NO REINO DAS GUAS: ENCANTADOS, NATUREZA E CULTURA DO PANTANAL

Mrio Cezar Silva Leite

RESUMO: This article stemmed from oral accounts about the Chacoror Bay, collected in field researches, in the Pantanal mato-grossense-MT, in the region of Baro de Melgao. Through the fluency of the voice, the memory of the Pantanal communities, and of the waters, a map is obtained that goes beyond the geographical lines, the data and the natural elements. Chacoror is an enchanted bay.The Chacoror waters, in the Pantanal dwellers imaginary and popular culture, seem to belong and be two distinct universes at the same time. The intersectional shaping of the enchantment, between natural and supernatural, also reaches the beings and myths that live in the Chacoror. In many cases, the imaginary beings are noticed in this intersection and are given a physical materiality.

PALAVRAS-CHAVE: Pantanal, Narrativas Orais, Mitos, Imaginrio.

Nos ltimos anos muito se tem pesquisado e escrito sobre o Pantanal. Entretanto, o conjunto de trabalhos, pesquisas, dissertaes e teses, em reas diversas e com abordagens e enfoques muito variados, trata majoritariamente de questes e preocupaes vinculadas ao meio ambiente, via de regra desvinculadas da populao que o habita. Claro que esse conjunto tem contribudo em muito para a percepo e resoluo de uma srie de problemas que, numa medida ou outra, diz respeito a todos ns preocupados com o nvel de contaminao das guas, a sobrevivncia de espcies ameaadas da fauna e da flora, as queimadas anuais, o ressecamento de lagoas e baas, a preservao do meio ambiente e ecossistemas, o comportamento da fauna ou da flora diante de novas condies ambientais etc. No todo, esses trabalhos ajudam-nos a entender e perceber como o sistema Pantanal tem se comportado e enfrentado suas prprias questes. Numa recente pesquisa1, da qual participei, do Ministrio da Integrao Nacional, realizada por pesquisadores da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), cujo objetivo era o levantamento bibliogrfico/e ou documental de obras cientficas, literrias e artsticas, numa perspectiva histrico-antropolgica sobre o Pantanal, de 1960 a 2002, de vrios eixos temticos desdobrados das Cincias Humanas e Sociais e das Letras verificamos que em todos os gneros (livros, artigos, teses, dissertaes, relatrios etc) o conjunto a ser desconsiderado (centrado em aspectos que no consideravam a populao ou suas relaes com o meio) era significativamente (assustadoramente?) maior.

Doutor em Comunicao e Semitica pela PUC-SP, professor de literatura brasileira no Departamento de Letras e do Mestrado em Estudos de Linguagem/Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). 1 O Projeto Memria do Homem Pantaneiro, conveniado entre o MI/IICA/FAPEC, foi coordenado em Mato Grosso por Lylia da

Silva Guedes Galetti (UFMT) e contou com a participao dos seguintes pesquisadores: Joo Carlos Barroso, Marinete Covezzi, Mrio Cezar Silva Leite, Sueli Pereira Castro, Tereza Cristina Cardoso Higa e Verone Cristina da Silva. Em Mato Grosso do Sul foi coordenado por Idinaura Aparecida Marques (UFMS) com a participao dos pesquisadores lvaro Banducci Jr. e Eudes Fernando Leite. Os grandes eixos temticos, que estipulavam um eixo principal com subtemas, foram cinco: Produo Social do Espao Pantaneiro e seu Entorno (eixo principal: Processos de reterritorializao, ocupao e produo social do espao e seu entorno); Scio-economia e Modos de Vida (eixo principal: Formas Histricas da Organizao Social, Econmica e Poltica da Gente Pantaneira); Concepes e Relaes da Gente Pantaneira com o Mundo Natural (eixo principal: Relaes dos Seres Humanos com a Natureza e a Problemtica da Conservao do Ambiente Pantaneiro e da Diversidade); Linguagens e Imaginrios (eixo principal: Representaes, Formas pelas quais homens e mulheres do Pantanal do sentido ao mundo); Identidade Pantaneira: Uma Questo Cultural e Poltica (eixo principal: Identidades do ser pantaneiro). A pesquisa demonstrou uma modificao dessa tendncia a partir da segunda metade dos anos 90 e nos anos iniciais de 2000.

Neste artigo, terei como foco central, o imaginrio dos homens e mulheres que habitam o espao Pantanal, a percepo que desenvolvem do seu prprio espao, a relao que estabelecem nele e com ele atravs dos mitos dgua, atravs de seus encantados. Aqui reinos so seres e seres so reinos e, de certo modo, tudo gua.

A populao que vive no interior do Pantanal de Mato Grosso, boa parte s margens dos rios ou lagoas, desenvolve uma percepo do espao que habita intimamente relacionada com a gua. Os fluxos de cheia, de novembro a maro, e de seca, de maro a novembro interferem no apenas na insero e no ritmo cotidiano da populao naquele espao, mas partilha tambm de suas elaboraes mentais e imaginrias em relao ao mundo, natureza, a vida e ao conjunto mtico que se engendra. E no se trata de determinismos geogrficos, mas sim de uma espcie de co-autoria onde o espao e a paisagem partilham do processo mental de sua prpria elaborao.2

Os seres encantados dgua fazem parte da vida, dos medos, dos episdios, da memria, das paisagens e da cultura da regio. O termo bsico e recorrente que define toda a percepo e elaborao que se movimenta no interior do imaginrio da populao pantaneira na relao com os mitos e os espaos o termo: encantado. No h reinos no sentido tradicional do termo, ou no sentido em que se aplique talvez a boa parte dos contos de fada: reis, rainhas, princesas, prncipes encantados. H mundos submersos, sobrenaturais que se misturam com o mundo natural, social e cultural. Ainda que os seres e os espaos sejam encantados, no Pantanal, o reino o da natureza e o da cultura.

Claro que entender ou explicar conceitualmente o que este termo exprime no problema para homens e mulheres do Pantanal, problema para o pesquisador ao se defrontar com ele. Entender o significado do termo encantado demonstrou-se fundamental para o desenvolvimento de minha pesquisa3, pois ele central e recorrente como percepo dos mitos e espaos do Pantanal. O termo encantado utilizado como uma espcie de expresso classificatria ou mesmo um conceito pelas populaes mais tradicionais e oralizadas da regio do Pantanal. Ele determina no apenas lugares carregados de sobrenatural, mas tambm seres mticos como o Minhoco e o Negrinho dgua entre outros. Observei que a noo de encantamento que se elabora no imaginrio popular pantaneiro, atravs das narrativas, engendra um universo onde alguns elementos convencionalmente distintos encontram-se enredados, entrelaados e indistintos. Os reinos da natureza, da sobrenatureza e da cultura se misturam.

No plano mais amplo e globalizador do encantamento que, na verdade, vai defini-lo no todo aparece, como trama fundamental, a indistino entre natural e sobrenatural. Este imbricamento revela-se na medida em que natureza e sobrenatureza no se distinguem, muito menos se opem, no interior da noo de encantamento. Nas vozes pantaneiras peixes, mitos dgua e a prpria gua intersecionam estes dois universos. As manifestaes desses seres ou desses espaos so percebidas e narradas como encontros ou experincias com encantados. Isso significa dizer que para esta populao a caracterizao de determinados eventos como encantados a sua explicao categrica e inquestionvel, fechada em si mesma. Minha anlise e interpretao revelou que nesta regio encantado significa no exatamente, e s, o sobrenatural, mas a constituio de um universo indistinto entre natureza e sobrenatureza que passa diretamente pela humanizao e culturalizao de dados topogrficos e dos seres imaginrios. A noo de encantamento colocando natureza e sobrenatureza num mesmo plano e esfera desdobra-se e ramifica-se em uma srie de outras indistines sem perder este assentamento bsico que provavelmente colocaria em pnico, ou desassossego, alguns pensamentos mais ortodoxos. A indistino, natural-sobrenatural, do encantamento estende-se para uma no separao no oposio entre natureza e cultura. Para as guas do Pantanal como um todo, a noo do encantamento da paisagem, do espao e dos prprios mitos, que dissolve a ruptura natureza-cultura. Elementos que convencionalmente estariam separados e somente em uma das esferas natureza ou cultura aparecem imbricados, misturados e indiferenciados. E, mais, profundamente emaranhados com o sentido de sobrenatureza.

Nos vrios relatos e narrativas, que recolhi durante a pesquisa de campo, a percepo do espao, pela populao, sempre se configurava como encantado. E na idia de encantamento misturavam-se mitos das guas como a Me dgua, o Negrinho dgua, a serpente; seres naturais como peixes e jacars; e a prpria gua como ser encantado independente. Trata-se, em verdade, de uma nica noo de encantamento que abrange vrios nveis aqui tratados mais ou menos como pontas ou manifestaes diferenciadas: encantados como mitos dgua (negrinho dgua, serpente, me dgua) e a prpria gua como universo encantado.

A natureza de maneira geral suscetvel a concepes onde se conectam percepes prticas, utilitrias, cotidianas e percepes sobrenaturais e mticas. No imaginrio popular brasileiro, quase sempre, a percepo da natureza elabora caractersticas antropomrficas para elementos naturais certos

2 Ver a esse respeito LEITE (2000) e LEITE (2003), especialmente o captulo Impresso de Paisagens.

3 Pesquisa de campo desenvolvida no Pantanal de Mato Grosso gravando as narrativas orais sobre os encantados dgua.

vegetais entristecem, outros espirram, assobiam, espalham sombras assustadoras, gemem, gritam, so agourentos ou para produzir precisam ser abraados por homem ou por mulher (CASCUDO, 1971, p. 55-83). O imaginrio tambm elabora para a natureza poderes sobrenaturais e mgicos de atrao, repulso e at mesmo de seduo plantas e ervas que neutralizam o mau olhado, a inveja, o azar, atraem a boa fortuna, o dinheiro, o amor, a felicidade.Convm frisar que, via de regra, a antropomorfia e os poderes sobrenaturais no so dissociados. Em muitos casos, a humanizao dos elementos naturais est na base para o encantamento e para o sobrenatural. Como se v nos exemplos acima, so percepes da natureza fortemente simblicas e mgicas que se estendem desde os efeitos teraputicos das ervas, acompanhados de prticas mgicas (CASCUDO, 1971, p. 55-83), at as atribuies de racionalidade natureza. Em alguns casos, a noo de natureza incorpora a noo de Deus ou vice-versa (SILVA, 1989, p. 21).

A gua, como elemento de misturas por excelncia, recebe sempre uma carga mgico-simblica muito variada que vai desde sua feminizao e sua ferocidade4, at elaboraes mais complexas. Em sua violncia assume uma clera especfica, ou seja, a gua recebe facilmente as caractersticas de um tipo de clera (BACHELARD, 1989, p.16).

Para a gua do Pantanal e para algumas baias, a baa de Chacoror por exemplo, o encantamento revela vrias realizaes desta carga sobrenatural-simblica no imaginrio popular pantaneiro sempre muito ligada a este tipo de clera.

As populaes ribeirinhas ou caiaras, de maneira geral, desenvolvem uma percepo do meio e de seus fenmenos naturais onde: De um lado, h um vasto conhecimento emprico adquirido pela observao continuada dos fenmenos fsicos e biolgicos. [] De outro lado as explicaes para tais fenmenos passam pela representao simblica e pelo imaginrio (DIEGUES, 1995, p. 5-6).

Alguns estudos da Antropologia e Etnologia j demonstraram que mais ou menos comum para as populaes caiaras a percepo em relao s guas que elabora a noo de um mundo reproduzido do mundo do seco. Ou seja, o universo submerso uma reproduo do universo de fora dgua. Tudo o que se tem no seco se tem na gua (SILVA, 1989, p. 84). Esta idia-imagem, este imaginrio, chega a grandes requintes de elaborao quando os prprios peixes so entendidos numa complexidade equivalente humana e social. Tm casas, famlias, saem para trabalhar, voltam para o almoo etc.(LIMA, apud SILVA, 1989, p. 39). Mas, at onde pude observar, no se estabelece claramente, nestes casos, a idia de que isto decorra de uma sobrenatureza das guas. Trata-se, se assim se pode dizer, de uma simples reproduo.

Para a populao pantaneira, de forma abrangente esta concepo de mundo aqutico reproduzido no estranha ou desconhecida. Mas o imaginrio popular pantaneiro introduz um outro elemento que faz com que o universo reproduzido ganhe outra dimenso: a do sobrenatural e do encantamento. Desta forma, estabelece-se que se trata somente at certo ponto de uma reproduo. De certo modo, uma reproduo que muda a ontologia essencial da imagem ou do mundo fornecido como modelo. Uma reproduo que engendra uma outra ordem diferente da original, do mundo do seco.

Para Bachelard, comentando as metforas da gua violenta e que reage s provocaes humanas, os nervos da gua esto flor da pele. E h algumas guas que tm a epiderme sensvel (BACHELARD, 1989, p. 190-191). Observa ainda Bachelard que alguns lagos so particularmente excitveis; reagem imediatamente a menor provocao (BACHELARD, 1989, p. 188). A baa de Chacoror, a maior do Pantanal mato-grossense e objeto central de minhas pesquisas, reage os barulhos humanos, conversas, gritos ou mesmo assobios. So eles que funcionam como provocao e a baa reage violentamente levantando suas ondas. Para a maioria da populao desta regio do Pantanal a baa de Chacoror encantada. Na voz-memria e no imaginrio popular inscreve-se a idia de que ela possui poderes sobrenaturais e as ondas que provoca so uma das formas de manifestao destes poderes.

Nos vrios relatos, que recolhi durante a pesquisa de campo, a percepo daquele espao, pela populao, sempre se configurava como encantado. E na idia de encantamento misturavam-se mitos das guas como a Me dgua, o Negrinho dgua, a serpente; seres naturais como peixes e jacars; e a prpria baa de Chacoror como ser encantado independente.

Num primeiro plano, um dos fortes elementos de caracterizao do encantamento de Chacoror so as grandes ondas que ela provoca. Todas as suas manifestaes sobrenaturais esto intimamente ligadas s ondas. Ocorre aqui, nesta primeira instncia, uma conexo entre o que se pode chamar de natural e sobrenatural que vai se espalhar para a percepo do encantamento e mesmo defini-lo como um todo para as guas de Chacoror e de algum modo para as guas do Pantanal. Esta manifestao de

4 Note-se tambm que para Bachelard a gua m muda de sexo torna-se masculina. Cf. tambm DURAND (1989).

ebulio das guas como reao a barulhos ou manifestao de seres sobrenaturais no exclusividade da baa de Chacoror pode ocorrer em todas as outras baias ou em todos os rios do Pantanal.

Estas ondas que poderiam ser atribudas a fatores hidrolgicos e climticos devido ao conhecimento, familiaridade, aos aspectos prticos e cotidianos da relao da populao com estas guas so atribudas ao sobrenatural5 e ao encantamento. E assim se abre um amplo leque de realizaes fabulosas. D-se, deste modo, uma inextrincvel simbiose entre Chacoror e os seres imaginrios. Como se ver a seguir, nos fragmentos-exemplos, desde a sutil humanizao da baa at os mitos dgua, as ondas permeiam todas as manifestaes de encantamento de Chacoror.

Ouam-se algumas vozes do Pantanal: Era umas dez horas da noite j. Levantava as ondas, ficava as ondas bravas, a baa brava quase que derrubou ns da canoa. [] falavam que era encantada. Ela embrabeceu, ficou brava. Eu no sei o que aconteceu, sei que sempre ela fica. Forma onda grande mesmo que o senhor no passa, eu no passo. Fica brava. [] Sempre vejo falar que a baa encantada. Meu pai dizia que encantada.6 Eu vinha da beira do rio com meu pai. A, ns vnhamos remando. A, entramos na baa. A baa estava lisinha, no tinha uma onda. A, ns vimos, no meio da baa, tinha uma praia, uma ilha, tinha um tipo de uma menininha, no sei se era guri ou se era menina, brincando com a areia. Punha areia pra c, areia pra l. A, pressentiu ns, correu e caiu na gua. Dessa hora pra c a onda cresceu que no fomos capazes de passar na baa.7

A braveza da baa de Chacoror manifestada pelas ondas a marca registrada de seu encantamento. E neste sentido, por outro lado, o encanto de Chacoror insere-se numa potica mais geral e de todas as guas.

Ainda que, para efeitos didticos, se possa aqui entender e analisar o encantamento nestas ramificaes ou instncias mitos dgua, seres naturais e Chacoror encantada individualmente devo esclarecer que elas compem um todo indissocivel. Trata-se, em verdade, de uma nica noo de encantamento que abrange vrios nveis.

Um segundo plano, ou instncia, do encantamento absolutamente conectado ao primeiro, visto acima8 a noo de Chacoror como ser mtico ou sobrenatural individualizado e matricial. Isto se manifesta quando a maioria das narrativas refere-se a ela como detentora do poder para engendrar os outros seres. Ela assim como em alguns casos a gua de maneira geral um reino em si. Alm das ondas e da braveza, atribui-se baa a realizao, a apresentao, dos outros seres encantados. A idia a de que tudo de sobrenatural que se manifesta na Chacoror criao dela e pelo seu prprio desejo. Dentro desta percepo os mitos dgua, mais gerais como a Me dgua o Negrinho dgua ou mesmo o Cavalo e o Boi dgua deixam de ser, at certo ponto, individuais e de todas as guas, com vida prpria, e passam a ser realizao, apresentao, da baa.

Ouam-se, mais uma vez, as vozes do Pantanal: Olha, na, nessa baa tem. Nessa tem porque ela encantada. [] Chacoror ali encantado que uma coisa! O encanto da baa representa de tudo quanto movimento que voc est enxergando. L, ele (o encanto) representa um homem, uma mulher, andando. Mas a baa que faz, a baa. Tudo a baa! A apresentao dela. De gente tambm. Dessas coisas que ela faz.9

Veja-se que neste caso a baa de Chacoror concebida como um universo-sobrenatural-me destes seres. De determinada maneira, eles, os seres imaginrios, no tm existncia prpria. So a manifestao e apresentao de seu encanto. Tudo a baa!

A elaborao essencial que se tem aqui que estes seres sejam eles quais forem no moram ou residem na baa, mas so a prpria baa e suas guas. Eles no habitam aquele espao, eles so o prprio espao. Misturados e integrados Chacoror. S tomam formas especficas e se manifestam

5 Preciso esclarecer que a populao pantaneira no explicita ou elabora a noo de sobrenatural. Isto , no se utiliza desta

expresso ou nomenclatura. A expresso utilizada sempre encantado ou encanto, a idia de sobrenatural manifesta-se quando acrescenta-se a afirmao de que se tratam de coisas do outro mundo. 6 Seu Arnaldo, Arnaldo ferreira Leite, mimoseano (de Mimoso), alfabetizado. Nossa conversa foi gravada em Porto So Bento.

Respeitei em todas as transcries as repeties, a sintaxe, e os regionalismos dos narradores. Apenas grafei as palavras dentro da ortografia padro da lngua portuguesa. O relato de seu Arnaldo sobre o encanto, ligado s ondas, de Chacoror. Para maiores detalhes e relatos completos ver minha tese de doutorado guas Encantadas de Chacoror: Paisagens e Mitos do Pantanal (LEITE, 2000) e meu livro (LEITE, 2003). 7 Dona Xan, Adiles Teixeira Leite, mimoseana, alfabetizada. Dona Xan esposa de seu Arnaldo e gravei nossa conversa no

mesmo local. O relato dela, como se v acima, sobre um ser, menino ou menina encantado, da baa. 8 preciso esclarecer que estou fazendo uma diviso, em planos e instncias, apenas para fins mais didticos e que, em verdade,

trata-se, no todo, da noo de encantamento da baa de Chacoror e das guas do Pantanal. So vrias realizaes do mesmo encantamento, e aqui se incluem os mitos dgua. 9 Seu Donato. Donato Rodrigues de Souza, mimoseano. Gravei nossa conversa em Cuiab.

quando, e como, ela quiser. Assim como as ondas, ela, e suas guas, que os engendra. E mais: ao engendrar os seres imaginrios e os mitos, numa espcie de movimento e dilatao do encantamento, a baa de Chacoror funde-se com eles tornando-se um nico ser. Ou seja, trata-se de um processo de criao-fuso entre seres, em tese, diferentes: um, o criador, a baa de Chacoror; outro, a criatura, os mitos e seres imaginrios. Mas, neste caso, a criatura engendrada mistura-se ao criador na sua totalidade. No limite, todos os mitos dgua quando se manifestam na baa e como realizao dela tornam-se a prpria Chacoror.

O inextrincvel imbricamento entre as guas de Chacoror e os mitos pode ser verificado brevemente aqui com um outro exemplo: o Barco Fantasma. O Barco Fantasma uma das realizaes sobrenaturais mais conhecidas de Chacoror. As narrativas dizem que era uma bandeira do Divino esmolando que l afundou, provavelmente no final do sculo XIX, e que todos os que estavam na barca morreram afogados. A festa, ou a bandeira, do Divino Esprito Santo envolve, em uma de suas partes, a esmola com um grupo de fiis perambulando, por um tempo, com a bandeira e uma banda de msica recolhendo donativos para a festa. Normalmente, a banda toca o Hino do Senhor Divino10. Conta-se que a barca do Divino atravessava a baa de Chacoror noite para esmolar, s vezes em Mimoso, comunidade s margens da baia, s vezes em Acorizal, s margens do rio Cuiab, e ia em festa. Com a bandeira vermelha frente e a banda tocando o hino.

Recuperando-se a idia de que a baa, ou a gua em geral, no gosta de barulho, este barco, apesar de ser a bandeira do Divino, j estava fadado a enfrentar a braveza das guas. E foi o que aconteceu. De uma hora para outra, de repente, formaram-se as ondas que viraram o barco e afogaram todos. E esse barco encantou-se. De tempos em tempos ele retorna superfcie com a bandeira no mastro, os afogados e o som da banda. Ele surge das guas.11 A bandeira, em verdade, foi vtima do encantamento e ao sucumbir, ao naufragar, tornou-se tambm encantada. Mas aqui preciso ressaltar que ela incorporou-se s guas encantadas de Chacoror. Um dos poderes dos encantados encantar, tornar igual, aqueles que pegam.12 Veja-se, no fragmento a seguir, de que forma o barco da bandeira do Divino se funde com a baa:

Aconteceu comigo. Quando essa baa ondava mesmo, que tinha gua pra ondar. O senhor pra passar nesta baa, a coisa mais fcil que tinha pra cortar a onda: o senhor tirava um nquel de dinheiro e jogava l e tchiiii, alisava na hora. Acalmava na hora! Pois , ento, estava pagando ali. Porque ali afundou a bandeira, n? Estava dando uma esmola ali. Jogava a moeda cessavam as ondas!13

Note-se que a esmola, o nquel de dinheiro, jogado nas guas, tem o poder de acalmar as guas. Acabar com suas ondas e permitir que o navegador a atravesse com tranqilidade. Entretanto, em tese, a nau do Divino Esprito Santo no tem nada a ver com a formao das ondas ou a braveza da baa, alm do fato de, possivelmente, ter sido uma de suas vtimas. Mas, como se viu, ocorre uma fuso Chacoror-barco que faz com que ao se pagar a esmola para a bandeira as ondas encantadas desapaream. Portanto, nesta configurao Chacoror e bandeira so, por assim dizer, um nico ser.

Esta noo de ser mtico-matricial, que chamei aqui de segundo plano do encantamento, desdobra-se e complexifica-se numa terceira instncia que, em verdade, abrange e sintetiza a elaborao do encantamento das guas como um todo. Que a j apontada idia da reproduo do mundo do seco.

O mundo das guas uma reproduo do mundo seco, mas no se trata de uma simples reproduo natural. Todos os seres e coisas reproduzidos ao serem aquaticamente duplicados mudam de categoria: sobrenaturalizam-se. Sem, entretanto, perder o seu carter natural.

E neste imbricamento, nesta indistino entre natural e sobrenatural, que se tece a noo de encantamento. O reino encantado aqui o reino das guas.

Note-se como os reinos se conectam e se cruzam. Um dito popular, muito comum na regio e que denota bem e de imediato esta idia, quando se refere gua a seguinte: na gua tem mais ser vivente do que cabelo na terra!

A princpio poder-se-ia pensar que esta expresso refere-se existncia de varias formas de vida natural nas guas, peixes, jacars, cobras etc. Mas a biloga Carolina da Silva e a antroploga Joana Fernandes detectaram um campo semntico para esta expresso um pouco mais complexo e profundo, dizem elas:

Apesar de toda a tcnica, estratgias, cuidados, ciclos lunares e nvel da gua que os pescadores devem observar, parece existir algo muito mais importante que regulamenta a pescaria.[] Isto

10 Cf. CASCUDO (sd, p. 356-357) e CASCUDO (1984, p. 367-417).

11 Ver a este respeito, incluindo as narrativas, minha tese de doutorado. Especificamente, o captulo 3.5. Chacoror: A Nau Fantasma

do Divino Esprito Santo (LEITE, 2000, p. 118-123). Em verso um pouco modificada, meu livro: LEITE, 2003, p. 111-116. 12

O Negrinho dgua um dos encantados que tem este poder: transformar suas vtimas em outros negrinhos dgua. 13

Seu Miguel, Manuel Miguel Arajo, melgassense, alfabetizado. Gravei nossa conversa em Estiro Comprido.

quer dizer que as guas so habitadas por muitas espcies de seres, alm dos peixes, e todos perigosos aos humanos.(SILVA e SILVA, 1995, p. 165).

Nas narrativas que recolhi, defrontei-me muito recorrentemente com seres como o Cavalo dgua, o Boi dgua, a serpente, o Negrinho dgua e a Me dgua qualificados e tratados por encantados, ou por seu sinnimo mais comum: bicho dgua. Observei que esta expresso aplica-se, em geral, para todos os seres imaginrios das guas e para a prpria gua.

Sobre uma gigantesca serpente, por exemplo, seu Donato dizia-me: Ela bicho como jacar. Note-se que ser bicho como jacar remete-se ao reino da natureza. E eu insistia: Mas ento coisa deste mundo seu Donato? E antes dele, era sua esposa, Dona Maria, que me respondia: No, do outro mundo. O senhor nunca viu coisa do outro mundo? Note-se que aqui outro mundo nitidamente o mundo sobrenatural. E seu Donato, na seqncia, para minha surpresa conclua: de outro mundo, porque os, os bichos de, de, rio, , da gua. No seco ele no pega! encantado! E vale dizer que esta serpente ao mesmo tempo em que levanta a canoa de seu Donato nas costas, mais de dois metros acima da gua, tem a cabea presa no altar da igreja de Nossa Senhora das Dores na cidade de Baro de Melgao, distante muitos quilmetros. Deste modo, percebe-se visivelmente as duas pontas, ou os dois plos, com que ela se conecta: de um lado, a materialidade, o bicho como jacar, o ser encarnado fisicamente, o mundo natural; por outro, todas as grandes imagens-serpentes mticas, do outro mundo, do reino do sobrenatural. A materialidade desta serpente manifesta quando a canoa de seu Donato levantada por ela. Recolhi tambm alguns relatos que narram que o pescador atirou o arpo no bicho dgua, no encantado, acertando-o. Explicitamente, o arpo fincou-se no corpo do bicho dgua que ficou zoando , nadando pra l e pra c, no rio. O sobrenatural, neste caso, garantido pelo fato do bicho dgua ter descoberto quem o atingiu e metido o bico, batido, no barranco at derrubar a casa do pescador. Note-se tambm que a concluso de seu Donato que se trata de coisa do outro mundo porque da gua, de rio, mas encantado (LEITE, 2003, p. 136-137).

Neste mesmo aspecto se pode falar tambm sobre o Negrinho dgua que encantado, mas pode dar enormes surras nos pescadores que pega e leva para sua casa em baixo dgua. (LEITE, 2003, p. 137)14.

Mesmo quando se trata do Cavalo e do Boi marinho h a noo clara de que eles no so apenas reproduo ou verso aqutica de seus equivalentes naturais da terra. Eles so encantados. Encantados, mas podem sair da gua no fim do dia ou noite para se alimentar de capim, para pastar (FERNANDES, 1998, p. 113-114).

Uma radicalizao desta concepo aparece em narrativas que apontam os mitos como seres dotados de racionalidade e com curiosidade com relao aos humanos. So alados a uma condio de quase cientistas. Veja-se o exemplo:

Eles tambm deve ter curiosidade sobre ns que vivemos aqui na terra, entendeu? Pode pegar pra levar pra pesquisar. Porque a gente no sabe a cincia deles, o que eles pensam tambm, n? Mas que existe, existe!15 Porque eles tem cidade deles (os encantados). E os homens que macho pega as meninas, leva pra cidade deles. O que, as mulheres que pega os homens tambm, leva pra cidade deles. Debaixo dgua. Em baixo da gua! Tem cidade deles! O senhor v que hoje todas as coisas esto dependendo de, de, muito estudo pra saber certas coisas. Os jacars tm cidade, dourado tem cidade. Tudo quanto esses peixes grandes tem cidade deles. Todos tm cidade!16

Veja-se que no primeiro relato acima configura-se explicitamente a idia de que os encantados no s tm curiosidade sobre ns que vivemos aqui na terra como a de que tm uma cincia. E embora no sendo explcito, o segundo relato refere-se ao fato de que hoje todas as coisas esto dependendo de muito estudo pra saber certas coisas. De certo modo, a afirmao muito estudo, do segundo fragmento, no est completamente fora do campo semntico de curiosidade sobre ns que vivemos aqui na terra e a cincia deles, do primeiro. No obstante serem narradores diferentes, o segundo relato traz a questo completamente inserida no contexto tanto da existncia de cidades dos encantados quanto de cidades dos seres naturais. Este relato faz inclusive uma distino sexual na preferncia, dos encantados, de escolha das vtimas. preciso notar tambm que, neste caso, permeia a fala dos narradores a racionalidade atribuda aos encantados e seres naturais.

14 Narrativa de Seu Manoel Miguel Arajo.

15 Narrativa de Dirce Padilha (FERNANDES, 1988, p. 61).

16 Relato de Seu Donato. Note-se que o narrador comea falando dos encantados e termina falando dos seres naturais. A idia aqui

que tanto os encantados quanto peixes e jacars possuem cidades em baixo dgua. E mais uma vez percebe-se que so colocados e tratados no mesmo plano, sem distino. Deste modo, a tradicional distino entre Natureza e Cultura se dilui bastante uma vez que a prpria natureza se reveste de caractersticas culturais (LEITE, 2003, p. 152).

Na verdade toda a ampliao do encantamento onde se equacionam natureza-cultura e sobrenatureza est ligada diretamente noo da gua como um outro mundo. Essa idia apresenta-representa o mundo subaqutico como reproduo do mundo do seco. O mundo submerso reproduo do mundo do seco, do mundo da terra. Da que no raro encontrar o Boi dgua, o Cavalo dgua, boiadas inteiras e seus boiadeiros surgindo das guas. Mas h a percepo clara de que no se tratam de simples reproduo, todos eles so encantados. O que se distingue no imaginrio popular pantaneiro do imaginrio de outras comunidades beira dgua que tambm elaboram essa concepo, de mundo aqutico reproduzido, que para o Pantanal esta reproduo aqutica muda ontologicamente os seres. A reproduo aqutica do mundo sobrenaturaliza e encanta o universo submerso. A gua o outro mundo. Sem deixar de ser, ao mesmo tempo, o prprio universo natural.

Assim a mitopotica pantaneira nas vozes, na memria, nas narrativas, no revivido do contar e recontar revela o encanto das guas constitudo na indistino dos mundos. Estas narrativas redesenham e reorganizam um outro Pantanal. E seu mundo e seus reinos nos atravessam! Para a populao pantaneira no se trata de encantados, reinos, natureza, sobrenatureza, cultura, trata-se de labuta diria, risos, medos, amores, tristezas, alegrias. Os narradores e narradoras deste trabalho, desta pesquisa, cartografam reinos-existncias, pantanais-vidas fissurando, rompendo, atravessando todo e qualquer ponto final.

BIBLIOGRAFIA

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