ASSIM DEUS FALOU AOS HOMENS - palasathena.org.br 1982 N.24/Assim... · pertenço aRá. Ele disse:...

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pla concepção do mundo, do homem e de Deus, ou se os modernos, com sua estreita fixação pelo conhecimento tecnológico e SU::l aberrante valorização dos instintos. E, no caso dos encantamentos, nunca seria demais lembrar o poder da palavra, princi- palmente quando pronunciada com a cor- reta entonação e no momento adequado; nunca demais lembrar o poder criador do verbo, tantas vezes referido nas sagradas es- crituras dos mais distintos povos; e nunca demais lembrar que, no Egito, a ciência e a religião estavam intimamente relacionadas, e que os médicos eram também sacerdotes que não se pretendiam autores dos encanta- mentos, preparações medicamentosas e ou- tras técnicas curativas: eles apenas os aprendiam nas chamadas "Casas da Vida", os templos-universidades legados pelo deus Thot, o mensageiro dos deuses, encarre- gado de proteger a humanidade, a quem alude o papiro de Ebers: Eu saí de Heliopolis com os Grandes dos templos, os que possuem proteção, os senhores da eternidade... Eu pertenço a Rá. Ele disse: "serei eu quem prote- gerá o doente de seus inimigos. Thot será o seu guia, o que fará falar as escrituras e é autor dasfármulas: dará habilidade aos sábios e aos médicos-mágicos, seus discípulos, para curar da doença aqueles que Deus deseja manter vi- vos". Isto poderá parecer absurdo somente para aqueles que se aferram às suas convic- ções materialistas porque têm medo de se lançar ao estudo do desconhecido. Mas não assim para os que acreditam, ou melhor, constatam dia a dia a existência de leis natu- rais inexplicáveis para o homem comum, e que acreditam também que, em outras épo- cas, em outras culturas, o conhecimento dessas leis naturais deu ensejo ao surgi- mento de uma verdadeira medicina sa- grada, de uma verdadeira ciência sagrada: sagrada no sentido de possibilitar aharrno- nia entre o interno e o externo, entre o mi- crocosmos e o macrocosmos, entre .0 Ho- mem e o Universo. Nesse sentido, tudo no Egito era sagrado. Talvez nenhuma civilização tenha buscado tanto essa harmonia. Talvez nenhuma civili- zação tenha mostrado tanto ao ser humano a sua própria grandeza, indicando-lhe, ao mesmo tempo, a adequada dimensão, o justo limite de sua atuação dentro do vasto universo de Deus. Bibliografia Claudine Brelet-Rueff - As Medicinas Tradicionais Sagradas: Edições 70. Lisboa, 1978. A. de Almeida Prado - As Doenças Através dos Séculos. Editor" Anhembi, São Paulo, 1961. Zitdo Traiano ASSIM DEUS FALOU AOS HOMENS ~~ ~ ------------------------------------- ------------------------------------- - Mario Ferreira dos Santos - Já haviam despertado as trevas para os la- dos do nascente. E despertei porque abri os olhos para a luz da manhã. o silêncio dominava todas as coisas como se elas permanecessem ainda adormecidas. Na paz do campo, deveria ferir os meus ouvidos a clarinada de um galho, e um canto de pássaros não me surpreenderia. Surpreendia-me o silêncio; silêncio que me penetrava e me pesava nas pálpebras. Acordei quando soaram as trombetas do Senhor. Uma brisa suave embalava todas as coisas e mansamente acariciava o meu corpo porque despertei sem sobressaltos. Eu também ressuscitava, e vi. E vi que o verde dos campos era mais aveludado. No céu, um azul muito lavado, longínquo, matizado de um leve cor de rosa, permitia aos meus olhos penetrarem distân- cias sem fim. Não era mais uma cúpula empoeirada de THOT 17

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pla concepção do mundo, do homem e deDeus, ou se os modernos, com sua estreitafixação pelo conhecimento tecnológico eSU::l aberrante valorização dos instintos.

E, no caso dos encantamentos, nunca seriademais lembrar o poder da palavra, princi-palmente quando pronunciada com a cor-reta entonação e no momento adequado;nunca demais lembrar o poder criador doverbo, tantas vezes referido nas sagradas es-crituras dos mais distintos povos; e nuncademais lembrar que, no Egito, a ciência e areligião estavam intimamente relacionadas,e que os médicos eram também sacerdotesque não se pretendiam autores dos encanta-mentos, preparações medicamentosas e ou-tras técnicas curativas: eles apenas osaprendiam nas chamadas "Casas da Vida",os templos-universidades legados pelo deusThot, o mensageiro dos deuses, encarre-gado de proteger a humanidade, a quemalude o papiro de Ebers: Eu saí de Heliopoliscom os Grandes dos templos, os que possuemproteção, os senhores da eternidade... Eupertenço a Rá. Ele disse: "serei eu quem prote-gerá o doente de seus inimigos. Thot será o seuguia, o que fará falar as escrituras e é autordasfármulas: dará habilidade aos sábios e aosmédicos-mágicos, seus discípulos, para curarda doença aqueles que Deus deseja manter vi-vos".

Isto poderá parecer absurdo somentepara aqueles que se aferram às suas convic-ções materialistas porque têm medo de selançar ao estudo do desconhecido. Mas nãoassim para os que acreditam, ou melhor,constatam dia a dia a existência de leis natu-rais inexplicáveis para o homem comum, eque acreditam também que, em outras épo-cas, em outras culturas, o conhecimentodessas leis naturais deu ensejo ao surgi-mento de uma verdadeira medicina sa-grada, de uma verdadeira ciência sagrada:sagrada no sentido de possibilitar aharrno-nia entre o interno e o externo, entre o mi-crocosmos e o macrocosmos, entre .0 Ho-mem e o Universo.

Nesse sentido, tudo no Egito era sagrado.Talvez nenhuma civilização tenha buscadotanto essa harmonia. Talvez nenhuma civili-zação tenha mostrado tanto ao ser humanoa sua própria grandeza, indicando-lhe, aomesmo tempo, a adequada dimensão, ojusto limite de sua atuação dentro do vastouniverso de Deus.

Bibliografia Claudine Brelet-Rueff - As Medicinas Tradicionais Sagradas:Edições 70. Lisboa, 1978.A. de Almeida Prado - As Doenças Através dos Séculos. Editor"Anhembi, São Paulo, 1961.

Zitdo Traiano

ASSIMDEUS FALOUAOS HOMENS

~~~------------------------------------- -------------------------------------

- Mario Ferreira dos Santos -

Já haviam despertado as trevas para os la-dos do nascente.

E despertei porque abri os olhos para aluz da manhã.

o silêncio dominava todas as coisas comose elas permanecessem ainda adormecidas.

Na paz do campo, deveria ferir os meusouvidos a clarinada de um galho, e umcanto de pássaros não me surpreenderia.

Surpreendia-me o silêncio; silêncio queme penetrava e me pesava nas pálpebras.

Acordei quando soaram as trombetas doSenhor. Uma brisa suave embalava todas ascoisas e mansamente acariciava o meucorpo porque despertei sem sobressaltos.

Eu também ressuscitava, e vi.E vi que o verde dos campos era mais

aveludado. No céu, um azul muito lavado,longínquo, matizado de um leve cor de rosa,permitia aos meus olhos penetrarem distân-cias sem fim.

Não era mais uma cúpula empoeirada deTHOT 17

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luz, e tudo me parecia estranho; porque eratão diáfano, tão profundo, que não haviamais distâncias para os meus olhos.

Por que, por que era tão diferente omundo?

É que já haviam soado as trombetas doSenhor.

E de todos os horizontes um rumor veioaté mim. Eram vozes que entoavam hinos.

E cercavam-me milhões e milhões de se-res como eu, e todos volviam 'os olhos paraaquela voz luminosa que atravessava todasas distâncias e' nos aproximava do infinito.

Nunca poderei descrever o que senti anteaquela imensa luz que escurecia a luz dosol. Senti invadir-me um frio agradável quenão me enregelava.

E havia cores inéditas para os meus olhos.E ouvi um som maravilhoso, ante o qual, oque valeriam os sons harmoniosos de umnobre violino?

E não me sobressaltei, quando aquela luzimensa falou:

- Homem, chegou o tempo dos tempos,e estás nos umbrais da Eternidade. Eu sou aEternidade ...

Ante o Senhor, eu deveria ter caído dejoelhos. Deveria, humilde, elevar até ele osbraços, e pedir-lhe piedade.

Eu estava ali para ser julgado, pois soarao Juízo Final.

Mas o Senhor tornou a falar:- Homem, não deves temer a Eternidade.

Não quero de ti o gesto de quem pede.Nunca de teus lábios deveriam ter saído aspalavras que pedem, nem os lamentos dosqueixosos da vida.

Se, em vez de pedir, tivesses tomado davida o que precisavas, não 'estarias agoratremendo na minha presença.

O meu interrogatório será breve e rápidaa minha sentença. Em ti eu julgarei todos osteus semelhantes.

Por que não acreditaste na minha ver-dade?

Não acreditaste por ser simpres e clara!Sempre temeste a simplicidade, e a minhaverdade era a simplicidade ...

Não sentiste a suavidade do verão percor-rer a tua pele? Não sentiste em tua alma asfolhas secas que caem no outono? Não sen-tiste nas 'tuas carnes os frios do inverno?

Não reverdeceste com o mundo nas pro-messas da primavera?

Tinhas, na alma, todas as almas domundo. Se tudo isso tivesses compreendido,terias vencido a morte! E por que não ocompreendeste?

- Senhor ...- Não precisas responder. Eu sei a tua re-

sposta. Ouve-me: Disseste um dia que osfenômenos no mundo se processava de

acordo com as leis 'da natureza. E estavascom a verdade. E por que não concordasteque havia uma ética na natureza, cujos fe-nômenos observam a regularidade de cer-tas leis? " . Por que criaste uma ética quenegava a natureza? Ouve! Os poderososchamaram bons aos poderosos; os humil-des, aos-humildes; os 'corajosos, aos corajo-sos; e os fracos, aos fracos. Todos os teussemelhantes se consideravam bons. E porque não foram bons?

Quando impotente, inventaste a compla-cência; quando te abaixavas, 'cheio de te-mor, chamaste humildade; quando te su-jeitavas ao forte, a quem temias, chamavasobediência; como não podias vencê-Io, fala-vas em 'perdão.

Por que usaste do meu nome para justifi-car as tuas fraquezas?

Só por temeres os fortes aceitaste o amorao próximo.

Quão poucas vezes conheceste o amor,porque ele muitaves vezes era 'feito demedo. Mas outros nomes deste aos teus sen-timentos, mascarando-os, para que os pode-rosos não compreendessem o teu ódio.

Fizeste do mundo um cárcere, e inven-taste filosofias de carcereiro.

Não disseste muitas vezes que a vida nãomerecia ser vivida?

E por que? Porque te acovardavas ante aexistência.

Por que criaste uma moral de vencido?Por que, em vez de construíres o teumundo, viveste a imaginar outros que julga-vas melhores?

- Senhor, tu és absoluto e podes com-preender o porquê da minha fraqueza ...

- É por isso que te falo. E ouve: detestaos que conduzem e os que seguem. É misterque inspires a ti mesmo a grande emoçãocapaz de inspirar os outros. E uma traição ati mesmo quereres conduzir o teu próprioeu. Deves conquistar-te pela tua própriafascinação.

Afirma-te pela natureza. E, se assim o fi-zeres, os teus olhos verão 'melhor, e ouvirãoos teus ouvidos além dos teus ouvidos.

Procura na natureza as regras para a tuavida. não destruas a ti 'próprio ao te enca-deares nas algemas que criaste.

Chegaste agora aos umbrais da Eterni-dade.

Ouve!:Foi o teu medo que criou a imagem que

de mim fizeste.Os teus filósofos descreveram-me como

um monstro de sabedoria; os 'teus ascetas,como um infinito de ascetismo; os teus poe-tas, como o mais lírico dos poetas, os teusfracos, como o externo da complacência.

Em mim espelhaste sempre as tuas ausên-

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18 THOT

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'que a tua era a minha imagem. Querias fa-zer de mim um impotente ao afirmar que eunão podia fazer o mal nem o nada, como senão fosse o mal e o nada obras da impotên-cia e não do poder absoluto. Unilateral sem-pre em 'tuas concepções, nunca te foi possí-vel compreender os matizes dos meus 'atri-butos.

Não precisavas ser um deus paraentendê-los. Tu, relativo e condicionado,querias ser a imagem do. abs.oluto e d? i~fi-nito. Desejavas, assim, iludir ,a tua h!l1lt~-ção, insinuando a ti mesmo, as tuas mtui-ções, à tua razão, para que se voltasse con-tra ti contra tua condicionalidade,· 'que erasum deus mas desterrado. Criaste a lenda dePigmalião para atirar sobre a divindade a in-fâmia de uma dúvida.

Tu me ofendeste com a imagem que demim criaste. Foste sempre a medida de to-das as tuas coisas.

Mas há em teu orgulho algumas coisa deheróico, quando, nesse orgulho, existe umdesejo de me alcançar.

Admiro sempre aqueles que buscamelevar-se de seu ponto de partida. Mas sem-pre desprezei aqueles que estabelecem umestreito ponto de chegada.

Deves, homem, criar para ti um ponto departida e nunca um ponto de chegada.

Faze de mim um ponto de chegada e fazede ti um ponto de partida. como homem,busca superar-te. Aqueles que te envenena-ram com a loucura de 'atingir os fins, comose os fins existissem antes de mim,tornaram-te difícil a descoberta do cami-nho. Avança além de ti mesmo. a tua felici-dade não é apenas.o bem-estar, mas emsempre te aproximares de mim. e em cad.ainstante do tempo, em cada uma das tuas VI-tórias, sentirás a felicidade da tua con-quista.

Como queres achar-me, se tu ainda nemte encontraste?

Eu te ensino o novo caminho: eu sou adefinitividade sem fim. Buscar-me é o teucaminho. eu estou em cada uma de tuasconquistas, e em cada uma das tuas vitórias,e estou contigo em cada uma das tuas supe-rações. .

Em cada instante que venceres a umesmo em cada momento que deres' umpasso à frente, estaras mais próximo demim.

Estarei ao teu lado quando amares, paraque a tua afeição seja 'mais profunda; esta-rei ao teu lado quando chorares, para que atua dor não te desesperes. Tu me terás aoteu lado em cada uma das tuas vitórias, por-que eu sou a tua vitória.

Busca-te que me acharás.Ouve o meu novo sermão da Montanha:

cias desejadas.No entanto, na vida com que animei o teu

corpo, .estava escrito o 'meu caminho. Sóele poderia levar-te até mim.

Mas outros caminhos preferiste buscar.Procuraste engrandecer a tua pequenez, e aatribuíste a mim. E porque era mesquinha atua interpretação, acusaste-me dos teus er-ros e procuraste destruir-me.

Vou expor-te a imagem que tu, de mim,uma dia fizeste. Segundo a tua interpreta-ção, eu percorri sozinho a imensidade do in-finito, através do infinito do tempo. Nin-guém me acompanhava nessa peregrinaçãoeterna. Sozinho, buscava através da imensi-dão de mim mesmo, e da minha obra.

O teu aplauso chegava até mim tãoínfimo como se areias do deserto 'aplaudis-sem a arquitetura de tuas cidades. Sabesacaso o que sofre um 'ser que não recebe oaplauso de alguém que a ele se assemelhe?E tu, homem, tu que te queixas da tua infeli-cidade, podes encontrar o aplauso dos teussemelhantes.

Vives ombreando com teus pares. para atua vida, para chorar as 'tuas lágrimas, pararir contigo as tuas alegrias, para sofrer,compartilhando a tua dor, tens a compa-nheira que eu te dei.

E eu, eternamente sozinho por entre aimensidão de mim mesmo, estou só na mi-nha glória.

Não há para mim montanhas que atraves-sar, rios que vadear, sombras 'que iluminar,mistérios que decifrar.

Não preciso conhecer a fruição das des-cobertas, o sacrifício agridoce dos que per-dem as noites no estudo .ern busca do co-nhecimento, porque 'sou Deus, e conheçotudo, e as trevas, para mim, são luz; as mon-tanhas 'são rugas do meu caminho, e os rios,veios mesquinhos que nada significam.

Tu proclamas o meu poder absoluto. Tu odeclaras por teus sábios e 'pelos teus filóso-fos, e, no entanto, queres fazer-me limitadona minha 'grandeza.

Nunca compreendeste o meu amor,como se apenas pudesse amar um ser 'infinitocomo eu. Querias que eu permanecesseeternamente na contemplação de mimmesmo, e a embriagar-me da minha própriacontemplação e no amor do meu próprioamor. E que te afastavas de mim com o co-ração, e pensavas que era eu que me afasta-vas de ti.

Quando criaste regimes autocráticos, medescreveste como um autocrata; quandoconstruíste regimes democráticos, fizeste-me um Deus bondoso; quando guerreiro eodiento, fizeste-me um Deus odiento eguerreiro. construíste a minha imagem à tuaimagem, assim como outras vezes julgaste

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1 - Um dia, os homens hão de amar nova-mente o Sol. Há homens que o odeiam,porque lhes anuncia o trabalho fatigante.

A noite, para eles, tem um gosto de liber-tação! Terrível espetáculo o de um mundoassim!

Quando os homens voltarem aos seus la-res com o peito alevantado, o rosto mode-lado por um sorriso, hão de amar nova-mente o Sol ...

2 - Não me afirmam, os que me afirmamem palavras; nem me negam os que em pa-lavras me negam.

Negam-me os que negam-me em atos,embora me afirmem em palavras.

Eu sou aquele pai que se ofende quandoos filhos o renegam pelos atos.

3 - Tornaste o amor pecaminoso. Dei-teo amor, para que ele te embelezasse a vida.Dei-te o céu nas menores coisas e tu o des-prezaste, porque ele vinha nas menores coi-sas. Dei-te o amor, junto à tua carne e juntoao teu espírito, para que suavizasse os teusinstintos. tu o chamaste pecaminoso. Fi-zeste de mim um monstro assexual, paraclamar contra a miséria do teu sexo.Emverdade, eu te digo: o amor dos sexos tam-bém é divino, quando une os homens alémde si mesmos. O amor 'ergue-os e os unealém do tempo. Nega-se a si próprio, e negaa mim, aquele que nega o sexo.

Em verdade te digo: só as almas superio-res sabem amar, e bem-aventurados os queamam porque eles conhecerão o reino doscéus!

4 - Observa os teus semelhantes. Sãomais' desembaraçados para amaldiçoar doque para agradecer. Quando amaldiçoam,as frases saem rápidas, vivas, fluentes.

Mas as palavras são difíceis, torcem asmãos, e humildes, como vencidos, baixama cabeça, sorriem temerosos, entre a tris-teza e a alegria, quando agradecem, reve-lando uma terrível luta interior ...

5 - Já disse um dos teus:"Não é o amor ao próximo que salva os

náufragos, e sim a coragem!"

Que adiantaria o amor ao próximo dequem não pode tornar efetivo esse amor?Deves cultivar a coragem ante a dor, a cora-gem ante o sofrimento, a coragem ante aalegria, a coragem ante o prazer, a cora-gem, altiva e nobre, em cada um dos teusmomentos.. Só depois aprenderás a amar o teu pró-

ximo.Só os corajosos sabem dar. Não conhe-

cem o sofrimento surdo de sua benevolên-cia; pois o covarde, quando dá, procede portemor do castigo divino ou por temor dosoutros homens, ou por astúcia, no intuito dereceber uma paga maior que a dádiva. O co-rajoso dará sem temores.

E, em verdade te digo, bem-aventurados,os corajosos, porque deles será o reino doscéus!

6 - Cuida-te daqueles que olham a vidacom um olhar de sono. Tu sempre dormirásbem quando fores tu mesmo. Quando nega-

20 THOT

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res a ti mesmo, teu sono interrogar-te-á. Astuas angústias serão livres e não uivarão natua alma. Mas para' libertá-Ias, não taparásos ouvidos a fim de não ouvi-Ias, nem delasfugirás para fugires à presença que te des-gosta.

Deves levantar-te com um sorriso, por-que todo acordar é uma ressurreição.

Bem-aventurados os que sorriem, porquedeles será o reino dos céus! .

7 - Se na hora da fortuna esqueces osteus amigos, como queres que se lembremde ti na hora da amargura?

8 - Aquele que deseja a felicidade sem oesforço, é como o que atira fora a noz por-que dura é a casca ...9 - A mãe ama o filho porque sofre para lhedar a vida e para conservá-Ia. Tudo quandofacilmente obtens, tens perdido. As dores,as lágrimas, as dificuldades foram a medidade valor de todas as tuas coisas.

10 - Virtuoso não é o que faz o bem por-que teme o castigo; virtuoso não é o quepratica o bem porque será premiado; vir-tuoso não é o que realiza o bem porque nãotem propensão para o mal. Virtuoso é O te-naz, é o forte, é o que vence, é o que exe-cuta a sua vontade, é o que dirige os seusimpulsos, é o que estabelece um ideal, e obusca.

É o delicado para com os fracos, enéer-gico para com os covardes, humilde paracom as crianças, digno para consigo pró-prio.

11 - Homem, um dia cansaste de crer.Tantas foram as mentiras daqueles que fala-ram em meu nome, que fechaste os ouvidosa todas as vozes que anunciavam um "alémde ti mesmo".

Mas quando sofres um desejo de um im-possível; quando não consegues vencer a di-ficuldade que pensaste superar, quandouma insatisfação te oprime o peito e te ar-ranca um suspiro, podes conformar-te coma tua morte. Podes ter um sorriso estóico eindiferente. Mas dentro de ti uma voz cla-mará, e precisarás amordaçá-Ia. E por quenesses momentos não interrogas a ti pró-prio, se existe em ti ou não, o que clamacontra a falta, o que pede para vencer astuas derrotas?

Não ouviste essa voz?Sou eu, em ti, que falo, e por que não me

queres ouvir?12 - Como encontrarás o sobrenatural se

tu nem sequer soubeste encontrar a natu-reza?

13 - Quantos atos de bondade deixariasde realizar se não tivessem testemunhas?

14 - Rebelam-se contra as regras os quenão podem cumpri-Ias. A virtude só égrande quando difícil.

15 - Não conduzas e não serás condu-

zido.Deves temer até conduzir a ti próprio.

Perde-te em tua própria floresta para que teaches. E empreende tua busca como quemfaz uma conquista.

Bem-aventurados os que conquistam a simesmos, porque deles será o reino dos céus.

16 - O que recebe, louva sempre o desin-teresse de quem dá.

Os que nada pedem á vida, os que não sequeixam da vida, os que não se cansam debuscar, têm sempre um gesto desdenhosoquando acham, quando obtêm, quando so-frem.

Chamaste de verdadeiro tudo quanto tefoi útil, tudo quanto correspondeu aos teusdesejos. Ao vento que saculeja a árvore eatira ao chão a fruta madura, para que tu aapanhes sem esforço, chamaste de bom ...

Não precisarei dizer mais para mostrarquão mesquinho é o teu conceito do verda-deiro, do bom, do útil?

17 - Se o mundo não for cada dia dife-rente é que tens a morte dentro de ti.

Bem-aventurados os que trazem dentrode si a vida, porque deles será o reino doscéus!

. 18 - A virtude dos pessegueiros são ospêssegos. A virtude dos mares o seremimensos; dos tigres, a crueldade; a astúcia, adas raposas. Só tu julgaste que a virtude nãoconsistia em ser instintivamente humano!

Em verdade te digo:Bem-aventurados os que não se negam,

porque deles será o reino dos céus!19 - Quão infeliz terias sido, se um dia eu

te tirasse o esquecimento!20 - Chamaste grandes aos que não pe-

cam por temor do castigo, da consciênciaou do remorso. Como chamarias àquelesque não pecam porque não querem?

Bem-aventurados os que não pecam por-que não querem, porque deles será o reinodos céus!

21 - A rã não acredita num mais além doshorizontes ...

Por que tu não vais acreditar num maisalém dos teus horizontes?

22 - Tu agradeces à vida quando te fazemum bem? Então por que te queixas da vidaquando te fazem um mal?

23 - Que seria de ti se não houvesse osque amam o perigo? Quem atravessaria osmares, as terras desconhecidas, quem galga-ria os cumes das montanhas? Quem se apro-fundaria nas entranhas da terra? Quem de-vassaria os espaços e quem penetraria nasselvas do conhecimento em busca de novasverdades?

Quem se entregaria ao afã das descober-tas, no silêncio impregnado de mistério doslaboratórios, se não houvesse os que amamo perigo?

THOT 21

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Em verdade te digo:Bem-aventurados os que amam o perigo,

porque deles será o reino dos céus!24 - Benditos os miseráveis que guardam

para si as suas misérias.25 - Um olhar de eternidade, homem, é o

de que careces para a altivez de teus olhos!26 - A bondade manifesta-se no impre-

visto da generosidade.Só podem dar os que têm. E quem tem é

mais do que si próprio. Deves por isso, amaro "além de ti mesmo", para poderes conhe-cer a 'felicidade de quem dá.

Em verdade te digo:Bem-aventurados os que vão além de si

mesmos, por que deles será o reino doscéus!

27 - Não tenho virtudes, porque souquem sou.

Virtuoso é só quem vence os seus defei-tos, e eu não os tenho. É fácil ser bomquando a bondade é agradável, e eu não ad-miro os justos que não podem ser injustos.

Quero-te como és, mas vencedor de timesmo, porque em verdade te digo:

Bem-aventurados os vencedores, porquedeles será o reino dos céus!

Enganam-se que servem os que sacrifi-cam a vida para me servir; enganam-seque me amam, os que odeiam os outrospara amar-me; enganam-se que me honram,os que buscam a solidão para me encontra-rem ...

Nunca pedi desses servidores, pois nãoseria Deus se deles carecesse.

Eu sou a Eternidade. Volta para junto deteus semelhantes e repete-lhes estas pala-vras que traduzi na imperfeição da tua lín-gua:· "Quiseste um mundo melhor do queaquele que te dei. Dizes saber como deveriaser esse mundo; proclamaste até que feitopor ti, ele seria melhor.

Se sabes construir a felicidade, por quenão a constróis?, Não conheces acaso as leis do teumundo? Não dominaste as distâncias? Nãoacorrentaste o raio e tornaste inofensivo otrovão? Não soubeste arrancar do seio daterra o alimento para os teus? Não cons-truíste cidades imensas de cimento e deaço? Não tiraste do âmago da terra a forçaque te poupa o esforço? Não aumentaste nodecorrer de séculos o teu poder mil vezesmais? Por que não realizas o teu mundo?Por que não fazes a tua Terra Prometida emvez do "meu vale de lágrimas"? Não te con-sideras inteligente, poderoso, forte? Poismostra a tua força, o teu poder, a tua inteli-gência.

É pelo menor esforço que desejas que eu,como um dos teus mágicos, transforme ascoisas num golpe de mágica.

Queres ter à tua mão o fruto que não co-

lheste. Não, homem! Conquista por ti pró-prio o mundo que desejas. Dar-lhe-ás de-pois, quanto mais lágrimas e mais dor ele teexigir, mais valor pelo que te custou! Nãodestruirei' a minha obra tornando a ti,poeira de uma poeira, maior do que mere-ces. Dei-te a inteligência para poderes ven-cer em tua luta. Que fizeste dela? Por quenão a usaste para o bem? Cansaste agora deusufruir o teu poder, e como temes os maisfortes do que tu, pedes-me que os torneiguais a ti.

Se eu fizesse o mundo como desejas,sentir-te-ias mais infeliz do que és hoje, por-que te cansarias logo da tua felicidade. Dizeainda aos teus semelhantes estas minhas úl-timas palavras:

Homem, voltarás a ser tu mesmo, e im-prescritivelmente viverás a tua vida. E con-tinuarás comendo o pão com o suor do teurosto. O imensamente grande e o imensa-mente pequeno da tua vida tornarás a vivê-los.

Cada sofrimento e cada alegria tua hãode encher de lágrimas outra vez os teusolhos e fazer sofrer o teu peito e hão de ou-tra vez desabrochar o sorriso do teu rosto eaprofundar a tua respiração. E, assim, im-prescritivelmente ... E terás outra vez o solque admirarás e adorarás, porque ele carre-gará de frutos maduros as árvores que plan-tares, e de calor o teu corpo que tremeránas noites frias. Outra vez a lua há de empa-lidecer nas noites escuras e sugerirá a eclo-são dos teus sentimentos e dos teus afetos.Outra vez ouvirás o ritmo das horas quepassam, marcando o teu tempo. E admira-rás os campos soltos, as manhãs claras,cheias de luz e de vozes de pássaros, e terásas sugestões misteriosas que se esconderãonas sombras das noites sem luz, outravez ...

Homem, vive e compreende o teu des-tino. E verás, então, que, mais uma vez, háde desabrochar no teu rosto o sorriso daalegria que procuraras, e há de doer menoso teu peito.

Ouve: que o sofrimento não seja para sempre a tua preocupação. É mister que o vejasem função da tua alegria. Não rirá nunca oteu rosto antes que se tenha um dia retor-cido pela dor.

Só poderás gozar a felicidade da incer-teza quando compreenderes ser a dor a an-tecâmara da alegria. Ama a contradição detua vida, porque ela afirma. Não modeles atua existência na estreiteza dos sonhos datua fantasia nem da tua realidade.

Nega os fatalismos para afirmar o teuquerer. Lembra-te que há destinos que seforjam, como tu forjas as tuas espadas. Ca-reces da consciência de tua força e não te-mas usá-Ia. Só assim te elevarás acima de ti.

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Page 7: ASSIM DEUS FALOU AOS HOMENS - palasathena.org.br 1982 N.24/Assim... · pertenço aRá. Ele disse: "serei eu quem prote-gerá o doente de seus inimigos. Thot será oseu guia, o que

Arisfocnlciae Democracia

Acreditaste no fim, porque viste o fim dascoisas, e elas se transformam.

Acredita na tua eternidade, e já terás comisso conseguido superar um pouco a tua li-mitação.

Que as minhas palavras te sirvam para ofuturo. Falei-te com a simplicidade de tualíngua, e espero não mais ouvir as tuas quei-xas que aborrecem os meus celestiais ouvi-dos!

Todas as imagens que de mim criastetomam-se ridículas e ofensivas. Não critica-rei a tua maneira de me conceber. Não souo Deus que exige a cada instante um sacrifí-cio, que, a cada momento, quer os teuspensamentos voltados para mim. Não seriaDeus se carecesse de sacrifícios para poderaplacar a minha ira, nem me ofendo porprocurares descobrir quem sou. Em cadauma das tuas épocas terás de mim uma defi-nição, e esta nunca há de te satisfazer. Masouve: precisamente por isso deves te ale-grar.

Farás de mim tantas imagens quantos osteus instantes, na vida. Em vez de me defini-res, ensinar-te-ei a maneira de me encontra-res. Busca-me ... É nessa busca que me te-rás a teu lado. Quando me atingirás? Que teinteressa saber o quando, se mal iniciaste ajornada? Põe-te a caminho. Realiza a timesmo, sempre além de ti mesmo. Com istote aproximarás de mim. Eu estarei em todasas épocas, sempre distante eu serei o teuideal. Em vez de procurares toransformar-me em ti, homem, transforma-te em mim.

Não me definirás mais pelas tuas qualida-des, mas procurarás a tua definição pelosmeus atributos. É esse o caminho que in-dico, e que te levará até mim. Vai!

Mário Ferreira dos Santos(Extraído do livro "Assim Deus Falou

aos Homens"; Livraria e Editora Logos,São Paulo, 1959)

(dezembro/74)Devido a alternativas semânticas sofridas

no transcurso do tempo, estes vocábulos pa-receram ter significados opostos. A partici-pação de todos na coisa pública foi denomi-nada democracia (embora, como forma degoverno, o nome correto fosse república), e,como tal, se confrontava com a participa-ção de apenas uns poucos, o que se denomi-nava' aristocracia ou, também, oligarquia,termos estes que se usam indistintamente, oque tampouco é correto. A democracia -em linguagem superficial e convencional -costuma assim representar o contrário daaristocracia. Isto porém, requer uma maioratenção, já que por trás de um falseamentosemântico se esconde sempre um falsea-mento conceptual e entram em jogo princí-pios fundamentais.

Se por aristocracia entendemos umaclasse social que por sua linhagemencontra-se investida de numerosos privilé-gios, entre eles o de governar, sendo estes

Jorge L. Garcia Venturini

privilégios hereditários e inalteráveis, nãoimportando quais sejam os verdadeiros va-lores éticos ou a efetiva capacidade para go-vernar, é certo que a democracia (e a repú-blica) lhe são contrárias. Mas ocorre quearistocracia significa também e fundamen-talmente "o governo dos melhores" (áristossignificá, em grego, o melhor), e neste sen-tido a democracia não tem por que opor-seà aristocracia - a menos que se deseje algoque não se deveria desejar, ou seja, o go-verno dos piores. Não obstante, a incúria nalinguagem, que nos faz dizer às vezes o quenão queremos dizer, tem-nos levado commuita freqüência a associar aristocraciacom oligarquia, que não é o governo dosmelhores mas o de uns poucos (e, segundoseu tradicional sentido, o governo "egoísta"desses poucos), fazendo confrontarem-sedemocracia e aristocracia, no elevado sen-tido deste termo.

E como a linguagem nos condi ciona eTHOT 23