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Universidade de São Paulo Escola Politécnica Departamento de Engenharia de Estruturas e Fundações Laboratório de Mecânica Computacional Universidade de São Paulo Escola de Engenharia de São Carlos Departamento de Engenharia de Estruturas Curso de Mecânica de Materiais AULA 1: FUNDAMENTOS DOS MECANISMOS FÍSICOS DE DEFORMAÇÃO E RUPTURA Dezembro de 1999

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Universidade de São PauloEscola PolitécnicaDepartamento de Engenharia de Estruturas e FundaçõesLaboratório de Mecânica Computacional

Universidade de São PauloEscola de Engenharia de São CarlosDepartamento de Engenharia de Estruturas

Curso de Mecânica de Materiais

AULA 1:

FUNDAMENTOS DOSMECANISMOS FÍSICOS DEDEFORMAÇÃO E RUPTURA

Dezembro de 1999

Mecanismos físicos de deformação e de ruptura 1

1. MECANISMOS FÍSICOS E A MODELAGEM TEÓRICA

Apesar da grande diferença de natureza e de estrutura interna dos materiais

de uso mais freqüente em engenharia (como metais, ligas, polímeros, compostos,

concretos e madeiras), em todos eles observam-se, numa escala macroscópica,

características semelhantes de comportamento. Entre as características comuns

destacam-se: elasticidade, viscosidade, deformação plástica, ruptura frágil, ruptura

dúctil, etc. Essa semelhança de comportamento é usada como justificativa para o

emprego da mecânica dos meios contínuos e da termodinâmica dos sólidos

deformáveis na formulação de modelos constitutivos representativos do

comportamento de materiais de natureza diversa, e que são aplicados nas

análises macroscópicas.

A hipótese de continuidade do meio não faz, obviamente, referência à

estrutura interna do material, mas tem um papel fundamental na modelagem

teórica. A partir dela definem-se conceitos como tensão e deformação,

associados a pontos materiais. Esses conceitos não aparecem somente nas

formulações teóricas; freqüentemente eles são quantificados em laboratório, de

forma direta ou indireta, nas medidas de deslocamentos e de deformações.

Entretanto é importante observar que os mecanismos físicos reais de

deformação, e de ruptura, ocorrem numa escala inferior (microescala) àquela que

permite interpretar o meio como contínuo (macroescala). Assim, as medidas de

laboratório mencionadas são, na verdade, valores médios de processos físicos

que se desenvolvem na região adjacente à base de medida (extensômetro). É

importante que esses valores médios sejam de fato representativos de

distribuições mais ou menos uniformes e que não estejam mascarados pela

influência de deformações, ou rupturas, localizadas; para garantir a confiabilidade

das medidas, em correspondência a cada tipo de material definem-se volumes,

ditos representativos, em cujas superfícies serão fixadas os extensômetros. Tais

volumes devem ser pequenos o suficiente para evitar grandes gradientes dos

processos de deformação, mas grandes o bastante para que o meio possa ser

interpretado como contínuo e que as próprias medidas possam ser realizadas.

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Da discussão anterior segue que a modelagem teórica será tanto mais

consistente quanto melhor for o conhecimento e o entendimento sobre os

mecanismos físicos que se desenvolvem na microestrutura do material que se

pretende considerar. De fato, esse entendimento é essencial, seja para o

estabelecimento de hipóteses coerentes a partir das quais se formulam os

modelos matemáticos, seja para a correta interpretação das medidas realizadas

em laboratório.

Este texto trata dos mecanismos físicos de deformação e de ruptura que

ocorrem na microescala, apresentando-se aquilo que se considera de maior

interesse para a formulação de modelos teóricos.

2- ELEMENTOS DA MICROESTRUTURA DE METAIS E LIGAS

Nos metais e ligas os átomos se dispõem segundo arranjos bastante

ordenados, determinados por forças eletromagnéticas cuja intensidade obedece

uma condição de mínima energia por unidade de volume. É possível individualizar

certos arranjos elementares denominados monocristais, cuja repetição segundo as

três direções do espaço gera os chamados cristais.

A estrutura dos metais é, na verdade, policristalina : um mosaico de cristais

que diferem entre si pela direção segundo a qual se repete um mesmo

monocristal. Nota-se que no âmbito da microescala o policristal é essencialmente

anisótropo, entretanto para fins de modelagem macroscópica pode-se considerar

que o metal apresente isotropia.

A maior parte dos cristais de metais puros é composta pela repetição de

uma das seguintes estruturas de monocristais : estrutura cúbica de corpo centrado

(ferro), cúbica de faces centradas (cobre e alumínio) e hexagonal compacta (zinco

e titânio). Para cada uma das estruturas, adotam-se as seguintes siglas,

respectivamente : CCC, CFC e HC.

O arranjo dos átomos na estrutura CCC pode ser visualizado tomando-se

por base um cubo que contém um átomo central está em contato com outros oito

átomos posicionados nos seus vértices.

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Nas estruturas HC e CFC, doze átomos estão em contato com um átomo

central, mas arranjados de modo que suas posições configuram um hexágono ou

um cubo imaginários, respectivamente.

A figura 1 ilustra as estruturas típicas dos monocristais.

Figura 1 - Arranjos dos átomos dos metais

É importante destacar que os monocristais apresentam alguns planos de

maior densidade de átomos, que oferecem uma resistência menor ao

escorregamento relativo entre as partes. A clivagem é o escorregamento entre

planos cristalográficos que acontece com ruptura das ligações atômicas.

As ligas são materiais metálicos com mais de uma fase, pois não são

constituídas por um único elemento. Elas apresentam uma estrutura cristalina

diferente daquela característica dos metais puros, devido à presença de átomos

que se inserem no interior dos monocristais ou pela simples substituição de

átomos de um constituinte pelos de outro (v.fig.2). O tipo de monocristal das ligas

pode variar de acordo com a temperatura (CFC ou CC no caso da liga ferro-

carbono).

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Figura 2 - Estrutura das ligas: substituição e inserção

Considere-se um certo cristal e a sua possível idealização como uma

seqüência geometricamente bem definida, ordenada e sem defeitos de

monocristais. Tal idealização é suficiente para explicar, satisfatoriamente, as

deformações elásticas e a ruptura frágil. Esta última é, então, interpretada como o

resultado do rompimento das ligações ou de partes de um policristal; já a

deformação elástica é entendida como a variação reversível da distância entre os

átomos, sem ruptura das ligações.

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Por outro lado a deformação plástica e a ruptura dúctil somente podem ser

explicadas, de modo convincente, admitindo-se a presença de defeitos que

perturbam a rede cristalina.

Os defeitos são classificados, de acordo com a sua natureza, em :

- pontuais : são átomos de substituição ou de inserção e as lacunas ou

ausências de átomos do cristal;

- de superfície : são as juntas dos grãos dos policristais, as interfaces entre

duas fases distintas e as maclas ( interfaces entre arranjos de átomos que são

imagens especulares um do outro);

- discordâncias: são defeitos que, tendo-se em vista o empilhamento dos

átomos, interrompem uma disposição geometricamente ordenada das ligações

atômicas. As discordâncias formam-se naturalmente ou como conseqüência de

deformações impostas ao arranjo cristalino, obedecendo a um processo de

distribuição balanceada dos campos eletromagnéticos. Apresentam-se em forma

de cunha ou de hélice (v.fig.3) e sua movimentação dá origem a deformações

permanentes observadas macroscopicamente nos metais;

- de coesão: nome genérico dado às superfícies de separação da matéria

como as microfissuras e as cavidades.

Figura 3 - Discordâncias em cunha

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2.1- Mecanismos físicos de deformação

deformação elástica: é o resultado de variações dos espaços interatômicos

produzidos de modo a balancear a energia adicional transferida ao meio pelas

solicitações externas. Essas modificações geométricas são essencialmente

reversíveis, de modo que a estrutura original é recuperada uma vez retirada a

solicitação.

deformações permanentes (plásticas ou viscoplásticas): resultam de

deslocamentos relativos entre planos atômicos, os quais são de natureza

irreversível uma vez cessada a solicitação. De acordo com o caso esses

deslocamentos podem ser intragranulares, como os escorregamentos simples

entre planos atômicos e aqueles que formam as maclas, ou intergranulares como

os deslizamentos dos contornos dos cristais.

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De modo mais específico, os escorregamentos intragranulares são

provocados por cisalhamento e ocorrem preferencialmente segundo planos de

maior densidade de átomos. Nos cristais esses escorregamentos formam as

chamadas bandas, quando vários planos paralelos se movimentam, ou então as

maclas, que são planos gerados por escorregamentos entre partes do cristal que

passam a ter orientações simétricas em relação a eles.

A presença de uma discordância reduz a estabilidade do arranjo cristalino e

facilita o escorregamento relativo entre planos atômicos. Existindo discordância,

uma deformação imposta ao meio faz com que ela ‘salte’ de uma posição para

outra do arranjo, na qual se mantém estável, caracterizando, assim, a

irreversibilidade ao processo.

O mecanismo de deformação permanente não implica em ruptura de

ligações nem em variação volumétrica do meio.

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2.2- Mecanismos físicos de ruptura

Como já foi comentado, as deformações elásticas e permanentes,

observadas na escala dos átomos e dos cristais, não vem acompanhadas de

quebras das ligações internas. Quando a deformação imposta leva à destruição de

ligações, configura-se a ruptura e criam-se descontinuidades superficiais ou

volumétricas (como as microfissuras, as fissuras da ordem de mm, as

macrofissuras da ordem de cm e as cavidades).

Os dois principais mecanismos elementares de ruptura local são a ruptura

frágil acompanhada de clivagem e a ruptura dúctil, precedida de grandes

deformações plásticas.

Ruptura frágil: é a ruptura das ligações atômicas sem o desenvolvimento prévio

de mecanismos de deformação permanente com intensidade apreciável. É

também facilitada pela presença de defeitos como os vazios, que concentram

tensões, ou pela diferente capacidade de deformação entre o arranjo cristalino e

defeitos de natureza diversa. Em termos de balanço de energia pode-se afirmar

que a ruptura frágil acontece sempre que localmente a energia introduzida pelas

solicitações externas iguala, ou é superior, à energia necessária para romper a

ligação entre os átomos.

A clivagem é um tipo característico de ruptura que resulta da quebra das

ligações de um conjunto de átomos que pertencem a um plano cristalográfico

particular. A ruptura intergranular é uma clivagem que segue as juntas dos grãos,

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facilitada pela incompatibilidade de deformação entre os grãos adjacentes ou

porque essas regiões são zonas naturais de concentração de tensões. Já a ruptura

alveolar se origina da nucleação, crescimento e coalescência de vazios dentro dos

cristais.

Ruptura dúctil: é sempre precedida de deformações permanentes significativas e

tem origem na formação e união de vazios gerados pela excessiva concentração

de tensões proporcionada pelo acúmulo de discordâncias em juntas de grãos e

defeitos cristalinos.

Naturalmente a ruptura dúctil implica em quebra das ligações entre os

átomos, levando à formação de uma microfissura.

Um aspecto importante a observar é que a quebra de ligações atômicas, e

a conseqüente redução do seu número, diminui a capacidade remanescente de

deformação elástica do meio, afetando de forma direta esse mecanismo. Já a

redução das áreas resistentes, proporcionalmente ao número de ligações

rompidas, leva a um aumento na velocidade com que as deformações

permanentes se processam. Desse modo a capacidade de deformação plástica,

ou o mecanismo em si, não é diretamente afetada; diz-se, neste caso, que as

rupturas das ligações tem influência indireta sobre o mecanismo.

Um mesmo material pode apresentar rupturas dos tipos frágil ou dúctil

dependendo da temperatura, da velocidade de deformação (choque, por ex.) e das

dimensões do defeito (num entalhe, por exemplo, de acordo com o raio na ponta

do mesmo e da espessura do corpo, o efeito de triaxialidade local de tensões

pode ocasionar a propagação do defeito).

Com relação à propagação de defeitos, uma propriedade importante do

material é a tenacidade, entendida como a resistência à propagação da fratura. A

tenacidade é medida pelo fator de concentração de tensões ( K ) .

Ruptura por fadiga de um policristal: para a ocorrência de fadiga é necessário

um regime repetido de tensões normais de tração (somente com tensões de

compressão não há fadiga) e formação de deformações plásticas. A fadiga pode

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ser de baixo ciclo (tensões acima do limite de escoamento) e de alto ciclo (regime

de tensões abaixo do limite de escoamento).

A ruptura por fadiga compreende diferentes fases:

fase de formação da trinca ou nucleação de microfissuras (aquela que consome

um número maior de ciclos), fase de propagação das trincas em bandas de

plastificação, fase de propagação governada pela tensão de tração máxima e

fase de propagação instável.

Com relação a essas fases é interessante acrescentar alguns detalhes

sobre a primeira.

A iniciação das trincas por fadiga ocorre preferencialmente a partir da

superfície do metal. Mesmo que a tensão nominal seja bem menor que o limite

elástico, localmente as tensões podem atingir níveis muito maiores devido à

concentração provocada por vazios ou contornos de grãos. As deformações

plásticas ocorrem, então, na microescala e a ductilidade passa a diminuir na

medida em que se esgota a capacidade de encruamento e se formam trincas

microscópicas; a propagação dessas trincas vem em conseqüência das

concentrações de tensões resultantes.

Observação 1) : em situações de solicitação alternada, e dependendo da

freqüência da solicitação, observa-se na curva tensão-deformação a formação de

ciclos de histerese. A área contida na curva de um ciclo corresponde a uma

energia térmica dissipada.

Observação 2) : nos metais sujeitos a altas temperaturas pode-se

caracterizar a deformação lenta (‘creep’) e o processo de ruptura pode ser

acelerado devido à existência de vazios e de fissuras.

Na figura seguinte, ilustra-se um dos modelos (de Wood) para explicar a

iniciação de trincas por fadiga, associada à deformação plástica local.

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Durante a parte do ciclo em que ocorre aumento da solicitação, o

deslizamento se dá segundo um plano favoravelmente inclinado. Durante o

descarregamento, inibe-se o escorregamento segundo o primeiro plano por efeito

do encruamento; assim, o deslizamento ocorre no sentido inverso num plano

paralelo ao primeiro. A repetição do processo gera na superfície do metal defeitos

denominados de extrusões ou intrusões, estas levando ao aparecimento das

trincas.

3- MECANISMOS FÍSICOS DE DEFORMAÇÃO E DE RUPTURA DO

CONCRETO

O concreto é um material multifase, composto por uma mistura de

agregados graúdos e areia (fases cristalinas) e de um gel de cimento hidratado

(fase não-cristalina).

Por causa da sua complexa estrutura e pela presença de microfissuras e

cavidades iniciais resultantes do processo de cura, no concreto é difícil separar os

fenômenos de deformação e de ruptura. Por exemplo, as deformações

permanentes são geradas por mecanismos de ruptura frágil.

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De qualquer modo existe um regime de resposta inicial, abaixo de um certo

nível de solicitação, em que a deformação pode ser considerada como o resultado

de movimentos quase reversíveis de átomos sendo, portanto, elástica.

A perda de coesão entre a pasta de cimento (gel + areia) e os agregados é

o fenômeno responsável pela evolução de microfissuras e pelo aparecimento da

deformação permanente, sendo fortemente influenciada pela natureza da

solicitação (tração ou compressão, por exemplo). De fato é além do limite elástico

que as microfissuras começam a progredir ao longo dos contornos dos agregados

e as deformações permanentes produzidas se superpõem às elásticas.

Para níveis mais elevados de solicitação as microfissuras avançam na

pasta de cimento, e os escorregamentos que venham a ocorrer entre os grãos

passam a contribuir diretamente para a deformação permanente. O processo de

deformação nesse nível se dá ainda sem alteração apreciável do volume.

No início da fase de ruptura as microfissuras se unem gerando fissuras

macroscópicas; as novas deformações permanentes passam a ser

acompanhadas de sensível variação de volume. A ruptura final resulta da união de

várias macrofissuras formando uma superfície de descontinuidade.

A deterioração progressiva do material e a distribuição das fissuras, não

permite identificar claramente, como nos metais, uma resposta característica de

fadiga; o que se identifica é um limite de fadiga em níveis mais baixos de tensão

para o concreto em compressão.