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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
AS MULHERES NAS EMPRESAS RECUPERADAS
Maria Alejandra Paulucci1
Resumo: A proposta deste trabalho é tecer considerações sobre o papel desempenhado pelas mulheres
nas experiências das empresas recuperadas. Este fenômeno surgiu entre as décadas de 1980 e 1990 no
Brasil e em outros países de America Latina, tais como Argentina e Uruguai, num contexto de grave
crise econômica. Estas iniciativas se apresentam como uma forma de resistência ao desemprego, diante
do crescimento acentuado de falências de empresas. Assim, mulheres e homens ocupam, resistem e
recuperam coletivamente as fábricas nas quais trabalhavam com o intuito de defender sua fonte de
trabalho. Isto significou uma redefinição das fronteiras entre o “espaço produtivo” e “espaço
reprodutivo doméstico”, levantando reflexões sobre as conseqüências dessas mudanças tanto para
mulheres quanto para homens. Nesse sentido, nossa proposta é, por um lado, apresentar as inovações e
estratégias sociais implementadas pelas e pelos trabalhadoras/es no cotidiano dos processos de
recuperação de empresas. Por outro lado, daremos visibilidade à participação das mulheres como
protagonistas ativas no processo de recuperação da fonte de trabalho. Buscamos identificar
características especificas de gênero nesses processos, considerando que a proporção de trabalhadores
homens é bem maior nas experiências das empresas recuperadas. Este trabalho adquire uma perspectiva
crítica dos estudos de gênero em torno às dicotomias que costumam ser estabelecidas entre as esferas
da produção/reprodução, espaço público/privado. Tomamos como referência uma visão integral do
trabalho feminino a partir da consideração das inter-relações entre trabalho doméstico e trabalho extra-
doméstico.
Palavras-chave: Empresas recuperadas; Trabalho; Gênero.
1-Introdução
Neste texto tecemos considerações sobre como a nova organização do trabalho no interior das
empresas recuperadas pel@s trabalhador@s (ERTs)2 afeta o papel e a participação das mulheres neste
processo. Trata- se, por conseguinte uma análise que busca dialogar com a perspectiva de gênero.
Segundo Scott (1999), o conjunto de símbolos culturalmente significativos no contexto de socialização
1 Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC), Criciúma, Santa Catarina, Brasil. 2 Este trabalho está baseado nos dados da pesquisa realizada, entre 2010 e2013, no âmbito do projeto “Fábricas Recuperadas
pelos Trabalhadores: Diagnóstico das Experiências Brasileiras”, pelo Grupo de Pesquisa em Empresas Recuperadas pelos
Trabalhadores (GPERTs), do qual participo como pesquisadora desde 2012. O projeto foi financiado pelo CNPQ. O
GPERTs é um grupo multidisciplinar e interinstitucional formado atualmente por pesquisadores de núcleos/laboratórios de
11 universidades brasileiras (CEFET-NI; INCUBES/UFPB; NEICT/UFF; NESOL/USP; NETS/UFVJM;
PEGADAS/UFRN; SOLTEC/UFRJ; UFRB; UNESP Marília, UNESC e UNIRIO). Esta pesquisa resultou no livro:
Empresas recuperadas por trabalhadores no Brasil (2013). Atualmente estamos atualizando os dados das ERTs em Brasil.
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das mulheres se associa aos papeis tradicionais de representações de “o feminino e o masculino” desde
um modelo patriarcal de família (esposas, dona de casa, encarregadas da reprodução e cuidado das
crianças). O conjunto de normas que se geram a partir deste conjunto de símbolos e de suas
interpretações impõe a elas, como mulheres, os valores tais como: compreensão, aceitação, resignação
e subalternidade, e que costumam ser tidos como constitutivos de seus papeis tradicionais de gênero.
As práticas cotidianas sustentadas sobre essas representações, limitadas e habilitadas pela ordem
normativa restringem muitas vezes suas ações ao âmbito do privado, como mães e esposas “de”, sendo
as mulheres vedadas da participação no mercado de trabalho e carentes de protagonismo no âmbito
público da política.
Em grande medida, o processo de recuperação de empresas apresenta-se como um desafio
permanente e um aprendizado cotidiano que abre principalmente para as mulheres, um novo mundo de
ação (nas assembléias, nas discussões, no trabalho coletivo, nas mobilizações), onde percebem suas
próprias capacidades de agir e inovar como produtoras de riqueza. As experiências solidárias têm
demonstrado um “terreno privilegiado para exercitar novas práticas e proporcionar vivências de
igualdade e de autonomia para as mulheres” (NOBRE, 2012, p. 211)
Além do mais, a constituição de um novo sujeito político está presente em cada momento. A
politização supõe um sujeito ativo responsável pela redefinição de seu lugar na sociedade e de seu
próprio dever, que pugna por ampliar o âmbito político institucionalizado, questionando as fronteiras
instituídas da política, do social e do econômico, assim como o espaço publico/privado. A ERTS,
enquanto espaço de politização, intensificam a capacidade de expansão da participação de seus
integrantes em outros espaços públicos de decisão. Ampliar o acesso das mulheres à cidadania significa
valorizar a trajetória de suas lutas e reivindicações para inserir-se nos processos decisórios, no combate
à discriminação, ao machismo, à dupla jornada de trabalho.
No entanto, diante do novo cenário, as mulheres como “sujeito de direitos” devem explorar toda
sua criatividade a fim de enfrentar os novos desafios e novas tarefas que se apresentam no dia a dia,
dividindo seus tempos e os âmbitos produtivos/ reprodutivos. (NOBRE, 2012).
Nesse sentido, conforme Ruggeri (2005), no desenvolvimento e no exercício das ERTs surgem
práticas de inovação social que, sem pensar em mudanças tecnológicas ou de organização da
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produção, conseguem esboçar estruturas empresariais com padrões diferentes do modelo empresarial
capitalista. A essas rupturas do conceito de empresa o autor chama “inovações sociais”.
Estas inovações sociais vão além do fato da gestão coletiva; trata-se principalmente da abertura
social da empresa, da socialização do segredo empresarial, da constituição de redes solidárias. Ou seja,
o conceito de inovação compreende as estratégias e métodos adotados pelas/as trabalhadoras/es para
originar empresas de um novo tipo, em um complexo processo destinado a promover unidades
produtivas fora dos caminhos pautados pela organização econômica capitalista.
Tais inovações apresentam as soluções adotadas por trabalhadoras/es que conduzem seus
empreendimentos sem a estrutura hierárquica tradicional, e permitem identificar possibilidades de
construção de uma nova lógica de organização do trabalho (Paulucci, 2007, 2014). Ao integrar a
cooperativa, muita/os das/os experimentam pela primeira vez em suas vidas o gozo de direitos iguais
para todos/as, o prazer de poderem se exprimir livremente e de serem escutados/as e o orgulho de
perceber que suas opiniões são respeitadas e pesam no destino do coletivo (SINGER, 2000).
2- As principais características das ERTs
As ERTs multiplicaram-se pelo Brasil, Argentina e Uruguai durante a década de 1990, período
em que o desemprego e a informalidade atingiam níveis alarmantes. Tais iniciativas ganharam força a
partir da organização de trabalhadore/as que, a fim de manter seus postos de trabalho, buscaram ocupar
e controlar coletivamente empresas em situação falimentar, transformando-as em unidades
autogestionárias.
Em nosso entender, embora o fenômeno das ERTs já tenha surgido há mais de duas décadas se
sustentam ao longo dos anos com vários tipos de avanços e desafios, tanto na produção quanto na
organização do trabalho, e não se apresenta como um processo acabado ou fechado. Muito pelo
contrário, ainda está em permanente definição e redefinição, pois são experiências dinâmicas e que
estão em disputas constantes. Por isso, consideramos que as estratégias adotadas nas ERTs não podem
ser olhadas de uma maneira rígida e linear, como se fossem processos inalteráveis, pois uma de suas
peculiaridades é o dinamismo. Em outras palavras, elas estão permanentemente em construção e se
apresentam com muitas oscilações.
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Ponderamos que a análise das ERTs pode ser dividida principalmente em dois momentos. O
primeiro momento se dá quando as/os trabalhadoras/es adotam uma atitude defensiva, com o principal
objetivo de preservar seus empregos frente à falência ou pré-falência da empresa onde trabalham. É
necessário lembrar que o fato de recuperar os empregos não nasce com o componente utópico de
transformar a realidade social, senão da simples defesa por parte das/os trabalhadoras/es de sua fonte
laboral como meio de sobrevivência.
O segundo momento se inicia quando o processo de recuperação converte-se em um ato que
envolve uma nova proposta de ação coletiva e movimento social, com inovações sociais em um
contexto adverso. Perante o desafio de administrar as unidades produtivas, as/os trabalhadoras/es
buscam apoio e estabelecem alianças e parcerias com outros atores sociais, tais como dirigentes
políticos e sindicais, pesquisadores, e inclusive pessoas da sociedade civil.
A partir daí, a perspectiva inicial de preservação de postos de trabalho e/ou de alternativa ao
desemprego ganharia progressivamente um significado político ligado a uma proposta de
democratização do trabalho e da sociedade, em que a autogestão aparece como estratégia central.
Dessa forma a constituição de um novo sujeito político está presente em cada momento. A
politização supõe um sujeito ativo responsável pela redefinição de seu lugar na sociedade e de seu
próprio dever, que pugna por ampliar o âmbito político institucionalizado, questionando as fronteiras
instituídas da política, do social e do econômico, assim como o espaço publico/privado.
O processo de formação da cooperativa costuma ser demorado, desgastante, burocrático e na
maioria dos casos envolve ações judiciais Em muitos casos, o arrendamento do terreno, dos
equipamentos e do maquinário da antiga empresa é negociado com o objetivo de liquidar os débitos
trabalhistas. Quando começam a trabalhar no novo empreendimento, nem sempre conseguem obter
rendimentos nos primeiros meses, tendo em vista que necessitam de capital de giro para que o
empreendimento possa funcionar
Ao longo de todo o processo de recuperação, as ERTs enfrentaram e enfrentam até hoje
diferentes entraves para viabilizar suas atividades produtivas: dificuldades na comercialização de seus
produtos; baixa produtividade do processo de produção; dificuldades para o acesso ao crédito; assim
como falta de investimento na formação de seus trabalhadores para o desenvolvimento de novas
competências fundamentais para a manutenção e renovação da empresa.
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Tendo tudo isto em vista, as/os trabalhadoras/es passam a conduzir atividades que nunca tiveram
conhecimento e na maioria das vezes não possuem qualificação para executá-las. Precisam aprender a
realizar outras funções no interior da unidade produtiva, como exemplo, podemos citar a administração
e as rotinas financeiras do empreendimento, devem continuar produzindo para colocar os produtos na
venda e subordinar-se ao jogo das oscilações do mercado.
2.1 A participação de mulheres em ERTS: apontamentos iniciais acerca das relações de trabalho e
das desigualdades de gênero
Como foi mencionado anteriormente, na maioria das experiências de ERTs se desvenda uma
forma alternativa na construção de relações sociais e de produção, mediante praticas de ação coletiva.
Diante isso, nos perguntamos sobre o papel e participação das mulheres nas ERTs: o que acontece com
a divisão sexual do trabalho 3 e as relações de gênero4 no âmbito desses empreendimentos? Elas
mudam ou se mantém logo após a recuperação? As mulheres obtiveram algum tipo de poder político e
institucional dentro desses empreendimentos?
Com o intuito de analisar o papel das mulheres neste contexto destacamos alguns dados
relevantes de nossa pesquisa: nas 67 ERTS que existiam no Brasil em 2013 trabalhavam um total de
1856 trabalhadores, sendo 420 mulheres (23%) e 1436 homens (77%) (Henrique, et.al 2013). A
situação na Argentina é um pouco diferente, em primeiro lugar pela quantidade de empreendimentos
que existem, e em segundo pelo numero de pessoas envolvidas nestes empreendimentos. Os dados do
3 O termo “divisão sexual do trabalho” trata-sede uma acepção sócio-gráfica: estuda-se a distribuição diferencial de homens
e mulheres no mercado de trabalho, nos ofícios e nas profissões, e as variações no tempo e no espaço dessa distribuição, e se
analisa como isto se associa à divisão desigual do trabalho doméstico entre os sexos. É a forma de divisão do trabalho social
decorrente das relações sociais entre os sexos; mais do que isso, é um fator prioritário para a sobrevivência da relação social
entre os sexos. Essa forma é modulada histórica e socialmente. Tem como características a designação prioritária dos
homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a apropriação pelos homens das funções
com maior valor social adicionado (políticos, religiosos, militares etc.) (Hirata e Kergoat, 2007). 4 Desde a perspectiva de Scott (1995), a identidade de gênero se compõe de três aspectos inter-relacionados: em primeiro
lugar, um conjunto de símbolos culturalmente significativos que se encontram disponíveis e que enunciam representações
do que é o feminino e o masculino em contextos específicos. Em segundo, um conjunto de normas que são geradas a partir
desse conjunto de símbolos e de suas interpretações (religiosas, educativas, legais, científicas e políticas). Por último, as
práticas cotidianas sustentadas sobre essas representações, limitadas e habilitadas pela ordem normativa.
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último mapeamento realizado em maio de 20165 revelam que existem atualmente em todo o país 367
ERTs em funcionamento, com um total de 15.948 trabalhadores e trabalhadoras.6
Com relação ao ramo que ocupam, constatamos que entre as 67 ERTs brasileiras, 30 casos, ou
seja, quase a metade (45%), é do ramo metalúrgico. O ramo têxtil é o segundo mais freqüente,
compreendendo 11 empresas (16%). Em seguida, destacam-se 9 empresas no ramo alimentício (13%)
e 7 empresas que atuam na industria química e do plástico (10%). Por fim, as empresas restantes estão
distribuídas em uma maior diversidade de ramos de atividade (hotelaria, educação, cerâmica, papel,
calçados) (Henrique et al, 2014).
Já na Argentina, da mesma forma que no Brasil, as empresas metalúrgicas (72 ERTs) são a
maioria, envolvendo também o maior número de trabalhadores. Em número de empresas, o ramo
metalúrgico é seguido pelo de alimentação (13%), empresas gráficas (10%), têxteis (7,6%) e
gastronomia (6,8%). Em número de trabalhadores, o segundo lugar é da indústria de carne (13%),
depois empresas gráficas (9,5%) e alimentação (9%).7
Verificamos que existe uma diferenciação profissional entre os gêneros na distribuição das/os
trabalhadoras/es pelos diversos ramos da economia. As mulheres encontram-se concentradas naqueles
ramos tradicionalmente vistos como femininos, tais como confecção, têxtil e preparação de alimentos.
Em outros ramos, como, por exemplo, metal-mecânica, mineração, dentre outros, a participação das
mulheres é muito pequena ou inexistente (Henriques, et.al 2013). Essa distribuição coincide, portanto,
com a tendência histórica observada no mercado de trabalho capitalista, a qual não sofreu grandes
modificações nas últimas décadas (Safioti, 2013).
Também constamos que nas ERTs existe um acentuado predomínio feminino em um conjunto de
ocupações consistentes com os papéis de gênero tradicionais, especialmente nos cargos
administrativos/operacionais (auxiliares administrativas, secretarias administrativas) ou de serviços
gerais (faxineira, copeira). As possibilidades de inserção das mulheres no trabalho também estão
5 Informe realizado pela iniciativa do Programa Faculdade Aberta/Centro de Documentação de Empresas Recuperada.
Desde2001 este programa vem realizando os mapeamentos sobre as empresas recuperadas na Argentina, além de organizar
os encontros nacionais e internacionais sobre a Economia dos Trabalhadores. 6 Tendo em vista os resultados dos mapeamentos anteriores, realizados em 2002, 2004 e 2011, percebe-se um considerável
aumento no numero de casos: em 2002 existiam 128 ERTs, em 2004 foram registradas 161 com um total de 6900
trabalhadores, em 2011 existiam 205 casos onde trabalhavam 9362. 7 Informe “Las empresas recuperadas por los trabajadores en los comienzos del gobierno de Mauricio Macri. Estado de
situación a mayo de 2016”. Disponível em: http://www.recuperadasdoc.com.ar/informe-mayo-2016.pdf
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limitadas pela desigualdade de gênero na capacitação técnica, derivada de estereótipos sexistas, o que
indica que a divisão sexual do trabalho clássica do modelo capitalista e das relações de gênero
tradicionais permanece nas ERTs.8
Em algumas falas, durantes as entrevistas, as mulheres expressaram suas dificuldades para
participar em âmbitos de coordenação e decisão dentro da cooperativa, em frases como “a política é
território dos homens” ou “está permitido não homens não nas mulheres”. Nestas representações, que
aparecem impregnadas de papeis determinados pelo gênero, a participação política e a tomada de
decisão surgem associadas exclusivamente ao masculino. Isto indica por que uma discussão em termos
de gênero pode ser interessante para pensar essas questões.
Em suma, nossos dados indicam que muito possivelmente apresenta-se nas ETRs uma
desigualdade na divisão do trabalho pelo gênero, sendo que o fundamento desta desigualdade pode
estar em fatores como um “acesso diferenciado” ao equipamento técnico e a certos saberes e
conhecimentos, os quais se traduzem em condições que mantêm a dominação masculina nas relações
sociais.
Não obstante, quando investigamos se houve mudança no papel e participação das mulheres nas
ERTs em relação à antiga empresa e a participação delas ainda é pouco expressiva em 69% das ERTs e
que nada mudou em relação à antiga empresa. Contudo, é importante salientar, que nas 31% ERTs
restantes, os entrevistados apontam que as mulheres têm participação elevada. Obtivemos relatos de
que, após a recuperação, algumas mulheres passaram a ocupar postos de trabalho que eram ocupados
somente pelos homens, por exemplo: supervisoras/coordenadoras, gerentes administrativas, gerentes de
processo e possuem um papel bastante visível dentro das ERTs.
O que demonstra, mesmo que aos poucos, o reconhecimento e valorização das mulheres em um
ambiente predominantemente masculino, mas com ambiente democrático e igualitário, permitindo a
ascensão e destaque destas mulheres. Sem embargo constatamos que existe uma predominância de
homens nas lideranças destes empreendimentos. (Henriques, et.al, 2013; Ruggeri, 2015).
8 Um dos elementos fundamentais da ideologia da supremacia masculina repousa na idéia de que a fisiologia e o
metabolismo psico-biológico da mulher fazem dela um membro do coletivo da força de trabalho com menor capacidade
física. Desse modo, a divisão do trabalho entre os gêneros, através da história, tem sido justificada em nome da inferioridade
física da mulher (Saffioti, 2003).
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Outro aspecto interessante para analisar nas ERTs é modificação da extensão e das atividades
compreendidas na “jornada laboral”, que afetou de forma diferenciada as mulheres e os homens.
Verificamos, assim, que se diversificaram as tarefas realizadas pelas/os trabalhadoras/es no processo
produtivo. O trabalho se modifica e é modificado em função das novas necessidades da cooperativa; os
postos e as funções se dividem conforme saberes e condições das/os trabalhadoras/es, mas também em
função das necessidades produtivas especificas. Desse modo, existe um rodízio de funções que pode
ser tanto entre diferentes postos na mesma secção quanto entre diferentes seções, e inclusive entre a
parte gerencial/administrativa e a produção.
Em grande medida, constata-se que, por um lado, no momento de recuperação se reduz o pessoal
na área administrativa e nos postos hierárquicos (tais como gerentes, engenheiros, etc.). Junto com a
diminuição do numero de trabalhadores, faz-se necessário aprender a realizar vários tipos de
atividades, multiplicando-se as funções de cada trabalhador individual.
Por outro lado, há uma incorporação de novas atividades, como por exemplo, as ações de
mobilizações e passeatas, negociações com dirigentes sociais, políticos, reuniões com pessoas do
movimento sindical, e assim por diante. Tendo em vista as necessidades quando se inicia o processo de
recuperação da empresa, os/as trabalhadores/as assumem tarefas “tradicionais” do processo de trabalho
industrial e atividades novas ou “desconhecidas”, ou seja, aquelas que permitem colocar em marcha a
linha de produção, e aquelas que constituem a possibilidade de dar continuidade à unidade produtiva.
De fato, a autogestão apresenta-se como um desafio permanente e um aprendizado cotidiano,
que abre para os/as trabalhadore/as um novo mundo de ação (nas assembléias, nas discussões, no
trabalho coletivo, nas mobilizações) no qual eles/elas percebem suas próprias capacidades de agir e
inovar (como produtores de riqueza. Esta diversidade de situações adquire distintas expressões na hora
de “negociar” as participações individuais principalmente em todas as atividades que costumam ser
realizadas fora da jornada de trabalho. Com isto, a jornada de trabalho modifica-se em diferentes
aspectos: os tipos de tarefas e atividades realizadas; os ritmos e tempos de trabalho; a forma de habitar
a fábrica; e o trânsito entre a fabrica e os lares das/os trabalhadoras/es. (Paulucci, 2014)
Dessa forma, falar sobre a participação das mulheres nas recuperações das fábricas como uma
prática política nós faz refletir sobre um problema crucial: a questão do tempo e dos territórios.
Verifica-se em muitos dos processos de ETRs que as/os trabalhadoras/es tiveram que permanecer
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longas jornadas dentro da fábrica para “vigiar” e “defender a fonte de trabalho”.9 Como vimos, isto
implicou em uma redefinição das fronteiras entre o “espaço produtivo” e o “espaço
reprodutivo/doméstico”. Durante as recuperações, as fronteiras entre a casa/fábrica e produção/política
se inter-relacionam, o que traz conseqüências diretas na distribuição do tempo das trabalhadoras.
Nestas atividades as mulheres devem dividir seus tempos, entre a jornada laboral, a jornada
domestica e a militância política. Existe uma complexa articulação entre os tempos dedicados à
participação na recuperação da fábrica e as exigências do espaço doméstico, visto que a maioria das
trabalhadoras ainda dividem seu tempo produtivo/laboral com o tempo na esfera doméstica, cuidando
da casa, das crianças e dos maridos. Essa dupla jornada realizada pela mulher é em muitos casos tripla
jornada, não recebe seu devido valor. Nessa linha de pensamento Hirata (2003) salienta que “o fato da
mulher ter um trabalho doméstico não-remunerado, de fazer em casa uma série de coisas
gratuitamente, por amor aos filhos, ao marido, à família, faz com que ela não seja valorizada, em
nenhum tipo de atividade”. 10
Refletindo sobre nas “regulações temporais”, Dora Barrancos (2006) considera que, se para os
homens a participação política é um “investimento” do tempo, em contrapartida para as mulheres que
participam na política, gerenciar o tempo converte-se em um problema, pois estas devem
necessariamente enfrentar diferentes encruzilhadas. A mudança em suas práticas cotidianas a partir de
sua participação na luta pela recuperação das empresas onde trabalham e, inclusive, muitas vezes onde
também trabalham seus maridos, permite-lhes uma ruptura com esses estereótipos de gênero, adotando
um protagonismo na luta social e política.
A identidade como trabalhadora se reconstitui continuamente a partir das transformações do
conteúdo e a natureza da vida cotidiana, especialmente com a reorganização do tempo e do espaço. As
tendências destas mudanças se refletem na expansão dos mecanismos de desmembração das relações
sociais, redefinindo o conteúdo das identidades das mulheres. Os dados da pesquisa indicam que para
9 Principalmente na Argentina em muitas das experiências de ERTs foi necessário, como medida de força e defesa, ocupar
as instalações das empresas, tanto para impedir a entrada da policia ou de juízes quanto para evitar a retirada do maquinário.
Inclusive, em varias experiências as/os trabalhadoras/es tiveram que acampar nos portões da fabrica durante vários dias,
pois tinham que realizar turnos para se revezar e ficar na vigia durante 24 horas. Muitas das mulheres tinham que ir com
seus filhas/os assumindo seu papel do espaço doméstico, só que fora de ambiente privado. De fato, cabe quase que
exclusivamente às mulheres conciliar vida familiar e vida profissional (Paulucci, 2014; Hirata e Kergoat, 2007). 10 Entrevista a Helena Hirata. REVISTA ÉPOCA, ed. 288 de 24/11/03. Disponível:
http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT635911-1666,00.html
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muitas mulheres, possivelmente a participação no processo de recuperação das empresas implicou na
aquisição de certo graus de autonomia e valorização pessoal.
Cabe destacar que varias das ERTs argentinas abriram dentro do ambiente da fabrica centros
culturais e escolas para jovens e adultos. A re-abertura da fabrica implica muitas vezes que o local
adquira uma nova função sócio-educativa, organizada e com visibilidade pública. Esta costuma ir além
dos próprios trabalhadores das empresas, envolvendo outros sujeitos (Paulucci, 2014). Desse modo,
em muitos casos, a fábrica passou a ser, além de um lugar de produção, um “espaço de vida”; isto é,
um lugar de encontro e participação que inclui à família e a comunidade.
Estas estratégias resultam numa importante inovação, pois com essas iniciativas se apagam e se
redefinem os limites entre a fábrica e o bairro, entre o público e privado. De fato, a relação entre “a
casa” e “o trabalho” foi redefinida, imprimindo novos sentidos às formas de habitar e transitar as
distancias entre um espaço e outro, tanto nos aspectos físicos e materiais quanto nos simbólicos e
afetivos. Abrindo a possibilidade de que as mulheres comecem a questionar os lugares ocupam, tanto
dentro das fabrica quanto em seus lares, e esse próprio questionamento levou, em alguns casos, a
aceder a novos papeis.
Percebe-se um processo de re-significação, tanto do feminino quanto do masculino, bem como
do trabalho, do espaço da fabrica, e do próprio processo de recuperação das fabricas, não só através do
trabalho e da administração como também pelas maneiras de ocupar os espaços. Deste modo, esses
processos implicam em uma ampla re-significação do espaço fabril, como lugar de troca de
experiências e como espaço de aprendizagem coletiva. Apropriação do espaço significa mexer com a
organização das maquinas, criar um espaço para debater, de criar centros culturais, a possibilidade de
tomar decisões e de tomar a palavra durante as assembléias, assim como colocar as demandas dos
próprios trabalhador@s para o coletivo. Por isso, é necessário garantir o poder de ação, de voz e de
participação das mulheres nas ERTs. Esses são alguns dos significados e implicações desses processos
de re-apropriação.
Considerações finais
Este trabalho buscou dar “novos passos” para uma maior compreensão do fenômeno das ERTs,
tentando alcançar uma visão mais ampla sobre o papel das mulheres neste processo. Colocar as
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mulheres como foco de pesquisa significa dar- lhes visibilidade a partir de suas realidades, suas
necessidades, suas vivencias e suas preocupações.
Em nosso entender, os processos autogestionários nas ERTs podem ser instrumentos para
transformações sociais em direção a uma sociedade mais justa e equitativa. Seu potencial democrático,
igualitário, coletivo, emancipatório e solidário constitui-se como espaços onde se questiones a lógica
produtivista acumulativa e capitalista.
Mesmo, levando em conta o fato de que as experiências de ERTs são incipientes em relação à
alteração da lógica capital e da organização do trabalho, buscamos principalmente valorizar as
experiências existentes, com a firme convicção de que a autogestão é um processo em construção
permanente e que permite às mulheres questionar e inovar seus papéis.
Contudo, é necessário considerar que esses empreendimentos encontram-se imersos na cultura
predominante patriarcal. Portanto, uma grande parte das determinações sociais que advém dessa
cultura segue presente no cotidiano desses coletivos de trabalhadores e trabalhadoras. As eventuais
mudanças adotadas nas ERTs convivem com elementos culturais de trabalho hierarquizado e de
divisão do trabalho, que são resquícios da organização anterior, mas isso não implica na inexistência
de elementos para criar um novo modelo de gestão e de relações de trabalho.
Acreditamos que as iniciativas de ERTs podem criar espaços intermediários entre o
privado/doméstico e a vida pública, entre o trabalho remunerado e o não remunerado, podendo
contribuir para a superação desses bloqueios por que: criam espaços de discussão, reflexão,
deliberação e reivindicações coletivas.
Na proposta de autogestão, existe a possibilidade de viabilizar a dignidade da existência da/do
trabalhadora/o, e na produção, com base de uma visão que leva em conta não a lógica de reprodução
do capital, mas principalmente a lógica do desenvolvimento humano através do trabalho. Deste modo,
entendemos que o que mobiliza as ERTs e as diferencia das empresas capitalistas não é a acumulação
do excedente por uma classe social, e sim a reprodução do trabalho coletivo como forma de viabilizar
a dignidade da existência das/os trabalhadoras/os.
Percebemos assim que a novidade das experiências das empresas recuperadas não reside apenas
na preservação da fonte de trabalho e na luta contra as demissões d@s trabalhador@s, senão também
nas formas em que esses atores sociais se posicionam frente às novas conjunturas.
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Para fortalecer esta estratégia de luta das/dos trabalhadores é preciso dar visibilidade às
experiências, mostrando concretamente a possibilidade da recuperação de empresas em regime de
autogestão, com seus ganhos e desafios, o que significa principalmente trabalhar pelo fortalecimento
das experiências existentes. Ao mesmo tempo, é necessário colocar muita atenção e cuidado para não
reproduzir as desigualdades nas relações de gênero e na divisão do sexual do trabalho.
Consideramos que para que exista realmente igualdade de direitos e oportunidades para homens
e mulheres, é necessário transformar as instituições econômicas e sociais, incluídas as crenças, as
normas e as atitudes em todos os níveis da sociedade, desde o lar até no mercado de trabalho, desde as
comunidades até as instituições políticas locais, nacionais e mundiais.
Embora o horizonte que se apresenta para as/os trabalhadoras/es seja incerto, observa-se que, ao
longo de todo o processo de luta, em muitos dos casos das ETRs, estes conseguiram recuperar seus
trabalhos, a unidade produtiva e, sobretudo, manter sua união em organizações maiores, encontrando
novas alianças e redes dinâmicas. Dessa forma, as ETRs são casos paradigmáticos no conjunto de
outras experiências dentro da economia social e solidaria para poder analisar cenários onde as novas
relações podem significar a transformação da divisão sexual do trabalho, as relações de gênero e na
gestão coletiva.
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Women’s in recovered companies
Abstract: This paper aims to discuss women’s role in the experiences of recovered companies. This
phenomenon has emerged between the 1980s and 1990s in a series of Latin American countries that
were facing serious economic crisis, such as Brazil, Argentina and Uruguay.
These initiatives present themselves as a form of resistance toward unemployment associated to the
growth of bankrupt companies. Consequently, men and women occupy, resist and recover collectively
the factories in which they worked with the intention to defend their source of work. These processes
imply in a redefinition of the boundaries between “productive space” and “reproductive/domestic
space” and invite us to reflect about the consequences of this redefinition for both men and women.
Therefore, our proposal is, on the one hand, to present the innovations and social strategies
implemented by the workers in the daily life of the recovered companies. On the other, we intend to
give visibility to the participation of women as active protagonists in these recovery processes. Further,
we attempt to identify specific gender characteristics in these processes, considering that most of the
participants in the experiences of recovered companies are men.
This paper dialogues with a critical perspective from gender studies regarding the dichotomies
associated to production/reproduction and public/private space. Hence, we part from an integral vision
of feminine work based on the interrelations among domestic work and extra-domestic work.
Key words: recovered companies; work; gender.