as raizes negadas da teoria do capital humano

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    Sociologias, Porto Alegre, ano 6, n 12, jul/dez 2004, p. 230-273

    DOSSIARTIGO

    As razes renegadasda teoria do capital humano

    We hold these truths to be self-evident, that all men are created equal, thatthey are endowed by their Creator with certain unalienable Rights, thatamong these are Life, Liberty and the pursuit of Happiness. That to securethese rights, Governments are instituted among Men, deriving their justpowers from the consent of the governed, That whenever any Form ofGovernment becomes destructive of these ends, it is the Right of the Peopleto alter or to abolish it, and to institute new Government, laying its foundationon such principles and organizing its powers in such form, as to them shallseem most likely to effect their Safety and Happiness.The unanimous Declaration of the thirteen united States of America.In

    Congress, july 4, 1776.

    Se a universidade no uma mera fbrica de graus acadmicos ou umaescola pr-vocacional que representa os estreitos interesses de uma classeeconmica especializada, mas esse servio intelectual e cientfico pblico quequeremos que seja, seu governo deve diferir de uma companhia de minera-o e a situao dos professores diferir da de um empregado de ferrovia. Osprofessores devem contar com alguma segurana em seu posto.

    Randolph Bourne, jornalista e militante anarquista, ([1915] (1965, p. 75) .

    If any workman were to find a new and quicker way of doing work, or if he

    were to develop a new method, you can see at once it becomes to his interestto keep that development to himself not to teach the other workman thequicker method. It is to his interest to do what workmen have done in alltimes, to keep their trade secrets for themselves and their friends. That is oldidea of trade secrets. The workman kept his knowledge to imself instead ofdeveloping a science and teaching it to others and making it public property.Frederick Taylor. Taylors Testimony before the Special House Cometee.1912.

    RENATO P. SAUL*

    * Socilogo, professor titular jubilado da UFRGS. Endereo eletrnico: [email protected]

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    teoria do capital humano resultado, na perspectiva deMark Blaug (1985, cap.13), de um programa de pesquisa,uma vez que no possvel associ-la a uma nica teoria.O ncleo desse programa consiste na idia de que o indi-vduo gasta em si mesma de formas diversas, no apenas

    buscando desfrutar o presente, mas procurando rendimentos futuros,pecunirios ou no. De acordo com Blaug, a teoria foi anunciada por

    Theodore Schultz, em 1960, e seu nascimento efetivo teria ocorrido em1962 em suplemento da revista cientfica americana Journal of PoliticalEconomy, dedicado ao tema do investimento em seres humanos. Em outrotexto (1986, p. 691-2), Blaug localiza as fontes primrias da teoria em AdamSmith, em Alfred Marshall e nos estudos de Irving Fisher, economistaneoclssico americano, que a teria exposto em 1906, no livro The Nature ofCapital and Income. Reprints of Economic Classics. Fisher teria adotado ateoria do capital de Walras, entendendo por capital todo o conjunto de

    riquezas existentes em um determinado tempo e que possibilitam o fluxode servios nesse tempo, trate-se da terra, das mquinas, das matriasprimas, de recursos naturais e das qualidades do homem. O fluxo de servi-os durante um perodo de tempo consistiria na renda.

    Lars Nerdrum e Truls Erikson (2001) acrescentam relao de fontesda teoria o nome de William Petty, como o primeiro economista a enfatizaras diferenas de qualidade do trabalho e a identificar o que, mais tarde,viria a ser conhecido como capital humano, quando defendeu a incluso do

    valor do trabalhador nos registros atuariais. Nerdrum e Erikson sustentamque a noo de capital de Fisher a fonte primria da teoria moderna docapital humano, na forma em que ela surgiu, no fim da dcada de 1950.Trabalhando separadamente e a partir de perspectivas diferentes Jacob Mincere Theodore Schultz seriam os autores que, partindo de Fisher, entenderiamo capital humano como um capital independente do capital convencionalem relao s caractersticas econmicas e produtivas de um pas.

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    zado pelas empresas. Tambm deveria incluir-se a educao formal, emseus diferentes nveis. Tambm incluam-se a os programas de educaode adultos, no organizados por empresas, incluindo os programas de ex-tenso, principalmente na agricultura. Por ltimo, mas no menos impor-tante, Schultz citava o processo de migrao de indivduos e de famliaspara ajustar-se s oportunidades de emprego, em constante transformao.

    Para Schultz, o equvoco em desconsiderar os recursos humanos como

    uma forma de capital, ou seja, de v-lo como um meio de produo, comoum produto de investimento, fomentou a sustentao de uma clssica esuperada noo de trabalho, na economia em geral. Essa noo correspondiaa entender o trabalho como a capacidade de realizar trabalho manual queexigisse escasso conhecimento e especializao. De acordo com essa for-ma de ver o trabalho, os trabalhadores eram pensados como uniformemen-te dotados. Entender o trabalho como medida de um fator econmico des-sa natureza seria no menos sugestivo do que contar as mquinas para

    determinar a sua importncia como capital ou como fluxo de servios pro-dutivos. Essa noo de trabalho estava equivocada no perodo clssico eest evidentemente errada agora (Ibid., 1961, p. 3).

    Os estudos sobre capital humano difundiram-se com extraordinriavelocidade nos Estados Unidos, principalmente, mas tambm em outrospases. Em 1962, era divulgado um conjunto de estudos sobre o tema e,em 1963, surgia o primeiro livro texto de autoria de Theodore Schultz: Theeconomic value of education. Comentando a reao positiva ao tratamento

    econmico da questo educacional, Mark Blaug, em 1968, na introduode um volume institulado Economics of Education, identificou, no fenme-no, uma espcie de revoluo silenciosa processando-se rapidamente nosobjetivos dos estudos sobre o crescimento econmico: a economia daeducao com seu conceito de capital humano transformou rapidamentegrandes reas da economia ortodoxa, para emergir em 1960 como uma dis-ciplina madura por seu prprio direito (1971, p. 7). Em 1964, a discusso

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    ampliava-se com uma outra obra que passaria a ser referncia obrigatria nocampo dos estudos sobre investimentos na formao dos trabalhadores, nasade, na migrao, etc. Tratava-se de Human Capital, de Gary Becker.Becker e outros desenvolveriam a seguir estudos sobre a economia da fa-mlia, utilizando como base do programa de investigao a teoria do capitalhumano.

    Em 1980, Mark Blaug (1985, p. 264-6) fez uma avaliao da trajetria

    da teoria do capital humano. Uma vez que um programa marxista de inves-tigao sobre o assunto no chegava, no seu entendimento, a alcanar ateoria do capital humano em seu prprio terreno, a soluo era realizar ojulgamento da teoria em seus prprios termos. Neste sentido, Blaug enten-dia que a teoria se encontrava em situao crtica, em virtude de no ofere-cer uma explicao convincente sobre a demanda privada de educao,por no examinar esquemas de financiamento da educao, no conside-rando a propriedade pblica de escolas e universidades, por no levar em

    conta o papel da aprendizagem gratuita atravs da prtica, desprezando osestmulos dos mercados internos de trabalho, por no oferecer clculosaceitveis a respeito das taxas de rendimento entre os diferentes tipos deinvestimentos na formao de capital humano e tambm em razo de quea retomada de clculos para rever resultados contraditrios das anlisesterminavam por fazer degenerar o programa de investigao.

    Mas nem tudo era negativo no balano feito por Blaug. De uma par-te, o programa se havia afastado de algumas posies marcadas pela inge-

    nuidade e avanara resolutamente na abordagem de temas no tratadospela economia, como a questo da renda pessoal. Por outra parte, o progra-ma havia revelado a conexo entre fenmenos tradicionalmente abordadosseparadamente, como, por exemplo, a correlao descoberta entre a edu-cao e os rendimentos em idades concretas, mostrando que seriam resul-tantes de decises individuais. E, nesse ponto, Blaug (ibid., p. 254) ressaltaa dominncia do individualismo metodolgico nos principais investigadores

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    do programa. Ou seja, a idia de que os fenmenos sociais podem edevem ser pensados como tendo seus fundamentos no comportamentoindividual, e que a formao do capital humano deve ser concebida emtermos de decises de indivduos que atuam em defesa de seus interes-ses prprios. Nas escolhas individuais reside mesmo a quinta-essncia dainvestigao sobre capital humano.

    Um fato era destacado por Blaug para indicar uma circunstncia im-

    portante da relao entre economia e investimento na formao do traba-lho, no contexto da sociedade americana, demonstrando que o conceitode capital humano, tal como era desenvolvido por Mincer, Schultz e Becker,estava fundado na perspectiva do clculo privado. O fato em questo erarelativo totalausncia de solues governamentais quanto formaoprofissional, pelo menos at 1968. Qual o sentido real dessa observao deBlaug, alm de seu propsito de justificao do uso do individualismometodolgico na base da teoria do capital humano?

    A relao entre a esfera privada e a formao profissional, a realiza-o da pesquisa cientfica e do desenvolvimento de novas tecnologias, nasociedade americana, bastante estreita e de longnqua data, muito em-bora nem sempre merea a ateno devida. Nesse sentido, pode-se to-mar em considerao os estudos de Loren Baritz (1961) cujo ncleo depreocupaes foi o de tentar estabelecer o papel dos intelectuais nasatividades produtivas, em especial da integrao de diferentes categoriasde cientistas sociais vida industrial americana, principalmente a partir

    dos anos 20 a 30, do sculo passado.As observaes de Baritz fornecem uma pista bastante slida no ape-

    nas para desvendar o processo atravs do qual, na sociedade americana,operou-se a articulao entre as empresas e as universidades, mas tambmpara entender a evoluo de algumas situaes nas relaes de trabalho quesugerem uma forma de balizamento da elaborao da teoria do capital huma-no. Tomando em conta as consideraes de Baritz no captulo primeiro de

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    seu livro observa-se que os empresrios americanos, devido ao paternalismodominante nas relaes industriais, tardaram um pouco a perceber qual era oseu papel nas transformaes que se operavam na economia, em fins dosculo 19. O aumento progressivo das empresas, o processo de burocratizao,de especializao e de disperso do controle que experimentavam entodeixavam os empresrios desorientados e inseguros, tardando em se daremconta do fato de que o conhecimento das relaes sociais era to importante

    quanto a habilidade tcnica. A compreenso de que o conhecimento dohomem e as relaes humanas eram decisivas tambm no plano econmicos gradualmente se difundiu entre os grupos empresariais.

    Alm do desenvolvimento interno das empresas, um fato que contri-buiu para aumentar a confuso do empresariado e apressar a busca de solu-es fora da fbrica para seus problemas internos foi a organizao sindical ea mudana na ideologia dos trabalhadores, que passavam a pressionar nosentido do reconhecimento do valor dos trabalhadores como homens. A

    esse fato se somou o grande contingente de trabalhadores americanos queforam incorporados ao exrcito, por ocasio da Primeira Guerra. A reduodo mercado de trabalho reforou ainda mais a ao dos sindicatos. A buscade postos de trabalho no meio industrial, por parte de grandes grupos deuma segunda gerao de imigrantes mais bem adaptados vida americana,tambm funcionou no sentido da exigncia da adoo de novos tipos detratamento nas relaes de trabalho. Foi por essa poca, aponta Baritz, queos empresrios comearam a acreditar em que o comportamento humano

    poderia repercutir na atividade produtiva e pensaram em incluir a mquinahumana em seus clculos (op. cit., p. 34-5). A busca de especialistas emquestes de comportamento nas universidades projetou-se como a possibi-lidade de criar uma nova situao para o controle das empresas.

    A participao de especialistas no ligados diretamente ao campo eco-nmico e atividade industrial iria reforar as expectativas e a confiana dosempresrios na utilizao de profissionais das cincias sociais como coadju-

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    vantes da organizao das relaes sociais dentro dos seus estabelecimen-tos. Os socilogos, antroplogos, psiclogos e outros especialistas, comopesquisadores integrados na busca da soluo do problemas das relaeshumanas, passavam a assumir, assim, funo decisiva na reorganizao dasrelaes de poder no interior das empresas e assegurar a imagem dehumanizao das relaes de trabalho perante a sociedade.

    O primeiro passo significativo nessa direo foi o uso da teoria da

    gerncia cientfica, desenvolvida por Frederick Taylor, que Bell entendia sera provvel maior responsvel pela instaurao de modelos tcnicos na ativi-dade industrial e, como tal, uma das grandes patrocinadoras da concepotecnocrtica segundo a qual as coisas conduzem os homens (Bell,1973,p. 352). As experincias de Taylor comearam a ser conhecidas em fins dosculo 19. Em 1903, ele divulgou uma memria sobre a organizao cien-tfica nas oficinas e, em 1911, publicou seus Princpios de administraocientfica, proporcionando a mudana de direo decisiva e definitiva no

    comportamento do empresariado americano e, ao que tudo indica, abriu ocaminho para a penetrao das cincias sociais na estratgia empresarial.De acordo com Baritz (op. cit., p. 60-1), a substncia da noo de gernciacientfica se estabelecia a partir da idia de que o sistema produtivo deveriaobedecer a determinadas normas e ser funcional. A maneira de colocaresta diretiva em prtica era a subdiviso das tarefas nas menores unidadesde tempo e movimento que fossem possveis, para combin-las comomtodos de gastos mnimos. As destrezas no trabalho transferiam-se do

    trabalhador para o empresrio, que as analisaria e as devolveria ao trabalha-dor em parcelas de modo que os trabalhadores jamais voltariam a ser mes-tres em seus ofcios. O aperfeioamento do mtodo taylorista, de inciocomparado por ele mesmo, em conferncias que proferiu em Harvard porvolta de 1909, a uma organizao militar, operar-se-ia por intermdio deuma aliana com a psicologia experimental, inspirada em testes desenvolvi-dos pelo psiclogo alemo Hugo Mnsterberg (Giedion, 1978, p. 114-5).

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    Outro passo seria dado por Henry Ford. Segundo o texto de Baritz(op. cit., p. 67-72), baseado em historiadores que se dedicaram a estudar avida de Ford, ele se teria dado conta do valor dos homens, em 1912, emmeio a um perodo de turbulncia da economia do pas. A famosa jornadade cinco dlares causou sensao no meio industrial e foi justificada porFord como uma participao do trabalhador nos lucros da empresa. Seguiu-se a isso a criao de um departamento sociolgico cujos integrantes se

    dedicavam a investigar a vida que os empregados levavam em casa, obser-vando se seu comportamento era adequado e se sua vida ntima era sadia.O grande sucesso de Ford no sobreviveu crise que se instalou durante aPrimeira Guerra e depresso no ps-guerra, mas, sem dvida, teria com-provado seu ponto de vista, segundo o qual se o empresrio dedicassemaior ateno ao elemento humano de seu negcio, veria aumentar aproduo e o lucro em maior proporo do que se o fizesse atravs daintroduo de novas mquinas. Apesar disso, a sua lio serviu para atrair a

    ateno do empresariado para a importncia da inverso em homens, queum cuidadoso estudo deste fator humano era um bom negcio.

    Em meio depresso de fins dos anos 20, ocorre uma experinciadecisiva no sentido de encontrar as condies ideais de controle e manipu-lao do fator humano na produo. Foi a investigao realizada pelo depar-tamento Hawthorne Works, da Western Eletric Company, o maior projetolevado a efeito no meio industrial do Estados Unidos, envolvendo oramen-to de mais de um milho de dlares. Tal programa, na avaliao de Bartiz,

    influenciou profundamente a cincia social e se converteu em marco dosestudos de sociologia industrial, definindo um campo de trabalho e investi-gao de grande repercusso no meio industrial, o das relaes humanas.1

    A utilizao da psicologia no estudo do comportamento industrialdesenvolveu-se no curso da Primeira Guerra, aproveitando anlises reali-zadas por psiclogos para as foras armadas do pas. Imediatamente aps

    1 Baritz descreve o experimento de Hawthorne Works, nos captulos 5 e 6 de seu livro. Sobre esse experimento e sua impor-tncia, ver tambm Burrel & Morgan, 1998 [1979], p. 130-143).

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    cio a uma fase de grande impulso nos estudos de psicologia aplicada,justificados pelo reconhecimento de uma suposta desorganizao indus-trial. O objetivo principal destas anlises era, em essncia, ajustar os indi-vduos e antecipar suas reaes aos perfis de operrios imaginados pelospatres. O experimento de Hawthorne, conduzido pela Harvard BusinessSchool, sob a direo de Elton Mayo, concluiria, aps vrios anos de an-lises, que elas no produziam resultados satisfatrios. A concluso da equi-

    pe de Mayo foi de que a motivao dos trabalhadores no podia ser ava-liada a partir de informaes individuais, e que o entendimento do seucomportamento tinha que ter como base os grupos sociais com os quais otrabalhador se relacionava na fbrica. Segundo Mayo, a organizao dostrabalhadores era irracional, e a soluo dos problemas referentes faltade lealdade dos trabalhadores para com a direo somente poderia sereliminada atravs da melhor compreenso. Essa soluo deveria reali-zar-se atravs de uma mudana de diretriz dos estudos, da psicologia para

    a sociologia. O enfoque das relaes humanas, que na realidade uniapsicologia e sociologia, seria o embrio de uma srie de experincias emtorno do comportamento social.

    A influncia das experincias de Mayo e sua equipe diminuiria sensi-velmente com a depresso e a emergncia do sindicalismo em Hawthorne.No contexto da Segunda Guerra, a necessidade de controle e orientaodas foras armadas americanas ensejariam novo momento de ascenso dosestudos sobre relaes humanas. De 1946 em diante, assinala Baritz (op.

    cit., p. 314 e 318), a convico empresarial da importncia das questesrelativas s relaes humanas era ilimitada. Em 1954, a aceitao da cinciasocial se converteria em excelente negcio, na medida em que ela setornava essencial para vida industrial.

    Martin Nicolaus (1982, p. 46-7) assinala que um projeto de pesqui-sas realizado com soldados no perodo do conflito, publicado posterior-mente com o ttulo The american soldier, daria origem a uma organizao

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    de pesquisas sociolgicas que teria grande projeo no pas. A SociedadeSociolgica Americana mudou, em 1958, seu nome para Associao Ame-ricana de Sociologia e instituiu uma nova modalidade de formao profis-sional, voltada para o desenvolvimento de pesquisas tecnologicamentesofisticadas com o fim de produzir resultados de interesse para os com-pradores das corporaes e do governo. O ritmo do crescimento das cin-cias sociais aplicadas cresceria de forma extraordinria nessa poca. Isso

    foi resultado, diz Gouldner, de um incremento em investimentos promo-vidos pelo Governo com a finalidade de desenvolver, de forma politica-mente orientada, apoio a atividades de ajuda social, de desenvolvimentoblico e industrial. Gouldner exemplifica mostrando que, em investiga-es na rea da sociologia e nas cincias sociais em geral, foram investi-dos, em 1962, 118 milhes de dlares; em 1963, 139 milhes, e, em1964, 200 milhes (1973, p. 318).

    A expresso capital humano pertence seguramente dcada de 1950,

    parece no haver dvidas quanto a isso. Entretanto, quando se comea aexaminar a bibliografia que informa o texto de Baritz, verifica-se que aproduo de estudos envolvendo a questo do elemento humano na pro-duo industrial cresce e se diversifica a partir da perspectiva das cinciassociais, no perodo de 1913 a 1920. nesse momento que se observa aemergncia da discusso sobre a importncia do comportamento humanono trabalho, com o sentido de torn-lo inteligvel e mais propcio ao contro-le, como manifesta um autor citado por Baritz (op. cit., p. 53, n. 1). Ex-

    presses tais como engenharia humana, elemento humano na inds-tria, gerncia de seres humanos, seleo cientfica de empregados,datam dessa poca. Significativamente, todos os estudos publicados nosEstados Unidos ali referidos so posteriores divulgao dos estudos deFrederick Taylor. De outro lado, Gary Becker, ao definir os crditos de seutrabalho sobre capital humano (1983, p. 27, n. 2), refere, alm do texto deSchultz, de 1961, as anlises de Friedman e Kusnets, Income from indepedent

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    professional practice (1945), de H. Clark, Life earnings in selected occupationsin the U. S. (1937), J.R. Walsh, Capital concept applied to man (1935) e G.Stigler e D. Blank, The demand and supply of scientitic personnel (1957).Sobre o crescimento do interesse pelos estudos em torno da questo, Beckeranota que a bibliografia sobre o tema, em 1957, somava menos de cin-qenta ttulos publicados; em 1964, registravam-se cerca de 450 ttulos, e,em 1970, mais de 1300 (ibid., p. 13).

    Utilizando Gary Becker como elemento de referncia, a idia de ca-pital humano desponta, nos estudos de Bell, como sinnimo de conheci-mento tcnico, com a educao assumindo carter de investimento e fun-o estratgica na definio dos princpios axiais da estrutura da sociedadeps-industrial (op.cit., p. 118, Tabela 1-2; p. 410-1). A trilha desta constru-o terica passa, sem dvida, pelas contribuies de Frederick Taylor emtorno da organizao cientfica do trabalho.

    Para os objetivos deste estudo, irrelevante a polmica que envolveu

    a estratgia de modelos pr-definidos de organizao do trabalho que otaylorismo, primeiro, e sua combinao com o fordismo, depois, represen-taram para a determinao do desenvolvimento econmico e industrialamericano e mundial. A contribuio de Taylor ser tomada aqui em rela-o ao seu contedo terico enquanto modo de pensar o universo do tra-balho industrial, colocando em prtica um mtodo de organizao do traba-lho que, conforme a observao de Lukacs, realiza a decomposio psico-lgica do processo de trabalho e que, ao penetrar a alma do trabalha-

    dor, impe o princpio da racionalizao baseada no clculo (1974, p.102). possvel identificar nos argumentos de Taylor sobre esse processode racionalizao elementos de uma perspectiva importante para a elucidara origem da teoria do capital humano em seus desdobramentos posterio-res, tanto no campo da teoria da organizao empresarial, com a difuso daproduo em massa atravs da articulao taylorismo-fordismo quanto naconformao do determinismo tecnolgico que tender a dominar a con-

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    cepo de sociedade do conhecimento e que impressionar definitivamen-te o campo da teoria sociolgica quanto o da teoria econmica.

    A cincia em lugar do empirismo, a harmonia em lugar da desavena,o esprito de equipe em vez de individualismo, o rendimento timo aoinvs de rendimento deliberadamente insuficiente, o aperfeioamento decada homem para alcanar eficincia e prosperidades mximas, so os cin-co princpios que coroam a concepo de gerncia cientfica (Taylor, 1963,

    p. 126-7). Esses cinco princpios podem ser reunidos em duas questesfundamentais para a consagrao do modelo de organizao do trabalhodesenvolvido por Taylor. A primeira questo diz respeito necessidade deestabelecer uma frmula de disciplina de trabalho que enseje ao empres-rio o controle do trabalhador. A segunda, com base na primeira questo, garantir o controle do conhecimento do trabalhador. Como comentou Gramsciem uma de suas muitas incurses sobre o taylorismo, no existe trabalhofsico puro, a prpria expresso gorila amestrado usada por Taylor, para

    definir o tipo de operrio ideal da organizao industrial. uma metforapara indicar um limite numa certa direo (2000, v. 2, p. 18).

    Esse limite , na realidade, definido pela apropriao do conhecimentodo trabalhador, ou, melhor dizendo, pela transferncia do controle da inteli-gncia do trabalho para a gerncia. Taylor percebe muito bem que o desen-volvimento tcnico da atividade produtiva no se resume a problemas restri-tos ao plano dos instrumentos, ou inveno e inovao sistemticas,como havia ocorrido na sociedade americana, no ltimo quarto do sculo 19.

    Sua preocupao voltava-se para a transformao do homem em mquinaque trabalha, atravs da organizao e do disciplinamento do processo detrabalho. A propsito da relao do taylorismo com as ferramentas, Coriat(1976, p. 96-97) anota que, como mtodo de extrao de mais valia relativa,a organizao cientfica do trabalho se encontra com as ferramentas geral-mente como um obstculo ou, pelo menos, como algo no adequado aosseus objetivos e, nesse sentido, Taylor ir propor a seleo e outros desenhosde ferramentas, com sua adaptao aos diferentes tipos de atividades.

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    Em seu livro sobre os princpios que deveriam reger a administraocientfica, Taylor, havia descrito como se verificava a criao de uma cinciada gerncia, contrastando este processo com o sistema de gerncia usadono passado. Tratava-se de uma atividade que implicava a definio de mui-tas normas, leis e frmulas que s poderiam funcionar adequadamente sedevidamente organizadas e sistematizadas, pelo administrador, dissociando-as da experincia dos operrios. O emprego de informaes cientficas

    assim processado exigia tambm um local apropriado, diferente do espaoda oficina onde os operrios atuavam, local esse em que se realizariam osprojetos e os planos das atividades de trabalho dirias, com as tarefas e suaforma de execuo discriminadas passo a passo com pelo menos um dia deantecipao. Em 1912, Taylor seria levado a depor perante uma ComissoEspecial da Cmara de Representantes sob a alegao de tratar os homenscomo mquinas e fazer da produo mxima o grande objetivo da empre-sa, ao invs de cuidar da segurana e da satisfao dos operrios. Taylor

    prestou um longo depoimento, procurando justificar a adoo de seus m-todos. Disse ele, na parte mais substantiva de sua argumentao:2

    Desejo tornar claro (...) que um trabalho desse tipoempreendido pela gerncia leva ao desenvolvimento deuma cincia, ao passo que quase impossvel para ooperrio desenvolver uma cincia. H muitos operriosque so intelectualmente capazes de desenvolver umacincia, que tm crebro, e so perfeitamente capazesde desenvolver uma cincia como os que trabalham naadministrao. Mas a cincia de fazer trabalho de qual-quer espcie no pode ser desenvolvida pelo operrio.Por qu? Porque ele no tem tempo nem dinheiro paraisso. (...) Se coubesse a qualquer operrio descobrir ummeio novo, ou se lhe coubesse revelar um novo mto-do, os senhores podem perceber imediatamente que se

    2 As declaraes de Taylor so extradas de seu testemunho Comisso referida, tal como vm reproduzidas em duas fontes:no livro Trabalho e capital monopolista, de Harry Braverman, e do texto organizado por Jos Luiz Orozco, El testimonio polticonorte-americano: 1890-1980).

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    tornaria de seu interesse guardar o descobrimento parasi mesmo e no ensinar a outro o mtodo mais rpido. de seu interesse fazer o que os operrios sempre fize-ram, guardar os segredos do ofcio para si mesmos epara seus amigos. Esta a velha idia de segredos deofcio. O operrio guardava seu conhecimento para simesmo em vez de desenvolver uma cincia e ensin-laa outros, tornando-a propriedade pblica (Braverman,

    1981, p. 105-6; 115-7) (grifo RPS).Na apreciao de Braverman, Taylor revelava com clareza a extenso

    do poder do capital, mostrando que no somente o capital era propriedadedo capitalista, o prprio trabalho tornou-se parte do capital. Para Braverman,Taylor, melhor do que ningum, havia compreendido o princpio de Babbage(1830) sobre a diviso do trabalho mental. Estudar o processo de trabalhono tinha como meta enriquecer a capacidade do operrio ou fazer delesujeito do conhecimento cientfico, ou, ainda, que ele aumentasse sua

    capacidade com o incremento tcnico. O objetivo era simplesmente fazerbaixar o custo do trabalho, diminuindo seu preparo e fazendo-o aumentar aprodutividade (1981, p. 107). Isso parece ser contraditrio em relao teoria do capital humano, mas, na realidade, no .

    A interpretao de Braverman pode ser complementada com a anli-se do mtodo de Taylor realizada por Alfred Sohn-Rethel (1980, p. 152 e153). Ponto decisivo na frmula taylorista de organizao do trabalho, ob-serva Sohn-Rethel, o fato de que a mensurao do tempo de trabalho e a

    definio dos ritmos de realizao do trabalho no so obtidas empiricamente,atravs da observao da atuao dos trabalhadores na realizao das tare-fas. Os tempos e movimentos so definidos como normas de trabalho squais os trabalhadores devero adaptar-se. A coero temporal, ou seja, ominucioso controle do tempo, condio principal da cincia da adminis-trao empresarial. Os conceitos de tempos e movimentos so utilizadoscomo categorias tecnolgicas e no considerados em termos de trabalho

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    humano. Assim, na concepo de Taylor, diz Sohn-Rethel, o trabalho hu-mano transformado em uma entidade tecnolgica, homognea maqui-naria e diretamente adaptvel a ela, podendo ser includo e transformadonela sem nenhum dificuldade. A submisso econmica da fora de traba-lho ao capital complementada com a sua submisso fsica e tecnolgica.Este o ponto de partida do processo que nos leva automatizao dotrabalho humano no sentido tcnico preciso do termo.

    Em outra oportunidade, Sohn-Rethel, reforou suas observaes nes-se sentido. As medies do sistema Taylor derivavam da parte mecnica etecnolgica das atividades consideradas. Dessa forma, os estudos de tem-pos e movimentos realizados com sucesso representavam a fuso detecnologia e trabalho, os movimentos da mquina so medidos em termosde trabalho e os movimentos do trabalho em termos da mquina. Destemodo, o princpio da socializao estrutural do trabalho, partindo de umasimples gradao em menor ou maior, ganhou a qualidade de uma nova lei

    econmica (1982, p. 47). Isto , as condies de reintegrao do trabalhoatomizado na produo no obedeciam aos padres de valor da troca demercadorias. A produo em massa por meio do fluxo contnuo, introduzidapor Henry Ford, em 1922, iria acrescentar um dado crucial a essa equao.

    Os pontos levantados por Sohn-Rethel, a respeito do sistema fordistacombinado com o sistema taylorista, destacados a seguir, so fundamentaispara estabelecer a provvel linha de articulao entre esta socializaoestrutural do trabalho e a teoria do capital humano.

    Em conformidade com a anlise de Sohn-Rethel, a contribuio es-sencial da correia de transmisso

    a fixao de um padro de ritmo comum a todas asoperaes parciais, ou a seus elementos manuais. (...)A razo da significao econmica inerente sua fun-o reside na combinao de mquinas e trabalho efe-tuada pela correia, na ligao das funes manuais dos

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    trabalhadores com as funes da mquina. com basena unidade de medida de ambas. (...) A igualdade deritmo imposta pela correia recai sobre os trabalhadorescomo um fato consumado (op.cit., p. 48).

    Na situao anterior da organizao do trabalho, com o trabalho indivi-dual executado em processos produtivos que no se relacionavam mutua-mente, a falta de ligao na produo devia ser compensada por alguma

    forma de comunicao que supunha um relacionamento entre os trabalha-dores e a indstria com base em propriedades, ou seja, entre todas aspessoas enquanto proprietrios privados. No sistema taylorista-fordista, aforma de organizar o trabalho alterava-se substancialmente. Ento a

    socialmente indispensvel quantificao e medida dotrabalho e do tempo de trabalho ocorrem indiretamen-te e no em termos de trabalho, mas em termos daenigmtica categoria do valor (...). Fundamental a essa

    estrutura uma direta quantificao e mensurao dotrabalho efetuado no processo de trabalho da produ-o, e em seus prprios termos. uma medida no dotrabalho em si, mas do trabalho em conjunto com atecnologia e dela dependente com a qual se combi-na na produo, e em resposta frmula da unidade demedida das funes humanas e tecnolgicas em suaaplicao produtiva combinada. Esta frmula permite ouso da automao (ibid., p. 48-49).

    O tempo de trabalho, que era um valor social porque era medido,no pelo tempo de trabalho efetivo que exigia do trabalhador individualpara produzir determinado objeto, mas pelo tempo socialmente necessriopara a sua produo, definindo a magnitude de valor desse objeto, no siste-ma de Taylor e Ford, essa avaliao do tempo trabalho socialmente neces-srio passava a ser feita com base na relao entre trabalho e tecnologia. Otempo de trabalho socialmente necessrio passa a ser um tempo cientifica-

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    mente estabelecido, fora do processo de trabalho. nesse sentido que otrabalho estruturalmente socializado ter a fora de uma lei econmica.

    Taylor tinha a convico, e reiterava isso em diferentes momentos, deque ele havia proporcionado uma transformao decisiva para a sociedadeindustrial, no apenas com a criao de uma cincia do trabalho, mas aoperacionalizao de uma verdadeira revoluo nas relaes entre capital etrabalho. Geralmente subjacente enumerao das vantagens do seu siste-

    ma, em Os princpios de administrao cientfica est a idia de que eleproporcionava relaes mais amistosas entre a administrao e os emprega-dos. No depoimento prestado Comisso Especial da Cmara de Repre-sentantes, Taylor estabeleceu um paralelo entre a experincia passada e oseu mtodo, sustentando que, no passado, a inteligncia e o interesse deadministradores e operrios se fixava no que se poderia chamar de umaapropriada diviso do plusproduto resultante dos esforos conjuntos. Seusprincpios haviam, entretanto, proporcionado uma revoluo na atividade

    mental, nas duas partes envolvidas na administrao cientfica, fazendo comque elas deixassem de ter a apropriao do excedente como principal pre-ocupao e se voltassem para a busca do incremento desse excedente, demodo que ele se tornasse de tal monta que resultaria desnecessrio realiza-rem-se disputas sobre a forma como seria dividida. Taylor complementasuas observaes sobre a revoluo mental posta em curso pela adminis-trao cientfica de que patrocinaria a substituio da vigilncia receosapela confiana mtua, a converso da inimizade em amizade (Apud Orozco,

    1982, p. 133-4).A forma como Taylor argumenta em sua defesa perante a Comisso

    expressiva de um esforo para amenizar a crueza com que exps suasteorias sobre a administrao dos negcios. Suas idias sobre crescimentoeconmico, observa Coriat (1994, p. 33), tinham em perspectiva uma trans-formao substantiva nos velhos costumes de conduo da economia deum modo geral e no apenas das fbricas. Em muitas ocasies, suas obser-

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    vaes eram contundentes e desmistificadoras das relaes entre capital etrabalho. Algumas frases extradas por Coriat de uma coletnea de textosde Taylor revelam uma clara percepo da importncia de seus estudos euma ingenuidade extremamente angustiante para seus pares.3 Eis algumasdessas frases: A fonte da riqueza no constituda pelo dinheiro, mas pelotrabalho (...) A riqueza provm de duas fontes. Em primeiro lugar, do solo edo que se encontra no solo e, depois, do trabalho do homem (...).

    Quanto necessidade de aumento de produtividade para a acumula-o de capital, antecipando crticas e projetando um futuro inexorvel Taylorsustentava:

    Estas mudanas (da produtividade) so o que interessaao pobre, as que lhe do mais alto nvel de vida e trans-formam os objetos de luxo de uma gerao em objetosde primeira necessidade para a seguinte. (...) Qualquerque seja a oposio e de quem quer que venha, qual-quer que seja a sua forma e a sua importncia, tododispositivo que permita economizar trabalho acabarimpondo-se; este um fato histrico (Apud Coriat,citado, p. 34 e 35).

    Nos Estados Unidos, a subsuno real do trabalho ao capital (para usartermos da anlise marxiana), ou a socializao objetiva do trabalho (parausar a terminologia de Ernest Mandel), se concretizar na medida em que otaylorismo e sua concepo de eficincia se expandirem, tanto em relao

    ao processo de trabalho quanto ao controle do conhecimento do trabalho.Isto , o modo de realizar a revoluo mental pretendida era a apropria-o, ou publicizao, nos termos de Taylor, do conhecimento dos traba-lhadores. Este processo ganharia ainda maior extenso e profundidade coma contribuio de Henry Ford.

    3 Origem das frases, segundo Coriat, a edio das obras principais de Frederick Taylor, Scientific Management, publicada porGreenwod Press, Wesport, Connecticut, 1972.

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    Hilferding (1973, p. 344 e 350), registrou, no incio do sculo 20, quea unio entre o capital industrial e o bancrio converteu-se num dos fatoresmais importantes para estimular formas de organizao mais sofisticadas naAlemanha e nos Estados Unidos. Neste ltimo pas, em razo do seu vastoespao econmico, a fuso patrocinou grande especializao de estabeleci-mentos e um desenvolvimento industrial extraordinariamente rpido. Noperodo de 1910-1930, a projeo do taylorismo e do fordismo define o

    primeiro momento de crescimento exponencial da produo em massa.Segundo Coriat (1976, p. 141), este momento marcado por alguns acon-tecimentos decisivos na configurao da economia americana e mundial: aintensificao do processo de trabalho e da escala de produo no encon-tra paralelo em outras pocas, a nova organizao do trabalho alcana aproduo de meios de subsistncia da classe trabalhadora e o salrio expe-rimenta elevao importante, tanto nominal quanto real.4

    A vulnerabilidade deste crescimento ficaria evidente em fins da dca-

    da de 20, mas a combinao taylorismo-fordismo seria ponto fundamentaldo desenvolvimento do capitalismo definitivamente. Braverman dedica todoum captulo (captulo quinze) para mostrar como o taylorismo, poca deTaylor, no atravs dele, mas de seus seguidores, passou a ser aplicado emescritrios. o caso do livro de William Henry Leffingwell publicado em1917 e o de Lee Galloway, um ano depois, tambm tratando da aplicaodos princpios da gerncia cientfica no escritrio. Na segunda metade dosculo, com a mecanizao, os trabalhos de escritrio tenderiam a experi-

    mentar os mesmo processos de controle e fragmentao de tarefas utiliza-dos nas oficinas, acrescentando-se ao processo o controle da informao.Com a introduo do computador e a sua rpida difuso, a fragmentao detarefas e o processo de destruio dos ofcios se aceleraram, inclusive aquelesque apareciam em funo da nova mquina no escritrio.

    4 A respeito do vigor da economia americana no incio do sculo 20, ver Shonfield, 1968, Parte I cap. 1.

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    O computador ainda no existia na poca de Taylor. Entretanto, comocomenta Paola Manacorda (1976, p. 35), com sua contribuio ao desen-volvimento das tcnicas de clculo e a aplicao dessas tcnicas organiza-o do trabalho como que preparam o terreno para sua utilizao, quaseque se poderia dizer que, se Babbage o inventor do computador, Taylor oinventor do sistema de informao. Em meados dos anos 70, porm, osrobots comeam a ser instalados em lugar dos homens. Depois de reco-

    nhecer o papel fundamental da gerncia cientfica na expropriao do tra-balhador, Coriat (1985, p. 51-52 e nota) busca mostrar como esse processocomea a caducar. O robot confisca e se apropria dos processos deoperao realizados pelos operrios, sem que eles tenham sido antecipada-mente reduzidos a movimentos e tempos elementares. O robot confiscaem bloco, por seqncias inteiras o conjunto do conhecimento do oper-rio para voltar a restitui-lo como tal. Mas efetivamente caducaram os prin-cpios organizativos empresariais estabelecidos por Taylor e desenvolvidos

    por Ford?O corao do seu ensinamento (de Taylor) segue pre-sente e bem vivo no centro dos dispositivos complexossupostamente mais modernos e mais sofisticados. (...)Se o robot ou o computador so indiscutivelmente su-portes (...) para tornar operativas novas organizaes(...) em nenhum caso constituem substitutos da ativi-dade propriamente conceitual em que consiste o ato deconceber uma organizao do trabalho e da produo.Taylor e posteriormente Ford foram importantes por suascontribuies em conceitos, ou se se quiser por suasinovaes organizacionais (Coriat, 1996, p. 19 e 20).

    Se seguirmos a anlise de Bell sobre a sociedade ps-industrial, impossvel pensar o extraordinrio crescimento do sistema educacionalamericano e a caracterizao de uma sociedade da informao ou do co-nhecimento, sem considerar o crescimento veloz da economia do pas no

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    comeo do sculo 20. E, portanto, impossvel pensar esses acontecimen-tos sem envolver o taylorismo e seus desdobramentos como fator nuclearda sua verificao. Em uma das raras referncias a Taylor, Daniel Bell (1973,p. 351) sustenta ser ele um dos responsveis para a transio para o estilotecnocrtico nas prticas industriais. Sua idia de que o status devia basear-se em conhecimento superior e no no nepotismo ou no poder financeiro,seria o exemplo definitivo de que a influncia e a liderana deveriam se

    basear fundamentalmente na competncia tcnica.A busca dessa competncia se viabiliza atravs da conexo entre asuniversidades americanas e o grande empresariado reunido nas corporaes.O depoimento de Michael Perelman (2002), realmente impactante a res-peito desse comprometimento do processo educacional americano com asnecessidades empresariais. Para deixar clara essa conexo, Perelman (2002,cap. 3) indica que as solues relativas sua consolidao datam de fim dosculo 19. Lembra que dessa poca o surgimento de Silicon Valley, regio

    sede da moderna indstria de computao, que teve como elemento crucialde seu desenvolvimento a combinao da pesquisa cientfica com o mundocorporativo. Perelman tambm refere os estudos histricos de David Noblea respeito do surgimento e crescimento do Instituto de Tecnologia deMassachusetts em articulao estreita com o setor industrial. Perelman traztambm considerao o protesto de Thorstein Veblen, publicado em 1918,contra a excessiva interveno do mundo dos negcios na vida acadmica.Cita os casos Andrew Carnegie e John Rockfeller que, no incio do sculo

    20, apoiaram e sustentaram o projeto educacional de Henry S. Pritchett,cujo propsito central era, utilizando o exemplo do especialista em eficin-cia, Frederick Taylor, pressionar as instituies universitrias a adotarem pro-cedimentos adequados s prticas do gerenciamento empresarial. A criaodo General Educational Board, por John Rockfeller, em 1903, injetaria nosistema educacional americano, com propsitos idnticos, cerca de 53 mi-lhes de dlares de uma dotao total do sistema de 259 milhes.

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    O depoimento de Perelman prossegue mostrando o crescimento des-sa tendncia nos momentos posteriores. Nos anos recentes, as universida-des reinventam-se a si mesmas para tornar-se mais parecidas com ascorporaes, em sua meta de fazer science cum business (ibid., p. 88).

    David Noble (2002), focalizando os mtodos empregados nas ativida-des de educao distancia em desenvolvimento em instituies de ensi-no americanas e operados via internet (online education), afirma que no se

    pode imaginar esta transformao sem ver em seu corao, a taylorizaodo trabalho de instruo, na qual a funo do ensino repartida em compo-nentes discretos e destinados a diferentes trabalhadores. Noutro ponto, Noblereproduz a fala do presidente da New York State University Professions quedescreve o que est ocorrendo como um movimento de desmonte edesqualificao da profisso. Fato que, em pouco tempo, ir reproduzir-se,com toda segurana, na gerao futura de profissionais do trabalho acad-mico, comenta Noble.

    Recuando ou avanando na histria do processo industrial, a questoda economia de tempo um imperativo do processo no s de produ-o, no sentido estrito, mas tambm de adequao geral das comunidadesurbanas nova disciplina de vida e de trabalho. Fato reconhecido nosprimrdios da revoluo industrial (Thompson, 1984) ou na sociedade ame-ricana, desde fins do sculo 19 em diante (vide Braverman, op.cit., parte 5,cap.20). de certo modo surpreendente que, dadas todas as evidnciasexistentes, Mark Blaug, que um dos principais especialistas em temas

    relacionados economia da educao, no faa meno alguma aos pro-cessos que envolveram a economia americana desde finais do sculo 19 eque tiveram em Frederick Taylor o personagem central. O programa depesquisa cientfica cujo ncleo o capital humano, tem um contedo bemdefinido, mas no tem gnese conhecida, de acordo com Blaug. Conhe-cem-se seus pais fundadores, que no se deram conta da paternidade, eos seus arautos modernos: Schultz, Mincer, Becker (todos americanos). Esta

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    posio no exclusividade de Blaug. H uma tendncia omisso, quaseque total, contribuio de Taylor e do taylorismo e dos estudos envolven-do a articulao das cincias sociais na organizao do trabalho industrial noque respeita ao processo de formao da teoria do capital humano. Umcaso extremamente sugestivo dessa omisso a Enciclopdia Internacionalde Economia da Educao, editada por Martin Carnoy (1995).

    A afirmao de Blaug relativa condio da teoria do capital humano

    como um subprograma de um programa neoclssico mais amplo e de que,na raiz, ela consista simplesmente na aplicao da teoria normal do capitala certos fenmenos econmicos (1985, p. 251), uma maneira um tantoligeira e inconseqente de tratar as condies reais de emergncia da no-o e do sentido que ela adquiriu na sociedade contempornea.

    David Dickson (1980, cap. 3) menciona o fato dos novos estudos dehistria econmica, realizados em torno da revoluo industrial, terem re-velado que o aumento do valor da produo era, no perodo, consideravel-

    mente maior que as inverses em terra, trabalho e capital, juntos. Tal fatodevia ser atribudo contribuio da percia tcnica e do conhecimento,normalmente no creditados no aumento do valor produzido. Sobre a pos-sibilidade de esse incremento derivar da incorporao de novas mquinas produo, Dickson argumenta que isso s poderia ser considerado comouma conseqncia da implantao de modelos cada vez mais autoritriosna conduo do processo de trabalho e na sua organizao. Isto , seriaresultado do desenvolvimento do processo de racionalizao tal como exa-

    minado por Max Weber. Concretamente afirma Dickson apoiandoseno texto de Theodore Schultz publicado pela American Economic Review,de 1962 isto foi conseguido por meio de um sistema educativo destinadoa produzir o capital humano que encaixaria tanto no marco tcnico comodisciplinar do novo sistema fabril (ibid., p. 65). O marco tcnico e discipli-nar do sistema fabril, aludido por Dickson, est, certamente, fundado nacontribuio de Taylor.

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    A resistncia em identificar as diferentes tendncias que comeam ase manifestar na sociedade americana desde fins do sculo 19, que seacentuam no comeo do sculo 20 com a discusso sobre a caracterizaode esforos dedicados educao formal e ao trabalho, sade e outrasformas de buscar uma adaptao sociedade urbana e industrial, e se con-solidam na teoria do capital humano parecem ter sua fonte num dilemapoltico que envolve a tradio liberal e individualista da sociedade america-

    na e seu comprometimento no processo de reorganizao econmica dopas, em face das novas condies do mercado mundial. Esse dilema seapresenta concretamente nos trabalhos de Frederick Taylor e nos estudosde Adolf Berle Jr. e Gardiner.5 So duas faces, mas um mesmo dilema.

    A concepo de administrao cientfica de Frederick Taylor revelouaos americanos e ao mundo, ademais de uma forma de socializao dotrabalho, o ngulo cruento do processo de enriquecimento do trabalhoque se escondia sob ideologia da racionalidade cientfica. Alm de autocrti-

    co e subversivo ao declarar a necessidade de ver no trabalho a real fonte dariqueza e do tecnocrata como instrumento decisivo da apropriao do co-nhecimento do trabalhador, desagradava tanto aos empresrios (que noobstante, aceitavam a filosofia social de Taylor), quanto aos trabalhadoresreunidos em sindicatos, que viam na gerncia cientfica a intensificao daexplorao e da opresso do capital. De forma aguda e definitiva, Tayloragredia e desafiava o paternalismo cristo subjacente aos esforos dehumanizao do trabalho das fases antecedentes do desenvolvimento in-

    dustrial. De certo modo, Taylor ia em direo contrria de Ford, que pro-movia novamente o empresrio (Altvater, 1995, p. 85-6), reafirmando a nor-

    5 Adolf A. Berle e Gardirner C. Means, o primeiro, jurista e o segundo, economista, difundiram, no comeo da dcada de 1930,dois estudos sobre a corporao. O verbete Corporation da Enciclopdia de Cincias Sociais (1967, p. 414-23)e o livro intituladoPropriedadeprivada na economia moderna (The Corporation and Private Property). A tese central de ambos os textos desen-volvida em torno da idia de que, nas empresas de grandes dimenses, manifesta-se uma ntida separao entre a propriedade,dispersa nas mos de milhares de acionistas, e o controle, concentrado nas mos de poucos que a administram e tomam asdecises. De acordo com os autores, o sistema fabril teria produzido a separao entre controle e trabalho, o sistema corporativo(sociedades por aes) teria realizado a separao entre controle e propriedade. Este processo teria dado origem a uma novaperspectiva para o conceito de propriedade (ver a respeito, Saul, 1990a).

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    ma da necessidade de as empresas realizarem o mximo lucro atravs domximo de produo com o mnimo de custo, sua grande e original contri-buio ao mundo dos negcios, de acordo com Drucker (1946, p. 220).

    Mas, se o taylorismo pode ser visto como uma resultante da grandedepresso dos anos 1873-1890 e seus mtodos representem, de 1918 emdiante, o uso racional das mquinas e da fora de trabalho no planejamen-to, tanto entre os bolcheviques quanto entre os capitalistas, conforme assi-

    nalaram vrios autores, entre os quais Bell (1973) e Hobsbawm (1988), ateoria da corporao desenvolvida por Adolf Berle Jr. e Gardiner Meanspode ser considerada produto de dois eventos, prximos no tempo e dis-tantes no espao mas contidos na mesma dimenso geopoltica, a planifica-o sovitica de 1928 e o great crash de 1929.

    A tese de Berle e Means sobre a natureza da propriedade no sistemacorporativo projeta, no contexto da crise dos anos 30, uma perspectivapoltica nova e marcada por uma equao jurdica bastante problemtica: o

    poder sem propriedade e a propriedade sem poder. Trata-se de uma esp-cie de atualizao do velho dilema que fez tremer os princpios republica-nos ainda nos seus primeiros momentos de vida, na Frana, e foi resolvidopor meio da contraditria frmula da propriedade como condio da liber-dade. Dilema, que antes dos republicanos franceses, foi vivido intensa-mente nos escritos dos federalistas americanos em suas vacilaes a prop-sito da sustentao de um conceito de propriedade no sentido amplo, dasliberdades espirituais, como a liberdade poltica, a liberdade de pensamen-

    to e de comunicao, alm das propriedades materiais, terras, mercadorias,dinheiro, e uma concepo de propriedade restrita aos bens materiais.

    Por trs da frmula poder sem propriedade-propriedade sem poder,na realidade, Berle e Means lanavam diante da sociedade americana,entretecida na filigrana terico-jurdica da sociedade por aes, a novalgica da propriedade capitalista, travestida de lgica socialista made in USA.Embora jamais seja mencionado nesses textos o nome de Frederick Taylor,

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    parece perfeitamente claro que os argumentos desenvolvidos pretendemreverter o clima opressivo criado pelo sistema taylorista e sua sustentaoda necessidade de apropriao do conhecimento do trabalhador, colocan-do-o sob a regncia da administrao cientifica, como condio para man-ter sob controle o fator decisivo da riqueza, o trabalho. Assim fazendo,Berle e Means produziam dois efeitos contraditrios: por um lado indica-vam as profundas implicaes que o taylorismo tinha na extenso do pro-

    cesso de racionalizao a todas as instncias da vida em sociedade e, poroutro, afirmavam o carter polar que o conhecimento adquiria no interiordesse movimento. Construindo a configurao jurdica de uma situao emque a expresso principal do poder desprendia-se da propriedade, Berle eMeans definiam, no mesmo momento, o carter estratgico que o saberpossua nas relaes de propriedade da sociedade capitalista. Berle e Meansdavam forma jurdica ao processo que Taylor havia descortinado para oempresariado americano, a nova sede do poder: a propriedade do saber.

    Quando se examina um texto seminal da teoria do capital humano,como, por exemplo, o texto de Theodore Schultz divulgado na The AmericanEconomic Review de maro de 1961 se levado a crer que as questesrelacionadas com a necessidade de rever o conceito de capital com fim deadequ-lo aos novos tempos coisa que os economistas clssicos ensaia-ram, mas no resolveram, e que os economistas contemporneos aproxi-mavam-se da questo mas no conseguiam defini-la adequadamente ousimplesmente se mostravam incapazes de faz-lo.

    Entretanto a percepo de que ocorrera uma mudana substantiva naconcepo de capital parte fundamental das teses sustentadas por Berle eMeans, desde os anos 1930. Ademais, preciso considerar os desenvolvi-mentos tericos da sociologia, de modo especial a partir dos anos 1940, naconfigurao da teoria da estratificao social como fator distintivo das rela-es sociais emanadas das novas relaes de propriedade que se consti-tuam a partir da organizao das empresas formadas por capital acionrio.

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    A constatao da possibilidade de construo de uma noo de capital maisampla e abrangente do que a usada pelos economistas emerge quase quenaturalmente neste contexto. ilustrativa nesta perspectiva a teoria da pro-priedade desenvolvida por autores americanos desde os anos 40, sob ainspirao dos textos de Max Weber (Ver, por exemplo, Parsons, 1940;Davis & Moore, 1981 [1945]; Parsons & Smelser, 1965, Cap. 3 e 4 ).

    O prprio Adolf Berle Jr., em texto, datado originalmente de 1959,

    no qual ataca a tradio liberal americana e refora a teoria desenvolvida noincio dos anos 30, ampliando as observaes sobre a nova estrutura dopoder, desenvolve a mesma crtica ao conceito de capital tal como usadopelos especialistas da rea, que, entre outras limitaes, no distinguiamentre consumo e gastos produtivos (Berle Jr.,1961, cap. I).

    No estava longe disso Peter Drucker quando, em seu estudo sobre acorporao, criticando a crena de Henry George de que a apropriao denova terra era a fonte do capital, sustenta que a nica fonte do capital o

    lucro (1946, p. 233). O mesmo Peter Drucker, em A nova sociedade,anatomia da sociedade industrial, de 1950, afirmando a inexistncia de umproletariado nos EUA, sustentava a necessidade de, numa sociedade indus-trial, considerar-se o trabalho como uma fonte de capital e no como umamercadoria (1957, cap. 25). Em A revoluo educativa, 1959, afirmava que,na nova organizao social, o trabalhador manual tendia a se tornar impro-dutivo e o trabalho verdadeiramente produtivo passava a ser o trabalhobaseado na mente. Nesse sentido, a gente instruda era o capital de uma

    sociedade desenvolvida (1974, p. 219).A teoria do capital humano brota num ambiente extremamente frtil,

    onde a velocidade de crescimento impe a cada momento de evoluouma perspectiva diferente aos cientistas sociais envolvidos na anlise da suadinmica. As solues surgem muitas vezes mais com o sentido de contor-nar questes polticas do que como uma reviso dos procedimentos tcni-cos e econmicos. A teoria do capital humano um produto tpico do

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    desenvolvimento econmico americano. produto do capitalismo maisdesenvolvido e elemento decisivo da atualizao e consolidao do concei-to de capitalismo sem proprietrios, ou sem classes sociais contrastantes.

    Em plena Guerra Fria, a teoria do capital humano veio preencher umlugar j bem determinado dentro do pensamento social americano. E (casu-almente?) trouxe um lenitivo para o dilema que ameaava dilacerar a almaliberal americana desde os tempos de Taylor. Esse lenitivo est definido

    com bastante clareza numa frase de Theodore Schultz: Os trabalhadorestornaram-se capitalistas no em consequncia da propriedade de aes dascorporaes, como o folklore o considerou, mas em virtude da aquisio deconhecimentos e capacidades que possuam valor econmico (1961, p. 3).

    Essa afirmativa de Schultz parece resumir todo o contedo e a razode ser da teoria. Na verdade, ela tem um significado muito especial nosescritos de Schultz, chegando a ser reproduzida em, pelo menos, outrosdois de seus textos, em 1963 e em 1971. Mas, o sentido mais profundo da

    teoria no se resolve nessa interpretao da revoluo vivida pela socie-dade americana e que tanto agitava a tradio liberal do pas (Berle Jr.op.cit., p. 25s). O conflito ideolgico-poltico contido na disjuntiva jurdicapoder sem propriedade-propriedade sem poder era substitudo por umafrmula cientfica que contava com a indiscutvel qualificao cientfica damensurao. nesse ponto que a teoria do capital humano encaixa naspreocupaes dos setores dirigentes da sociedade americana a respeito danecessidade de articulao do sistema educacional com a esfera produtiva,

    manifestada desde a segunda metade do sculo 19.No deixa de chamar a ateno o fato de Schultz tratar a teoria da

    separao entre propriedade e controle desenvolvida por Berle e Means,que servira de inspirao e suporte a incurses no plano da reorganizaoda poltica estatal, e de fundamentar projees tericas na economia e nasociologia americanas, como pertencente ao folklore. O termo folklore pa-rece ter um sentido bastante preciso, dentro dos objetivos de Schultz paraa caracterizao do conceito de capital humano.

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    Seu uso encontra explicao na articulao do debate sobre a nature-za das transformaes da vida econmica por meio da expanso das socie-dades annimas, com questes arraigadas s tradies mais caras do pas.Conforme Schultz, a resistncia em entender a idia de investimento emseres humanos estava no sentimento de repulsa do povo americano emadmitir a possibilidade de cogitar de algo que lembrava a experincia doregime escravista:

    Nossos valores e crenas nos inibem a considerar sereshumanos como bens de capital, exceto na escravido, eisso ns abominamos. (...) No somos insensveis longaluta para livrar a sociedade do indentured service edesenvolver instituies polticas e legais para manter ohomem livre da servido. (...) Tratar seres humanos comoriqueza (...) parece reduzi-los outra vez a meros com-ponentes materiais, a alguma coisa parecida com pro-priedade (1961, p. 2).6

    A expresso indentured service remete a uma questo crucial queestava envolvida na discusso da propriedade corporativa e das expressesque essa discusso adquiria a partir das anlises de Berle e Means. Schultz,propositadamente ou no, projetava uma sombra de suspeita sobre o siste-ma de propriedade acionria, vinculando-a a prticas ultrapassadas, dignasde uma economia escravocrata, que tratava o trabalhador escravo comocapital fixo, elemento primrio da propriedade escravista, fazendo secun-dria a sua expresso territorial cujo valor s podia ser estimado com avinculao do trabalhador a ela.

    A idia de indentured service aparece em outro momento do texto deSchultz para indicar as distores que o sistema de treinamento em serviotendia a apresentar, comprometendo a boa regra do negcio. Faz co-

    6 A expresso indentured service usada com referncia ao regime escravista e a ela tem um sentido diferente da de contratode aprendizagem, como em geral traduzida nos textos de Schultz aqui mencionados. Refere-se a servio por dvida ouescravido por dvida, sistema que foi muito usado nas colnias inglesas e que, inclusive, teve uma verso brasileira, na regiodos plantios de exportao, atravs da frmula da obrigao por dvidas (Ver a respeito: Eric Williams, 1975, cap 1; ver SAUL,1990b, cap 4; entre outros).

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    mentrios, ento, sobre o montante de dinheiro aplicado anualmente (cer-ca de 15 bilhes de dlares anuas em fins dos anos 50) no treinamento noemprego, que passava a cheirar legalmente aindentured service, em vir-tude da dificuldade de implementar acordos de aprendizagem no servio.No obstante a ambigidade que o texto possa sugerir com a expressoindentured service (na traduo para a lngua portuguesa, a expresso traduzida como contrato de servio), o que se infere dessa avaliao de

    Schultz que as empresas tendiam a transferir os custos da aprendizagemde seus empregados para pagamento em trabalho.De outra parte, quem devia suportar os gastos de 15 bilhes de dla-

    res anuais aplicados no treinamento no emprego? Utilizando estudo deGary Becker a respeito de treinamento no emprego e servindo-se de seusargumentos, Schultz observava que nos mercados competitivos, os empre-gados deviam cobrir todos os custos e que nenhum desses custos deveriaser suportado pelas empresas. E isso porque essa aprendizagem implicava

    criar capacidades tcnicas gerais, as quais podiam ser perfeitamentetransferidas para os cursos escolares regulares.

    No terreno da educao formal, as coisas pareciam mais tranqilaspara Schultz, uma vez que o investimento subia a taxas rpidas e que issopodia representar uma elevao da renda das pessoas. Seguem-se avalia-es dos custos totais com a educao, da relao entre esses custos coma renda do consumidor e as suas alternativas, da elevao do patrimnio daeducao na fora de trabalho e dos efeitos do aumento do patrimnio

    educacional na renda nacional.Dado destacvel nessas avaliaes o valor destinado pelos estudan-

    tes educao. Embora de difcil mensurao, Schultz avaliava que, porvolta de 1900, o total desse valor era aproximadamente de um quarto doscustos totais em educao elementar, secundria e superior. Em 1956, re-presentavam mais de dois quintos dos custos totais. Em termos monetrios,os valores seriam os de 400 milhes de dlares, em 1900, e 28 bilhes e

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    700 milhes, em 1956. A tambm estava implicado o aumento dos custosreais da educao, que teriam sido de trs ou quatro vezes maior do que arenda do consumidor e crescido cerca de trs vezes e meia a formaobruta do capital fsico em dlares. Tudo, evidentemente, em decorrnciada lei do mercado, da oferta e da procura da educao. Se tratssemos aeducao como puro investimento, observava Schultz, os resultados iriamsugerir que os rendimentos destinados educao seriam um investimento

    bastante mais atraente do que os relativos ao capital no-humano (ibid., p.11). To simples assim.Da anlise de Schultz e das sugestes de polticas que oferece no

    final do texto de 1961, pode-se delinear a perspectiva em que se direcionaa teoria do capital humano e de seu papel na legitimao das prticas em-presariais da organizao do trabalho e na preservao do dinamismo eco-nmico dos EUA.

    Em primeiro lugar, a frmula anunciada por Schultz, segundo a qual os

    trabalhadores se haviam tornado capitalistas por serem portadores de conhe-cimentos de valor econmico, ou seja, trabalhadores e empresrios eramigualmente capitalistas, ademais de ser uma soluo realmente imaginativapara recuperar a dignidade liberal e o orgulho dos efeitos virtuosos da concor-rncia entre capitais, tinha tambm a vantagem de dar um basta definitivo natendncia de confundir-se a propriedade corporativa ora com uma forma desocialismo autctone, ora como expresso representativa da experincia fas-cista. De outra parte, sob essa retrica dava-se legitimidade ao conhecido

    teorema das externalidades da economia, tal como a entendem alguns eco-nomistas, isto , a externalizao dos custos privados atravs da sua transfor-mao em custos globais da sociedade. Processo este que pertence din-mica do sistema capitalista desde a sua origem e que se acelerava, na socie-dade americana, desde o trmino da Guerra de Secesso, em 1865.

    necessrio, nesse ponto, considerar a contribuio de Franois Vatin(1999) elucidao desse processo.

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    Franois Vatin, propondo-se a examinar o papel que a formao re-presenta na sociedade contempornea e suas relaes com os graves proble-mas de desemprego, excluso, dificuldades de insero social, etc., levantaa hiptese segundo a qual o debate em torno do processo educacional se ddentro da crise econmica e social, e que os seus resultados, atuando sobrea organizao do trabalho, do nova direo questo social. Neste sentido,ele examina o modo como a noo de formao se insere na teoria econ-

    mica neoclssica moderna e projeta um contexto doutrinrio propiciatrio dodesenvolvimento do culto que liga todas as dimenses sociais do conheci-mento e do processo de aquisio desse conhecimento. De acordo comesta orientao, a formao passa a ser avaliada no por suas virtudes, maspor se transformar no dado decisivo do emprego. Da resulta a dominnciano debate, tanto nas empresas quanto nos governos, do problema da neces-sidade de adequao formao/emprego (1999, p. 170).

    Na avaliao de Vatin, a teoria neoclssica coloca o mercado de traba-

    lho como lugar de um enfrentamento entre a oferta de trabalho (que ema-na dos indivduos) e a demanda de trabalho (que deriva das empresas). Ascaractersticas da oferta e da demanda so dadas por antecipao a esseenfrentamento. Tomando-se em conta como varivel que importa, no caso,a correspondente profisso, o mercado de trabalho se apresenta comoum vetor de competncias adquiridas e de competncias requisitadas. Aproblemtica da adequao formao/emprego emerge quando se passado quadro lgico da economia pura para o quadro de uma economia aplica-

    da ou da economia social (Walras). Um desvio introduzido nessa lgicaque define o encontro no mercado de trabalho. Ento,

    aparece como evidente que so os ofertadores (os tra-balhadores) que devem se adaptar s condies da de-manda de trabalho que emana das empresas, ou, ditode outra maneira, preciso aproximar o vetor das com-petncias adquiridas pelos indivduos s competnciasdesejadas pelas empresas. (...) O objetivo requerido ao

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    sistema de formao, tanto inicial quanto continuado,pblico ou privado, ser, de acordo com essa viso, deproduzir em quantidade e em qualidade as novas com-petncias exigidas pelo sistema produtivo.

    Dessa maneira, o que fica evidente ao senso comum ser a forma-o o elemento que deve adaptar-se ao emprego e no o contrrio, hipte-se que assume carter paradoxal. O carter dialtico real contido nos espa-os sociais da formao e do emprego se perde em benefcio da harmoniado postulado de senso comum com a economia neoclssica do mercado. Anoo de capital humano, derivada da necessidade de realizar a adaptaoda mercadoria trabalho aos imperativos do cliente-empresa, vem para inter-pretar esse paradoxo e dar-lhe um nome (op. cit., p. 171).

    Entre as questes relevantes apontadas por Vatin, uma delas assumeuma dimenso especial para entender o sentido que o conceito de capitalhumano representa no contexto da sociedade americana, em fins dos anos

    50. De acordo com Vatin, a qualificao do trabalhador incorpora ao traba-lho a qualidade deservio desse capital individual, a remuneraocorresponder ao montante acumulado desse capital. Alm de tornar legi-tima a hierarquia salarial com base na qualificao e nos ttulos escolares,observa Vatin, essa teoria permite assimilar plenamente trabalho e capitalcomo mercadorias-fatores de produo (ibid., p. 172).

    Pode-se encontrar respaldo a essas observaes, em qualquer leituraque se faa de textos de tericos modernos do capital humano, trate-se de

    Mincer, Schultz ou Becker. Tais proposies bsicas da teoria podem serfacilmente localizadas. Na proposta da teoria do capital humano, o trabalhopensado como fator de produo, juntamente com o capital fsico, na for-mulao de Schultz, pretende ser uma inovao no apenas em termos deanlise econmica como tambm pretende descortinar uma nova dimen-so poltica para as disputas entre empresariado e sindicatos. Nesta direo,parece bastante sugestiva a forma como Schultz, no texto antes referido(1961, p. 8), busca, dentro do jargo da economia, demonstrar que os

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    gastos aplicados na formao das capacidades individuais incrementam ovalor-produtividade do esforo humano (trabalho) e resultam numa taxapositiva de retorno. Para estimar a magnitude do investimento humano,basta usar os mesmos procedimentos utilizados para avaliar o investimentoem capital fsico. A questo adicional que envolve o investimento humano a dificuldade para caracterizar o que investimento e o que consumo.De acordo com Schultz, podem-se imaginar trs tipos de gastos: os que

    privilegiam o consumo e que no acrescentam nada em termos de capaci-dades, que podem ser considerados puro consumo; gastos que privilegiamo desenvolvimento das capacidades individuais que so puro investimento;e gastos que buscam ambos efeitos. Nessa terceira categoria de gastos esta expresso mais importante do investimento humano e o que torna maisdifcil a sua avaliao, em comparao com a possibilidade de avaliao deinvestimentos em capital fsico. A soluo para este problema um mto-do alternativo para estimar o investimento humano: tomar em considera-

    o o seu produto e no o seu custo. Assim,quando qualquer capacidade produzida pelo investimen-to humano torna-se parte do agente humano e no podemais ser vendido. Entretanto, ele est em contato comoo mercado, influenciando rendas e salrios que o agen-te humano pode obter. O aumento em ganhos o pro-duto do investimento(Schultz, 1961, p. 8) (grifo RPS).

    Aqui nos reencontramos com a reflexo de Vatin, a respeito da quali-

    ficao do servio do trabalhador individual que se encontra, no mercado,em igualdade de condies com o capital do empresrio (o assim chamadocapital fsico), como dois fatores-mercadoria da produo. A idia de ser-vio fundamental para apreender o que se esconde sob a simplificaofeita por Schultz ao indicar a maneira como se realiza o investimento emseres humanos. Se, num primeiro momento, a sua aluso ao carter folcl-rico da forma de perceber o mundo do trabalho possa sugerir um avano

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    em relao s pretenses do movimento sindical, logo essa impresso sedesfaz. O suposto equilbrio de foras por ele identificado, que, no fundo, o objetivo das organizaes sindicais, contm, na verdade, uma novafrmula de violar a lgica da ao sindical.

    Um primeiro aspecto a examinar, nesse sentido, diz respeito ao obje-tivo principal do texto, a necessidade de a economia ter uma viso maisampla do capital, quer dizer, pensar o capital no apenas como capital

    fsico, mas entender o incremento das habilidades do trabalhador comocapital. Schultz est escrevendo no momento em que a revoluo cibern-tica tende a se estender para toda a atividade econmica, nos EUA e emoutros pases industrializados. Este fato produz, como em qualquer mudan-a tecnolgica importante, uma reavaliao geral das atividades produtivas,especialmente quanto produtividade do trabalho nos diferentes ramos deatividades econmicas.

    Quando se acompanha a anlise de Ernest Mandel (1979, ver cap. VII

    e VIII) sobre os efeitos da terceira revoluo tecnolgica, verifica-se que ateoria do capital humano aparece como um novo ramo da economia, resul-tante da presso crescente que se faz sentir sobre a composio orgnicado capital, a partir do aumento da competio internacional e da aceleraodas invenes e inovaes tecnolgicas, aps a Segunda Guerra Mundial. Oestmulo intensificao do processo de trabalho, acelerao da divisodo trabalho, da sua racionalizao e especializao, colocou em cena anecessidade de se definir efetivamente a rentabilidade material dos gas-

    tos feitos na educao e a se mencionar s claras o imperativo das inver-ses produtivas no sistema educacional.

    Ou seja, a teoria do capital humano vem a reboque de uma transfor-mao substantiva no movimento do capital, que tem sua dinmica alterada,de acordo com Mandel, em razo da modificao do seu tempo de rotaona economia. Assim, por exemplo, o tempo de rotao do capital fixo tendea diminuir em virtude do aumento de velocidade da obsolescncia das m-

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    quinas, o que implica a necessidade de uma reprogramao de custos. Essareprogramao tem de ser efetivada com grande preciso e obriga a operarcom rigor o registro de informaes em toda a economia, incluindo-se a apreviso e planificao dos custos salariais a longo e mdio prazos. Isto , aalterao do tempo de rotao do capital fixo repercute no conjunto daeconomia, impondo a necessidade de se reavaliar o tempo de rotao docapital circulante. Por outra parte, esses acontecimentos revelam que a de-

    legao de poder que se supunha ocorrer nas corporaes com a separaoentre controle e propriedade, se apresente, na verdade, como uma delega-o de poder sobre detalhes da atividade produtiva, que tem correspondn-cia em uma crescente concentrao de poder sobre as decises verdadeira-mente estratgicas a respeito da expanso da empresa. a prpria forma deorganizao do capital que se altera, transferindo-se da esfera da produo,passando para a esfera da acumulao para chegar esfera da reproduo(1979, p. 242).

    Um dos motivos para Schultz caracterizar como folclricas idias comoas de Berle e Means e a teoria da administrao cientfica que lhe estsubjacente, a sua ineficincia diante dos novos imperativos propostos economia, e a resistncia por parte dos sindicatos com referncia suaimplementao. A noo de capital humano parece servir sob medida paraatualizar solues que estavam embutidas na racionalizao da atividadeprodutiva, desde os tempos de Taylor, de modo a reverter a resistnciasindical atravs do incentivo competio entre os trabalhadores e

    individualizao dos salrios. A identificao da qualidade do servio, doseu capital individual, colocaria o trabalhador em p de igualdade com ocapital senso estrito, no mercado.

    Deste ponto pode-se visualizar uma outra maneira em que Schultzdeixa perceber a sutileza poltica da teoria que patrocina, intencionalmenteou no. O investimento humano, como habilidade que passa a ser parte doindividuo, seu capital, no pode ser vendido, como ele declara. Na forma

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    de servio ou atividade, porm, o investimento humano (como esforohumano, trabalho) pode ser alugado em troca de pagamento por tempodeterminado. Duas questes esto envolvidas aqui. O trabalho parece ex-perimentar uma transformao substantiva e, em conseqncia, parece al-terar-se a natureza da relao jurdica entre capital e trabalho.

    Segundo um especialista da rea da cincia jurdica (Correas, 1980), ocritrio cientfico mais apropriado para diferenciar a natureza de um contra-

    to de trabalho de qualquer outra forma de contrato reside na natureza doque trocado. Se se trata de uma mercadoria qualquer, um contrato civil.Se fora de trabalho como mercadoria, contrato de trabalho. A diferen-a especfica diz Correas, consiste em que, em um caso (do contrato civil),o objeto o resultado de um trabalho e, no caso do (contrato de) trabalho o trabalho mesmo. No contrato de trabalho, a relao de trabalho se apre-senta como dado caracterstico de uma situao de subordinao do traba-lhador em relao ao patro, expressando o enfrentamento entre classes

    diferentes no conjunto da sociedade (Correas, p. 122-131). Diversamente,na situao de compra e venda tpica do contrato civil, supe-se a a simetriaentre os intervenientes na relao de troca.

    Coloque-se a questo em outros termos. Schultz, embora no o ad-mita abertamente, de certo modo interpreta o movimento de racionaliza-o das empresas e dos efeitos da organizao taylorista, que se difunde atodas as esferas econmicas, provocando um processo de homogeneizaodo trabalho fabril e de escritrio (ver Braverman, parte IV). Ao tomar o

    trabalhador como capital de si mesmo e, por conseguinte, como um ven-dedor de servios, e levando em conta que servio representa o valor deuso particular do trabalho, na medida em que este no til como coisa,mas como atividade (Marx, 1974, p. 87; ver tambm Correas, pginas cita-das), Schultz, como intrprete da nova teoria, prope uma equao econ-mica da relao entre capital e trabalho cuja repercusso poltica ir marcaro futuro da economia e da sociologia americanas. De acordo com Vatin, a

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    teoria do capital humano proporcionava a adaptao da mercadoria-traba-lho aos objetivos da empresa, ao mesmo tempo em que transformava apessoa do trabalhador (op.cit., 171). Isso correspondeu a dar um novo esofisticado toque terico ao movimento instaurado com a difuso da gern-cia cientfica criada por Taylor, h mais de setenta anos atrs. Fundindonuma nica categoria todo o trabalho assalariado, estivesse esse trabalhovinculado industria ou no, processava-se a um s tempo, a homogeneizao

    do trabalho e a individualizao do trabalhador. A resultante atomizao dossalrios projetava o acirramento da competio entre os trabalhadores eaplicava um duro golpe nas lutas sindicais, interferindo diretamente naspretenses de sustentao da negociao salarial coletiva. Aparentemente,o processo jogava os problemas salariais para a esfera do mercado de traba-lho. Na realidade, porm, ele favorecia as necessidades empresariais dealiviar os custos salariais, favorecendo a sua programao fora da escala deflutuaes daquele mercado.

    A idia do homem como bem de capital (capital good) (Schultz,1961, p. 2), nos projeta para frente, para a emergncia da sociedade dosservios, da civilizao terciria, para a sociedade do conhecimento,para a sociedade ps-industrial, expresses que viriam a dominar as cin-cias sociais nas dcadas seguintes. Mas ela tambm nos remete de volta aopassado ao lembrar a velha noo de propriedade no sentido amplo, que sedesenvolveu enlaada no conceito de direitos humanos e circulou nos pri-meiros momentos de vida da repblica americana, na doutrina dos federalistas

    (Pipes, 200, cap. XII), e que marcou toda trajetria da configuraoinstitucional do pas.

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