Artigo - Mensalão e Duplo Grau Consulex-libre

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Duplo grau de jurisdição enquanto direito humano

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  • O DIREITO AO DUPLO GRAU DE JURISDIO COMO ELEMENTO DA PROTEO DOS DIREITOS HUMANOS

    Em um momento no qual o Brasil experimenta a efetiva punio dos responsveis por crimes que envergonharam o Pas, infelizmente, poder ser o julgamento do Mensalo objeto de anlise (e anulao) pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em decorrncia da deciso do STF que no autorizou o desmembramento do processo, em violao regra do duplo grau de jurisdio prevista no Artigo 8, item 2, alnea h, da Conveno Americana sobre Direitos Humanos.

    POR VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI

    Especial

    O eminente Ministro Celso de Mello, no primeiro dia de

    julgamento da Ao Penal n 470-MG, ao analisar, em

    Questo de Ordem, a possibilidade de julgamento con-

    junto de todos os rus do Mensalo (mesmo aqueles

    sem foro por prerrogativa de funo) perante o Supremo Tribunal

    Federal, assim concluiu:

    A prpria jurisprudncia internacional, a respeito do princpio do duplo grau

    de jurisdio, tem reconhecido, como ressaltam, em seus preciosos comentrios

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    64 REVISTA JURDICA CONSULEX - ANO XIX - N 431 - 1 DE JANEIRO/2015

  • Conveno Americana sobre Direitos Humanos, os Professores Luiz Flvio

    Gomes e Valerio de Oliveira Mazzuoli, em extensa anlise do Artigo 8, item

    3, alnea h, do Pacto de So Jos da Costa Rica, que consagra o postulado

    do duplo grau, que h duas excees, sendo uma delas a que envolve os

    processos instaurados perante o Tribunal Mximo de cada pas, vale dizer,

    perante a Corte judiciria investida do mais elevado grau de jurisdio,

    como sucede com o Supremo Tribunal Federal.

    A mim me parece, desse modo, Senhor Presidente, com toda vnia, que

    no h que se cogitar de transgresso s clusulas, quer da Conveno

    Americana de Direitos Humanos, quer do Pacto Internacional de Direitos

    Civis e Polticos. (Questo de Ordem, Voto Min. Celso de Mello, julgado em

    02.08.12, p. 152-153.)

    Seguindo esse posicionamento, o STF, por maioria (9 votos contra e 2 a favor1), rejeitou o pedido do Advogado Mrcio Thomaz Bastos de desmembramento do processo, o que fez com que todos os rus do Mensalo (os que tinham e os que no tinham foro por prerrogativa de funo) passassem a ser julgados pelo Supremo conjuntamente.

    Honrou-nos o Ministro Celso de Mello com a citao de obra de nossa autoria, como suporte para justiicar a tese da impossibilidade de desmembramento do processo. Cabe destacar, contudo, que a passagem doutrinria citada2

    faz referncia ao sistema regional europeu de direitos humanos, em que realmente existe clusula permissiva a excepcionar o duplo grau de jurisdio quando h processos instaurados pelas Cortes supremas de cada pas.3 Regra semelhante, porm, no existe na sistemtica da Conveno Americana sobre Direitos Humanos (1969), em que a garantia do duplo grau apresenta-se como absoluta (no contm qualquer exceo).

    Nesse exato sentido, o Ministro Ricardo Lewandowski, na deciso da Questo de Ordem referida, bem observou:

    Preocupa-me, por im, o fato de que, se este Supremo Tribunal persistir no julgamento nico e inal de rus sem prerrogativa de foro, ele estar, segundo penso, negando vigncia ao mencionado

    art. 8, item 2, alnea h, do Pacto de So Jos da Costa Rica, que lhes

    garante, sem qualquer restrio, o direito de recorrer, no caso de

    eventual condenao, a uma instncia superior, insistncia essa que

    poder ensejar eventual reclamao perante a Comisso ou a Corte

    Interamericana de Direitos Humanos.4

    Como se percebe, houve divergncia na votao da Questo de Ordem perante o Supremo, tendo a tese (correta) do desmembramento do processo (baseada na garantia estabelecida pela Conveno Americana sobre Direitos Humanos) restado vencida.

    Este ensaio tem justamente a inalidade de compreender a regra do duplo grau de jurisdio no mbito da Conveno Americana sobre Direitos Humanos, bem assim como poder,

    eventualmente, o caso do Mensalo ser levado anlise, tanto da Comisso, quanto da Corte Interamericana.

    PRECEDENTE DA CORTE INTERAMERICANACASO BARRETO LEIVA VERSUS VENEZUELA

    O tema relativo ao duplo grau de jurisdio j foi debatido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos quando do julgamento do Caso Barreto Leiva vs. Venezuela, em 17 de novembro de 2009. Neste caso especico, o Senhor Oscar Enrique Barreto Leiva, ex-Diretor Geral Setorial de Administrao e Servios do Ministrio da Secretaria da Presidncia da Venezuela, respondeu a uma ao judicial juntamente com o ex-Presidente Carlos Andrs Prez e outras autoridades detentoras do foro privilegiado; Barreto Leiva, contudo, no detinha a prerrogativa do foro, porm, mesmo assim, em razo da regra da conexo, foi julgado pela instncia mxima do Judicirio venezuelano, tendo sido condenado a um ano e dois meses de priso por crimes contra o patrimnio pblico praticados durante a sua gesto, em 1989. Aps condenado, Barreto Leiva recorreu Comisso Interamericana de Direitos Humanos, que, em 2008, admitiu a queixa e fez recomendaes Venezuela. Ausente qualquer resposta do Estado, a Comisso submeteu, ento, a causa jurisdio da Corte Interamericana, que entendeu, ao inal, que a Venezuela violara o direito (consagrado na Conveno Americana) relativo ao duplo grau de jurisdio, ao no oportunizar ao Senhor Barreto Leiva o direito de apelar para um tribunal superior, eis que a condenao sofrida por este ltimo proveio de um tribunal que conheceu do caso em nica instncia.

    Como se percebe, o precedente do Caso Barreto Leiva coincide perfeitamente com a situao dos rus condenados no processo do Mensalo, uma vez que todos eles (tendo ou no foro por prerrogativa de funo) foram impedidos de recorrer da sentena condenatria para outro tribunal interno (eis que julgados pela instncia mxima do Pas), em violao regra expressa na Conveno Americana (Artigo 8, item 2, alnea h).

    Na Conveno Europeia de Direitos Humanos (1950) h ressalva expressa a permitir o julgamento de quaisquer pes-soas pelo mais alto tribunal do pas, sem que tal conigure violao ao duplo grau de jurisdio (Artigo 2, item 2).5 Po-rm, no que tange ao Brasil, certo que o Pas encontra-se sujeito jurisdio da Corte Interamericana de Direitos Hu-manos desde que aceitou a competncia contenciosa daquele Tribunal, por meio do Decreto Legislativo n 89/98; e no h qualquer ressalva ou exceo diferentemente do que faz a Conveno Europeia no que tange ao direito ao duplo grau de jurisdio na sistemtica da Conveno Americana.

    POSSIBILIDADE DE CONDENAO INTERNACIONAL DO BRASIL E ANULAO DO JULGAMENTO DO MENSALO

    Considerando a similitude absoluta entre o Caso Barreto Leiva, julgado pela Corte Interamericana em 17 de novembro de 2009, e o que foi decidido na Questo de Ordem da Ao

    65EDIO ESPECIAL - WWW.CONSULEX.COM.BR

  • Penal n 470-MG (Mensalo), no h dvidas de que esta ltima poder ser objeto de demanda perante o sistema interamericano de direitos humanos (a iniciar-se na Comisso Interamericana de Direitos Humanos, sediada em Washington, Estados Unidos).

    Tal se dar exatamente pelo fato de no ter o STF devidamente controlado a convencionalidade das leis brasileiras em especial, o Cdigo de Processo Penal, que estabelece a regra da conexo (arts. 76, inciso III e 78, inciso III) em face da Conveno Americana sobre Direitos Humanos.6 No caso do Mensalo, apenas trs rus Valdemar Costa Neto, Joo Paulo Cunha e Pedro Henry exerciam o mandato, poca do julgamento, de deputados federais, e, portanto, estavam amparados pelo foro privilegiado perante o Supremo; todos os de-mais 35 rus foram conjuntamente julgados pelo fato de o STF ter entendido que as conexes entre as acusaes no autorizavam o desmembramento da Ao Penal. Foi incoerente o STF nessa deciso, especialmente levando-se em conta que o prprio Supremo, desde dezembro de 2008 (RE n 466.343-SP, DJe 05.06.09) admite o status supralegal dos tratados internacionais de direitos hu-manos. Assim, uma vez que o Estado no controlou a convencionalidade das leis, ou a controlou de forma er-rnea ou equivocada, pode o sistema interamericano de direitos humanos, mediante queixa de qualquer cidado, avocar para si a competncia de controle e ordenar que nova soluo seja dada ao caso concreto.

    De fato, no h dvidas que o STF negou vigncia regra do Artigo 8, item 2, alnea h, da Conveno Americana, abrindo, a partir desse momento, a possibilidade de os interessados recorrerem ao sistema interamericano contra o Estado brasileiro (que agiu, por meio de um dos seus Poderes, o Judicirio, de maneira inconvencional, ou seja, contrria a um tratado de direitos humanos). Em outros termos, uma vez esgotada a competncia da Justia brasileira no caso do Mensalo, o processo j comeou em ltima instncia , incontroverso que podero os condenados, imediatamente, demandar o Brasil perante a Comisso Interamericana.

    No se poder alegar, perante o sistema interamericano, que o Direito brasileiro (segundo o entendimento atual do STF) aloca os tratados de direitos humanos em nvel abaixo da Constituio. De fato, toda a discusso existente no Brasil especialmente a partir do julgamento, pelo STF, do Recurso Extraordinrio n 466.343-SP sobre a hierarquia dos tratados no plano do nosso Direito interno, luz das normas internacionais de direitos humanos e da jurisprudncia da Corte Interamericana (assim como de todos os demais tribunais internacionais) no obsta a que o tribunal internacional condene o Estado por desrespeito a um tratado que ele mesmo, no exerccio de sua soberania, ratiicou e se comprometeu a cumprir.

    interessante notar que mesmo os rus que detm foro por prerrogativa de funo, segundo a sistemtica da Conveno Americana, devem ser julgados por juiz ou instncia judiciria inferior, eis que a regra do duplo grau (como se falou) absoluta na Conveno Americana; esta no faz acepo a qualquer tipo de pessoa ou agente para ins de aplicao da regra.

    Destaque-se, ainda, que o Brasil, ao ratiicar (em 1992) a Conveno Americana, no fez qualquer reserva ao tratado, especialmente com a inalidade de bloquear o comando do seu Artigo 8, item 2, alnea h. Nesse sentido, o Estado brasileiro assumiu para si exatamente o que dispe o art. 5, 2, da Constituio de 1988, segundo o qual os direitos e garantias expressos na Constituio no excluem outros direitos decorrentes dos tratados internacionais em que a Repblica Federativa do Brasil seja parte.

    CONCLUSOEm um momento no qual o Brasil experimenta a efetiva

    punio dos responsveis por crimes que envergonharam o Pas, infelizmente, poder ser o julgamento do Mensalo objeto de anlise (e anulao) pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em decorrncia da deciso do STF que no autorizou o desmembramento do processo, em violao regra do duplo grau de jurisdio prevista no Artigo 8, item 2, alnea h, da Conveno Americana sobre Direitos Humanos.

    VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI Ps-Doutor em Cincias Jurdico-Polticas pela Universidade Clssica de Lisboa. Doutor summa cum laude em Direito

    Internacional pela UFRGS. Mestre em Direito pela UNESP, campus de Franca. Professor Adjunto de Direito Internacional Pblico na Faculdade de Direito da

    Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Direito Internacional SBDI e da Associao Brasileira de Constitu-

    cionalistas Democratas (ABCD).

    NOTAS

    1 Os 2 votos a favor foram dos Ministros Ricardo Lewandowski e Marco Aurlio.2 Cf. GOMES, Luiz Flvio; MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Comentrios Conveno Americana sobre Direitos Humanos: Pacto de San

    Jos da Costa Rica. 3. ed. rev. , atual. e ampl. So Paulo: RT, 2010, p. 135.3 Na obra citada, l-se o seguinte (p. 135): As duas excees ao direito ao duplo grau, que vm sendo reconhecidas no

    mbito dos rgos jurisdicionais europeus, so as seguintes: a) condenao imposta pelo tribunal mximo do pas; b) caso de condenao imposta em razo de recurso contra sentena absolutria. (Grifo nosso.) O trecho destacado de autoria do coautor Luiz Flvio Gomes.

    4 STF AP n 470-MG, Questo de Ordem, Voto Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 02.08.12, p. 92.5 In verbis: Este direito [ao duplo grau de jurisdio] pode ser objeto de excees em relao a infraes menores, deinidas nos

    termos da lei, ou quando o interessado tenha sido julgado em primeira instncia pela mais alta jurisdio ou declarado culpado e condenado no seguimento de recurso contra a sua absolvio. (Traduo e grifo nossos.)

    6 Para um estudo completo do controle de convencionalidade, v. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. 3. ed. rev. , atual. e ampl. So Paulo: RT, 2013.

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