Artigo Manual do Agricultor Brasileiro - versão temporalidades

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    LEITURAS DE UM MANUALAGRCOLA OITOCENTISTA:

    SABERES E

    PRECONIZAES DE UMILUSTRADO NONASCIMENTO DA NAO

    BRASILEIRA

    Cssio Bruno de Araujo Rocha

    Graduando em Histria da UniversidadeFederal de Minas [email protected]

    Resumo

    O artigo levanta algunsquestionamentos sobre anatureza do Manual do AgricultorBrasileiro e as condies deleitura e circulao de textos noBrasil das dcadas de 1820 e1830. Aps um rpido examebiogrfico do autor, quatro temasso interpretados a partir da

    leitura do manual; procurar-se-esclarecer quais so suasconcepes sobre a escravido, aelite agrria, o papel econmicoda agricultura e a naobrasileira.

    Palavras-chaves: Manual tcnico,agricultura, Brasil imprio.

    Abstract

    The article raises some questionsabout the nature of the Manualdo Agricultor Brasileiro and theconditions of reading andcirculation of texts in Brasilduring the 1820s and the1830s. After a swift biograficexam of the author, four themesare interpreted based on thereading of the handbook; it willbe verified its conceptions ofslavery, agricultural elit,agricultures economic role andthe Brazilian nation.

    Key words: Tecnical handbook,agriculture, imperial Brazil.

    mailto:[email protected]:[email protected]
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    Temporalidades Revista Discente do Programa de Ps-graduao em Histria da UFMG, vol. 1, n. 2, ago./dez. 2009.www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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    Este artigo consiste em uma exposio dos resultados preliminares de meu trabalho de

    introduo pesquisa iniciado no primeiro semestre de 2008. Tal pesquisa aborda os manuais

    tcnicos para o mundo rural que circularam em Minas Gerais entre 1750 e 1950. 1

    Ao texto do manual, foram colocadas algumas questes que procuraram o interrogar

    de um modo profundo, de modo a colocar-nos, ns leitores do presente, em uma perspectiva a

    Estes

    escritos cientficos so analisados pelo ponto de vista de uma histria cultural da cincia, ou

    seja, procurando-se penetrar as relaes sociais que eles pressupem e as relaes que eles

    mantm com a realidade histrica em que foram produzidos e para a qual foram dirigidos.

    Ainda que a pesquisa procure ler uma ampla gama destes manuais, no momento

    estamos concentrados na leitura de um manual especfico, e a sua anlise que este artigo

    dedicar-se-. Foi escolhido o Manual do Agricultor Brasileiro, escrito por Charles Auguste

    Taunay, publicado em 1839 na cidade do Rio de Janeiro. Esta obra est profundamente

    relacionada com a sociedade escravista na qual foi gerada, e a sua leitura permite, ao mesmotempo, proceder a uma descrio deste meio social, que emerge das entrelinhas do texto, e

    ressaltar as crticas e concepes do autor a respeito dela.

    Desse modo, algumas perguntas bsicas podem ser feitas ao manual. Ele pode ser

    interrogado enquanto um produto tcnico, composto a partir do mais recente saber cientfico

    sobre a agricultura e a pecuria, produzido nas naes da Europa, notadamente Inglaterra e

    Frana, e tambm dos Estados Unidos da Amrica. um texto quepreconiza preceitos para as

    relaes escravistas, critica-as e apresenta proposies, demonstra sua posio a respeito dasprticas sociais das elites agrrias do oitocentos, tanto no modo como elas administravam suas

    propriedades quanto como elas se portavam em seus ambientes especficos de sociabilidade

    nas cidades do imprio. Analisa, ainda, a posio da agricultura na economia geral do pas e,

    finalmente, busca construir uma concepo de nao. As questes postas ao texto sero aqui

    pensadas no mbito dessas inquiries.

    Este artigo pretende estudar o Manual do Agricultor Brasileiro enquanto um

    documento cientfico especfico do perodo de formao e consolidao do Estado nacionalbrasileiro, a saber o fim do primeiro reinado e o perodo regencial, pois, embora tenha sido

    publicado em 1839, o livro foi escrito na segunda metade da dcada de 1820. De modo que as

    tenses e contradies polticas e sociais que marcaram essa fase da histria do pas tambm

    atravessam a trama aparentemente neutra e objetiva deste manual cientfico.

    1

    O projeto de pesquisa Manuais Tcnicos para o mundo rural do Professor Jos Newton Coelho Meneses(EV-UFMG), do qual sou orientando e bolsista tem financiamento da FAPEMIG desde janeiro de 2008. Elebusca investigar sobre a instruo tcnica agropecuria em um longo percurso histrico de nossa produo rural.

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    Leituras de um manual agrcola oitocentista:Saberes e preconizaes de um ilustrado no nascimento da nao brasileira

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    mais prxima possvel daquela do texto do documento. O processo interrogativo foi pensado

    como uma tentativa de compreenso hermenutica do texto do manual, de modo a apreender o

    sentido, o significado e a perspectiva das idias que ele transmite, captando o valor intrnseco

    dos argumentos apresentados.2 Para esta compreenso ser possvel, preciso partir-se de uma

    idia do passado como algo no morto, mas sim como o solo que mantm o devir, e onde o

    presente cria razes. A tarefa primeira, permanente e ltima da compreenso hermenutica

    no deixar que os conhecimentos e conceitos prvios do leitor se imponham sobre aqueles

    apresentados pelo texto. E tal s pode acontecer na medida em que os pr-conceitos daquele

    que l so revelados em sua natureza de propulsor da leitura e obstculo compreenso, e em

    que as teses, argumentos e conceitos do texto so revelados como um outro verdadeiro em

    relao opinio do intrprete.3

    Feitas estas consideraes, as quais considero o norte terico do trabalho, necessrio

    refletir sobre a natureza mesma de um manual tcnico-cientfico do sculo XIX. Em primeiro

    lugar, tcnica e cincia ocuparam lugares sociais diversos at idade moderna, quando a

    revoluo cientfica do sculo XVII, cujos antecedentes remontam ao renascimento e

    difuso do humanismo, alm da crtica ao saber escolstico, renovou o conceito de cincia,

    rachando a diviso que a separava do mundo da tcnica. A tradio grega, apropriada pelocristianismo romano, distinguia a cincia (episteme), da tcnica, o saber prtico (techn),

    alegando ser o primeiro o conhecimento real e vlido acerca do mundo, e o segundo um saber

    menor, que no diz da essncia das coisas, apenas de aplicaes na realidade passageira do

    mundo. O saber fazer da techn s comeou a ser reabilitado no sculo XVII, com as

    revolues cientficas que postularam o valor da experincia para o conhecimento, ligando a

    cincia permanentemente a aplicaes prticas na sociedade.

    Atingido este ponto, torna-se realizvel o ato (hermenutico)de colocar-se em uma perspectiva comum com o diferente.

    4

    Bacon foi um dos autores que melhor teorizou essa nova postura do conhecimentocientfico, aproximando saber e poder. O conhecimento teria a funo de melhorar o mundo

    social, sendo uma amlgama entre tcnica e saber contemplativo ou especulativo.

    5

    2 GARDAMER, Hans-Georg. O problema da conscincia histrica. Rio de Janeiro: Editora Fundao GetlioVargas, 1998, p.59.3 GARDAMER, Hans-Georg. O problema da conscincia histrica, p.61-71.4 ROSSI, Paolo. Artes mecnicas e filosofia no sculo XVI. In: Os filsofos e as mquinas 1400-1700.Companhia das letras, p.21-61.5

    BACON, Francis. Novum Organum: Verdadeiras indicaes acerca da interpretao da natureza. So Paulo:Editora Nova Cultural, 1973. (Os Pensadores, vol. 13).

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    Ao mesmo tempo, o desenvolver das mais variadas tcnicas dava, progressivamente,

    novo status social aos artesos, tradicionalmente excludos das instncias do poder nas

    sociedades do Antigo Regime. Com a diferenciao de arte, artesanato e artes mecnicas, a

    tcnica foi resgatada e carregada de positividade.6

    Foi neste contexto amplo que pde se pensar em manuais tcnicos e cientficos para a

    agricultura. Uma outra caracterstica da cincia do sculo XIX que informou os manuais

    tcnicos agrcolas, como oManual do Agricultor Brasileiro, foi a crena no seu prprio poderde acelerar o desenvolvimento material e social dos homens. O iluminismo, corrente

    filosfico-cientfica que englobava a nova concepo de cincia, postulou que o homem

    caminhava infalivelmente em direo a uma era de maior prosperidade, liberdade e felicidade,

    que seria atingida pela utilizao da cincia racional. Assim, todos os problemas sociais,

    como a m produo da agricultura de uma nao ou as crises de fome de um povo, poderiam

    ser solucionados pela aplicao racional de prticas cientficas. Por isso, os manuais, bem

    como os demais textos de divulgao cientfica, tinham tambm uma funo pedaggica deinstruir grandes populaes no conhecimento racional para que todo o pas, ou toda a

    humanidade, pudesse progredir rumo a formas sociais de maiores liberdade e felicidade.

    O desenvolver da revoluo industrial na

    Inglaterra do sculo XVIII acelerou e confirmou essa lenta tendncia da modernidade, de

    modo que novas cincias, com carter expressamente tcnico, puderam se afirmar em meio s

    classes intelectuais, como a qumica e a agronomia, ambas diretamente relacionadas com

    atividades produtivas.

    7

    Tais manuais tcnico-cientficos podem, portanto, ser analisados por duas

    perspectivas. Por um lado, constituem repositrios informativos resultantes de um conjunto

    de leituras feitas pelos seus respectivos autores. Estes, pelo poder cultural de que estavam

    imbudos, podiam determinar qual parcela deste conjunto de escritos lidos, atravs da

    condensao deles em seu texto aparentemente monoltico, poderiam atingir as diferentescamadas da opinio pblica, de acordo com o seu consumo de textos cientficos.

    8

    Os manuais muitas vezes no eram textos inteiramente originais de seus autores; o

    contato com leituras oriundas da cultura cientfica europia, explicitamente francesa e inglesa,

    foi comum aos vrios escritos cientficos produzidos em Portugal e Brasil desde o sculo

    6 ROSSI, Paolo. Artes mecnicas e filosofia no sculo XVI. In: Os filsofos e as mquinas 1400-1700,p.32-47.7 NUNES, Maria de Ftima. Imprensa peridica cientfica (1772-1852): leituras de sciencia agricola em

    Portugal. Lisboa: Estar editora, 2001, p.33-151.8 NUNES, Maria de Ftima. Imprensa peridica cientfica (1772-1852): leituras de sciencia agricola emPortugal, p.6-29.

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    Leituras de um manual agrcola oitocentista:Saberes e preconizaes de um ilustrado no nascimento da nao brasileira

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    XVIII e ao longo do XIX. As tradues e adaptaes feitas de Dicionrios, de Tratados, de

    Memrias, de artigos da imprensa cientfica especializada e mesmo de outros manuais

    constituem um claro indicador das possibilidades de seleo de leituras como uma parte do

    trabalho de composio dos textos que atingiriam um pblico leitor diverso.9

    NoManual do Agricultor Brasileiro, o autor ocasionalmente explicita suas leituras de

    outras publicaes cientficas, que cobriam um vasto universo, desde a literatura clssica

    (Xenofante, Cato, Varro, Columela), os autores renascentistas diretamente tributrios dos

    antigos, os escritores da escola da economia poltica, cujas concepes de agricultura foram

    diretamente influenciadas pelas categorias analticas de trabalho e produo, autores

    antilhanos, os primeiros a adaptar o pensamento europeu da agricultura s especificidades

    americanas, e manuais traduzidos ou escritos em portugus, especialmente o Fazendeiro do

    Brasil, editado em Lisboa entre 1800 a 1806, sob a coordenao de Frei Jos Mariano da

    Conceio Veloso, obra composta de tradues de vrios pases com comentrios indicativos

    do clrigo, visando instruir para modernizar a agricultura na Amrica portuguesa.

    10 Sendo

    membro da Sociedade Auxiliadora da Indstria Nacional desde 1833, Taunay teria tido

    acesso a alguns desses livros atravs da biblioteca da instituio e de seu rgo de divulgao,

    o Auxiliador da Indstria Nacional,11 que publicou tradues de textos sobre a agricultura

    colonial inglesa e francesa. Um dos momentos em que Taunay explicitou suas leituras foi arespeito dos tipos de arados tecnologia que ele muito desejava ver importada para o Brasil e

    a cuja inexistncia ele creditava parte do atraso da agricultura brasileira -, ao citar o Cours

    dagriculture de Rozier, em edio de 1785.12

    Rafael de Bivar Marquese, organizador da recente edio do Manual do Agricultor

    Brasileiro lida nesta pesquisa, analisou profundamente, em seus estudos de mestrado e

    doutorado, a literatura cientfica, do sculo XVI ao XIX, voltada para a administrao de

    propriedades escravistas, e no s na Amrica Portuguesa, depois Imprio do Brasil, mastambm no Caribe espanhol, francs e britnico e nos Estados Unidos da Amrica. Assim, a

    leitura de suas obras permite o entendimento do texto de Taunay como pertencente a uma

    9 NUNES, Maria de Ftima. Imprensa peridica cientfica (1772-1852): leituras de sciencia agricola emPortugal, p.4-7.10A Casa Literria do Arco do Cego (1799-1801). Bicentenrio: Sem livros no h instruo. Org. FernandaMaria Guedes de Campos et al. Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1999.11 VAINFAS, R.Dicionrio do Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Objetiva: 2002, p.679-680.12

    TAUNAY, C.A.Manual do Agricultor Brasileiro. (Org.). Rafael de Bivar Marquese. So Paulo: Companhiadas Letras, 2001, p. 101.

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    tradio literrio-cientfica com crticas, preconizaes e conceitos articulados em relao

    agricultura escravista.

    Segundo o autor, o Manual do Agricultor Brasileiro insere-se em um conjunto de

    obras relativas a normatizao da escravido nos estados nacionais nascentes, como o Brasil e

    os Estados Unidos. Tais textos foram analisados a partir do eixo da relao entre as naes e o

    sistema escravista. Algumas proposies foram comuns a todos eles, como a idia de que a

    escravido humanizava o cativo, removendo-o da animalidade das selvas africanas, a defesa

    de um melhor tratamento para os escravos, e, no caso brasileiro, a recuperao da experincia

    jesutica como modelo de administrao racional e eficiente das grandes escravarias, por meio

    de uma correta combinao entre concesso e disciplina.13

    Assim, a interpretao de um manual precisa passar pela anlise dos saberes

    cientficos e das idias sobre a sociedade (uma certa viso de mundo). Precisa igualmente

    passar pela descoberta do rosto humanizado que dava concretude existncia deste gnero de

    Uma vez que todas essas proposies podem ser encontradas no manual de Taunay,percebe-se que ele estava articulado a diversos outros autores brasileiros e estrangeiros,

    contemporneos seus ou no, formando uma corrente de leitores-autores que se influenciavam

    mutuamente e que procuravam responder racionalmente s questes que consideravam mais

    prementes para a suas naes. Assimilar a dimenso da tradio circundante e embasadora

    enriquece e torna mais complexa a anlise do documento, pois aumenta a diversidade da

    realidade histrica em que foi gestado.

    A segunda perspectiva de anlise dos manuais trat-los como veculos de difuso deidias, consistindo em um suporte de leituras para um determinado pblico. Estes leitores em

    potencial formavam um conjunto de populao alfabetizada e com ncleos de interesses

    focalizados, no caso deste trabalho, no desenvolvimento da agricultura, fosse de suas prprias

    unidades de produo agrcola, fosse da economia nacional como um todo.

    Os manuais, enquanto veculos de difuso de certa vertente da cultura cientfica

    oitocentista, no caso, os saberes sobre a agricultura, esto relacionados a outros mecanismos

    culturais de produo e difuso da cincia, como as instituies (academias, sociedades eclubes), as edies livreiras, a imprensa peridica e o papel cultural e social exercido pelo

    desempenho individual de cada uma das personalidades cientficas ligadas a este hemisfrio

    cultural.

    13 MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionrios da mente: senhores, letrados e o controle deescravos nas Amricas, 1680-1880. So Paulo: Companhia das Letras. 2004.

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    veculos culturais. Somente pela anlise dessas trs perspectivas, pode-se atingir uma

    compreenso hermenutica do documento, uma vez que ele ter sido destrinchado em suas

    posies mais ntimas e sucessivamente confrontado com os pr-conceitos nossos, leitores

    modernos.14

    O estudo de um material como o Manual do Agricultor Brasileiro requer o

    levantamento de algumas questes a respeito das condies de leitura de uma publicao

    tcnica e cientfica no Brasil do sculo XIX. De acordo com Chartier

    Dessa forma, poder-se- comear a visualizar a sociedade histrica em que ele se

    produziu.

    15

    Uma outra exceo se refere aos hbitos de leitura dos leitores mais populares e

    numerosos, que continuaram direcionados pelos modos antigos de ler ainda por longo tempo.

    , uma histria da

    leitura pode se centrar nas relaes entre impresso, publicao e leitura dadas pelos padres

    da imprensa inventada por Gutenberg ou em processos e relaes que exploram formas

    alternativas de publicao, circulao e leitura dos textos.Segundo este autor, o sculo XVIII foi palco de uma revoluo na leitura, anterior

    industrializao da produo do livro. Ela apoiou-se no crescimento da produo do livro, na

    multiplicao e transformao dos jornais, no triunfo dos livros de pequeno formato e na

    proliferao de instituies (sociedades de leitura, clubes do livro, bibliotecas de

    emprstimos) que tornaram possvel ler livros e peridicos sem ter que compr-los. V-se que

    tais transformaes no exigiram mudanas na tecnologia de impresso. Com isso, foram

    desenvolvidos novos gneros textuais e novas prticas de leitura. Os novos leitores liam livrosmais variados e em maior quantidade. A leitura era rpida e vida, e todos os textos eram

    submetidos a um julgamento crtico imediato. Essa nova forma de ler era irreverente e

    desprendida.

    O autor, porm, coloca algumas ressalvas a essa transformao da forma de leitura,

    mostrando, em primeiro lugar, como uma leitura numerosa no significa necessariamente a

    aplicao de crtica a todas elas (como no caso dos leitores humanistas). Alm disso, ele

    mostrou como essa revoluo conviveu com o desenvolvimento de uma outra prtica, maisintensa, de leitura, em que os romances de autores como Richardson, Rousseau e Goethe

    tomavam conta dos leitores, absorvendo-os em uma prtica de leitura bastante similar

    leitura tradicional dos textos religiosos.

    14 GARDAMER, Hans-Georg. O problema da conscincia histrica, p.57-71.15

    CHARTIER. R. As Revolues da Leitura no Ocidente. IN: Abreu, Mrcia (Org.).Leitura, histria e histriada leitura. So Paulo: ALB/FAPESP/Mercado Letras, 1999, p.19-31.

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    Estes leitores tinham dificuldades em ler mesmo os livretos mais baratos vendidos por

    mascates e dependiam da audio e da memorizao para conseguir l-los. Assim, eles liam

    baseando-se muito mais em um reconhecimento (de gneros, temas e formas) que na

    descoberta de novidades.16

    Durante o Imprio, a capacidade de ler no a assimilando de escrever ou a de

    contar, que, como mostrou Jean Hbrard, requerem raciocnios e processos mentais

    especficos e foram desenvolvidas como partes primordiais da alfabetizao ao longo de um

    processo histrico peculiar da histria da educao no Ocidente e no precisam,

    necessariamente coexistir

    Essas descries de tipos de leitores e correspondentes prticas de leituras permitem

    concluir que o novo tipo de leitores era aquele que consumia em maior nmero as novas obras

    cientficas, pois elas exigiam esse tipo de leitura, mais rpida, dinmica, volumosa e crtica.

    Desse modo, eles compunham boa parte do pblico alvo de obras como os manuais tcnicos

    que, em particular, pressupunham uma familiaridade com a linguagem e o universo cultural

    cientficos e a capacidade de analisar criticamente os textos para sua melhor aplicao

    realidade de cada leitor.

    17

    Essa afirmativa reforada pela considerao de alguns outros modos de circulao de

    livros. Bem como a posse de livros no significa a sua leitura, o no ter tambm no quer

    dizer que eles no fossem lidos. O espectro de leitores, ou de pessoas influenciadas pelo texto,

    inclui aqueles que os tomam por emprstimos, seja de bibliotecas mais organizadas, seja de

    pessoas de seu relacionamento, aqueles que tinham acesso a cpias manuscritas das obras ainda no sculo XIX existia a prtica de copiar mo seno livros inteiros, pelos menos

    alguns trechos, algumas vezes sem traduo, no caso de livros estrangeiros e aqueles que

    recebiam os contedos dos livros por via oral. Desde o perodo colonial, existiam, nos

    grandes centros urbanos do Brasil, locais de sociabilidade distinguidos pela difuso das obras

    - foi restringida a uma pequena minoria da populao, em grande

    parte coincidente com a mesma minoria que detinha o poder econmico e poltico, mas no

    somente a ela. A existncia de bibliotecas pblicas e privadas desde o sculo XVIII e desociedades e academias que tambm propiciavam a leitura sem que o leitor tivesse que

    comprar o livro aumentam a rea social que a divulgao de idias poderia atingir.

    16 CHARTIER. R. As Revolues da Leitura no Ocidente. IN: Abreu, Mrcia (Org.).Leitura, histria e histriada leitura, p.24-26.17

    HBRARD, J. Trs figuras de jovens leitores: alfabetizao e escolarizao do ponto de vista da histriacultural. IN: Abreu, Mrcia (Org.). Leitura, histria e histria da leitura. So Paulo: ALB/FAPESP/MercadoLetras, 1999, p.33-77.

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    mais em voga no momento, fossem elas polticas ou cientficas, tais como boticas, botiquins e

    sales das sociedades.18

    Estas observaes a respeito da destilao das cachaas aplicam-se igualmente saguardentes de cana, muito mais finas e de preo mais subido no mercado. Esteemprego da cana convm a quem tem posses medocres, porque pode principiar

    com uma engenhoca e dez pretos, e no existe gnero algum de cultura capaz deoferecer lucros to avultados...

    Dessa maneira, o Manual do Agricultor Brasileiro tinha um pblico em potencial

    maior que o esperado se pensarmos apenas na parcela da populao com condies

    econmicas de adquirir o livro. E ainda que fosse uma obra por concepo destinada aos

    proprietrios de terras e escravos uma minoria social e econmica -, no se destinava apenas

    aos maiores produtores, pois em muitos trechos ele se dirige ao pequeno produtor,

    aconselhando-o na direo da maior prosperidade material, como no seguinte excerto:

    19

    Charles Auguste Taunay nasceu em Paris a 17 de agosto de 1791, fruto de uma famliacom forte tradio artes e artstica. Os Taunay, originrios de Poitou na Normandia,

    associaram trabalho manual e artstico. Seu bisav, Salomo, fora ourives e qumico, e

    adquiriu certo renome ao descobrir um tom de vermelho muito apreciado na pintura

    decorativa patrocinada pela monarquia e aristocracia francesas. Seu av, Pierre-Antoine

    Henry Taunay (1728-87) seria qumico, ourives-comerciante e pintor da manufatura real de

    porcelanas de Svres. Seu pai, Nicolas-Antoine Taunay foi importante pintor de paisagens e

    cenas histricas no perodo da Frana revolucionria e especialmente durante o governo deNapoleo Bonaparte. Ainda que no se enquadrasse totalmente no estilo neoclssico que

    dominava a pintura na poca, Taunay conseguiu consolidar sua carreira atravs da

    perseverana na escalada dos degraus da Academia Real de Pintura e Escultura. Por no se

    curvar totalmente aos parmetros neoclssicos, mantendo um estilo prprio, Nicolas-Antoine

    Taunay demorou a se consolidar, e mesmo quando conseguiu se aproximar do centro do

    Como foi dito acima, uma compreenso mais profunda do documento exige, entre

    outras coisas, uma anlise, ainda que breve, da pessoa por trs de sua fatura, pois ela

    transmite ao texto no s seus conhecimentos sobre o assunto especfico, mas tambm suas

    idias sobre a sociedade em que vive, sobre diversas prticas sociais e seus valores. Em suma,

    um texto est marcado de modo indelvel pela viso de mundo de seu autor.

    18 SILVA, M.B.N. Histria da leitura luso-brasileira: balanos e perspectivas. In: ABREU, Mrcia (org.).

    Leitura, histria e histria da leitura . So Paulo: ALB/FAPESP/Mercado Letras, 1999, p.147-164.19 TAUNAY, C.A.Manual do Agricultor Brasileiro, p.116.

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    poder, suas obras continuaram recebendo crticas no meio artstico parisiense. Durante o

    governo de Bonaparte, o casal consular, e depois imperial, formado por Napoleo e Josefina,

    tornou-se o maior mecenas das artes francesas, pois o Estado imperial precisava de obras

    artsticas monumentais que ressaltassem a grandeza do Imprio e do imperador. Assim, por

    compor a entourage da imperatriz Josefina, Nicolas-Antoine consolidou sua carreira como

    um dos pintores que construiu a representao grandiosa do Estado napolenico.20

    Por essa razo, a queda do Imprio e a restaurao dos Bourbon trouxeram

    conseqncias graves para a vida do pintor e da sua famlia. Charles-Auguste, autor do

    Manual do Agricultor Brasileiro, j fazia parte do exrcito francs desde o incio da dcada,

    tendo participado inclusive da campanha da Rssia de 1812, ocasio em que foi ferido na

    cidade de Leipzig. O jovem militar era um ferrenho partidrio de Bonaparte, tendo inclusiveparticipado de seu exrcito durante a Campanha dos Cem Dias.

    21

    Com a queda definitiva de Napoleo, rapidamente os artistas ligados a ele foram

    excludos da Academia francesa. A situao de Nicolas-Antoine era particularmente ruim

    devido a seu filho bonapartista. Charles-Auguste provocou um escndalo na sesso solene do

    Instituto de Frana de 1 de outubro de 1814, quando reagiu no incluso do nome de seu

    pai lista dos indicados ao prmio de Roma. Ele, fardado, avanou contra os duques de

    Angoulme e Wellington gritando que a Legio de Honra fosse concedida ao pai. Pensou-seque se tratava de um atentado bonapartista e, em conseqncia, Charles-Auguste foi preso e

    expulso do exrcito. Seu pai continuou sem a medalha.

    22

    No Brasil, Charles-Auguste deu continuidade carreira militar iniciada em 1810 na

    campanha da Espanha. Tornou-se oficial superior do exrcito brasileiro e lutou nas guerras de

    independncia na Bahia, Piau e Maranho. Antes disso, juntamente ao irmo Thodore-

    Assim, a viagem para o Brasil teve diversos benefcios para os Taunay, a oportunidade

    de recompor sua famlia, uma sada poltica para o bonapartismo de Charles-Auguste, a

    possibilidade de viver isoladamente e distante das guerras europias, afastando-se das intrigas

    do Instituto de Frana e uma chance do pai poder praticar o seu gnero preferido de pintura

    paisagista, valendo-se da celebrada natureza brasileira para conseguir uma nova clientelatanto na antiga ptria, quanto na nova.

    20 SCHWARCZ, L.M. O sol do Brasil: Nicolas-Antoine Taunay e as desventuras dos artistas franceses no cortede d.Joo. So Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.146-153.21 SCHWARCZ, L.M. O sol do Brasil: Nicolas-Antoine Taunay e as desventuras dos artistas franceses na corte

    de d.Joo, p.153.22 SCHWARCZ, L.M. O sol do Brasil: Nicolas-Antoine Taunay e as desventuras dos artistas franceses na cortede d. Joo, p. 133-154, 311-313.

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    Leituras de um manual agrcola oitocentista:Saberes e preconizaes de um ilustrado no nascimento da nao brasileira

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    Marie, dedicara-se propriedade que o pai adquirira no macio da Tijuca prxima cascata

    Boavista (depois conhecida como cascatinha Taunay), cultivando o caf com o uso de

    trabalho escravo um fato talvez notvel, pois Charles-Auguste mostrou-se, mais tarde,

    contrrio escravido, ainda que a defendesse em certas ocasies.23

    Ao contrrio do pai, que regressaria Frana em 1821, Charles-Auguste criaria

    slidos vnculos com o Brasil. Aps participar das guerras de independncia, ele pediu baixa

    do exrcito e se dedicou gesto da propriedade da famlia e a atividades intelectuais.

    Realizou uma srie de tradues, inclusive de versos franceses, escreveu monografias

    agrcolas e vrios opsculos, como o Guia de Viagem a Petrpolis. da dcada de 1820 a

    redao do Manual do Agricultor Brasileiro, que s seria publicado em 1839. Foi fundador

    do Messager du Brsil e da Sociedade Imperial de Agricultura, alm de ter colaboradointensamente noJornal do Comrcio.

    24

    As matas no s embelezam o cho, e do madeira, frutas e sombra, seno queso tambm a origem do hmus ou terra vegetal, produzem e conservam asnascentes e fontes, rompem a violncia dos furaces e entretm a salubridade daatmosfera. Nos declives, as chuvas e trovoadas tendem a lavar a terra, e acarregar a poro mais fecunda e fina. Portanto, a coroa de matos, suprindo comnova poro de hmus, ao mesmo tempo que abriga dos meteoros as zonasinferiores em estado de cultura e lhes conserva a umidade, de primeira

    utilidade.

    Taunay tambm se destacou como denunciante da destruio das florestas da cercania

    do Rio de Janeiro. Essa preocupao com a natureza no pode ser considerada ecolgica no

    sentido moderno do tempo, pois as relaes entre homem e natureza neste tempo seguiam a

    linha colocada por Bacon, de que ela deveria ser dominada pelo homem e forada a lhe

    conceder seus frutos. A atuao de Taunay era motivada por preocupaes apenas

    econmicas, pois ele tinha a percepo dos benficos que a conservao de certas reasflorestais poderia ter para a produo agrcola, aumentando os lucros do agricultor. No trecho

    seguinte doManual do Agricultor Brasileiro ele expressou essa preocupao:

    25

    Tendo permanecido no Brasil at o ano de 1864, Charles-Auguste Taunay dificilmente

    pode ser considerado apenas como um francs que escreveu sobre a realidade brasileira. Seu

    olhar no simplesmente o do estrangeiro. O contato com diversas partes do pas em viagens

    23 MARQUESE, R. B. Introduo. IN: TAUNAY, C.A.Manual do Agricultor Brasileiro. (Org.). Rafael de BivarMarquese. So Paulo: Companhia das Letras, 2001, p.10-19.24 SCHWARCZ, L.M. O sol do Brasil: Nicolas-Antoine Taunay e as desventuras dos artistas franceses na corte

    de d. Joo, p.313.25TAUNAY, C.A.Manual do Agricultor Brasileiro, p.. 103.

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    pelo interior, a prtica diria da produo agrcola nas condies prprias do pas com

    pouqussima tecnologia e com o uso do trabalho escravo - e a leitura de variadas obras sobre a

    realidade e as perspectivas da agricultura brasileira aproximaram sua anlise da viso

    brasileira, com profunda compreenso de sua realidade, ainda que de uma forma idealizada,

    provocada pelo momento de consolidao da nao brasileira, de que o prprio manual foi

    partcipe, sua maneira. Como disse Marquese em sua introduo ao Manual do Agricultor

    Brasileiro, Taunay exerceu um olhar estrangeiro que se naturaliza brasileiro26

    A temtica da escravido com certeza a mais importante da obra, fato evidente porter o autor dedicado dois captulos exclusivamente a este tema. Sem dvida, ele no era

    insensvel s grandes contradies sociais que a continuidade do sistema escravocrata

    acarretava para a sociedade brasileira, pois o autor explicitamente assumiu uma postura

    ambgua e pragmtica quanto ao assunto. Ao mesmo tempo em que condenava a escravido,

    considerando-a um contrato entre a violncia e a no-resistncia, que tira ao trabalho a sua

    recompensa, e s aes o arbtrio moral, ataca igualmente as leis da humanidade e da religio,

    e os povos que o tm admitido na sua organizao tm pago bem caro esta violao do direitonatural

    .

    Desse modo, podemos passar anlise aprofundada das idias a respeito da realidade

    brasileira de que o autor impregnou o seu texto. Muitas so as possibilidades de abordagem

    nessa perspectiva, mas para os fins desse artigo, foram escolhidas aquelas que mais

    nitidamente mostrassem as relaes do Manual com a sociedade escravista do Imprio doBrasil. Destarte, quatro foram as temticas selecionadas para serem abordadas atravs do

    Manual do Agricultor Brasileiro, a saber: qual era a concepo do autor sobre a escravido e

    quais crticas ele fazia a ela? Que papel ele prescrevia elite produtora da sociedade

    brasileira? Que posio teria, para o autor, a economia rural dentro do todo da economia

    produtiva brasileira? Por fim, qual era a idia de nao que se depreende das pginas do

    texto?

    27

    Porm, a gerao que acha o mal estabelecido no fica solidria da culpabilidadedaquilo que, pela razo que existe, possui uma fora muitas vezes irresistvel, ecertos abusos radicais tm uma conexo to estreita com o princpio vital de uma

    , ele defendia a sua manuteno no pas, porque considerava que a sua sbita

    extino desorganizaria todo o sistema produtivo brasileiro, trazendo mais prejuzos aos

    agricultores que a sua manuteno, como se v no trecho a seguir:

    26

    MARQUESE, R. B. Introduo. IN: TAUNAY, C.A.Manual do Agricultor Brasileiro. (Org.). Rafael de BivarMarquese. So Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 24.27TAUNAY, C.A.Manual do Agricultor Brasileiro, p.50.

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    escravos, o autor sabia das diversas artimanhas arquitetadas pelos cativos para resistir, ainda

    que passivamente, explorao. Portanto, ele entendia que os escravos deveriam ser

    submetidos a uma rgida disciplina, que regulasse todos os instantes de sua vida, no s os

    momentos de trabalho, mas tambm como eles aproveitariam suas horas livres, de modo que

    o senhor pudesse controlar a religio, o lazer, qualquer outra forma de trabalho, as relaes

    afetivas e as famlias de seus escravos. Em suma, (...) preciso sujeit-los a uma rigorosa

    disciplina, e mostrar-lhes o castigo inevitvel. (...) um preto se no sujeitaria nunca

    regularidade de trabalhos que a cultura da terra requer (...) somente a mais rigorosa disciplina

    valer para aplicar os negros a um trabalho real e regular...31

    O castigo seria a grande arma do senhor para manter efetiva a disciplina em sua

    propriedade. Deveria ser cultivada no escravo a conscincia de que a infrao de qualqueruma das regras impostas pelo senhor acarretaria em um castigo, cada vez mais duro conforme

    o escravo se mostrasse mais incorrigvel, O medo, e somente o medo, alis empregado com

    muito sistema e arte, porque o excesso obraria contra o fim que se tem em vista

    .

    32

    O chicote de uma s perna, vulgarmente chamado de bacalhau, parece-nosconveniente, e cinqenta pancadas desse instrumento so, ao nosso ver, suficientes

    para castigar todo o crime cujo conhecimento for confiado aos senhores. Os crimesque exigissem penas maiores, como fugas repetidas, furtos considerveis,desobedincias e bebedeira incorrigveis, revolta contra o castigo e outros da mesmanatureza, deveriam ser castigados na cadeia dos respectivos distritos, a requerimentodos senhores e deferimento dos juzes de paz, que decidiro sumariamente.

    .

    Os castigos deveriam ser duros e exemplares, para garantir que as infraes dos

    escravos no se repetissem e para criar uma tradio de respeito ordem e hierarquia social

    do estabelecimento agrrio que reproduzia a hierarquizao da sociedade em geral entre a

    escravatura. O grande objetivo de um senhor de escravos deveria ser, segundo Taunay,estabelecer uma tradio de respeito s normas e s regras, to forte entre os escravos, que

    eles prprios vigiassem uns aos outros para evitar qualquer crime que prejudicasse o

    andamento normal da fazenda. Sobre os castigos, o autor chegava a ser bastante detalhista

    sobre como e em qual quantidade ele deveria ser aplicado e em relao a quais crimes, como

    se pode notar abaixo:

    33

    Ao mesmo tempo em que apresentava suas concepes sobre como deveria ser o

    tratamento dos escravos pelos senhores, Taunay, em certas passagens, apresentou algumas

    cenas do cotidiano dos cativos. No se deve tomar as afirmaes do autor como a verdade

    31

    TAUNAY, C.A.Manual do Agricultor Brasileiro, p.55.32 TAUNAY, C.A.Manual do Agricultor Brasileiro, p.54.33 TAUNAY, C.A.Manual do Agricultor Brasileiro, p.68.

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    Leituras de um manual agrcola oitocentista:Saberes e preconizaes de um ilustrado no nascimento da nao brasileira

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    histrica, uma vez que o seu olhar era condicionado pelo seu modo de ver o negro (um ser

    naturalmente inferior ao branco e vicioso, amoral) e o senhor (ser tambm naturalmente

    superior ao escravo e dotado de qualidades quase sobre-humanas, como se ver abaixo).

    Considerando-se a perspectiva do autor, pode-se vislumbrar alguns momentos do cotidiano

    capturados em seu texto.

    O autor destacou principalmente aspectos da alimentao dos escravos, pois ela estava

    diretamente ligada ao modo como a fazenda seria gerida, com eficiente produo para a

    subsistncia convivendo com a cultura mais larga voltada para o comrcio externo. Assim, diz

    o autor:

    Seja qual for o gnero de lavoura adotado, daremos como primeira regra deeconomia o procurar antes de tudo tirar o mantimento da escravatura da mesmafazenda, pois destarte o proprietrio evita a maior despesa. Para no se ver napreciso de comprar carne-seca, a criao de suficiente poro de carneiros e porcosser-lhe- proveitosa, assim como o mandar fiar e tecer em casa o algodo necessriopara vestir os escravos.34

    Semelhantemente, o autor recomenda a distribuio regular de cachaa aos negros

    com a funo dupla de incentiv-los ao trabalho pesado e evitar que eles freqentassem as

    vendas e tavernas com as tavernas, peste do Brasil e perdio da escravatura, deve ser

    proibida debaixo dos mais severos castigos.

    35 Porm, tambm aqui a rgida disciplina

    deveria se manter, e a bebida alcolica deveria ter momentos certos para ser distribuda,

    preferencialmente (...)um copinho de manh e outro nos domingos de tarde, produzir muito

    bons efeitos....36 Como na referncia ao gosto pela cachaa, o autor destacou a apreciao

    dos negros pelo fumo aqui novamente se faz perceber o seu olhar racialista e racista, pois

    afirma que os escravos so mais propensos que os brancos a viciarem-se pelo uso do fumo.

    Portanto, mais uma vez o bom juzo do senhor requerido para promover uma distribuio

    gratuita de fumo aos escravos, de modo a evitar alteraes e conflitos, Os negros de ambos

    os sexos gostam imoderadamente do fumo, e, para o obterem, so capazes de cometerexcessos que os senhores de juzo prevem, fazendo dele uma distribuio regular sua

    escravatura.37

    A respeito da alimentao, o autor apontou os componentes mais comuns da rao

    dada aos escravos. Eram eles o feijo, a carne-seca, a abbora, o car, a batata-doce, os

    34 TAUNAY, C.A.Manual do Agricultor Brasileiro, p.84.35 TAUNAY, C.A.Manual do Agricultor Brasileiro, p.75.36

    TAUNAY, C.A.Manual do Agricultor Brasileiro, p.61.37 TAUNAY, C.A.Manual do Agricultor Brasileiro, p.147.

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    carurus (nome que reunia diversos vegetais),38

    A tarefa de evangelizao dos cativos foi tratada por Taunay como uma das formas de

    manuteno da disciplina frrea entre os negros, como diz ele no trecho seguinte: (...) de

    lhes [os escravos] mandar ensinar e praticar a religio, sendo alis o meio mais eficaz de os

    conservar obedientes, laboriosos, satisfeitos da sua condio e de ocupar inocentemente as

    horas de domingo.

    a farinha de mandioca. O cultivo de todas

    essas plantas seria imprescindvel para a obteno de lucros com a agricultura, sobretudo

    porque o preo do escravo estava em alta e o dos produtos agrcolas, em baixa, pois evitaria

    que o proprietrio tivesse que gastar seu capital com a alimentao da populao de seu

    estabelecimento.

    39 O ensino da religio catlica era tambm um dever moral e religioso

    dos senhores, que a ele no poderiam faltar, (...) os senhores tm portanto obrigao, nomenos como cidados do que como cristos, de lhes mandar ensinar e praticar a religio.... A

    converso dos negros ao catolicismo no apresentaria grandes problemas ao senhor, pois,

    segundo Taunay, A religio catlica romana, como se ensina e pratica em Portugal e no

    Brasil (...) e sua tendncia para a superstio a torna ainda mais apropriada ao gnio dos

    pretos, crdulos e supersticiosos por natureza.40

    Segundo Marquese, em vrios momentos Taunay usou imagens de um regime de vida

    militar para ilustrar a importncia da rgida disciplina de controle do trabalho escravo

    A aplicao de estrita, rgida e constante disciplina combinada ao ensino e prtica da

    religio catlica aos escravos teria o poder de criar uma tradio de obedincia, como foi ditoacima, que, afinal, se manteria em uso por si s, com intervenes progressivamente mais

    raras do senhor, desde que este tomasse o cuidado de no permitir disciplina esmorecer e de

    retirar os elementos incorrigveis do contato com os demais escravos.

    41

    De acordo com este autor, Taunay inaugurou um novo modo de se pensar a

    administrao do trabalho escravo nas propriedades rurais brasileiras, sem, no entanto, deixar

    . Visto

    que algo similar tambm se faz presente no manual em relao a um modo ideal de educao

    da elite, como se ver abaixo, pode-se ter certeza de que a sua carreira militar, encerrada apsas guerras de independncia do Brasil, marcara de forma indelvel sua concepo de mundo e

    das relaes sociais.

    38 TAUNAY, C.A.Manual do Agricultor Brasileiro, p.167.39 TAUNAY, C.A.Manual do Agricultor Brasileiro, p.72.40

    TAUNAY, C.A.Manual do Agricultor Brasileiro, p.73.41MARQUESE, Rafael de Bivar. Administrao & Escravido: idias sobre a gesto da agricultura escravistabrasileira. So Paulo: HUCITEC/FAPESP, 1999. p. 210, 212, 218.

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    de resgatar algumas prticas dos jesutas. Construindo a reflexo mais sistemtica sobre a

    administrao do trabalho escravo que apareceu na primeira metade do sculo XIX 42

    (...) porque o dono de certo nmero de escravos rsticos, sendo bom agricultor,preenche somente a metade de sua tarefa, devendo juntamente possuir e exercer aspartes que constituem o bom chefe de um pequeno reinado, no qual, por governardespoticamente, e acumular as atribuies de legislador, magistrado, comandante,

    juiz e algumas vezes verdugo, nem por isso menos responsvel do seu bom

    governo, do qual depende a prosperidade da famlia.

    ,

    Taunay analisou minuciosamente todos os aspectos da vida da escravaria, elaborando um

    modelo de administrao dos escravos que poderia ser utilizado por qualquer agricultor, sem

    importar o tipo de lavoura a que se dedicasse. Como foi dito, os pilares de tal modelo seriam a

    disciplina severa e o paternalismo de fundo catlico.

    Como se viu, cabia ao senhor a tarefa de estabelecer as leis da escravatura em sua

    propriedade, condio que conferia elite rural brasileira uma caracterstica muito especfica

    segundo a viso do autor. Ele acreditava que o senhor de um estabelecimento agrcola

    equivalia, nos limites de sua propriedade, a um rei, que tinha nas mos os destinos de todos os

    seus dependentes, fossem escravos, empregados, agregados ou sua famlia. Taunay idealizouuma figura do proprietrio de terras e escravos bastante paternalista. Somente ele, por meio de

    sua profunda sabedoria, teria a capacidade de guiar a produo da fazenda e o

    desenvolvimento moral de seus dependentes, como se infere pelo trecho abaixo:

    43

    Pelo que precede, podemos concluir que o chefe de um estabelecimento deagricultura no Brasil carecia ser homem quase universal. Legislador e magistradocom a escravatura, arquiteto para edificar as casas, engenheiro e maquinista para osdiferentes servios que pertencem s mesmas artes, naturalista para conhecer osvegetais, deve a tantas partes unir ainda luzes da arte mdica, veterinria e outrasmuitas....

    As qualidades superiores do senhor tambm se expressariam pela sua capacidade de

    gesto da fazenda, pois ele deveria ter conhecimentos prticos acerca de cada uma das

    diversas reas envolvidas na produo, desde a escolha do local mais apropriado para se

    estabelecer, at noes de engenharia para construo de estradas e canais para o escoamento

    da produo, passando pelas vrias etapas do cultivo, tanto da grande produo comercial,

    quanto da de subsistncia. Sobre os atributos extraordinrios que um agricultor deveria

    possuir, Taunay diz:

    44

    42 MARQUESE, Rafael de Bivar. Administrao & Escravido: idias sobre a gesto da agricultura escravistabrasileira, p. 206.43

    TAUNAY, C.A.Manual do Agricultor Brasileiro, p.48.44 TAUNAY, C.A.Manual do Agricultor Brasileiro, p.105.

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    provvel que o autor percebesse que a sua idealizao do agricultor brasileiro

    estivesse muito distante da realidade, e para contornar essa situao, ele props, no penltimo

    captulo de sua obra, a criao pelo Estado de fazendas-modelos que sediariam cursos

    agronmicos, cujo principal objetivo seria formar o homem de elite com as habilidades

    necessrias para a prtica da agricultura de modo a retirar essa atividade do estado de

    decadncia em que se encontrava no perodo de composio do manual. Sua inteno

    explcita: (...) as Cmaras institussem cursos agronmicos, aonde os filhos dos habitantes

    mais abastados, destinados a serem algum dia senhores de grande nmero de escravos em

    engenhos e fazendas....45

    O modo de se lidar com a escravatura seria tambm parte importante da formao dos

    alunos, contando com aulas especficas para tal, com primazia para os alunos mais velhos.

    Embora tambm previsse a entrada de alunos desprovidos de

    fortuna, o objetivo da formao destes seria servir aos filhos da elite, ou comoadministradores de suas propriedades ou como novos professores das fazendas-modelos.

    O curso procuraria abranger todas as atividades que poderiam ser teis na

    administrao de uma fazenda, tais como agronomia, botnica, zoologia e arte veterinria

    (note-se que a veterinria ainda no tinha o status de cincia, era considerada uma arte, ligada

    mais fortemente tcnica que ao conhecimento cientfico), medicina domstica, qumica

    aplicada agricultura, mineralogia e montanstica, direito constitucional e economia poltica.

    Essas seriam as disciplinas de primeira classe, as mais importantes para a formao doagricultor. Mas no seriam as nicas. Outras matrias, com teor introdutrio, seriam ensinadas

    aos alunos em seus primeiros anos na escola: a aritmtica, a geometria, a lgebra elementar,

    mecnica dinmica e hidrodinmica aplicadas agricultura, aritmtica rural, corte de pedras,

    fatura de estradas, desenho aplicado botnica, histria natural, elementos de geografia e

    histria universais, poesia e literatura nacionais, msica e dana. Percebe-se a articulao do

    plano de ensino com a figura idealizada do agricultor. Este, um homem que lida

    cotidianamente com atividades muito diversas, precisa de uma formao igualmente variada eampla, que lhe d o arcabouo de conhecimentos necessrios para a boa gesto de seus

    interesses. E no s de conhecimentos prticos deveria ser constituda a educao dos filhos

    da elite. Como eles desempenhariam tambm funes de juzes e legisladores (quase

    soberanos em suas terras), conhecimentos mais humansticos eram da mesma forma teis. Da

    o ensino de histria, geografia, poesia, literatura, msica, dana, primeiras letras e latim.

    45 TAUNAY, C.A.Manual do Agricultor Brasileiro, p.282.

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    Leituras de um manual agrcola oitocentista:Saberes e preconizaes de um ilustrado no nascimento da nao brasileira

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    Elas seriam dadas pessoalmente pelo administrador geral, que deveria ensinar,

    metodicamente, aos alunos a arte de governar os escravos. A estrita disciplina a que os negros

    deveriam ser submetidos teria sua correspondncia no modelo da formao dos senhores,

    pois, pensava Taunay, somente sendo acostumados desde a infncia a viverem sob um

    regulamento militar, os futuros agricultores poderiam submeter todos os seus dependentes aos

    seus desgnios de justia. Portanto, compunham o programa das fazendas-modelos atividades

    como manejos e manobras militares, caadas e instrues para o uso de armas. A

    militarizao se faria presente em todos os momentos da vida escolar dos alunos, desde a sua

    rotina espartana, at a sua organizao em grupos hierarquizados segundo o modelo do

    exrcito. Aqui percebemos claramente a influncia da formao e do exerccio militar de

    Taunay.Ao mesmo tempo em que idealizava uma figura de senhor, Taunay criticava

    duramente o comportamento de parte da elite agrria brasileira, especialmente aquela que

    abandonava a vida no campo para se estabelecer nas grandes cidades do Imprio,

    especialmente na Corte. Os ambientes urbanos seriam corruptores dos valores elevados que a

    vida ligada diretamente agricultura produziria, e no s para o senhor, tambm sua esposa,

    filhas e filhos teriam a moral corrompida por uma prolongada vida na cidade, caracterizada

    por frivolidades. O trecho seguinte exemplar dessa viso depreciativa da vida nos centrosurbanos:

    Enquanto se conservam a pureza dos costumes, e a singeleza patriarcal, este sistematem poucos inconvenientes; mas quando a existncia social se complica, quando oluxo e cobia se apoderam das almas, quando os ricos proprietrios se concentramnas cidades para brilhar na Corte, ou exercitar os direitos polticos; quando a sededas honras, das delcias e do lucro que as procura se exaltam, ento os abusos queresultam do absolutismo paterno e de tantos tribunais caseiros que no tm regranem responsabilidade sobrepujam por toda a parte: ento os tratos, cruzes efogueiras inventam-se e empregnam-se no segredo das famlias; ento as murenas eos peixes dos viveiros cevam-se com a carne dos escravos; (...) ento pe-se emprtica tudo o que a lascvia e crueldade podem inspirar de horrores emonstruosidades e imaginaes depravadas pelo abuso das delcias.46

    OManual do Agricultor Brasileiro pode ser considerado um longo elogio vida rural

    e quele a que ela se dedica. Tal existncia seria marcada pelo intenso labor, do trabalho de

    todos os habitantes da fazenda, mesmo das mulheres, sinhs ou escravas. Da surgiriam,

    praticamente, todos os bens de que o estabelecimento poderia precisar. Alm de evidentes

    vantagens para a economia da propriedade, este modo de viver seria definidor da prpria elite,

    46 TAUNAY, C.A.Manual do Agricultor Brasileiro, p.70.

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    que no se tornaria, assim, parasitria, mas intimamente ligada aos processos produtivos, pois

    deles participariam. Famlias com tal tradio de trabalho seriam, alm de mais elevadas

    moralmente, mais propensas a enriquecer. Um exemplo apresentado pelo prprio autor:

    Temos visto nos sertes vrias famlias que fiavam e teciam em casa todo o pano douso domstico, redes, cobertores, toalhas, lenis, pano chamado de Minas parasacos, capas e vestidos dos negros; tudo se fabricava pelas pretas debaixo dos olhosdas senhoras, que se no desdenhavam de pr elas mesmas mos obra. (...) e comotodo o mantimento se colhia igualmente da fazenda, podemos asseverar que todasestas famlias viviam mui pacficas, bem morigeradas, fartssimas...47

    (..) bem como os que dizem respeito cultura dos gneros de consumo, artigo tantomais importante que, sendo preciso esperar ao menos cinco anos para tirar o lucrode uma fazenda de caf, a compra dos gneros seria ruinosa durante to longo

    espao; e podemos considerar esta circunstncia como a causa mais preponderanteda pouca fortuna que os lavradores de caf tm feito nas proximidades do Rio deJaneiro, ao passo que os da serra acima esto bem longe de se queixar, apesar damaior despesa com o seu transporte.

    Uma fazenda deveria tender auto-suficincia segundo as consideraes de Taunay

    tambm por um aspecto prtico. Ao produzir quase tudo que precisasse, diminua-se a

    necessidade de o senhor gastar seu capital com produtos no relacionados com a produo

    comercial da fazenda. Essa exigncia era ainda mais premente no caso de cultivos que

    demorassem alguns anos para iniciarem uma produo lucrativa ao agricultor, como era o

    caso do caf, por exemplo. As vantagens da convivncia de uma cultura de subsistncia com

    uma cultura de exportao so exemplificadas pelas diferenas entre os produtores de caf dos

    arredores do Rio de Janeiro e os da regio serrana da provncia, durante a dcada de 1820:

    48

    A agricultura era tida por Taunay como a mais elevada moralmente e importante

    atividade desenvolvida pelo gnero humano, sendo a base de toda a civilizao (A

    agricultura sem dvida a ocupao mais til, a mais nobre, e a mais chegada natureza, de

    quantas o estado de civilizao tem proporcionado aos homens).

    49

    Um tal estado de infncia, quando, em todas as regies onde se cultivam os mesmosgneros de exportao que ns cultivamos, o esprito de inveno e deaperfeioamento, poupando braos e despesas ao mesmo passo que amplia osprodutos, permite dar mais em conta esses mesmos gneros, pode no somente vir a

    Por essa razo, ele muito

    lamentava o que considerava um estado de decadncia da agricultura do Imprio. Os diversoscultivos, se comparados com outras regies de produo no planeta, estariam em um crtico

    estado de infantilidade, pois a tecnologia usada era bastante arcaica.

    47

    TAUNAY, C.A.Manual do Agricultor Brasileiro, p.139.48 TAUNAY, C.A.Manual do Agricultor Brasileiro, p.127.49 TAUNAY, C.A.Manual do Agricultor Brasileiro, p.300.

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    aniquilar em breve tempo a nossa exportao, mas at fazer que no-los venhamtrazer de fora a muito melhor preo e qualidade para o nosso consumo (...).50

    Para o autor era preciso que se introduzissem inovaes tecnolgicas nas prticas

    agrcolas (O emprego das mquinas que multiplicam as foras do homem a base de todo o

    produto avultado da agricultura.),

    51

    (...) a mais proveitosa operao para sustentar a nossa agricultura decadente, a nicaque pode fazer frente carestia dos pretos, e para o futuro subministrar ao Brasil afaculdade de se livrar da praga da escravido, , sem dvida, a geral adoo doarado, e o governo deveria por todos os meios ao seu alcance apregoar e propagaresta inovao.

    das quais o uso do arado seria a mais importante.

    52

    Para Taunay, a decadncia da agricultura do Imprio era devida, tambm, intensa

    alta do preo do escravo e queda dos preos dos produtos agrcolas nos mercadosinternacionais a que era dirigida o grosso da produo agrcola brasileira. O autor adverte que

    as possibilidades de prodigioso enriquecimento pela agricultura eram pequenas, e mais

    prprias de um tempo passado em que as condies econmicas eram mais favorveis aos

    agricultores (Verdade que estes milagres de indstria pertencem poca da barateza dos

    escravos e carestia dos produtos; hoje temos o revs desta prosperidade, e, portanto, duplicada

    obrigao de nos cingir s virtudes que podem salvar a agricultura da runa que a ameaa).

    53

    Entre todas as regies do globo, talvez a mais apropriada agricultura seja o Brasil,pois que na sua vasta extenso acham-se climas, terrenos e exposies de quantasqualidades possvel imaginar, de forma que dificilmente nos poderemos lembrarde uma espcie vegetal, ou de uma sorte de cultura, que no exista j, ou que nopossa, para o futuro, introduzir-se neste abenoado pas, to fecundo e variado emprodues, ameno em aspectos e ares, to regado de guas, revestido de matas, e

    A pssima condio em que Taunay julgava estar a agricultura brasileira contrastava

    muito com a idia de nao que ele tinha do pas em que se estabelecera e deixava

    transparecer em seu texto. O Brasil imaginado por Taunay um den da agricultura, uma vez

    que possui condies de abrigar quaisquer vegetais e quaisquer animais existentes no mundo,

    pois dispe de climas e solos variados e propcios aos mais diversos cultivos. O autor resgata

    uma tradio de glorificao da paisagem natural brasileira que, em ltima instncia, vem

    desde a carta de Caminha ao rei de Portugal. Mais de trezentos anos depois, o Brasil era ainda

    o lugar onde tudo o que se plantasse dava. O trecho seguinte muito ilustrativo da

    representao do Brasil construda por Taunay:

    50 TAUNAY, C.A.Manual do Agricultor Brasileiro, p.36.51 TAUNAY, C.A.Manual do Agricultor Brasileiro, p.35.52

    TAUNAY, C.A.Manual do Agricultor Brasileiro, p.99.53 TAUNAY, C.A.Manual do Agricultor Brasileiro, p.85.

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    aprazvel s vista, que os primeiros descobridores no duvidaram avanar quetinham por fim deparado com o paraso terrestre.54

    Contudo, era justamente essa idealizao do potencial agrcola brasileiro que motivava

    o autor a ser bastante otimista quanto s chances do pas em recuperar a sua agricultura e se

    tornar uma potncia comercial mundial. Este era o lugar de direito da nao para o autor, pois

    o (...) o Brasil , por sua natureza, destinado a servir de emprio a todos os povos, e, por

    conseqncia, a possuir o cetro do comrcio.

    55

    Os meios mais eficazes para que semelhante estado de coisas jamais se realize, epara nos remir do atual atrasamento, to prejudicial como vergonhoso, esto aonosso alcance, e so mesmo bem singelos e baratos; e como com as formas dogoverno representativo no h, para uma nao, males incurveis, nemmelhoramentos impossveis, devemos esperar que no passaro duas legislaturassem que os legisladores tomem em sria ateno estes meios, e os adotem no seutodo, ou ao menos em grande parte.

    O elogio ao pas no se dirigia somente s

    suas possibilidades agrcolas, embora estas fossem as razes de sua possvel grandeza, mas

    tambm ao seu sistema de governo e sua populao, qualificados como plenamente capazes

    de solucionar todos os problemas econmicos nacionais e conduzir o Brasil a uma nova era de

    prosperidade, fato, alis, que no estaria muito distante no tempo:

    56

    Portanto, as paginas do Manual do Agricultor Brasileiro continham muito mais que

    recomendaes tcnicas para agricultura. De sua leitura desprende-se uma representao da

    nao brasileira, que estava em pleno processo de formao quando de sua composio, e da

    sua elite, a qual teria um papel primordial na recuperao da decadente agricultura brasileira e

    na ascenso do Brasil posio de potncia comercial global. Neste processo, a convivncia

    No se pode perder de vista que o Manual do Agricultor Brasileiro foi composto em

    um perodo de consolidao do Estado Nacional brasileiro, portanto eram estimuladas pelogoverno a produo e circulao de obras que fizessem o elogio da nao, enaltecendo suas

    qualidades e indicando sua grandeza futura. Se a primeira edio do manual foi uma iniciativa

    de Jlio Villeneuve, proprietrio do Jornal do Comrcio, a segunda foi feita sob os bons

    auspcios do governo regencial, que, atravs da ao do Ministro da Justia e do Imprio

    Bernardo Pereira de Vasconcelos, recomendou o livro para uma distribuio por todo o

    territrio imperial e para ser reimpresso pela Sociedade Auxiliadora da Indstria Nacional.

    Assim, tambm a literatura tcnico-cientfica teve um papel a desempenhar no enaltecimento

    da nao que o Estado exigia para se consolidar.

    54

    TAUNAY, C.A.Manual do Agricultor Brasileiro, p.33.55 TAUNAY, C.A.Manual do Agricultor Brasileiro, p.34.56 TAUNAY, C.A.Manual do Agricultor Brasileiro, p.37.

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    com a escravido, ainda que duramente criticada, deixava uma importante marca, visto que

    era a necessidade de legislar sobre os escravos que transformava o carter e os valores da elite

    agrria, elevando-a uma posio de distribuidora da justia e do bem estar social na sociedade

    escravista.

    Este artigo no pretendeu esgotar as questes que podem ser colocadas leitura do

    Manual do Agricultor Brasileiro, apenas a mostrar caminhos para uma compreenso profunda

    do texto e do contexto que o conformou e que se deixa ver pelas entrelinhas, segundo uma

    concepo hermenutica do ato de compreender. Assim como outras questes, de diversas

    ordens, podem, e devem, ser levantadas; algumas j feitas devem ser refinadas e aprofundadas

    em busca de uma maior proximidade com a realidade brasileira conformadora do documento.

    Inicialmente, as prprias tcnicas preconizadas pelo manual devem ser historicizadaspara uma compreenso mais ampla da histria da agricultura brasileira. Na dimenso da

    circulao do texto em si, ainda no est claro quais pessoas ou grupos sociais realmente

    tinham contato com a obra, nem at que ponto a sua leitura refletia em aplicaes concretas

    das prticas recomendadas. Portanto, necessrio buscar casos especficos e documentados da

    leitura do manual, o que conduz a interrogaes sobre como cada pessoa entrava em contato

    com ele e, conseqentemente, como se deu a distribuio do livro pelo territrio do imprio,

    sendo plausvel a hiptese de intensa participao do Estado nesse processo, por mecanismosainda a serem pesquisados. J no plano das idias contidas no texto, pode-se interrog-lo a

    respeito de quais influncias das correntes de pensamento europias ele sofreu (liberalismo,

    iluminismo, fisiocracia inglesa) e quais as concepes de trabalho e de agricultura em que ele

    se baseia. Nesse aspecto, ser fundamental refletir sobre os modos como tais escolas

    filosficas influenciaram a produo do texto, se que o fizeram de fato, tentando precisar em

    quais partes elas se fazem mais presentes e em quais no; por exemplo, relevante questionar

    como a formao ilustrada do autor condicionou as suas crticas escravido.Uma outra dimenso do Manual do Agricultor Brasileiro que merece uma

    investigao mais detida se faz presente nos diversos comentrios de Taunay acerca da

    necessidade de preservao de matas e florestas nos estabelecimentos agrcolas em geral.

    Como foi dito acima, seria um anacronismo considerar que Taunay fora um defensor da

    ecologia ou mesmo do conceito de desenvolvimento sustentvel. No entanto, os constantes

    comentrios feitos pelo autor sobre a importncia das florestas para a agricultura e sobre as

    inter-relaes entre fenmenos atmosfricos, vegetais, animais e minerais sugerem uma

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    compreenso complexa da natureza, contrastante com a instrumentalizao dos recursos

    naturais tpica da cincia oitocentista. Destarte, preciso investigar quais podem ter sido as

    razes dessa compreenso do mundo natural (quais outros autores a partilhavam, como suas

    obras circularam e eram recebidas pelo pblico) e at que ponto existia, ou no, um conflito

    entre tal modo de entender a natureza e o modelo dominante de cincia baconiano.

    Artigo recebido em 21/12/2008 e aprovado em 09/04/2009.