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ARTIGO O agente comunitário de Saúde Pública: a proposta de Manguinhos Karen Giffin Tizuko Shiraiwa O artigo descreve a implantação de um trabalho de atenção primária à saúde emfavelas do Rio de Janeiro Agentes de saúde das comunidades atendidas, cada uma responsável por uma população de aproximadamente 2000 pessoas, trabalham dentro de um modelo operacional que inclui visitas domiciliares contínuas às famílias e trabalho em grupos de mulheres e de gestantes. As ações básicas desenvolvidas neste período inicial representam uma extensão de cobertura do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher e da Criança. A segunda parte do artigo discute alguns pontos polêmicos relacionados com a conceituação deste modelo de atuação, que promove tanto uma melhoria no estado de saúde como o desenvolvimento social. INTRODUÇÃO A UTGSF, unidade de treinamento e prestação de serviços da Escola Nacional de Saúde Pública, im- plantou em junho de 1986 um projeto de saúde comuni- tária que é baseado na figura da agente comunitária: moradoras das favelas atendidas que são capacitadas, supervisionadas e remuneradas para prestar serviços às suas comunidades. No momento em que a efetivação da Reforma Sanitária exige uma definição de novos modelos na prestação de serviços e na formação de recursos humanos, acreditamos ser de grande importân- cia a análise de experiências como esta, que traçaram os seus caminhos através da ação concreta, junto à população atendida. O relato que segue é organizado em duas partes. Na primeira, uma descrição detalhada do processo de implantação permite aos interessados uma apreensão e crítica da metodologia utilizada para construir o pa- pel destas agentes de saúde, junto com elas próprias, a partir da realidade de suas comunidades. Na segunda parte, um enfoque mais conceitual aborda algumas das questões que têm sido colocadas com mais freqüência nas discussões deste modelo operacional inovador. A opção pela discussão metodológica é, não obs- tante, conseqüência de uma posição teórica com respei-

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ARTIGOO agente comunitário de Saúde Pública:a proposta de Manguinhos

Karen GiffinTizuko Shiraiwa

O artigo descreve a implantação de um trabalho deatenção primária à saúde em favelas do Rio de JaneiroAgentes de saúde das comunidades atendidas, cadauma responsável por uma população deaproximadamente 2000 pessoas, trabalham dentro deum modelo operacional que inclui visitas domiciliarescontínuas às famílias e trabalho em grupos de mulherese de gestantes. As ações básicas desenvolvidas nesteperíodo inicial representam uma extensão de coberturado Programa de Assistência Integral à Saúde daMulher e da Criança.A segunda parte do artigo discute alguns pontospolêmicos relacionados com a conceituação destemodelo de atuação, que promove tanto uma melhoriano estado de saúde como o desenvolvimento social.

INTRODUÇÃO

A UTGSF, unidade de treinamento e prestaçãode serviços da Escola Nacional de Saúde Pública, im-plantou em junho de 1986 um projeto de saúde comuni-tária que é baseado na figura da agente comunitária:moradoras das favelas atendidas que são capacitadas,supervisionadas e remuneradas para prestar serviçosàs suas comunidades. No momento em que a efetivaçãoda Reforma Sanitária exige uma definição de novosmodelos na prestação de serviços e na formação derecursos humanos, acreditamos ser de grande importân-cia a análise de experiências como esta, que traçaramos seus caminhos através da ação concreta, junto àpopulação atendida.

O relato que segue é organizado em duas partes.Na primeira, uma descrição detalhada do processo deimplantação permite aos interessados uma apreensãoe crítica da metodologia utilizada para construir o pa-pel destas agentes de saúde, junto com elas próprias,a partir da realidade de suas comunidades. Na segundaparte, um enfoque mais conceitual aborda algumas dasquestões que têm sido colocadas com mais freqüêncianas discussões deste modelo operacional inovador.

A opção pela discussão metodológica é, não obs-tante, conseqüência de uma posição teórica com respei-

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to ao papel do agente de saúde no sistema de saúde:a de que este papel deve ser construído a partir decada realidade específica.

Lembramos que a Atenção Primária à Saúde(APS), como estratégia de extensão de cobertura eo agente de saúde como ator nesta estratégia são estri-tamente relacionados na Declaração de Alma Ata, queexplicita:

"As modalidades de agente de saúde varia-rão de um país e de uma comunidade paraoutra de acordo com as necessidades e osrecursos disponíveis..." (Alma Ata,

1979:50).Dentro da necessária variação de modalidades e

de tarefas que inclui ações de promoção, prevenção,cura, e reabilitação, uma função é constante:

"Já que grande parte de seu tempo serádedicada à educação, devem também estaradequadamente preparadas para este tipo de

atividade." (Alma Ata, 1979:51).Embora o termo genérico "agente de saúde" che-

gue a ser usado na Declaração de Alma Ata comoequivalente a "recursos humanos para atenção primá-ria" e a incluir médicos e enfermeiros, o destaquena discussão dos atores é dado ao agente de saúdeda comunidade que atua na ponta da extensão de co-bertura:

"Ao nível inicial de contato entre os indiví-duos e o sistema de serviços de saúde, oscuidados primários são proporcionados poragentes de saúde da comunidade trabalhan-do em equipe." (Alma Ata, 1979: p.50).

Outros autores falam de "pessoal para profissio-nal" como "linha de frente" na extensão de cobertura(Elliott, 1984:37); "força de trabalho básico" ..."composta de agentes de saúde comunitária, de origemlocal e formação modesta" (Werner, 1984:158); "pes-soal treinado não-universitário" ..."de grande impor-tância na pirâmide de cuidados primários em saúdeporque é o contato inicial e continuado, entre popula-ção e o sistema" (Chaves, 1982:59); o trabalhadorde saúde da comunidade "es más bien el punto centralde la provisión de APS en el plano de la comunidad"(Afosu-Amaah, 1984:vii).

O Encontro Nacional Sobre Política de Desenvol-vimento de Recursos Humanos para a Saúde em 1980resgatou a abrangência da Declaração de Alma Atae afirmou que o conceito de recursos humanos paraa saúde inclui: pessoal institucional; pessoas da comu-nidade que realizam ações de saúde (subsistema infor-mal); e "a comunidade mesma, na medida em queutiliza práticas de autocuidados, decide sobre suasquestões de saúde, e desenvolve ações sobre o ambien-te" (M. S., 1980:14).

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Outras tentativas de organizar a "pirâmide deaptidões" desde os autocuidados até os cuidados pres-tados por profissonais universitários recorrem a crité-rios de classificação que combinam origem (vêm dacomunidade ou de fora) e treinamento formal (ver Wer-ner, 1984:158 e Chaves, 1982:44 e 56 a 60). Chavesesclarece que o número de tipos ou níveis justificariao termo "espectro" e, ainda, que atores de um nívelpodem "servir como que de reservatório para recruta-mento" dos outros níveis (Chaves, 1982:59).

Assim como Alma Ata recomenda que os demaisníveis do sistema de saúde devem convergir para oscuidados primários, "apoiando-os e possibilitando aprestação de serviços essenciais em bases contínuas"(Alma Ata, 1979:44), o papel do resto da equipe deAPS é modificado para incluir a capacitação, apoio,e supervisão dos agentes de saúde da comunidade:

"...o agente de saúde da comunidade devepoder recorrer à ajuda de profissionais trei-nados. As categorias deste tipo de pessoalutilizado nos diferentes níveis do sistemade saúde variarão..." (Alma Ata, 1979:52).

Em 1984, análise de experiências realizadas com"trabajadores de salud de la comunidad" em 46 paísesconclui que, sem a reorientação de todo pessoal dasaúde, a APS corre o risco de ser um sistema paraleloou "parente pobre" do sistema existente (Ofosu-A-maah, 1984:41; ver também UNICEF/OMS, 1980:3).Afirma, em termos bastante claros:

"La presencia del trabajador de salud dela comunidad no reduce sino aumenta lasdistintas cargas que gravitam sobre el siste-ma de salud..." (Ofosu-Amaah, 1984:vii).

Antes de concluir que, visto deste ângulo, osagentes de saúde da comunidade vieram para sobrecar-regar os demais níveis, lembramos que embora a exten-são de cobertura realmente implica que um aumentode trabalho realizado pelos serviços como um todo,a nova divisão de trabalho, entre uma equipe aumenta-da, tem na linha de frente um agente local "racionali-zador da demanda". Com um papel na atenção a umaparte das necessidades de saúde locais, e com umafunção educativa que possibilita tanto um autocuidadomais informado como uma melhor utilização dos servi-ços existentes, contribui para a melhoria da saúde epara o desenvolvimento social.

Com toda a variação existente nas situações lo-cais, a apreensão teórica do papel do agente de saúdeda comunidade no sistema de saúde é necessariamenteabstrata e por isso mesmo limitada:

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"El concepto de trabajador de salud de lacomunidad es de engañosa sencillez: se tra-ta de un indivíduo que pertence a la comuni-dad y que se ha capacitado para funcionaren medio de esta, en estrecha relación conel sistema de atención de salud". (Ofosu-Amaah, 1984:vii).

O relato que segue mostra uma tentativa de tradu-zir este conceito em realidade e, a partir da expe-riência, apontar outros elementos conceituais que po-dem, eventualmente, ser incorporados na construçãode teoria da ação, ou metodologia, e permitir um avan-ço operacional.

A EXPERIÊNCIA

História da relação Unidade/Comunidade

A área de implantação inclui um conjunto de 5favelas de Manguinhos, localizadas próximo à FIO-CRUZ, que contém uma população total de aproxima-damente 20.000 habitantes. Como é típico das favelasdo Rio, estas áreas, densamente ocupadas, carecemde serviços públicos e infra-estrutura adequados, queas caracteriza como sendo de alto risco sanitário.

Os esforços dos moradores em promover melho-rias é refletido na pavimentação de algumas vias deacesso, construção de pequenas pontes, sistemas dedrenagem rudimentares, canalizações de água, etc...Cada área conta com uma Associação de Moradoresque, com intensidade variada, lidera a tentativa deatrair a atenção dos órgãos públicos para as necessi-dades das suas comunidades.

A UTGSF, desde 1980, vinha reorganizando eampliando os serviços básicos prestados a esta popula-ção, a partir de uma prioridade dada ao segmentomaterno-infantil. Algumas Associações de Moradoresreivindicaram consultas médicas e odontológicas den-tro da comunidade e parte da equipe de enfermagemcomeçou a trabalhar numa sala cedida por uma igreja.

Em 1982, um grupo de jovens ligados à Campanhada Fraternidade, e que vinha se reunindo para discus-sões sobre questões de saúde, procurou a UTGSF,solicitando treinamento que os capacitaria para umaação concreta junto às suas comunidades. Um progra-ma de treinamento foi elaborado e executado e aospoucos, estes voluntários assumiram as ações descen-tralizadas e abriram nova frente numa das Associaçõesde Moradores, referindo para a UTGSF aqueles casosque necessitavam de assistência médica.

Apesar do interesse de ambas as partes (comuni-dade e unidade) em construir uma nova forma de rela-ção que contribuísse para a melhoria da situação de

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saúde desta população, um fator importante agia con-tra: a necessidade dos moradores voluntários de buscaratividades remuneradas que ajudassem a sua sobrevi-vência e a de suas famílias, ou de se dedicar à formaçãoescolar. Apesar de treinamentos repetidos, a consoli-dação do trabalho foi impossibilitada pela saída contí-nua das pessoas treinadas. Após um período de 3 anos,ficou claro que os retornos não compensavam o investi-mento e que havia necessidade de buscar outros cami-nhos para a atuação conjunta.

A relação com as Associações de Moradores ea UTGSF continuou a desenvolver-se no âmbito deum movimento pela dragagem dos rios que cortamestas áreas. Em 1984, a partir do convênio das AçõesIntegradas de Saúde, a prefeitura criou o GEL (GrupoExecutivo Local) da AP3.1 (área que inclui as RegiõesAdministrativas de Ramos, Penha e Ilha do Governa-dor, abrangendo uma população de 800.000 habitan-tes). O GEL passou a reunir, mensalmente, os diretoresdos serviços de saúde e representantes comunitáros,e organizou várias atividades, incluindo o gerencia-mento do PSA e os Encontros Populares de Saúdeque passaram a ser anuais.

Implantação da Proposta

No final de 1985, foram iniciados contatos como UNICEF, objetivando apoio para retomar o trabalhocom agentes comunitários de saúde, agora em regimede trabalho de 40 horas semanais, com remuneração.O convênio assinado apontou recursos para o paga-mento de bolsas para as agentes de saúde, durante9 meses, e colaboração técnica do UNICEF e daFLACSO na implantação do trabalho. No período se-guinte, contamos com apoio da Fundação W.K .Kel-logg através do Programa de Apoio à Reforma Sanitá-ria — PARES/ENSP. Atualmente as agentes são pagascom recursos da UTGSF.

A proposta implantada tem por base as seguintesconstatações:

— Mesmo em populações urbanas com acesso físi-co a serviços de saúde, a cobertura de programas (in-clusive os programas prioritários de atenção materno-infantil) é baixa. Os Postos e Centros de Saúde funcio-nam a partir de uma demanda espontânea, que muitasvezes exclui as famílias mais necessitadas e que impos-sibilita o acompanhamento regular da clientela;

— Muitos problemas de saúde da população infan-til são conseqüências de falta de saneamento e moradiainadequada, e agravados por deficiências nutricionais.Ações preventivas e educativas são necessárias paraevitar que problemas relativamente simples se repitame agravem, prejudicando a sobrevivência e desenvolvi-mento da população infantil;

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— As mães das favelas são as agentes de saúdeprimordiais, que têm a responsabilidade socialmenteatribuída de cuidar dos membros da família ou de bus-car o atendimento médico. Ao mesmo tempo, estasmulheres sofrem de uma grande falta de informaçõestanto sobre o corpo e a proteção da saúde como sobreações específicas de prevenção e tratamento simplesde problemas de saúde;

— A incidência de problemas ginecológicos comoas doenças sexualmente transmissíveis, transtornosmentruais, câncer ginecológico, e problemas decorren-tes do aborto ou uso inadequado de contraceptivos,apontam áreas necessitadas de urgente atenção no cui-dado da saúde da mulher que refletem, inclusive, namortalidade perinatal, baixo peso ao nascer, e no esta-do de saúde da infância.

Em vista destes fatos, seria necessário desenvol-ver um agente de saúde que buscasse ativamente ocontato com a população a ser atendida, e acompa-nhasse regularmente a clientela prioritária, sendo capa-citado para promover ações preventivas, realizar algu-mas medidas curativas simples, e identificar precoce-mente os problemas mais graves.

Experiências anteriores demonstram que, nas con-dições existentes nas favelas do Rio, um agente desaúde que mora na área atendida é capaz de dar 100%de cobertura às crianças de 0—5 anos e gestantes numapopulação de 2.000 pessoas, através de visitas domici-liares regulares a cada 2 meses, sendo possível aindadesenvolver atividades com grupos de mulheres e degestantes.

Neste caso, a importância da agente de saúdeser moradora da área deriva não só da necessidadeda presença intensa na favela mas também pela meto-dologia proposta na prática educativa. Tanto no nívelda capacitação de agentes de saúde como na sua atua-ção com a clientela, a discussão da vivência própriaé a base do processo educativo transformador. Poresta razão, igualmente, argumenta-se que as agentesde saúde que atuam nesta linha devem ser mulheres,e de preferência mães, que têm a experiência vividade criação de filhos nas condições em que a clientelase encontra.

Neste modelo de atuação, as ações básicas dasagentes comunitárias são:a) crianças de 0—5 anos (na visita domiciliar)• acompanhamento bimensal do peso, com pesagem

no domicílio;• identificação e encaminhamento de casos suspeitos

de desnutrição;• controle do estado de imunização;• orientação para o aleitamento;• orientação para o tratamento de diarréias com TRO;

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identificação, orientação e/ou encaminhamento deproblemas comuns, tais como infecções respirató-rias, doenças de pele, verminose, catapora, febre,piolho, coqueluche e sarampo.

b) gestantes e puérperas (em visitas domiciliares)• orientação e troca de experiência quanto a:— importância do pré-natal— os problemas mais simples da gestação (vômitos,

varizes, prisão de ventre etc.);— o aleitamento.

c) gestantes e puérperas (em grupos de preparaçãopara o parto)

• orientação e troca de experiência quanto a:— b) acima;— o processo da gestação, do parto, e do pós-parto;• acompanhamento mensal com tomada de pressão arte-

rial e acompanhamento do peso, medida do fundodo útero, do perímetro abdominal, e do batimentocardíaco fetal;

• exercícios de preparação para o parto;• orientação quanto aos cuidados de higiene específicos

no pós-parto;• curativos simples em suturas do parto cesariano ou

normal.

d) mulheres (em grupos de reflexão)• Orientação e troca de experiência quanto a:— funcionamento dos aparelhos reprodutivos masculino

e feminino;— doenças mais comuns das mulheres;— doenças sexualmente transmissíveis;— métodos contraceptivos;— auto-exame de mamas;— exame preventivo;— sexualidade;• Pesagem e tomada de pressão arterial.

Para iniciar o processo de implantação, reuniõesforam realizadas com as Associações de Moradores,onde foram colocados e discutidos a proposta do traba-lho e os critérios estabelecidos para a incorporaçãodas agentes: ser mulher, de preferência mãe; ser mora-dora da área; ter pelo menos 21 anos; ter o 1° graucompleto; e ter disponibilidade para 40 horas de traba-lho semanais. A divulgação e identificação de candida-tos foi assumida basicamente pelas Associações deMoradores complementado por contatos com as mulhe-res que participaram do Programa de SuplementaçãoAlimentar (nestas áreas gerenciado pelas Associaçõesde Moradores).

As candidatas que se apresentaram e que preen-cheram os critérios passaram por um processo de sele-

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ção que incluiu uma entrevista coletiva, uma provade português e matemática e uma entrevista individual.

Capacitação

Embora no caso deste projeto a Unidade responsá-vel já tenha uma história de trabalho na área de atua-ção, com relações estabelecidas com as Associaçõesde Moradores e outros grupos, e estudos prévios queaportam informações sobre vários aspectos das comuni-dades, foi considerado importante realizar um diagnós-tico junto às agentes, como passo inicial da sua capaci-tação. Como fechamento deste processo, foi elaboradauma conceitualização abrangente da saúde, que incor-pora emprego, habitação, saneamento, lazer, etc. Ini-ciou-se, nesta etapa, a discussão sobre o papel doagente de saúde nestas comunidades.

O próximo passo foi a elaboração de um quadrode saúde da criança a partir dos temas:

• de que adoece?• por que adoece?• possíveis soluções.Nas discussões das possíveis soluções, avançou-se

na identificação de possíveis áreas de trabalho paraas agentes.

Embora fosse estabelecido que a capacitação paraa atenção à criança seria o próximo passo, houve ummomento prévio de sensibilização pelo "mundo da mu-lher", em preparação para a etapa posterior, dentroda ótica de que mesmo o trabalho para melhorar asaúde da criança passaria, fundamentalmente, pela re-lação com a mãe ou outra mulher responsável.

Foi elaborada uma ficha familiar que seria uminstrumento básico de acompanhamento das criançasentre 0—5 anos e da supervisão das visitas domiciliares.Após o treinamento para preenchimento desta fichae uma avaliação da capacitação, as agentes começaramo trabalho de campo sistemático, visitando todas asfamílias e cadastrando aquelas que tinham gestantesou crianças entre 0—5 anos.

Enquanto as visitas prosseguiam na parte da ma-nhã, começou a abordagem da saúde da mulher naparte da tarde. Um segundo diagnóstico foi realizado,baseado na visão das agentes da situação de saúdedas mulheres. Os temas

• de que adoecem?• por que adoecem?• possíveis soluções

serviram, mais uma vez, para identificar áreas de traba-lho possíveis para as agentes.

Desde que a proposta de trabalho na área da saúdeda mulher previa a formação e orientação de gruposde mulheres e gestantes, a capacitação incluiu técnicos

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e métodos para desenvolver a prática educativa emgrupos (dramatização, desenhos coletivos, colagem,massa de modelagem etc.). Estas técnicas visam apromover a participação ativa dos membros dos gru-pos, facilitando a recuperação e coletivização de expe-riências individuais na área da saúde/sexualidade/re-produção.

A partir do diagnóstico de saúde da mulher, aequipe de agentes e técnicos desenvolveu um questio-nário que abordou os temas de trabalho remunerado,condições de moradia e saneamento, e experiênciasde reprodução (gravidez, parto, aborto, e uso de con-traceptivos).

A confecção e aplicação do questionário a 150mulheres serviu para aprofundar a discussão na equipede trabalho e para mobilizar as respondentes para par-ticipar nos grupos, que foram iniciados em junho,1987, sob a coordenação conjunta de agentes e téc-nicos.A visita domiciliar

O cadastramento resultou na identificação de1446 famílias que tinham crianças entre 0—5 anos ougestantes, que compõem o universo das famílias priori-tárias para serem visitadas regularmente. Cada agenteficou responsável por uma média de 180 famílias, ou232 crianças que representa 100% desta categoria nu-ma área de aproximadamente 2.500 habitantes.

Estados de morbidade nas 1446 famílias visitadasdurante o primeiro período de aproximadamente 4 me-ses (membros de 0—5 anos) foram: IRA — algum casoem 31% das famílias; verminose — algum caso em31% das famílias; problemas de pele — 17% das famí-lias; diarréia — 5,5,% das famílias. A percentagemde crianças de 0—5 imunizadas ou com a imunizaçãoem dia foi de 80%.

A supervisão das visitas é feita semanalmente,na base da ficha familiar, que permite à equipe umadiscussão de cada caso. Embora a equipe de supervisãotenha sido composta de membros da UTGSF (l enfer-meira, l assistente social/sanitarista, l psicóloga/sa-nitarista) mais uma antropóloga da FLACSO, todosos técnicos dedicaram parte do seu tempo a outrasatividades. A supervisão regular e intensa é imprescin-dível à proposta, mas ficou constatado que um conjun-to de 5 agentes mais l supervisor, todos de 40 horas,é suficiente para atender uma população de 10.000pessoas, dentro deste modelo de trabalho.

Avaliação Geral

Uma avaliação geral do trabalho foi realizada emmarço, 1987, tendo como instrumento básico um ques-tionário respondido pelas agentes individualmente.

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Análise e discussão do conjunto de respostas ser-viu para identificar áreas de reciclagem, melhorar oesquema de supervisão, e apontar caminhos futuros.

Na discussão da participação da comunidade, aheterogeneidade na postura geral das Associações deMoradores foi apontada como uma dificuldade em tra-çar uma linha de ação comum às várias áreas atendidas.Contato regular entre a UTGSF e as Associações deMoradores é mantido através de reuniões mensais quetêm o objetivo principal de acompanhar o andamentodo PSA. Em setembro de 1986 a UTGSF/ENSP promo-veu dois encontros com os moradores de Manguinhos(Saúde da Criança e Saúde e Direitos da Mulher),nas quais as agentes de saúde participaram ativamente,apresentando os diagnósticos de saúde que elas realiza-ram durante o treinamento, fora a atuação nos gruposde discussão e plenárias. As agentes participaram doplanejamento e realização do III Encontro Popular deSaúde da AP3.1 junto com técnicos da rede pública,Associações de Moradores, e outras agentes de saúdedesta região.

O trabalho atualmente em andamento reflete umaprioridade dada à população de 0—5 anos, gestantese mulheres, e representa uma extensão de coberturadas ações básicas preconizadas pelo Programa de As-sistência Integral à Saúde da Mulher e da Criança(PAISMC/MS). Ações futuras já planejadas incluemgrupos de reflexão com mulheres não-grávidas, o de-senvolvimento de uma ficha de acompanhamento dasgestantes, e controle da hipertensão arterial de adultosna visita domiciliar. Esta última ação foi incorporadaa partir da avaliação geral, quando o conjunto de agen-tes revelaram que esta é uma demanda freqüente nasvisitas domiciliares e que poderia ser atendida, na opi-nião delas e da equipe técnica.

A incorporação desta demanda representa um pas-so adiante no desenvolvimento da proposta que, apartir de uma clara definição de ações básicas e clien-tela prioritária, deveria ampliar para um atendimentocada vez mais integral às necessidades da população,dentro das possibilidades do conjunto de técnicos (emcapacitação e supervisão) e agentes (na execução).Uma outra demanda identificada, por remédios e inje-ções, foi adiada por falta de condições adequadas àsua incorporação e ao seu controle.

Dentro desta ótica, está previsto o estabeleci-mento, dentro das favelas, de espaços físicos própriospara o trabalho das agentes, incluindo os grupos degestantes e mulheres, e ações curativas simples. Esteespaço garantirá a supervisão in loco e um apoio técni-co maior ao trabalho de visitação domiciliar das agen-tes, no caso de famílias que apresentam quadros derisco mais sérios, ou na execução das ações curativas.

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CONCEITUALIZAÇÃO DO MODELO OPERACIO-NAL: ALGUMAS QUESTÕES POLÊMICAS

No nível do conceito mais amplo do agente desaúde talvez haja consenso no sentido de caracterizaro agente de saúde como canal de comunicação entrea população e os serviços de saúde. Se abrirem asquestões sobre forma de seleção, afiliação institucio-nal, funções básicas ou modelo de atuação, porémas variações existentes se impõem e a falta de consensorapidamente se revela.

Embora a variação nas modalidades de agentede saúde seja, teoricamente, função de variação nasnecessidades de saúde e nos recursos disponíveis emcada local, Werner argumenta que, de fato, a diversi-dade existente depende mais das atitudes preconce-bidas dos planejadores, consultores e instrutores decada programa (Werner, 1981:57). Neste espírito,apresentamos a discussão do modelo operacional a par-tir das questões que mais freqüentemente têm sidofoco de debate.

a) Serviços para pobres

Uma das questões que tem sido colocada na dis-cussão desta proposta é a caracterização dela como"serviços para pobres", por ser muito diferenciadodos serviços regulares.

Esta colocação é superável na medida em quese reconhece que a organização atual dos serviços desaúde é inadequada às necessidades da população eque, portanto, experiências com novas alternativas deorganização são necessárias. A localização destas ex-periências em áreas pobres é justificada na medidaem que se aceita a canalização de esforços técnicospara atender as parcelas de baixa renda. Epidemiolo-gicamente, os padrões diferenciados de morbi-morta-lidade e da situação sanitária destas populações justifi-cariam tanto a busca de melhores soluções como umadiferenciação na resposta proposta pelos serviços. Nocaso desta proposta, o serviço dado pelo agente desaúde é adicional aos serviços internos, e não substi-tuto destes.

Ainda vale a pena observar que, em função dabaixa prioridade dada à rede básica de saúde públicadurante anos no Brasil, a população "não-pobre" evi-ta, quando possível, o uso desta. Esta evasão significaque uma grande parte da rede pública existente repre-senta, de fato, "serviços para pobres".

A qualidade da atenção dada pela agente de saú-de, por outro lado, é uma questão que só pode serrespondida a partir de casos concretos e evidentementereflete a qualidade da capacitação, supervisão, motiva-

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ção, apoio material e, principalmente, o apoio políticoà proposta, que favorece ou dificulta todas as outrascondições.

b) A questão da responsabilidade pública

Na medida em que os agentes de saúde são mora-dores das favelas, estas propostas têm sido criticadascomo uma forma de "passar a responsabilidade" pelasaúde às comunidades, em vez de reconhecer a saúdecomo dever do Estado. Esta crítica talvez seja maispertinente nos casos em que o agente de saúde trabalhavoluntariamente, sem o apoio efetivo do setor de saú-de, embora o trabalho voluntário seja uma forma deatuação política das próprias organizações comunitá-rias, e uma estratégia para pressionar o setor de saúde.Lembramos que as Associações de Moradores de Man-guinhos propuseram, na etapa anterior, a capacitaçãoe atuação voluntária de membros da comunidade emações de saúde.

Na proposta atual, o trabalho da agente, remune-rado, representa um braço comunitário do serviço pú-blico existente, sendo parte integral do mesmo.

c) Duplicação de ações

Outras críticas argumentam que as ações dasagentes são uma duplicação dos serviços da rede e,portanto, desnecessárias. Mesmo quando as ações sãoaparentemente as mesmas, a cobertura alcançada navisita domiciliar, comparada com a cobertura dos servi-ços internos, mostra a realidade de uma extensão enão de uma duplicação de ações, na maior parte doscasos.

Nos casos em que haja efetivamente uma duplica-ção de ações (o mesmo cliente atendido pelos serviçosinternos e pela agente de saúde), na medida em quea agente tem um papel predominante na prevenção/e-ducação, isto representaria ao mínimo um reforço noapoio às mães, uma chance a mais a esclarecer dúvidas,etc. num processo que visa, entre outras coisas, ademocratização do saber médico através do agente desaúde.

d) A prática educativa: dominadora ou transfor-madora?

A natureza em função do processo educativo tal-vez seja uma das questões mais debatidas no âmbitode projetos comunitários em geral (ver, por exemplo,Valla: 1986, onde programas públicos de vários setoressão discutidos sobre a ótica da educação). Alguns auto-res preocupados com a análise de práticas educativas

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em saúde na promoção de uma transformação socialtêm concluído que:

"...a preocupação prévia ... em alcançarobjetivos por ele considerados adequadosà melhoria de saúde da população interfereconcretamente no seu desempenho comoeducador que muitas vezes se resume a con-vencer a população de forma habilidosa, doque ela precisa fazer" (Carvalho, mimeo:sem data).

Esta prática, que gera participação passiva dostipos "consumo" ou "escolar" é vista como práticade educação dominadora:

"Embora se possa argumentar que essas me-didas acabam por beneficiar a comunidade,os seus efeitos como mecanismos ideológi-cos de controle são bastante evidentes."(Noronha e Travassos, 1981:18).

Nas tentativas de evitar a educação "dominadora"e promover uma educação "transformadora", podemossituar a proposta de Manguinhos em quatro aspectos:

1) A agente comunitária, sendo parte de um servi-ço público, participa da provisão de benefícios imedia-tos à população atendida, seja de forma individual,seja em trabalho em grupos. Estes benefícios, incluin-do informações sobre como melhorar a situação desaúde, em casos individuais, são a base da legitimidadeda agente de saúde;

2) A agente comunitária, como membro da própriacomunidade de baixa renda, e na medida em que suacapacitação é exitosa, já representa um primeiro mo-mento de "democratização do saber médico";

3) A prática educativa utiliza a metodologia dadiscussão da vivência própria (incluindo os problemasde saúde) que facilita a participação ativa tanto noprocesso educativo como no cuidado da saúde, e pro-move a autoconfiança das mulheres atingidas (agentese clientes);

4) Partindo da vivência própria como conteúdobásico, particularmente no contexto grupal, a naturezacoletiva do fenômeno saúde e seus condicionantes polí-tico-sociais ficam mais transparentes e relevantes. Estatransparência, junto com a prática da ativa participaçãoem grupos de discussão, são elementos que favorecemo desenvolvimento de pessoas aptas a participar emmovimentos comunitários mais abrangentes.

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e) O perfil do agente de saúde

Outro ponto relacionado que gera polêmica é aquestão do perfil de atuação ou função básica do agen-te de saúde. Neste particular, é talvez útil imaginardois tipos ideais que servem para nortear a discussãoe organizar uma realidade muito mais complexa e aindanão mapeada.

O primeiro tipo é um agente de saúde que é vistocomo um promotor da conscientização, mobilização,e organização da comunidade. Assemelha-se ao papeldos membros das Associações de Moradores, emboraestas tenham também outras funções. Suponha-se queeste agente deveria receber alguma capacitação paramelhor discutir a relação entre os fatores político-sociais mais abrangentes e a saúde (ou falta de saúde),e que a medida de êxito do trabalho dele seria ummaior grau de organização e conseqüente reivindicaçãode melhorias. Trabalha principalmente em grupos dediscussão, dentro da comunidade, a partir de objetivosdefinidos "pela comunidade".

O segundo tipo, em contraste, é um agente desaúde que assuma as funções realizadas por várias cate-gorias de profissionais de saúde (curativos, injeções,preparo, vacina, parto etc.) na ausência destes, ouquando há falta de quadros. A medida do êxito dotrabalho dele seria os atendimentos realizados e seuefeito eventual sobre os padrões de morbi-mortalidade.Trabalha dentro de um espaço físico construído, princi-palmente em atendimento individual, a partir de objeti-vos definidos pela instituição patrocinadora.

A proposta implantada em Manguinhos, evidente-mente, não se situa em nenhum destes dois pontos,e considera que tanto as ações técnicas como a promo-ção de maior "consciência comunitária" são insepará-veis num processo de transformação que é apoiadopelo setor de saúde pública.

É importante frisar aqui que o fato de ser umaproposta situada dentro de um serviço público define,a nosso ver, oportunidades e limites específicos. Ouso destes recursos públicos tanto imprime o deverde contribuir à melhoria da situação de saúde em pri-meiro lugar, como facilita o apoio dos serviços regula-res, fator essencial ao êxito do trabalho do agentede saúde (a referência de casos necessitados de outrosníveis de atenção é uma barreira clássica que tem difi-cultado o êxito de propostas "autônomas" ou situadasem outras esferas institucionais).

É claro que a obtenção de melhorias nos padrõesde morbi-mortalidade depende também de algum graua mais de informação, consciência, e ação por partedos beneficiários, justificando o esforço de democrati-zação do saber médico. Este nível de consciência,

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porém, pode se restringir à atenção às questões indivi-duais.

Entendemos que a questão crucial do papel doagente de saúde na "conscientização", embora partametodologicamente das questões individuais, e tenhapor base a "democratização do saber médico", avançapara um atendimento da natureza coletiva dos proces-sos de saúde e doença e da ação coletiva possível.

O trabalho com a equipe de agentes comunitáriose sua multiplicação nos grupos de mulheres e gestantesrevela que, nestas populações urbanas, a percepçãoda relação entre a falta de saneamento básico (porexemplo) e problemas de saúde em geral existem, assimcomo a percepção de que o governo deveria proporcio-nar estes serviços. O que falta à grande maioria dasmulheres é alguma experiência no nível de grupos quedemonstra que as questões próprias delas, inclusivealguns dos assuntos mais íntimos da área da sexualida-de/reprodução, são também coletivas e legítimas, eque elas têm a potencialidade de serem atores no cená-ro político.

Na ocasião de uma visita ao projeto, foi pergunta-do às agentes de saúde o que elas tinham aprendidoneste processo. Entre muitos exemplos de aprendi-zagem "técnica", uma agente respondeu que ela apren-deu que "a mulher tem direitos". Este exemplo sugereque a discussão de assuntos específicos da mulher,além de equipá-la para proteger sua própria saúde ea dos seus filhos, facilita a percepção de que ela temdiretos e a capacidade de discutir e defendê-los.

Embora a demanda por espaços de aprendizagemda mulher não seja ainda, normalmente, incluída naspautas de reivindicações das Associações de Morado-res, mulheres ativas das favelas vêm reivindicando es-tes espaços no Rio, pelo menos desde o Primeiro En-contro de Mulheres Faveladas, em 1983, e têm apoiadoa implantação do PAISM em inúmeros encontros detodos os níveis. Resta a pergunta: na questão da saúdee direitos da mulher, qual é a "comunidade" que arepresenta? São as Associações de Moradores ou asmanifestações de mulheres?

É evidente que a disponibilidade das mulheresde baixa renda para participar em atividades comuni-tárias é limitada pela luta diária pela sobrevivênciae, quando não trabalham fora, pelas pressões sociaisainda existentes de se dedicarem exclusivamente aosfilhos e à casa. Dar um primeiro passo nesta situaçãonão é fácil. Não obstante, existe a questão da motiva-ção que pode ser ampliada quando os espaços sãoacessíveis, os assuntos relevantes, e a dinâmica dogrupo estimulante.

É também evidente que espaços de aprendizagemdeste tipo são raríssimos, e que não substituem as

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organizações políticas e os espaços institucionais quepermitem a participação política da comunidade orga-nizada.

No nosso entender, não cabe ao setor públicopropor que o agente de saúde tenha, como parte dasua função remunerada, um papel definido como mem-bro da organização comunitária, onde esta organizaçãoé essencialmente política e pretende ser representativa(o caso das Associações de Moradores). Embora otrabalho com grupos de mulheres seja um estímuloe uma preparação para atividades políticas, a decisãode conquistar este nível de atuação é considerada umaopção individual e voluntária de cada uma, como mora-dora daquela comunidade. Cabe, sim, ao setor de saúdecomo um todo, abrir espaços para a participação dacomunidade organizada no planejamento e gerencia-mento dos serviços de saúde, através dos GEL, CLIS,etc.

f) Prevenção e cura

No que se refere à composição de atividades pre-ventivas e curativas no perfil do agente de saúde,parece existir uma ênfase grande na prevenção no con-junto de experiências, embora nas áreas rurais ondeo acesso aos serviços é mais restrito talvez tenha tidomaior incorporação de atividades curativas.

Na proposta de Manguinhos, as ações básicas dasagentes de saúde são educativas, com ênfase na pre-venção. Pelo fato de serem moradoras da área atendida,que vivem os problemas e falam a linguagem do local,e que tenham contato regular com sua clientela, elastêm vantagens na promoção destas medidas que o pro-fissional na rede não tem. Optamos por iniciar o traba-lho na área preventiva, mas no nosso entender, o con-ceito de "democratização do saber médico" se refereao direito de informação tanto preventiva como cu-rativa.

David Werner, pioneiro no desenvolvimento deagentes de saúde nas áreas rurais da América Latina,aponta que a ênfase na prevenção muitas vezes funcio-na como desculpa para manter a medicina curativanas mãos do profissional, mas esclarece:

"Quero frisar que quando digo "mais medi-cina curativa" não quero dizer "uso de maisremédios". A medicação excessiva, tantopelos médicos como pelos camponeses, jáé notória. Estou me referindo ao uso maisconsciencioso, o que em muitos casos signi-fica utilização muito mais limitada de remé-dios". (Werner, 1984:164).

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* Mesmo nas áreas rurais, é prová-vel que a "seleção pela comuni-dade" seja operacionalizada atravésde alguns moradores que tenhammais acesso às decisões, por razõesnão-explicitadas, a não ser queimaginemos uma absoluta homoge-neidade social que em nenhum casoresistiria a uma investigação so-ciológica.

Lembramos, ainda, que as condições sanitáriasnas favelas favorecem a proliferação de doenças comosarna ou piolho que apresentam, várias vezes ao ano,surtos dos mesmos. Na ocasião dos surtos, não existemserviços suficientes para atendê-los, pois atingem nes-tes momentos grandes proporções. A população fazuso de medicamentos vendidos livremente nas farmá-cias ou no comércio local, ou de sobras obtidas devizinhos, sem esclarecimentos no uso correto dos mes-mos, indicações e contra-indicações, etc.. No casode tratamento destas doenças as condutas corretas nãovariam e resumem-se em poucas regras básicas, com-pondo uma tarefa perfeitamente incorporável ao treina-mento e supervisão de agentes de saúde.

A incorporação criteriosa de ações curativas destanatureza ao perfil do agente de saúde permite poroutro lado, um uso mais adequado do tempo do médicoque, treinado durante 6 anos ou mais no nível universi-tário, é imprescindível no tratamento dos casos maiscomplexos.

g) Seleção pela comunidade?

Talvez em função das experiências pioneiras comagentes de saúde terem sido desenvolvidas na suamaior parte em áreas rurais, ou ainda pela visão ideoló-gica da importância das organizações comunitárias,é muitas vezes argumentado que o agente de saúdedeve ser selecionado "pela Comunidade".

Esta posição subentende que, em princípio, "acomunidade" teria melhores condições de apontar pes-soas que teriam as qualidades necessárias e que, nova-mente subentendido, defenderiam melhor os interessesdaquele local.

Quando esta questão é contextualizada nas gran-des favelas urbanas, aparece uma dificuldade óbviade operacionalização desta posição, se imagina quetodos os moradores devam selecionar os agentes desaúde.* Uma alternativa operacional nas áreas urbanasseria a seleção de agentes de saúde pela Associaçãode Moradores que convenciona representar a comu-nidade.

Pela ótica das necessidades básicas não-satisfeitasnas favelas ou ainda pela questão da posse da terra,os moradores seriam caracterizados como tendo fortesinteresses em comum e "comunidade" conceitual seestabeleceria a partir disto. De fato, o surgimentodas Associações de Moradores é intimamente relacio-nado com a luta por melhorias urbanas ou pela posseda terra. A própria existência desta estrutura sócio-po-lítica (A Associação), porém, significa a criação deuma hierarquia que cristaliza diferenças sociais (dedireito e deveres pelo menos) dentro do conjunto de

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moradores e que, normalmente, venha a ser objetode disputa por grupos locais. Dialeticamente, desteponto de vista, a própria comunidade de interesses,no nível de sua expressão política, gera diferenciaçãosocial e até disputas políticas.

Independente da representatividade de uma dadaAssociação de Moradores (questão que o bom sensocolocaria como altamente relevante em afirmar porquem os agentes de saúde devem ser selecionados),se a expressão política dos moradores (e suas disputasrelacionadas) é considerada legítima, a seleção deagentes de saúde pela Associação de Moradores seriauma seleção também em função de critérios políticosque poderiam ser, ou não aceitáveis ao conjunto demoradores, e que poderiam ser, ou não, avalizadospela próxima diretoria que venha assumir.

Na medida em que o agente de saúde tenha umpapel de serviço à sua comunidade, e não é somenteum ator de "conscientização, mobilização e organiza-ção", acreditamos que não se justifica abrir mão doscritérios não-políticos, que teriam que ser assumidospela instituição patrocinadora da proposta, no processode seleção.

Isto não implica que a Associação de Moradoresdeveria ser excluída do processo de seleção. Na pro-posta de Manguinhos, as Associações de Moradorestêm identificado e encaminhado a maior parte das can-didatas, conforme critérios estabelecidos e discutidos,para posterior seleção pela instituição. O processo deseleção entre estes candidatos, por outro lado, procuravalorizar qualidades que indicam uma habilidade detrabalho em grupos, embora seja difícil uma avaliaçãoobjetiva de tais qualidades.

h) Objetivos definidos pela comunidade ou pelainstituição? (a questão das necessidades sentidas enão-sentidas, do saber técnico e saber popular)

Apesar das complicações na definição de "comu-nidade" e representatividade já colocadas, a definiçãode objetivos pela comunidade é normalmente visto co-mo essencial em reconhecer os direitos e conhecimen-tos dos moradores.

A reivindicação de saneamento para melhorar asituação de saúde demostra o conhecimento populargeneralizado nesta área essencial à prevenção de doen-ças, embora não revele o fato de que a diarréia infantilé tão comum nestas condições que muitas mães consi-deraram isto "normal", não sabem que a simples diar-réia repetida é uma ameaça séria à saúde infantil, enão sabem combatê-la.

Na medida em que o saber popular no cuidadoda saúde enfrenta condições sanitárias e sociais antes

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desconhecidas (menor acesso a recursos produtivos in-cluindo a terra, maior densidade de habitação em gran-des grupos populacionais, maior contaminação domeio-ambiente, maior promoção do medicamentos in-dustrializados) nem sua eficácia nem seu prestígio nemsua acessibilidade resistiu.

O combate às diarréias, infecções respiratórias,problemas de pele, verminoses, etc. é feito em grandemedida através de medicamentos que, além de seremcustosos, não resolvem nem o problema imediato.Aqui, nem o saber técnico nem o saber popular domina,mas sim o "saber farmacêutico" que favorece princi-palmente a si próprio.

O declínio do aleitamento materno, prática popu-lar por excelência, foi durante anos reforçado pelo"saber técnico", que atualmente está engajado na ten-tativa de resgatar a prática e reverter este quadro.Embora esta seja um exemplo vivo da força negativado saber técnico, coloca uma questão interessante:atualmente, representa qual saber?

Na medida em que surgem esforços técnicos derecuperação da medicina popular, é possível que, numlocal específico, as soluções originalmente dadas pelosaber popular são conhecidas pelos técnicos e não pelapopulação do local.

O uso de métodos contraceptivos sem informaçãosobre efeitos colaterais e contraindicações é outroexemplo de práticas comuns e amplamente difundidas(ver Costa, 1987). Se existisse anteriormente um saberpopular nesta área, parece que já não temos acessoa isto. Agora, maior acesso ao saber técnico é essencialem evitar danos sérios à saúde, embora não haja solu-ções técnicas inteiramente adequadas, e embora a deci-são sobre uso de métodos caiba exclusivamente à mu-lher.

Na definição dos objetivos de programas de saú-de, concluímos que é preciso respeitar a colocaçãode necessidades sentidas e soluções apresentadas pelapopulação sem negar a responsabilidade técnica emapontar outras necessidades e na busca de soluções.Implica, em termos operacionais, a criação de espaçosonde a troca é legitimada e, mais difícil ainda, umadisponibilidade de relativizar todos os saberes, princi-palmente os mais poderosos.

EM VIAS DE UMA CONCLUSÃO...

Mesmo dentro dos sérios limites em que o setorde saúde atua (já que a saúde reflete as deficiênciasem todos os setores — de emprego, renda, habitação,saneamento, transporte, lazer, educação etc. etc.),uma reorganização dos serviços existentes está na pau-ta da Reforma Sanitária, reivindicando tanto pelo setorde saúde como pela sociedade civil.

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O movimento político em marcha abre espaçospara novas propostas e legitima, cada vez mais, avoz dos usuários. Acreditamos que este momento exigepropostas que contribuam para saúde e desenvolvi-mento social das populações tradicionalmente margina-lizadas, para que estas venham a se fortalecer comosujeitos da ação.

Isso implica a nosso ver, um processo de apren-dizagem e transformação tanto dos profissionais desaúde como da sua clientela. Certamente os pontosde partida são quase infinitos e os pontos de chegadatão variados e fluidos quanto o contexto em que ostrabalhos são desenvolvidos.

Nosso ponto de partida são os problemas maiscomuns da parcela mais vulnerável da população, eas mulheres que ainda assumem a maior responsabi-lidade frente a estes problemas. Uma vez iniciado oprocesso, o resultado visível mais imediato é o cresci-mento das mulheres que passam pelo processo, condi-ção inicial para o desenvolvimento e fortalecimentode novas formas da relação serviços de saúde/popu-lação. Pelo lado dos profissionais envolvidos, esta con-firmação do potencial das mulheres de baixa rendaé ao mesmo tempo a maior fonte de motivação e onosso desafio maior, no sentido de contribuir parao desenvolvimento de uma proposta à altura, e trazê-laao debate público.

This article describes the implantation of an innovativeproposal for primary health care in squatter areasof Rio de Janeiro. Community health agents, eachof whom is responsible for an area of approximately2000 inhabitants, work within an operational modelwhich includes continuous home visits and work withgroups of women and expectant mothers. The basicactions, in this initial period, represent an extensionof coverage of the Programme for Integral Health Carefor Women and Children.The second part of the article discusses some of thepolemical points related to this delivery model, whichpromotes both an improvement in health and socialdevelopment.

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