fsica, para evitar a desmoralizao e a agresso do poder pblico. Qualquer excesso alm da necessidade caracterizar crime (alis, o artigo 23, pargrafo

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nico, do CP j fala isso). Se a pessoa resistiu violentamente leso presa, ainda que esteja lesionada, no se faz o auto de resistncia, mas sim o auto de priso em flagrante dos dois casos, relatando-se, at, o excesso de fora usada pela autoridade policial, se for o caso. Todos sero ouvidos, inclusive o preso. Mas e se a pessoa que resiste priso na troca de tiros baleada e morre? H dois caminhos. Ou se evidencia que o policial extrapolou a sua ao, e o delegado prende os policiais e lavra o auto de priso em flagrante dos mesmos, o que dificilmente ocorre, por razes de corporativismo, sendo que a percia e as testemunhas podero cabalmente comprovar a necessidade de se punir a conduta, se ela de fato criminosa; ou ento o delegado pode lavrar o auto de resistncia, mostrando o caso em questo (a resistncia priso). Mas ouvem-se testemunhas e fazem-se percias para se comprovar o que ocorreu. A o auto de resistncia inicia o inqurito policial. Dizem os doutos que o legislador furou aqui, deu margem a abusos. Penso ser melhor um auto de resistncia verdadeiro do que um auto de priso em flagrante falso. O legislador espera ingenuamente que a lei seja bem aplicada. O juiz e o Ministrio Pblico podem investigar o caso, cobrindo esta deficincia. O delegado, se proteger o policial criminoso, comete o crime de prevaricao. Mas se por qualquer lesozinha o policial fosse preso, como ele poderia trabalhar? O criminoso no vai querer ser preso. A lei no errou de todo aqui. E se, de um grupo, duas pessoas resistirem priso, um morreu e o outro foi baleado, como fica? Faz-se um auto de priso em flagrante, narrando-se esses dois casos. Pode-se fazer o auto de resistncia tambm, mas no necessrio ser lavrado. Finalmente o conhecimento prvio da autoridade uma maneira de se instaurar o inqurito. O delegado, pelas investigaes que fez ou pela imprensa, deve instaurar o inqurito ex officio. Tratase de ao penal pblica incondicio