Arthur Conan Doyle - Nuvem Envenenada

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    de sua leitura queles que no podem compr-la ou queles que necessitam de meioseletrnicos para ler. Dessa forma, a venda deste e-livro ou mesmo a sua troca por qualquercontraprestao totalmente condenvel em qualquer circunstncia.

    A generosidade a marca da distribuio portanto:

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    A Nuvem Envenenada

    Por Arthur Conan Doyle

    1- As Linhas Maculadas

    Preciso fixar logo no papel estes acontecimentos fabulosos,enquanto ainda consigo lembrar claramente os detalhes e antes queo tempo possa embotar-me a memria. Mas agora mesmo, namesma hora em que me preparo a relatar tais fatos extraordinrios,ainda no consigo deixar de surpreender-me por tudo isto ter sido

    presenciado justamente pelo nosso pequeno grupo: o professorChallenger, o professor Summerlee, o Lord Roxton e eu.

    H alguns anos, quando relatei no Daily Gazette a nossa famosaviagem Amrica do Sul, nem passou pela minha mente que logoeu teria de contar fatos ainda mais extraordinrios, acontecimentosque certamente no tem comparao nos anais da humanidade,talvez fadados a nunca mais se repetirem na histria.

    Os fatos em si so realmente surpreendentes, mas a

    circunstncia que fez com que ns quatro estivssemos ali, juntos, para presencia-los aconteceu de forma extremamente natural.Contarei esta primeira parte da nossa aventura da maneira mais clarae concisa possvel, embora acredite que o leitor, diante daimportncia do assunto, talvez preferisse uma maior fartura dedetalhes.

    Era uma sexta-feira, 27 de agosto, uma data que ficar marcadana histria, e eu cheguei redao do meu jornal e pedi trs dias delicena ao Sr. Mc Ardle, o nosso diretor.

    Este ltimo, um escocs da gema, sacudiu a cabea, agitou oscabelos rebeldes que lhe encobriam a testa e acabou explicando queno tinha a menor vontade de contentar-me.

    Estava pensando agorinha mesmo, Sr. Malone, que quasecertamente iremos precisar dos seus servios nos prximos dias. Huma coisa, com efeito, que s o senhor parece estar apto a levar acabo satisfatoriamente.

    Fico muito decepcionado ao ouvir isto, respondi. Mas

    claro que, se for de fato necessrio, estou disposto a desistir dosmeus planos embora, eu garanto, se trate de algo extremamente

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    importante. Se porventura fosse possvel dispensar a minhapresena...

    Nem pense nisto. A sua presena absolutamenteindispensvel.

    Fiquei profundamente chateado, mas achei melhor levar a coisana esportiva. Afinal de contas, a culpa era minha, pois nuncadeveria ter esquecido a regra pela qual um jornalista jamais podedispor vontade do seu tempo...

    Vamos esquecer o assunto, ento, eu disse aparentando amaior calma. O que deseja de mim?

    Quero que v entrevistar aquele sujeito difcil que mora l prasbandas de Rotherfield.

    Est falando do professor Challenger?O prprio. Na semana passada arrastou aquele reprter novato,o Simpson, por mais de uma milha ao longo da rodovia, segurando-o pelo pescoo e empurrando-o pelas costas. O senhor deve ter lidoa respeito do assunto no relatrio policial. No de se espantar,portanto, que agora os nossos jornalistas prefiram entrevistar osJacars do jardim zoolgico antes que ter uma conversinha com ohomem. No seu caso, no entanto, a coisa diferente, pois medisseram que vocs so bons amigos.

    Sem problemas!, respondi aliviado. A coisa vai ser muitofcil. Ainda mais porque queria os trs dias de licena justamentepara visitar o professor Challenger em Rotherfield. Estamos pertodo terceiro aniversrio da nossa grande aventura no Planalto, e eleconvidou o grupo para festejar o acontecimento na casa dele.

    Perfeito!, gritou Mc Ardle, todo animado. Acho que osenhor no ter a menor dificuldade em conseguir dele umaexplicao detalhada. Se fosse outra pessoa, no a levaria a srio.

    Mas ele j demonstrou em vrias ocasies ter a cabea no devidolugar, e nunca se sabe...O que deseja que lhe pergunte?, indaguei. O que foi que ele

    fez, desta vez?Ainda no leu a carta que ele mandou a Possibilidades

    Cientficas, no Times de hoje?No.Mc Ardle esticou-se para pegar o jornal no cho.Leia em voz alta, pediu, apontando com o dedo para uma

    coluna. Gostaria de ouvir mais uma vez o que ele diz, pois aindano creio ter entendido direito o que quer dizer...

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    E aqui est a carta que li ao meu diretor:

    Possibilidades Cientficas

    Senhor, li com divertido prazer, para no mencionaroutra emoo menos delicada, o artigo totalmente imbecildo Sr. James Wilson Mac Phail, que apareceurecentemente no seu jornal a propsito das manchas nasLinhas de Frauenhofer, visveis nos espectros dos planetasque orbitam em volta das estrelas fixas. Ele considera ofenmeno insignificante enquanto, para uma mente maisperspicaz, resulta claro que a coisa to importante que

    chega a ser um perigo para qualquer homem, mulher ecriana do nosso planeta. No pretendo absolutamente explicar o meu ponto

    numa linguagem cientfica, pois a maioria dos leitores quefundamentam a sua cultura naquilo que lem nos jornaisno iria entender. Assim sendo, procurarei nivelar-me coma mentalidade da ral e explicar a situao recorrendo auma analogia elementar ao alcance da inteligncia dosseus leitores.

    Este homem uma verdadeira figura!, exclamou Mc Ardle.Sabe muito bem como lidar com as pessoas. Mas prossiga, vamosouvir a analogia...

    Vamos supor - recomecei a ler - que uma srie derolhas de cortia presas umas s outras seja jogada numacorrenteza que a leve atravs do oceano Atlntico.

    As rolhas biam e avanam lentamente, cercadas pelasmesmas condies ambientais. Se as rolhas tivesseminteligncia, podemos supor que considerariam as taiscondies permanentes e seguras. Ns, no entanto, com osnossos conhecimentos superiores, sabemos muito bem queas rolhas poderiam ter inmeras surpresas. Poderiam, porexemplo, bater num navio, ou numa baleia adormecida, ouento encalhar num banco de areia. De qualquer maneira,a viagem quase certamente acabaria em algum ponto da

    costa rochosa do Labrador.

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    Mas o que poderiam as rolhas pensar disto tudo, aonavegarem despreocupadas em condies que julgamimutveis e ilimitadas?

    Provavelmente os seus leitores conseguiro entender

    que o Atlntico representa o desmedido oceano de espaono qual nos movemos, e que as rolhas nada mais so doque o pequeno e mesquinho sistema planetrio ao qualpertencemos. Uma vez que somos apenas uma estrela deterceira grandeza com um squito de insignificantessatlites, estamos boiando exatamente como os pedaos decortia, rumo a uma terrvel catstrofe que ir nos surpreender nos confins do espao, quando seremos

    tragados por algum etreo Niagara ou jogados contra uminesperado Labrador. No consigo entender o ingnuootimismo do seu colaborador James Wilson Mac Phailenquanto vejo inmeras razes para ficarmos desobreaviso diante de qualquer transformao ambiental nouniverso que nos cerca, da qual poder depender o nossodestino final.

    Este homem poderia ter sido um poltico e tanto!, exclamou

    Mc Ardle. Ressoa como um rgo! Vejamos ento o que opreocupa.

    As manchas nas Linhas de Frauenhofer - continuava acarta - indicam, no meu entender, uma grandetransformao csmica de tipo bastante singular. A luz quenos chega de um planeta uma luz refletida do sol. A luzque chega at ns de uma estrela, por sua vez, uma luz

    que podemos chamar de autogerada, produzida pela prpria estrela. Agora, acontece que os espectros dosplanetas assim como os das estrelas revelam ter sofrido,todos eles, a mesma mudana. Haver ento uma idnticatransformao afetando tanto os planetas quanto asestrelas?

    No meu entender, uma idia destas simplesmenteinconcebvel.

    Que tipo de transformao poderia com efeito atingi-

    los ao mesmo tempo? Seria ento alguma transformaona nossa prpria atmosfera? possvel, mas extremamente

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    improvvel, pelo menos at quando no descobrirmosalgum sinal disto nossa volta.

    Poderia haver, ento, uma terceira hiptese? Creioque sim, e ela seria a seguinte: a transformao estaria

    acontecendo naquele espao incrivelmente tnue que vai deuma estrela para a outra e que ocupa o inteiro universo.Ns estamos boiando no meio deste oceano, levados poruma vagarosa correnteza. E o que impede que estacorrenteza nos levem para os indefinidos halos querepresentam novos fenmenos, halos cujas propriedadesso para ns novas e das quais no temos a menor idia?

    uma possibilidade que de forma alguma podemos

    descartar. E a atual perturbao csmica do espectro prova disto. Pode ser uma mudana para melhor, mastambm pode ser uma mudana fatal ou at mesmo incua. justamente este o ponto que desconhecemos.Observadores superficiais e desatentos podero no levarem conta este fato, mas a profundidade do verdadeirofilsofo logo perceber que as possibilidades do universoso incalculveis, e que o sbio deve manter-se preparadoa aceitar os acontecimentos mais imprevisveis.

    Para dar um exemplo bem claro, quem pode jurar quea estranha epidemia da qual hoje mesmo o seu jornal fala,e que de repente acomete um grande nmero de nativos emSumatra, no esteja relacionada com alguma mudanacsmica que afetou aqueles indgenas mais rapidamenteque os povos da Europa? Esta minha idia, repito, nopassa de uma hiptese sem maior fundamento, e de nadaadiantaria, por enquanto, defend-la ou neg-la. Seria, no

    entanto, muito tolo aquele que no quisesse admitir quetais fenmenos so perfeitamente aceitveis dentro daspossibilidades cientficas.

    Despeo-me atenciosamente.George Edward ChallengerBrias-Rotherfield

    Uma carta e tanto, disse Mc Ardle enquanto procurava umcigarro na mesa. O que pensa disto, Sr. Malone?

    Tive de admitir a minha total ignorncia a respeito do assunto.O que vinham a ser, por exemplo, as Linhas de Frauenhofer?

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    Ao contrrio de mim, o Sr. Mc Ardle tinha examinadoprofundamente a questo com a ajuda do nosso redator cientfico.Apanhou na mesa duas folhas coloridas e mostrou-me umas linhaspretas que se cruzavam sobre um fundo de cores vivazes que, do

    vermelho alaranjado ao roxo, passavam por todas as tonalidades doespectro solar.

    Estes riscos escuros so as Linhas de Frauenhofer, disse, eas cores indicam as luzes. Mas isto no vem ao caso. O que interessaso as linhas, pois elas variam segundo aquilo que pode produzir aluz. So justamente estas linhas que, na semana passada, aparecerammanchadas em vez de lmpidas, e todos os astrnomos continuamat agora tentando descobrir a razo disto. Aqui est a foto das

    linhas maculadas para a nossa edio de amanh. Por enquanto opblico no se mostrou muito interessado no assunto, mas acreditoque ficar bastante curioso depois de ler a carta de Challenger noTimes.

    E o que aconteceu em Sumatra?Est havendo uma estranha epidemia, e um cabograma que

    acaba de chegar de Cingapura avisa que todos os faris do Estreitoda Sonda esto apagados, o que j provocou o naufrgio, de doisnavios. Seja como for, acho aconselhvel que o senhor entreviste

    Challenger a respeito do assunto. Se conseguir alguma coisa,prepare uma matria para a edio de segunda-feira.

    Eu j,estava saindo da sala do diretor, pensando na tarefa queme aguardava, quando ouvi o meu nome sendo gritado por algumque segurava um telegrama.

    A mensagem era justamente do homem a respeito do qualacabvamos de conversar, e dizia: Malone, Hill Street 17,Streatham. Traga oxignio. Challenger.

    Traga oxignio! Eu sabia muito bem que o professor eraconhecido pelo seu humorismo bastante excntrico, e que era capazdas atitudes mais bizarras. Seria ento, aquela, mais uma das piadasque provocavam nele estrondosas risadas durante as quais a suagrande barba se agitava como navio entre vagas tempestuosas? Pareipara considerar as palavras da mensagem, mas nada encontrei quepudesse justificar a hiptese de um chiste. Evidentemente, tratava-sede uma ordem: embora, sem dvida, de uma ordem bastanteestranha.

    O professor era a ltima pessoa no mundo qual eu ousariadesobedecer. Talvez estivesse preparando alguma experincia

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    qumica; talvez... mas no cabia a mim quebrar a cabea s paraadivinhar o que ele estava aprontando... Eu s precisava obedecer.

    Ainda teria de esperar quase uma hora antes de pegar o trem naVictoria Station. Depois de procurar o endereo na lista telefnica,

    peguei um txi e fui at uma firma produtora de oxignio, a OxygenTube Supply Company, na Oxford Street.

    Ao chegar na firma, dois jovens estavam sando delacarregando um botijo metlico que, com alguma dificuldade,colocaram dentro de um carro parado. A operao estava sendodirigida por um idoso cavalheiro que, em certa altura, virou-se paramim. No havia como errar, pois o cavanhaque de bode e os traosseveros eram inconfundveis. Tratava-se do meu velho companheiro

    de aventuras, o professor Summerlee.Ora, ora!, exclamou. O senhor tambm recebeu um daquelesenigmticos telegramas que pedem oxignio?

    Mostrei-lhe a mensagem.Pois ! Eu tambm recebi e, como pode ver, tomei logo as

    devidas providncias mesmo sem entender a razo do pedido. Comosempre, o nosso amigo bastante exigente. Presumo que no setrate de uma coisa urgente, pois neste caso ele mesmo teria cuidadodo assunto. No entendo o motivo pelo qual ele no encomendou o

    oxignio diretamente.Limitei-me a comentar que devia ter l os seus motivos.De qualquer maneira, agora desnecessrio que o senhor

    tambm compre um botijo. Acho que j temos o bastante... evidente que ele tambm quer que eu leve a minha parte.

    Acho melhor seguir risca as suas ordens.A, apesar dos resmungos e dos suspiros enfadados de

    Summerlee, pedi outro botijo de oxignio e mandei coloc-lo junto

    do outro, no carro, uma vez que o meu companheiro oferecera-separa levar-me estao.Afastei-me um momento para pagar o motorista do txi, o qual

    demonstrou uma descabida grosseria. Voltando para Summerlee,encontrei-o todo preso numa discusso em com os homens quehaviam carregado o oxignio. Estava to irado que a sua barbichano parava de fremir. Lembro que um dos dois homens chamou-ode velho gorila, e este improprio ofendeu o motorista do professora ponto de tir-lo do carro e quase envolv-lo numa ruidosa briga de

    rua que s pde ser evitada graas aos nossos titnicos esforos.

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    Poder-se-ia pensar que intil relatar estas bobagens sem maiorimportncia e, com efeito, na hora que aconteceram, eu tambm asconsiderei totalmente irrelevantes. Agora, no entanto, quando voltoa lembrar o passado, percebo claramente a conexo que elas tinham

    com a histria que comecei a contar.Pelo que eu pude entender, o motorista, devia novato, ou ento

    ficara muito perturbado com a briga, pois dirigiu at a estao deforma lastimvel. Guiou to mal que quase chegou a bater, em maisdois veculos, que por sua vez estavam sendo dirigidos com bastanteimprudncia. Lembro-me, alis, que o prprio Summerlee chegou acomentar a dificuldade com que j se podiam encontrar motoristascompetentes em Londres.

    Em certa altura quase atropelamos um grupo de pessoas queassistiam a uma briga. Os cidados, sobremodo indignados,comearam e gritar contra ns e um deles agarrou-se no carroagitando uma bengala sobre as nossas cabeas. Consegui jog-lo aocho, mas confesso que s respirei aliviado quando deixamos aturma para trs.

    Esta seqncia de pequenos fatos desagradveis que sesucediam sem parar deixou-me um tanto nervoso; e, ao mesmotempo, as maneiras petulantes do meu companheiro revelavam que a

    sua pacincia no tinha de forma alguma aumentado com o passardos anos.

    Ficamos novamente serenos, no entanto, quando vimos LordJohn Roxton que esperava na plataforma da estao, com suarobusta figura fechada numa roupa de caa de cor amarelada.

    O seu rosto franco, com seus olhos inesquecveis, revelouverdadeira alegria quando nos viu. O velho amigo caiu nagargalhada ao reparar nos dois botijes de oxignio que trazamos

    conosco.Vocs tambm esto levando? , gritou. O meu j est novago de carga. O que ser que o nosso camarada est aprontandodesta vez?

    J viu a carta no Times?, perguntei.Qual o assunto?Desvarios!, resmungou Summerlee, quase com desprezo.Acredito que deve haver alguma relao entre a carta e o

    pedido de oxignio, afirmei.

    Desvarios!, repetiu Summerlee, desta vez quase com fria.

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    Enquanto isso, tnhamos entrado num carro de primeira classepara fumantes, e ele acendera o curto cachimbo que sempre pareciaquerer botar fogo na ponta do seu longo nariz agressivo

    O bom Challenger um homem inteligente, exclamou em

    seguida, com grande veemncia. Ningum pode negar, e quemnegar isto s pode ser um louco. Esto lembrando o seu grandechapu? Dentro dele h um grande crebro, uma mquina poderosa,funcionando ininterruptamente e sem a menor falha! Infelizmente,no entanto, um verdadeiro charlato, e vocs sabem que eu disseisto bem na cara dele. Um incorrigvel charlato que adora ver o seunome nas manchetes dos jornais! J faz algum tempo que no se falanele, de forma que agora o amigo Challenger est mais uma vez

    procurando botar a boca no trombone. No vo me dizer querealmente acreditam nele quando fala todas essas bobagens acercade mudanas no espao e de perigos para a raa humana...

    E encolheu-se no assento, fazendo um grande estardalhao comseus motejos e risadas.

    Diante disto, eu quase me deixei vencer pela indignao. Noficava bem falar assim do nosso chefe, daquele que havia sido acausa da nossa fama e que nos deixara participar de aventuras quenenhum outro homem tinha vivido. Estava a ponto de abrir a boca

    para dzer-lhe umas boas, quando Lord John adiantou-se.Lembro que uma vez o senhor teve uma divergncia com o

    velho Challenger, disse friamente, e ele s levou dez segundos para acabar com os seus argumentos. A meu ver, meu caro professor, trata-se de um homem de nvel superior ao seu, e omelhor que o senhor pode fazer simplesmente deix-lo em paz...

    Por no falar no fato de sempre ter sido um timo amigo dens todos. Pode at ter algum defeito, mas no acho que tenha o

    hbito de falar mal dos seus companheiros por trs das costas...Isto mesmo, meu rapaz!, disse Lord Roxton. A, com umsorriso gentil, deu um tapinha nos ombros do professor Summerlee,ao qual se dirigiu em tom amigvel:

    Vamos l, HerrProfessor, ser que realmente vamos ter de brigar? J passamos por muitas aventuras juntos. Mas cuidadoquando quiser dar umas alfinetadas em Challenger, porque tanto euquanto este rapaz temos um fraco pelo nosso velho companheiro...

    Summerlee, entretanto, no estava minimamente a fim de

    assinar um armistcio. O seu rosto logo revelou que no concordava

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    conosco, e desabafou o seu mau humor com densas nuvens defumaa que se avolumaram em voltado do seu cachimbo.

    Quanto ao senhor, Lord John Roxton, gargalhouescarnecedor, A sua opinio sobre assuntos cientficos tem para

    mim a mesma importncia que, aos seus olhos, teria o meu ponto devista acerca de questes de caa. Eu penso com a minha cabea,senhor, e uso o meu julgamento da forma que eu bem quiser! Serque agora, s porque uma vez a minha cabea falhou, terei deaceitar como evangelho tudo aquilo que Challenger decidirdefender? Ser que de repente querem nome-lo papa das cincias,guia infalvel, e aceitar sem discusso todas as suas lorotas? Repito,meu senhor, que penso com o meu prprio crebro, e que se assim

    no fosse, sentir-me-ia completamente intil, um escravo! Se ossenhores acharem melhor acreditar nessas bobagens de ter e deLinhas de Frauenhofer, fiquem vontade; mas por favor no exijamque algum mais velho e sbio que vocs os acompanhe nessaloucura! No lhes parece bvio que, se as condies do ter fossematualmente prejudiciais sade dos homens, isto j teria ficadopatente? E a riu triunfalmente. Pois , meus senhores, nesta alturans todos j estaramos apresentando sinais de anormalidade, e emlugar de estarmos aqui tranqilamente sentados, examinando um

    problema cientfico dentro de um vago ferrovirio, j estaramosrevelando os sintomas do veneno dentro de ns. Digam, esto poracaso vendo algum sinal deste envenenamento?

    O velho tornava-se cada vez mais furioso. Havia algo bastanteagressivo e irritante no desabafo de Summerlee.

    Acho que se o senhor estivesse mais a par dos acontecimentos,seria menos rgido na sua maneira de pensar!, ousei dizer.

    Summerlee tirou o cachimbo da boca e lanou-me um olhar

    interrogativamente cortante.Gostaria de dizer-lhe que, na hora de sair do jornal, soube pelomeu diretor que havia chegado um cabograma confirmando aepidemia entre os nativos de Sumatra, assim como a falta defuncionamento dos faris do Estreito da Sonda.

    Na verdade, a loucura humana deveria ter limites!, berrouSummerlee, totalmente descontrolado. Ser possvel que vocs noentendam que o ter, se quisermos aceitar por um momento a loucahiptese de Challenger, uma substncia universal, a mesma aqui

    do outro lado do mundo? Ou ser que acreditam num ter ingls eem outro, diferente, em Sumatra? S me resta dizer que a ignorncia

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    e a credulidade dos homens so infinitas! Como que algum pode,pensar que em Sumatra o ter pernicioso a ponto de provocar umadoena geral, enquanto o dos pases em que moramos no consegueter efeito algum sobre ns? Quanto a mim, posso afirmar em s

    conscincia,que nunca me senti to bem como agora.Pode ser. Eu no sou um cientista, opinei. Mas acho que,

    justamente por termos to escassas noes acerca do ter, nadaimpede que este sofra, sem que ns percebamos, a influncia decondies locais, em diferentes partes do mundo, e tenha nestasreas efeitos que s mais tarde ficaro patentes entre ns.

    Com os seus talvez e pode ser', o senhor no est provandocoisa alguma!, exclamou Summerlee. Os porcos podem voar, sim

    senhor: eu poderia afirmar que os porcos podem voar, mas naverdade eles no voam. Nem vale a pena conversar com vocs.Challenger encheu-lhes a cabea com as suas lorotas, e nenhum dosdois j consegue raciocinar. Seria o mesmo que conversar com asalmofadas deste camarote!

    Vejo-me forado a dizer, professor Summerlee, que os seusmodos no parecem ter melhorado desde a ltima vez que tive oprazer de encontr-lo, disse Lord John.

    Vocs nobres no esto acostumados a ouvir a verdade!,

    respondeu Summerlee com um sorriso azedo. Quando algum lhesdemonstra que todos os seus ttulos de nada adiantam para diminuira sua ignorncia, quase parece que esto recebendo uma paulada namoleira...

    Palavra de honra, disse Lord John, realmente indignado, se osenhor fosse mais jovem, no deixaria que me falasse desta forma!

    Summerlee esticou o pescoo para a frente, a sua barbichatremendo como nunca.

    Fique sabendo, meu senhor, que tanto na juventude quanto navelhice, em momento algum tive medo de falar s claras com ummolengo ignorante! Isto mesmo, um molengo intil eignorante!...

    Por um momento os olhos de Lord John faiscaram. A, com amaior dificuldade, dominou a sua indignao e voltou a sentar-se de braos cruzados. Para mim, aquela cena era bastanteconstrangedora. A minha memria voltava ao passado, antigacamaradagem, aos dias aventurosos e felizes, a tudo aquilo que

    tnhamos vivido e vencido juntos. Como era possvel que aquelesdois tivessem chegado s injrias? De repente ca em prantos...

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    soluando sem poder esconder aquela sbita fraqueza. Oscompanheiros olharam para mim, atnitos, e eu cobri o meu rostocom as mos.

    No foi nada, expliquei. S que... s que fiquei com muita

    pena...O senhor est doente, meu rapaz: no pode haver outra

    explicao!, disse Lord John. Pareceu-me muito nervoso desde oprimeiro momento que o vi!

    Os seus hbitos no mudaram, disse Summerlee sacudindo acabea. Reparei na estranheza do seu comportamento desde a horaem que nos encontramos. No desperdice a sua simpatia, Lord John.Estas lgrimas so simplesmente alcolicas: este homem deve estar

    bbedo! Pois , Lord John, h pouco chamei-o de 'molengoignorante' e talvez tenha exagerado; mas era apenas uma maneira defalar, um banal resqucio da minha juventude.O senhor s meconhece como cientista srio. Pois bem, acreditaria em mim se lhedissesse que houve um tempo em que era muito conhecido - nasfamlias onde houvesse crianas como imitador de bichos?Gostaria de ouvir a minha imitao de canto do galo?

    No senhor, disse Lord John, ainda ofendido. Possogarantir-lhe que no fao a menor questo...

    O meu cacarejar de galinha que acaba de pr o ovo eraparticularmente apreciado. Posso tentar?

    Por Deus, no! Nem pense nisto.Mas, apesar das reclamaes, o professor Summerlee guardou o

    cachimbo e, pelo resto da viagem, entreteve-nos com toda uma sriede imitaes de pssaros e outros animais. A coisa toda era toextravagante que, de uma hora para a outra, as minhas lgrimastransformaram-se numa sonora gargalhada.

    Em certa altura Lord John indicou-me o jornal que estavasegurando, na borda do qual escrevera a lpis: Pobre coitado!Enlouqueceu de vez!

    Enquanto isto tudo acontecia, por sua vez Lord John insistia emcontar-me uma interminvel histria sobre um bfalo e um marajindiano, histria que, a meu ver, no tinha ps nem cabea. Oprofessor Summerlee acabava de comear a cantar como um canrioe Lord John parecia ter finalmente chegado parte interessante doseu relato, quando o trem parou em Jarvis Brook, a estao mais

    prxima de Rotherfield.

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    O prprio Challenger estava esperando por ns. Pareciaradiante.

    Nenhum pavo poderia jamais chegar perto da altiva dignidadecom que ele passeava na plataforma. E isto sem falar do sorriso

    condescendente com que olhava os vis mortais que passavam pertodele.

    Evidentemente, estes traos do seu carter acentuaram-se desdea ltima vez que eu o vira. A grande cabea, com a ampla testalimitada pela floresta de cabelos negros, parecia ainda maior. Abarba negra, caindo como catarata, e os olhos de um cinza claro quefaiscavam um olhar perenemente insolente e sarcstico, formavamum conjunto mais imponente do que nunca.

    Recebeu-me com benevolente aperto de mo e o sorrisoencorajador com que o mestre trata um garotinho na escola e, depoisde cumprimentar os outros e ajud-los com a bagagem e os botijesde oxignio, empurrou todos para dentro de um grande carrodirigido pelo mesmo impassvel Agostinho, o homem de poucas palavras que eu conhecera como camareiro quando da minhaprimeira visita.

    O automvel comeou a subir pelas encostas de umas suavescolinas, no meio de uma linda regio. Eu sentava na frente, ao lado

    do motorista, e ouvia atrs de mim os trs companheiros quecontinuavam conversando. Pelo que pude entender, Lord Johncontinuava insistindo em seu confuso relato sobre o bfalo e omaraj, mas tambm pude ouvir a voz profunda de Challenger e otagarelar de Summerlee enquanto os dois se empenhavam numadouta conversa cientfica. De repente Agostinho virou o rostocrioulo para mim e, sem deixar de ficar de olho na estrada, disse:

    J chega para mim. No agento mais!

    Ser possvel?, exclamei. Naquele dia s aconteciam coisas estranhas, e todos diziamcoisas inesperadas e extravagantes. Parecia-me estar sonhando!

    E a quadragsima-stima vez!, disse Agostinho, muito srio.Quando vai nos deixar?, perguntei com a esperana de saber

    alguma coisa mais precisa.No estou indo embora, respondeu Agostinho.Tudo indicava que a conversa ia ficar por isto mesmo, mas ele

    apressou-se a continuar.

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    Se eu for embora, quem ir cuidar dele? E ao dizer isto piscava o olho indicando o patro. Quem mais iria agentartrabalhar para ele?

    Algum iria certamente aceitar o emprego, eu disse

    ingenuamente.No. Ningum ir a agentar mais de uma semana. Se eu for

    embora, a casa vai parar como um relgio de mola quebrada. Estoudesabafando com o senhor porque o considero amigo e j sabe demuita coisa...

    Por que acredita que ningum agentaria?, perguntei.

    Porque ningum saberia suport-lo como eu fao. um

    homem inteligente, at inteligente demais s vezes. Mas tambm fazcoisas que ningum acreditaria. Sabe o que fez hoje de manh, porexemplo?

    O que foi?Agostinho aproximou-se.Deu uma mordida na arrumadeira, murmurou num tom que

    dava para perceber o espanto.Deu uma mordida nela?Isto mesmo. Deu-lhe uma mordida na perna. Vi com os meus

    prprios olhos a pobre mulher que fugia assustada, queixando-se.Incrvel!Pois , incrvel mesmo! E o senhor, tambm diria isto se

    tivesse visto um monto de outras coisas. Ele no tem amigos entreos vizinhos. Alguns deles dizem que quando o professor ficou entreaqueles monstros sobre os quais o senhor escreveu um livro, deviasentir-se perfeitamente vontade, e que ningum poderia imaginarpara ele companhia mais apropriada. o que os vizinhos dizem.

    Mas eu, que estou ao servio dele h dez anos e lhe quero bem, digoque um grande homem quando suas ordens so obedecidas ao pda letra, e que trabalhar para ele uma honra. Mas s vezes parecequase achar graa na sua prpria crueldade. Por exemplo, veja osenhor mesmo. Certamente, no podemos considerar isto uma provada antiga hospitalidade inglesa. Olhe, leia o senhor mesmo...

    O carro, avanando lentamente, estava enfrentando uma curva.Depois da virada, havia uma placa de madeira fincada na margem daestrada. Como dissera Agostinho, no era difcil ler o aviso, pois se

    tratava de poucas palavras, capazes de tirar o nimo de qualquer um:

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    AVISO:Visitantes, representantes da imprensa e mendigos

    no so bem-vindosG.E. Challenger

    No propriamente o que eu chamaria de boas-vindas!, disseAgostinho, sacudindo a cabea e mantendo os olhos fixos nadesanimadora advertncia. Queira desculpar-me, senhor, aindamais porque nunca falei assim nestes anos todos. Mas acontece quehoje quase me parece sentir mais compreenso por ele. Podemaltratar-me, mas no irei embora. Sou o empregado e ele o meupatro, e juro que vai continuar assim at o fim dos meus dias...

    Tnhamos superado as colunas de um portal, e agoraavanvamos por uma sinuosa avenida flanqueada por rododendros.No fim da avenida havia uma casa de tijolos, baixa, enfeitada comluminosas janelas brancas. Parecia um lugar muito aconchegante, ea senhora Challenger, uma figurinha toda cheia de sorrisos, estavana porta para nos receber.

    Querida, disse o professor saindo apressadamente do carro,aqui esto os nossos hspedes. uma novidade e tanto, para ns,termos visitas. Com efeito, no h l muita fartura de sentimentos

    amorosos entre ns e os nossos vizinhos! Acho que se pudessembotar um pouco de estricnina no nosso po, eles o fariam com omaior prazer: os nossos vizinhos...

    horrvel, realmente horrvel!, exclamou a dama que nodava para saber se ria ou chorava. George vive brigando com todoo mundo. No temos um amigo sequer em toda a vizinhana...

    Esta solido faz com que eu possa concentrar a minha atenona minha incomparvel mulher, disse Challenger apertando com

    seu brao curto e gorducho a cintura dela. Imaginem um gorila euma gazela e podero ter uma idia da situao. Mas melhordeixarmos estas agruras de lado: vamos, vamos! Estes senhoresdevem estar cansados com a viagem e o almoo j deveria estarsaindo. Sara j voltou?

    A dama sacudiu a cabea para dizer que no e o professorentregou-se a uma de suas risadas.

    Agostinho, depois de guardar o carro na garagem, tenha abondade de ajudar a senhora a preparar o almoo. Agora, senhores,

    queiram-me honrar com sua presena no meu escritrio, pois halgumas coisas importantes que quero lhes contar quanto antes.

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    2- A Onda da Morte

    Enquanto atravessvamos o vestbulo, a campainha do telefonetocou e, desta forma, acabamos ouvindo involuntariamente o fim daseguinte conversa do professor Challenger. Falei em ns, masningum no raio de cem metros poderia ter deixado de ouvir otrovo daquela voz assustadora que ecoava por toda a casa. Asrespostas dele ficaram na minha memria:

    Sim, sim, claro que sou eu; pois , o professor Challenger, eumesmo... o famoso professor... Certamente, est correta em cada

    uma das suas palavras, pois de outra forma no teria escrito... Noficaria nem um pouco surpreso... Tudo nos leva a pensar isto, daquia um dia ou dois, no mximo... Mas no h coisa alguma que eupossa fazer a respeito!... Sinto muito, mas acredito que a coisa irincomodar pessoas at mais importantes que o senhor. De nadaadianta queixar-se... No, no h nada que eu possa fazer. Tero dedar um jeito com os seus prprios recursos... Agora chega, meusenhor, tenho coisas bem mais importantes a fazer do que ficarouvindo essa lengalenga queixosa...

    Desligou o telefone e nos levou ao primeiro andar, para agrande e arejada sala que era o seu escritrio. Na imponenteescrivaninha de mogno jaziam sete ou oito telegramas aindafechados.

    Acho que os meus correspondentes, disse enquanto pegava asmensagens, poupariam um bom dinheiro se eu tivesse um endereotelegrfico. Talvez 'No-Rotherfield' fosse o mais apropriado...

    Como costumava fazer toda vez que se entregava a algum

    obscuro jogo de palavras, apoiou-se na escrivaninha e comeou a rirrumorosamente. O seu corpo estremecia todo e, de tanta agitao, asmos nem conseguiam abrir os telegramas.

    No, No!, gritou, enquanto Lord John e eu sorramos paracontent-lo, e Summerlee sacudia a cabea em sinal de comiserao.

    Finalmente, Challenger comeou a abrir os telegramas,enquanto ns trs ficvamos perto da grande janela para admirar opanorama.

    E de fato valia a pena olhar. A estrada, com suas curvas

    sinuosas, tinha deixado para baixo o vale e subira a uma altura que,como mais tarde soubemos, era de quase trezentos metros. A casa de

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    Challenger ficava justamente no topo da colina e, da fachada norteonde se encontrava a janela do escritrio, podia-se admirar umavista realmente magnfica.

    Os olhos alcanavam aldeias e lugares conhecidos e, para o sul,

    como que encravado nos bosques, podia-se ver um ramal da linhaferroviria principal entre Londres e Brighton. Logo abaixo de nshavia um pequeno ptio fechado, onde descansava o automvel quenos trouxera da estao...

    Uma exclamao de Challenger chamou a nossa ateno. J leraos telegramas e os empilhara metodicamente sobre a escrivaninha.O seu rosto, ou o pouco dele que se podia ver sob a enorme barba,estava quase congestionado: parecia ter sofrido o impacto de algum

    acontecimento excepcional.Muito bem, meus senhores, disse. A nossa de fato umareunio bastante interessante, que ocorre em circunstnciasextraordinrias, alis, em circunstncias nunca vistas. Permitam queeu pergunte se repararam em alguma coisa fora do comum durante asua viagem.

    A nica coisa que notei, disse Summerlee, que os modosdo nosso jovem amigo aqui presente no melhoraram muito desde altima vez que estivemos juntos. Lastimo constatar que fui forado

    a queixar-me seriamente do seu comportamento no trem, e estariamentindo se no afirmasse enfaticamente que ele deixou em mimuma impresso decididamente desagradvel.

    Ora, ora! Todos ns temos as nossas fraquezas, disse LordJohn.

    No preciso censurar este jovem. Ele pertence a um dos maisfamosos times de futebol e, mesmo que demore meia hora paradescrever um jogo, tem mais direito de fazer isto do que muitos

    outros.Meia hora para descrever um jogo?, gritei indignado. Quemnos fez perder meia hora com a sua interminvel histria de bfalose marajs foi o senhor mesmo, ora essa! O professor Summerlee testemunha...

    Francamente no saberia dizer qual dos dois pareceu-memenos srio, disse Summerlee. E posso garantir, Challenger, queperdi qualquer vontade de ouvir falar em futebol e bfalos...

    Mas se nem mesmo cheguei a mencionar o futebol!, protestei.

    John fez uma careta, e Summerlee meneou a cabea.

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    Foi no comeo da viagem, disse. Uma coisa realmentedesagradvel. Enquanto eu ficava em triste e pensativo silncio...

    Em silncio!? Berrou Lord John. Mas se no parou ummomento de fazer ridculas imitaes, tanto assim que parecia mais

    uma vitrola do que um homem?...Summerlee empertigou-se para protestar amargamente.O senhor se diverte bancando o engraado, Lord John!, disse

    com expresso sombria.Engraado coisssima nenhuma! Isto uma verdadeira

    loucura!, insurgiu Lord John. Ao que parece, cada um de ns sabeo que os outros fizeram, mas ningum sabe o que ele mesmo fez.Vamos tentar reconstituir os fatos. Antes de mais nada entramos

    num vago de primeira classe para fumantes: pelo menos quanto aisto estamos todos de acordo, no ? A comeamos a discutirdevido carta do nosso amigo Challenger no Times.

    Foi isto que fizeram?, resmungou o nosso anfitrio.O senhor, Summerlee, disse que naquelas afirmaes no

    podia haver nem sombra de verdade...Ai de mim!, exclamou Challenger. Nem sombra de verdade?

    E posso perguntar com quais argumentos o grande e famosoprofessor Summerlee tentou destruir o humilde indivduo que ousou

    expressar uma opinio sobre um assunto de possibilidade cientfica?Talvez, antes de trucidar esta pobre nulidade que eu sou, ele sedigne de citar algumas das razes que o induziram a pensar de outraforma...

    As mos de Challenger torciam-se convulsamente enquanto elefalava com o seu sarcasmo to delicado quanto uma patada deelefante.

    As minhas razes so muito simples, disse Summerlee. Eu

    afirmava que se o ter que cerca a terra - numa rea determinada -fosse txico a ponto de provocar perigosos sintomas, no seria possvel explicar por que ns trs que estvamos no carroferrovirio no mostrvamos o menor sinal de sofrer os seusefeitos.

    Esta explicao s conseguiu encher de alegria Challenger. Elecontinuou rindo at que tudo na sala pareceu tremer e tilintar.

    Aquilo que o senhor est dizendo, Summerlee, e no aprimeira vez que isto acontece, no corresponde realidade dos

    fatos, disse afinal. S para comear, meus senhores, no possodeixar de contar-lhes o que me aconteceu esta manh. Depois de me

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    ouvirem, podero muito mais facilmente perdoar a si mesmos. Seromais indulgentes com os seus prprios erros, pois sabero que eumesmo tive momentos em que o meu prprio equilbrio ficouabalado.

    J faz bastante tempo que ns temos, aqui em casa, uma criadachamada Sara cujo sobrenome nunca consigo lembrar. umamulher de aparncia sria e comedida, totalmente impassvel, umamulher completamente incapaz de mostrar qualquer tipo de emoo.

    Enquanto eu tomava sozinho o caf da manh, pois a senhoraChallenger ainda estava na cama, de repente fiquei pensando queseria bastante divertido estabelecer at que ponto aimperturbabilidade daquela mulher poderia manter-se inabalvel.

    De forma que aprontei uma experincia fcil e eficiente. Depois deentornar na toalha um pequeno vaso de flores que estava ao lado dacafeteira, toquei a campainha e escondi-me embaixo da mesa. Amulher chegou e, vendo o aposento vazio, pensou que eu j forapara o escritrio.

    Como eu esperava, aproximou-se e debruou-se na mesa paraendireitar o vaso. Nesta altura, pude entrever uma meia de algodo euma botinha de mola. A, espichando a cabea, dei uma mordida napanturrilha dela. A experincia teve um sucesso superior a qualquer

    expectativa. Por alguns momentos ficou parada, petrificada, deolhos fixos na minha cabea. A, gritando, recobrou-se e saiucorrendo da sala.

    Eu fui atrs, com o propsito de dar-lhe uma explicao, masela j estava correndo colina abaixo e, depois de alguns minutos, sconseguia v-Ia usando o binculo do exrcito. Estou lhes contandoisto para que possam entender o sentido da histria. Conseguiuilumin-los? Despertou alguma coisa dentro de vocs? O que acha

    disto, Lord John?O fidalgo meneou a cabea, pensativo.Se no consultar um mdico quanto antes, o senhor vai acabar

    tendo alguma doena muito sria, respondeu afinal.Algum comentrio, Summerlee?Esquea o trabalho e v imediatamente passar pelo menos trs

    meses em algum sanatrio, disse o anatomista.timo conselho!, exclamou Challenger. Ento, Sr. Malone,

    ser possvel que logo da sua boca possa sair a sabedoria, enquanto

    os mais velhos s foram capazes de dizer bobagens?

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    De fato, e, por favor, entendam que digo isto com a maiormodstia possvel, consegui entender a verdade. Para vocs leitores,que daqui a pouco sabero o que estava acontecendo, poderparecer fcil, mas no foi nada fcil para mim naquele momento. A

    revelao da verdade abriu caminho na minha mente de formarepentina.

    Veneno!, exclamei.E logo aps dizer isto, a minha memria voltou a todos os

    acontecimentos daquela manh, histria do bfalo de Lord John,ao meu pranto histrico, ao comportamento inconveniente do professor Summerlee, s coisas estranhas vistas em Londres, desastrada maneira de guiar do motorista, a briga em frente

    distribuidora de oxignio. Tudo isto acabou formando um conjuntomuito claro diante dos meus olhos.Claro!, repeti. S pode ser veneno. Estamos todos

    envenenados...Exatamente, disse Challenger esfregando as mos. Estamos

    todos envenenados. O nosso planeta entrou no halo de terenvenenado e neste momento est atravessando-o a uma velocidadede alguns milhes de milhas por minuto. O nosso jovem amigodefiniu a causa de todas as nossas dores de cabea com uma nica

    palavra: veneno!Ficamos olhando uns para os outros em silncio. Ningum

    achou oportuno fazer comentrios.H uma espcie de inibio mental que pode nos ajudar a

    identificar estes sintomas, disse Challenger. No posso exigir quetal inibio esteja desenvolvida em vocs da mesma forma que emmim, pois suponho que a fora dos nossos vrios processos mentaisno seja igual em ns todos. Mas evidente que, sob este aspecto, o

    nosso jovem amigo est muito bem servido.Depois do meu curto ataque de loucura, que tanto sobressaltoua nossa criada, sentei para pensar cuidadosamente no assunto. Ficoulogo bem claro que eu nunca tinha cedido ao impulso de morderalgum aqui em casa. O impulso havia, portanto, sido anormal, e slevei um momento para descobrir a verdade.

    O exame do meu pulso revelava dez batimentos acima donormal. Procurei ento juntar todas as minhas faculdades mais altase sadias, e mandei o verdadeiro G.E. Challenger sentar, sereno e

    alheio a qualquer influncia daquela estranha situao. Avisei-opara que ficasse precavido contra as loucas brincadeiras mentais

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    O fim do mundo!... Viramos os olhos para a janela do escritrioe contemplamos a beleza estival dos campos, o verde das colinas, aserena suavidade das pastagens. O fim do mundo! Mais cedo oumais tarde, todos ns acabamos ouvindo esta frase, mas o fato dela

    poder ter um significado prtico e imediato, dela tornar-se realidade,no num futuro incerto e nebuloso, mas sim agorinha mesmo,naquele mesmo dia, era certamente uma idia pavorosa eperturbadora.

    Ficamos como que petrificados, esperando silenciosamente queChallenger continuasse. A sua barbuda imponncia acrescentavatanta fora solenidade das suas palavras que, por um instante,todas as extravagncias do homem desapareciam e ele nos parecia

    um personagem de majestosa importncia, colocado acima dahumanidade comum.Imaginem cachos, disse, infestados por microscpicas

    bactrias. O jardineiro mergulha-os numa substncia desinfetante.Mergulha-os no veneno e as bactrias desaparecem. Nestemomento, o nosso jardineiro - no meu entender - est desinfetando osistema solar, e a bactria humana est a ponto de desaparecer...

    Houve mais um longo silncio, interrompido afinal pelacampainha do telefone.

    Deve ser alguma bactria pedindo ajuda!, disse Challenger.Saiu do escritrio por um minuto ou dois e nenhum de ns

    ousou falar durante a sua ausncia. Qualquer palavra e qualquercomentrio pareciam inteis diante de uma situao to excepcional.

    Era o posto de sade de Brighton, disse Challenger ao voltar.Por alguma razo que desconheo, os sintomas parecemdesenvolver-se mais rapidamente no nvel do mar. A altura destacolina d-nos alguma vantagem. Parece que muitos j se

    convenceram disto, principalmente, depois da minha carta aosTimes. A pessoa com a qual falei pelo telefone logo depois quevocs chegaram era o prefeito de uma cidadezinha do interior.Obviamente, ele atribua a prpria vida um valor exagerado, eprocurava algum meio de salvar-se. Eu, no entanto, levei-o a pensarde forma mais modesta.

    Summerlee levantara-se, aproximando-se da janela. Suas mosfinas e ossudas tremiam.

    Challenger, falou ansiosamente, trata-se de uma coisa sria

    demais para que fiquemos brincando. No pense que queiraquestion-lo s para irrit-lo, s gostaria de saber se porventura

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    pode haver alguma possibilidade de erro no seu raciocnio e nassuas informaes. L fora o sol brilha no cu azul como de costume,e h searas, flores, pssaros. H jovens que continuam se divertindoe jogando golfe como sempre fizeram, e lavradores ceifando o

    trigo.Est nos dizendo que estamos beira do abismo e que este dia

    luminoso pode ser o ltimo para a raa humana. Pelo que nos dadoentender, o senhor s baseia esta aterradora convico em algumaslinhas anormais de um espectro, numas poucas notcias que vieramde Sumatra, e em algum estranho comportamento que cada um dens notou nos companheiros. Sabe muito bem, Challenger, que novale a pena esconder o jogo com a gente. Todos ns j encaramos a

    morte. Fale claro, portanto, conte exatamente o que est havendo e oque, a seu ver, podemos esperar.Foram palavras corajosas e eficazes, palavras dignas do esprito

    forte e correto que o velho anatomista escondia por trs do seurabugento azedume. Lord John levantou-se e apertou-lhe a mo.

    Estou plenamente de acordo!, disse. E agora, Challenger,cabe ao senhor explicar a situao. No somos pessoas que sedeixam vencer facilmente pelo nervosismo, como o senhor bemsabe; mas parece-me justo recebermos alguma explicao enquanto

    estamos mergulhando de cabea no dia do juzo final. Qual exatamente o perigo? O que precisamos recear? E o que podemosfazer para enfrent-lo?

    Estava parado, a sua robusta figura de p na grande luz dajanela, com uma das mos ossudas apoiada na mo de Summerlee.Eu estava espichado numa poltrona, com um cigarro apagado entreos lbios, naquele estado todo especial em que as impresseschegam ao nosso esprito perfeitamente claras.

    Pode ser que se tratasse de uma nova fase do envenenamento,mas os impulsos delirantes tinham desaparecido, deixando umestado mental bastante lnguido e ao mesmo tempo extremamentelcido. Sentia-me como um espectador, e parecia-me que nadapudesse ter alguma coisa a ver diretamente comigo. Mas na minhafrente havia trs homens excepcionais enfrentando uma grandecrise, e era sobremodo interessante observar as suas reaes.

    Pelos gestos que fez, deu logo para entender que Challengerestava escolhendo cuidadosamente as palavras que iria proferir.

    Quais eram as ltimas notcias, quando partiram deLondres?, perguntou-me.

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    Estava na redao do Gazette, l pelas dez horas da manh,respondi. Acabava de chegar uma notcia da agncia Reuter, deCingapura, informando que a epidemia alastrara-se em Sumatra eque, devido a isto, os faris no Estreito da Sonda haviam deixado de

    funcionar.Ao que parece, j no d mais para controlar os eventos!,

    disse Challenger esticando a mo para a pilha de telegramas. Eumantenho um bom relacionamento com as autoridades e com aimprensa, de forma que recebo um farto noticirio de muitos lados.Todo o mundo est insistindo para que eu volte a Londres. Mas comque finalidade? Pelas notcias que recebi, parece que os efeitos doenvenenamento comeam com uma espcie de excitao mental.

    Dizem que hoje de manh houve manifestaes extremamenteviolentas em Paris, e os mineiros do Gales esto na maior agitao.Segundo aquilo que at agora foi possvel averiguar, a este

    primeiro estgio, que varia conforme as raas e os indivduos,segue-se uma certa exaltao e lucidez mental da qual parece-medistinguir alguns sinais no nosso jovem amigo aqui presente, quedepois de algum tempo transforma-se por sua vez em coma, levando morte. Por aquilo que o meu conhecimento da toxicologia mepermite entender, acredito que se trate de algum veneno vegetal que

    afeta o sistema nervoso.Daturon!, sugeriu Summerlee.Muito bem!, exclamou Challenger. Em nome da preciso

    cientfica, aconselhvel que identifiquemos logo o nosso agentetxico. Ao senhor, meu caro Summerlee, cabe a honra (honrapstuma, infelizmente, mas a nica possvel) de ter dado um nomeao destruidor do universo, ao desinfetante do Grande Jardineiro.

    Os sintomas do Daturon podem ser reconhecidos conforme j

    falei. Os seus efeitos atuaro sobre o mundo inteiro, e creio poderafirmar com certeza que nenhuma vida humana ser poupada. Porenquanto o veneno s mostrou os seus caprichos nos lugares por eleafetados; mas s uma questo de horas, como uma onda queavana encobrindo um areal depois do outro, at engolir tudo. Noque diz respeito ao e distribuio do Daturon, h leis fsicasque poderiam ter sido mais interessantes se tivssemos tido o tempode estud-las devidamente.

    Por aquilo que eu pude constatar, e dizendo isto apontou para

    os telegramas, as raas menos desenvolvidas foram as primeiras asucumbir influncia do veneno. Chegam notcias assustadoras da

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    frica, e parece que tambm os aborgines da Austrlia j foramexterminados. At agora, as raas setentrionais mostraram-se maisresistentes do que as meridionais. Como podem ver, este telegramafoi enviado de Marselha, s quinze para as dez desta manh. Leiam

    comigo:

    Na Provena houve arruaas durante a noite toda,como se as pessoas estivessem tomadas por delrio. Osvinicultores de Nimes participaram de violentasmanifestaes. Em Toulon os socialistas invadiram as ruas.Nesta manh, uma repentina epidemia, seguida de coma,atacou a populao. Uma verdadeira peste fulminante!

    Inmeros mortos nas ruas. Paralisia dos negcios e caosgeneralizado.

    Uma hora mais tarde, recebi da mesma fonte a seguintecomunicao:

    Existe a ameaa de um extermnio total. A catedral eas igrejas esto cheias de pessoas apavoradas. O nmerodos mortos supera o dos vivos. algo inconcebvel e

    terrvel! Parece que a epidemia no provoca dor, mas rpida e inevitvel.

    E h tambm outro telegrama vindo de Paris, onde odesenvolvimento do fenmeno ainda no se tomou to agudo. Tudoindica que a ndia e a Prsia j no existem. A populao eslava daustria foi atingida, enquanto as outras raas permanecem imunes.De um ponto de vista geral, os moradores das praias e das plancies

    parecem ter sido afetados pelo veneno mais rapidamente que os dointerior e dos planaltos. At mesmo um pequeno morro faz umanotvel diferena, e se por acaso houver algum sobrevivente da raahumana, talvez possa ser encontrado numArartqualquer da vida. muito provvel que at esta pequena colina onde estamos possarepresentar uma ilhota de temporria salvao no meio do oceano dodesastre. Mas, considerando-se a atual velocidade do avano, slevar mais algumas horas para que tudo seja tragado pela terrvelmar...

    Nesta altura, Lord John Roxton disse:

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    O que mais me surpreende que o senhor possa ficar a,sentado e entregue ao riso, enquanto segura com a mo aquela pilhade terrveis telegramas. Poucas pessoas enfrentaram a morte maisvezes do que eu, mas precisamos convir que a morte universal

    uma coisa aterradora...No que diz respeito ao meu riso, disse Challenger, devem

    lembrar-se que, assim como os senhores, eu tambm fiquei expostoaos efeitos estimulantes do veneno csmico. Mas quanto ao horrorque parece inspirar-lhe a morte universal, quero salientar que ele um tanto exagerado. Se, com efeito, o senhor estivesse s e derrelitonuma pequena casca de noz no meio do oceano, rumo a um destinodesconhecido, pode at compreender que a coragem viesse a faltar-

    lhe. O isolamento e a incerteza levariam a melhor. Mas se estivesseviajando num excelente navio que levasse, com o senhor, todos osseus parentes e amigos, certamente encontraria uma certa seguranaao pensar que, quaisquer que fossem as surpresas do futuro, poderiaenfrent-las ao lado dos entes queridos.

    Uma morte isolada pode ser terrvel, mas uma morte universalque alm do mais promete ser indolor - no me parece coisa capazde justificar preocupao. Com efeito, concordo plenamente comquem disse que o, terror s pode advir da idia de tudo aquilo que

    amamos, aprendemos e exaltamos se perder para sempre. Mas antesdisto, acho que o verdadeiro terror decorre da idia de ficarmosdefinitivamente isolados, vivos e sozinhos num mundo de mortos.

    Qual a sua proposta, ento?, perguntou Summerlee, que pelo menos desta vez mostrara-se de acordo com as idias docolega.

    Tenciono almoar, disse Challenger, enquanto pela casaecoavam os toques de um gongo. Temos uma cozinheira cujas

    omeletes s podem ser superados pelas suas costeletas. E podem tercerteza de uma coisa: nenhum distrbio csmico obscureceu as suasqualidades. E as minhas excelentes garrafas da safra de 96 merecemser salvas daquele que tambm ser um pavoroso desastre para osvinhos. Dizendo isto, desceu da escrivaninha na qual sentara paraanunciar o fim do mundo. Venham, disse ento. Se de fato aindanos resta muito pouco tempo, tanto faz que o aproveitemos damelhor forma possvel.

    E, com efeito, o almoo foi realmente excelente. Mas no

    pense, querido leitor, que estvamos despreocupados. Toda a soleneseriedade dos fatos estava diante de ns e moldava os nossos

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    pensamentos. Sem dvida nenhuma, a morte amedronta, eamedronta ainda mais aqueles que nunca estiveram cara a cara comela. Ns, por nossa vez, tnhamos tido grande familiaridade com elanuma hora muito importante da nossa existncia. Quanto dona da

    casa, ela tinha a maior confiana no grande marido, e obedecia-lheem tudo sem maiores problemas.

    O futuro estava nas mos do destino. O presente ainda nospertencia, e ns procuramos viv-lo de forma bastante amena, entre bons amigos. A nossa mente, como j salientei, estava particularmente lcida. Quanto a Challenger, demonstrava-serealmente maravilhoso. Nunca, como naquele momento,compreendi toda a grandeza e a segurana daquele homem.

    Summerlee continuava alfinetando-o com as suas crticas,enquanto Lord John e eu nos divertamos com a disputa e a senhora,com uma mo carinhosamente apoiada no ombro do marido, pareciafascinada pela voz dele. A vida, a morte, o destino, eram estes osmagnficos assuntos daquela hora memorvel. Com o almoochegando ao fim, a solenidade do momento tornava-se ainda maiordevido a repentinas exaltaes mentais e formigamentos nas pernasque nos avisavam da lenta e silenciosa chegada da mar de morte.

    Tive a ocasio de ver Lord John que de repente encobria os

    olhos com a mo, e Summerlee recostou-se prostrado no espaldar dacadeira. Cada vez que respirvamos, o ar parecia carregado deestranhas foras, e mesmo assim a nossa mente permanecia serena efuncionando perfeitamente.

    Agostinho apareceu ento com os cigarros e aprontou-se a tirara mesa.

    Agostinho!, disse o patro.As ordens, senhor...

    Quero agradecer-lhe estes anos de fiis servios.Um sorriso apareceu no rosto do criado.S cumpri o meu dever, senhor...Quanto a mim, creio que hoje seja o dia do fim do mundo,

    Agostinho...Muito bem, senhor, A que horas?No sei ao certo. Provavelmente, antes do anoitecer...Perfeitamente, senhor.O taciturno Agostinho fez uma mesura e saiu da sala.

    Challenger acendeu um cigarro e, encostando a cadeira da mulher,ficou de brao dado com ela.

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    Voc j sabe o que est acontecendo, querida, disse, e euexpliquei os fatos aos nossos amigos. Est com medo, querida?

    Vamos sofrer, George?Vai ser o mesmo que a anestesia do dentista. Toda vez que o

    dentista a faz adormecer, como se estivesse morta.Mas uma sensao at agradvel!E vai ser a mesma coisa com a morte. O nosso corpo no nos

    permite guardar este tipo de sensaes, mas conhecemos muito bemo prazer que experimentamos sonhando ou sendo hipnotizados. Poroutro lado, Summerlee, eu no concordo com o seu materialismo,pois afinal de contas acredito ser uma coisa grande demais paraacabar sendo apenas um punhado de cinzas. Parece-me evidente que

    existe algo capaz de vencer a morte, e que a morte no podevencer.Que seja, disse Lord John. Sou um bom cristo, mas ainda

    concordo com os nossos antepassados que se faziam sepultar comseus arcos, suas flechas e demais objetos pessoais, Como se fossemviver no alm da mesma forma de quando estavam vivos. O queacha disto, professor?

    Bom, disse Summerlee, uma vez que pede a minha opinio,acho que voltaramos pelo menos idade da pedra. Eu, por minha

    vez, sou do sculo vinte, e desejo morrer como homem civilizado.No creio estar mais apavorado que vocs, diante da morte, pois jestou velho e de qualquer maneira no me sobra muito tempo; masficar aqui parado, esperando morrer sem fazer coisa alguma, contrrio minha natureza; sinto-me como um carneiro espera dafaca do aougueiro. Acha realmente, Challenger, que no h maiscoisa alguma que possamos fazer?

    Para sobrevivermos? No, no acho!, disse Challenger.

    'Acredito, ao contrrio, que possamos prolongar por vrias horas asnossas vidas, para assistirmos ao desfecho desta extraordinriatragdia, antes de ns mesmos sermos chamados a desempenhar onosso fatdico papel. Fiz uns preparativos...

    O oxignio?Isto mesmo: o oxignio.Mas de que adianta o oxignio se o prprio ter est

    envenenado? Entre o oxignio e o ter existe a mesma diferena queh entre um morcego e um gs. So coisas completamente

    diferentes. No podem substituir-se mutuamente. Vamos,

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    Challenger, no me diga que quer realmente defender uma tesedessas!

    Meu bom Summerlee, este veneno csmico est certamentesofrendo a influncia de agentes materiais. Podemos claramente

    perceber isto examinando a evoluo dos fatos. No podamosprever tal coisa, no comeo, mas agora j est claro. De forma queme parece perfeitamente vivel que um gs como o oxignio, queaumenta a vitalidade e a resistncia do organismo, consiga retardar aao daquilo que to propriamente o senhor chamou de Daturon.Pode ser que eu esteja errado, mas por enquanto acredito estarcerto.

    Mas se tivermos de ficar respirando como nenezinhos de

    chupeta na boca, interrompeu Lord John, eu desisto.No vai ser preciso, respondeu Challenger. J foramtomadas providncias que certamente despertaro a sua gratidopela minha esposa, pois ela trancou a sua saleta da forma maishermtica possvel, vedando qualquer fresta com papelimpermevel.

    Santo Deus, Challenger, no vai querer manter afastado o tercom papel impermevel...

    Na verdade, meu caro amigo, o senhor simplesmente no quer

    encarar a situao. Estamos querendo vedar as frestas no tanto paraevitar que o ter entre, quanto para evitar que o oxignio saia.Acredito piamente que, se conseguirmos manter a atmosfera numcerto nvel de hiperoxigenao, poderemos no perder os sentidos.J tenho dois botijes de oxignio, e vocs trouxeram mais trs. Nod para salvar o mundo, mas j alguma coisa...

    Quanto tempo acha que vai durar?No sei dizer. S iremos abrir as vlvulas quando os sintomas

    se tornarem extremamente evidentes. Deixaremos ento sair todo ogs, pois estaremos de fato precisando muito dele. Vai fazer comque possamos viver mais algumas horas - talvez at alguns dias - eenquanto isto poderemos observar o mundo destrudo. O desfechoda nossa existncia ser portanto adiado, e ns cinco teremosprovavelmente a singular honra de sermos a ltima retaguarda daraa humana na sua marcha rumo ao desconhecido. Confio quetero a bondade de ajudar-me no manejo dos botijes: o ar j pareceestar ficando mais abafado.

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    3- Submersos

    O aposento que iria servir de palco para as nossas inesquecveisperipcias era uma graciosa saleta tipicamente feminina, com uma

    rea de mais ou menos sete metros quadrados. No fundo, separadoapenas por uma cortina de veludo vermelho, havia um cubculo queera o quarto de vestir do professor. Dali, passava-se diretamentepara um amplo quarto de dormir.

    A cortina estava no devido lugar, mas na verdade a saleta e oquartinho de vestir formavam uma coisa s, pelo menos em relao experincia que estvamos prestes a enfrentar. Uma porta e asfrestas de uma janela haviam sido vedadas com papel impermevel,

    como se tivessem sido lacradas. Sobre a outra porta havia umgrande ventilador que podia ser acionado com um cordo seporventura isto se tornasse necessrio.

    A ventilao um assunto delicado mas de fundamentalimportncia, pois precisamos nos livrar do excesso de dixido decarbono sem estragarmos rapidamente o nosso oxignio, disseChallenger olhando-se em volta, depois que os botijes foramcolocados um ao lado do outro ao longo da parede. Se pudesse tertido mais tempo para os preparativos, teria concentrado toda a

    minha inteligncia no estudo do problema mas, por como andam ascoisas, teremos de nos contentar com o que temos. Dois dosrecipientes de oxignio j esto prontos para serem usados aqualquer hora, de forma que no seremos pegos de surpresa.Tambm acho bom ficarmos perto daqui, pois a crise pode serrepentina.

    Havia, na saleta, uma larga janela baixa que dava para umavaranda. A vista era a mesma que j tnhamos admirado do

    escritrio. Olhando a paisagem, no consegui descobrir sinal algumdo desastre que se aproximava.No muito longe, havia uma estrada que descrevia uma ampla

    curva na encosta da colina. Uma carruagem da estao, um daquelesveculos pr-histricos que s se encontram no interior daInglaterra, subia lentamente pelo aclive. Um pouco mais para baixovia-se uma bab que empurrava um carrinho com um nenm, esegurava outra criana pela mo.

    Os penachos de fumaa azulada que saam das casas senhoriais

    davam paisagem um ar de ordeira tranqilidade. No havia umanuvem no cu, e na terra abenoada pelo sol nada podia ser visto

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    que pudesse deixar adivinhar a catstrofe. Os ceifeiros j haviamvoltado ao trabalho e os jogadores de golfe estavam mais uma vezempenhados em seus acirrados jogos. Sentia algo to estranho naminha cabea, e os meus nervos estavam to agitados, que a

    insensibilidade daquelas pessoas parecia-me irreal.Esse pessoal parece totalmente imune ao veneno, comentei,

    apontando para os golfistas.O senhor joga golfe?, perguntou Lord John.No, nunca joguei.Pois , meu bom rapaz, quando tiver a oportunidade de

    experimentar, vai descobrir que nem mesmo o fim do mundo podedistrair um verdadeiro golfista quando est empenhado num jogo.

    Ali, oua: o telefone est tocando de novo...De vez em quando, durante e aps o almoo, aquele tilintaragudo e insistente tinha exigido que o professor fosse atender. E aovoltar, com lacnicas frases, ele nos transmitia as notcias queacabava de receber.

    Notcias to terrveis, na verdade, que no havia registro delasna histria do mundo. A imensa sombra subia do sul, e espalhava-secomo uma grande mar de morte. O Egito j se apagara no delrio, eestava agora em estado comatoso. A Espanha e Portugal, depois de

    uma fase frentica em que os anarquistas e os defensores doclericalismo se tinham engalfinhado sangrentamente, estavam agoraescondidos atrs de uma cortina de silncio. J no chegavam maistelegramas da Amrica do Sul. Na Amrica do Norte, depois deterrveis revolues, os Estados sulinos haviam sucumbido aoveneno. No Maryland setentrional os efeitos ainda eram leves e noCanad s comeavam a aparecer os primeiros sintomas. A Blgica,a Holanda e a Dinamarca j haviam sido atingidas.

    De toda parte chegavam aos grandes centros da civilizaodesesperados pedidos de socorro, solicitando que os mais famososmdicos e qumicos expressassem a sua opinio. Uma verdadeiraavalanche de pedidos tambm chegava aos astrnomos. E nadapodia ser feito. O desastre era universal e muito alm da cinciahumana. Era a morte, sem sofrimento, mas inevitvel. A morte parao jovem assim como para o velho, para o fraco assim como para oforte, para o pobre assim como para o rico: sem a menor esperanade salvao. Era a concluso qual podamos chegar a partir das

    mensagens confusas e desesperadas que nos eram transmitidas pelotelefone.

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    As grandes cidades j conheciam o que esperava por elas e,pelo que podamos entender, preparavam-se a enfrentar o destinocom dignidade e resignao.

    E mesmo assim ainda havia os nossos jogadores de golfe, e os

    lavradores ceifando suas searas, que continuavam calmos como ocordeiro sob o relampejar da faca. Parecia impossvel, mas por outrolado no havia como eles pudessem ficar a par dos acontecimentos.A grande desgraa chegara inesperada como um raio num dia de sol,e at mesmo os jornais daquela manh no tiveram tempo paraespalhar as terrveis novidades.

    Mais tarde, no entanto, enquanto estvamos observando,algumas notcias pareceram chegar, pois os lavradores comearam a

    deixar os campos correndo, e at alguns golfistas desistiram de suas jogadas. Corriam como se estivessem querendo fugir de umatempestade. Havia outros, entretanto, que continuavam com suastacadas. A bab dera meia volta e estava voltando, e empurrava ocarrinho na maior agitao. A carruagem parara e o cavalo, cansadoe cabisbaixo, parecia recuperar o flego.

    Acima destes fatos midos havia o cu tpico do vero, umaimensa abbada de azul imaculado a no ser por umas pequenasnuvens brancas que se avistavam ao longe. Se era destino que a raa

    humana tivesse de perecer naquele dia, pelo menos iria morrer numesplndido cenrio! Mas a excepcional beleza da paisagem tornavaainda mais assustadora a terrvel e cada vez mais prximaaniquilao. Naquele momento, o mundo revelava-se um lugar bonito demais para que dele pudssemos nos afastar sem umafisgada de magoada saudade!

    Mas como eu estava dizendo, o telefone tocara mais uma vez.Logo a seguir ouvi a poderosa voz de Challenger que chamava do

    vestbulo.Malone, gritou, para o senhor...Fui atender. Era Mc Ardle que me chamava de Londres. o senhor, Malone?, gritou a voz que eu to bem conhecia.

    Pelo amor de Deus, Malone, veja quanto antes se o professorChallenger tem alguma sugesto para ns...

    No pode sugerir absolutamente nada, respondi. Acreditaque a crise seja universal e inevitvel. Temos aqui uma pequenareserva de oxignio, mas s pode servir a prolongar a nossa vida por

    algumas horas.

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    Oxignio?, gritou a voz. Aqui j muito tarde para procurar.Desde que o senhor saiu, a redao virou um verdadeiro caos. Ametade dos redatores desmaiou. Da janela, posso ver as pessoascadas, sem sentidos, na Fleet Street. Pelo que dizem os mais

    recentes telegramas, o mundo inteiro...A voz dele perdera o vigor para depois calar-se. Logo a seguir

    ouvi pelo telefone um baque surdo, como se a cabea do diretortivesse batido pesadamente na escrivaninha.

    Sr. Mc Ardle!, gritei. Sr. Mc Ardle!...Ningum respondeu. Enquanto desligava o aparelho, dizia a

    mim mesmo que nunca mais iria ouvir a voz do meu chefe.Naquela mesma hora, justamente quando estava para afastar-me

    do telefone, o desastre comeou.ramos como banhistas com a gua altura dos ombros, que derepente ficam submersos com a chegada de uma inesperada onda.Uma presa invisvel parecia estar apertando delicadamente a minhagarganta, empurrando com a mesma delicadeza qualquer sinal devida fora do meu corpo. Podia sentir um grande peso no peito, umaindizvel presso na cabea, um surdo zumbido nos ouvidos, ediante dos meus olhos podia ver o faiscar de grandes fagulhas.

    Apoiei-me na balaustrada da escada que levava ao primeiro

    andar. Naquela mesma hora, ofegante e bufando como um touro,Challenger passou ao meu lado. Era uma viso horrvel, o rostocongestionado, de cabelo eriado na cabea e olhos arregalados. Apequena mulher, evidentemente desmaiada, agarrava-se aos seusgrandes ombros, e ele arrastava-se penosamente escada acima,trombando e cambaleando, mas mesmo assim conseguindo avanaratravs daquela atmosfera meftica rumo relativa segurana danossa momentnea salvao.

    Animado pelo seu exemplo, eu tambm agarrei o corrimo,escorregando, caindo nos degraus, apoiando-me no tapete, at ficarespichado, quase sem sentidos, no patamar do andar de cima. Osdedos de ao de Lord John seguraram-me pela gola do casaco e,logo a seguir, eu estava deitado de costas, incapaz de falar e demexer-me, no carpete da saleta. A dona da casa jazia ao meu lado, eSummerlee encolhia-se numa poltrona perto da janela, com a cabeaquase a roar-lhe os joelhos.

    Quase que sonhando, vi Challenger que, como uma monstruosa

    barata, se arrastava lentamente no cho. Logo depois ouvi o soprodelicado do oxignio que saa de um dos botijes.

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    Challenger respirou fundo umas duas ou trs vezes.,Est fazendo efeito!, gritou exultante. As minhas suposies

    estavam certas!E ficou de p, vigoroso e em plena forma. Arrastando o botijo,

    precipitou-se para a mulher e aproximou o sopro vital do rosto dela.Depois de alguns instantes ela bocejou, espreguiou-se e ficousentada. Foi ento a minha vez, e a vida voltou imediatamente acorrer pelas minhas artrias.

    A razo dizia-me que se tratava apenas de uma salvaotemporria e de curta durao, mas naquela hora qualquer momentode vida a mais parecia-me uma ddiva de inestimvel valor. Nuncaexperimentei uma sensao to deliciosa quanto aquela que

    acompanhou a volta do fluxo vital ao meu corpo! Os meus pulmesficaram leves, a opresso na cabea desapareceu e uma calmamaravilhosa tomou conta de mim.

    Graas ao mesmo remdio, Summerlee tambm estavarecobrando-se; e ento foi a vez de Lord John. Este ficou de p comum pulo, e ofereceu-me a mo para que eu fizesse o mesmo,enquanto Challenger ajudava a mulher levando-a at o sof.

    George querido, quase me arrependo que me tenha trazido devolta ela murmurou, segurando-lhe a mo. Como voc mesmo

    disse, uma vez superado o momento do medo, o Alm suave ebonito! Por que me trouxe de volta?

    Porque quero que embarquemos nesta grande viagem juntos.J passamos tantos anos juntos, que agora seria muito triste termosde nos separar nesta hora to grave...

    Por um momento, notei na voz dele uma ternura que me fezpensar num novo Challenger, um Challenger diferente do homemirritadio e arrogante que, conforme o caso, passara a vida inteira

    surpreendendo ou ofendendo toda a sua gerao. Na sombra damorte aparecia um novo Challenger, um Challenger que deixavabem claro como, em certa altura da vida, podia ter conquistado oamor de mulher.

    Mas a a. sua atitude mudou de repente, e ele voltou a ser o nosenrgico chefe.

    Entre todos os homens, eu fui o nico capaz de prever e deanunciar esta catstrofe!, disse com uma certa exaltao e um toquetriunfo cientfico na voz. No que me diz respeito, Summerlee,

    espero que as suas ltimas dvidas tenham desaparecido, e que j

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    no insista mais em dizer que a carta por mim enviada ao Timesbaseava-se apenas numa iluso...

    Pelo menos desta vez, o nosso combativo amigo mostrou-sesurdo ao desafio. Continuou sentado, apertando os joelhos com as

    mos quase quisesse ter certeza da sua permanncia neste velhomundo.

    Challenger aproximou-se do botijo de oxignio e ouvimos osom do zumbido do gs que saa, at o barulho se transformar emalgo parecido com um sopro inaudvel...

    Precisamos administrar com cuidado a nossa reserva de gs,replicou. A atmosfera desta saleta tem agora um nvel deoxigenao muito acima do normal, e confio que nenhum de ns

    possa apresentar sintomas alarmantes. Com a experincia queacabamos de fazer, podemos determinar a quantidade de oxignioque precisamos acrescentar ao ar para neutralizarmos o veneno.Vejamos ento como esto as coisas.

    Ficamos sentados em silenciosa expectativa por mais ou menoscinco minutos, medindo as nossas sensaes. Eu j estava achandoque uma certa opresso voltara a pesar sobre a minha cabea,martelando as tmporas, quando a senhora Challenger chamou dosof onde ficara deitada. O marido deixou sair mais um pouco de

    gs.Antigamente, disse, costumava-se manter um ratinho branco

    nos submarinos para que, se porventura o ar se tornasse rarefeitodemais, o bichinho pudesse ser o primeiro a avisar os marinheiros.Voc, minha querida, ser o nosso ratinho branco. Aumentei aquantidade de oxignio e voc j est se sentindo melhor.

    Sem dvida, muito melhor... possvel que tenhamos acertado quase de imediato a

    quantidade de oxignio necessria. Agora precisamos averiguar adurao desta quantidade para ento calcular quantas horas aindanos restam de vida. Infelizmente, nestas nossas tentativas, jgastamos uma parte considervel do primeiro botijo.

    Qual a diferena?, exclamou Lord John, que ficara de p aolado da janela, com as mos nos bolsos. Se tivermos de partir, deque adianta adiarmos a partida? No vai me dizer que ainda acreditahaver alguma esperana para ns...

    Challenger sorriu e sacudiu a cabea.

    Ser ento que o senhor acha mais digno ir ao encontro dodesastre, em lugar de esperar por ele? Neste caso, tanto faz

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    recitarmos logo as nossas oraes, e abrirmos as janelas soltando ooxignio...

    E por que no?, a mulher disse corajosamente. George, achoque Lord John talvez esteja certo...

    Vejo-me forado a opor-me com todas as minhas foras!,exclamou Summerlee, com voz tremula. Quando chegar a hora demorrer, morreremos com a maior dignidade; mas francamente,antecipar a morte parece-me uma ao insana e injustificvel.

    E o nosso jovem amigo, perguntou Challenger, o que pensaa respeito?

    Acho que devemos assistir ao espetculo at o fim...E eu estou completamente de acordo, ele acrescentou.

    Se esta for a sua opinio, George, eu tambm penso da mesmaforma, afirmou a mulher.Ora, ora, disse Lord John, s falei por falar. Se quiserem

    assistir o espetculo at o fim, aceitarei sua deciso. bvio quevai valer a pena. J vivi muitas aventuras incrveis na minha vida,mas desta vez acredito estar diante da mais estranha de todas.

    Se admitirmos a continuidade da vida, disse Challenger numtom doutoral, nenhum de ns pode prever os tesouros que iremosencontrar. claro que, enquanto estivermos vivos, poderemos

    perceber os fenmenos materiais nossa volta. E, alm disso, sequisermos levar conosco, para qualquer futura existncia, uma idiaclara da mais extraordinria aventura de todos os tempos,precisamos ficar vivos durante estas poucas horas a mais que nsmesmos nos concedemos. Quanto a mim, acho que seria umaverdadeira pena desistirmos at de um nico minuto do tempo quenos resta...

    Estou plenamente de acordo!, exclamou Summerlee.

    Ento, todos concordamos, disse Lord John. Vejam s!Aquele coitado do seu motorista est cado no cho, l no ptio, eacredito que j tenha se despedido da vida. Acham que seriapossvel busca-lo?

    Seria uma loucura!, exclamou Summerlee.Tambm acho, disse Challenger. Nunca conseguiramos

    salv-lo e espalharamos o oxignio pela casa inteira, mesmoadmitindo que pudssemos voltar at aqui vivos. Mas olhem, vejams aqueles passarinhos sob as rvores...

    Aproximamos as cadeiras da ampla janela baixa, enquanto asenhora permanecia de olhos fechados, deitada no sof. Lembro que

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    Idia monstruosa e grotesca tomou conta de mim - talvez elacontinuasse na minha mente devido ao ar pesado que estvamosrespirando - isto , que estvamos na primeira fila de um teatro,assistindo ao ltimo ato da tragdia do fim do mundo...

    L fora, bem diante dos nossos olhos, havia o pequeno quintalcom o automvel limpo s pela metade. Agostinho, o motorista,quase certamente j devia estar morto, pois jazia no cho, imvel,perto de uma roda do carro, com uma grande mancha escura natesta, onde esta tinha-se chocado com o solo. Ainda apertava comuma das mos o balde com que estava lavando o veculo. Numcanto do quintal havia umas pequenas rvores e, embaixo delas, podiam-se ver vrias bolotas de plumas desgrenhadas: eram

    passarinhos, com suas patinhas viradas para cima. A foice da morteatingira todos, grandes e pequenos!Por cima da mureta do quintal, vamos a estrada que levava

    estao. Alguns camponeses que h pouco haviam tentado fugir doscampos, estavam agora espalhados em volta, imveis, com oscorpos cados uns em cima dos outros. Mais adiante, a bab jazia nocho, com a cabea e os ombros apoiados no limiar de umapastagem. Tirara do carrinho o nenm, que agora no passava de umconfuso e inerte amontoado de fraldas.

    Perto dali, uma pequena mancha escura ao lado do caminhoindicava onde havia cado a criana mais velha. No muito longe,podamos ver a viatura da estao com o cavalo - morto - que, presos estacas do carro, continuava de p. O velho cocheiro sentava nabolia, de braos cados.Atravs da janela, via-se um jovem queainda segurava a porta entreaberta da carruagem: a sua mo apertavao fecho como que numa derradeira tentativa de fuga de ltima hora.

    Mais longe havia o campo de golfe, pontilhado pelas escuras

    figuras dos jogadores, agora imveis no cho. Numa nica clareira,podiam ser vistos oito corpos. Nenhum pssaro percorria os azuiscaminhos do cu, e nem homem nem animal mexia-se no grandepalco que se abria diante de ns. O sol, j perto do ocaso - aindailuminava o cenrio mas, na grande paz da hora, percebia-se asolido e o silncio da morte universal, uma morte que dentro embreve tambm iria nos alcanar.

    Ainda por algumas horas, a cincia e a previdncia de umhomem iriam preservar o nosso pequeno osis de vida naquele

    imenso deserto de morte, livrando-nos da catstrofe geral! A ooxignio iria lentamente acabar, ns tombaramos no tapete da

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    saleta, e o destino de toda a raa humana e de toda a vida terrestrecumprir-se-ia.

    Ficamos um bom tempo parados, observando a tragdia domundo, num silncio que era solene demais para que qualquer um

    de ns ousasse quebr-lo.H uma casa pegando fogo!, exclamou finalmente

    Challenger, indicando uma coluna de fumaa que aparecia ao longe,acima das rvores. Acho que vai haver muitos outros incndios,cidades inteiras em chamas, alis, pois deve haver um grandenmero de pessoas que caram ao cho quando ainda seguravamlumes ou lanternas. Vejam: l est outro incndio naquela colina!Deve ser a sede do clube de golfe. D at para ver o relgio da

    igreja. Seria interessante ver como um mecanismo criado pelohomem pode sobreviver raa que o construiu.Por Jpiter!, exclamou Lord John dando um pulo. O que

    aquela nuvem de fumaa? Ah, um trem...Ouvimos o estrondo do comboio, que passou diante dos nossos

    olhos a uma velocidade que me pareceu espantosa. No dava paraentender como nem de onde estivesse vindo. S podia tercontinuado a sua corrida por um verdadeiro milagre; mas nsestvamos l justamente para assistir ao seu fim. Outro trem, um

    cargueiro de carvo, estava parado nos trilhos.Seguramos a respirao enquanto o expresso continuava a sua

    descontrolada corrida na mesma linha. O choque foi pavoroso. Alocomotiva e os vages tornaram-se logo um amontoado de lascasde madeira e de pedaos de ferro retorcidos. Pequenas chamasavermelhadas logo se elevaram dos escombros, transformando-seem seguida num gigantesco incndio. Ficamos sentados nos nossoslugares por quase meia hora, fascinados e atordoados por aquele

    espetculo dantesco.Coitados!, exclamou a senhora Challenger, agarrando-se comfora ao brao do marido.

    Querida, os que chamou de coitados eram pessoas menossensveis que o carvo contra o qual se chocaram, disseChallenger. Era um trem de pessoas vivas quando saiu da VictoriaStation, mas j estava sendo guiado pela morte muito antes dechegar ao seu destino final.

    No mundo inteiro devem ter acontecido desastres como este,

    eu disse, vislumbrando diante dos meus olhos uma srie de horrveiscalamidades. Pensem nos navios que continuaro a navegar

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    enquanto houver combustvel para as mquinas ou at seespatifarem contra os recifes. Os veleiros tambm continuaro alevar pelos mares a sua carga de marinheiros mortos at descerem,um depois do outros, para o extremo descanso no fundo do mar.

    Pode ser que daqui a cem anos ainda haja no Atlntico algunsvelhos cascos boiando.

    J pensaram nos mineiros das minas de carvo?, exclamouSummerlee. Se algum dia ainda voltar a haver no mundo algumestudioso de geologia, j pensaram nos incrveis debates provocadospela presena de ossadas humanas nas camadas carbonferas?

    No pretendo bancar o sabicho, comentou Lord John, masacho que depois da catstrofe poderemos botar uma linda placa no

    mundo com os dizeres: Aluga-se: vazio'. Uma vez que ahumanidade tenha sido varrida daqui, quem mais poder substitu-la?

    O mundo j ficou desabitado em outra ocasio, respondeusolenemente Challenger, e mesmo assim voltou a povoar-se. Porque pensar ento que o mesmo no volte a acontecer?

    Meu caro Challenger, o senhor deve estar brincando.No costumo brincar quando o assunto to srio, professor

    Summerlee. O seu comentrio descabido.

    Ao dizer isto, Challenger assumiu uma expresso carrancuda.O senhor sempre foi um dogmtico cabeudo, e quer continuar

    assim at o fim!, disse Summerlee.E o senhor sempre foi um esprito de porco sem imaginao, e

    ao que tudo indica assim mesmo que vai morrer!...At os seus crticos mais condescendentes nunca podero

    acus-lo de falta de imaginao!, respondeu Summerlee.Francamente!, exclamou Lord John. Acham de fato que o

    melhor que podem fazer ficar a gastando as nossas ltimasreservas de oxignio insultando-se reciprocamente? No importaque o mundo volte ou no a ser habitado: seja como for, ns j noexistiremos mais...

    Esta sua observao, senhor, uma prova evidente da parvicedas suas faculdades intelectuais, disse Challenger com a maiortranqilidade. A mente realmente cientfica est completamentedesligada do tempo e do espao. Ela constri. para si mesma umobservatrio no limiar do presente, que separa o infinito passado do

    infinito futuro. Deste seguro ponto de observao, lana o seu olharpara o comeo e o fim de todas as coisas. E no que diz respeito

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    morte, a mente cientfica morre sem abandonar o seu posto,trabalhando de forma metdica e normal at o fim. E no perdetempo com coisas insignificantes como a nossa prpria dissoluo.No estou certo, professor Summerlee?

    Summerlee declarou-se favorvel, mas de forma bastantegrosseira.

    Concordo, resmungou, mas com algumas restries...A verdadeira mente cientfica, continuou Challenger, (e uso

    a terceira pessoa para no deixar a impresso de estar falando demim mesmo) deve manter a capacidade de pensar segundo umconhecimento abstrato at na hora em que o seu possuidor cai,digamos, de um balo e se espatifa no cho. Somente homens assim

    podem tomar-se os conquistadores da natureza e a vanguarda daverdade...Desta vez, a natureza no me deixa l muito convencido!,

    disse Lord John olhando pela janela. J li artigos em que seafirmava que os cientistas tinham a capacidade de segur-la, mas evidente que ela conseguiu escapar.

    Trata-se apenas de um tropeo temporrio, disse Challengercom convico. Pode ver claramente que o mundo vegetalsobreviveu. D uma olhada nas folhas daquelas rvores l no fundo

    do quintal. Os pssaros morreram, mas as rvores continuamflorescendo. Desta vida vegetal, atualmente em dissoluo, surgirum dia um pequeno ser microscpico que ser o pioneiro do futurogrande exrcito da vida. Desde que uma forma qualquer de vidaconsiga estabelecer-se, o advento final do homem torna-se to certoquanto o nascer da espiga. O antigo ciclo voltar a repetir-se...

    Mas tudo isto no acabar sendo afetado pelo veneno?,perguntei.

    O veneno pode ser apenas uma camada do ter, alguma coisaque como uma meftica correnteza atravessa o oceano em que nsboiamos. Ou teremos ento uma adaptao, e a vida ajustar-se- snovas condies. O prprio fato de ns podermos lutar contra oveneno com uma hiperoxigenao relativamente pequena do nossosangue demonstra, por si s, que no preciso haver grandesmudanas para que a vida animal se acostume a ele sem maioresprejuzos.

    A casa atrs das rvores, da qual subia uma coluna de fumaa,

    estava agora completamente em chamas. Podamos ver asirrequietas labaredas que chispavam no ar.

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  • 8/6/2019 Arthur Conan Doyle - Nuvem Envenenada

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    H nisto uma fatalidade assustadora!, murmurou Lord John,que estava abalado como nunca o vira antes.

    Ser que no fundo precisamos realmente ficar to abalados?,observei. O mundo morreu e a cremao pode ser um ritual

    bastante apropriado.Se o fogo chegasse at esta casa, a nossa agonia seria

    certamente mais curta.Previ este perigo, disse Challenger, e pedi que a minha

    mulher tomasse as devidas precaues.Pensei em tudo, querido. A minha cabea est novamente

    ficando pesada. Que atmosfera insuportvel!Vamos dar um jeito nisto!, disse Challenger, e aproximou-se

    do botijo de oxignio.J est quase vazio, disse. Durou trs horas e meia, e j soquase oito. Poderemos passar a noite sem maiores dificuldades.Acredito que o fim chegar amanh, l pelas nove horas. Teremos o privilgio de assistir a uma alvorada que s existir para nscinco...

    Abriu o segundo botijo e acionou por meio minuto oventilador que, estava em cima da porta. O ar tornou-se um poucomais respirvel mas, uma vez que os sintomas pioravam, desligou o

    ventilador.No podemos esquecer que o homem no vive apenas de

    oxignio, disse. j estamos meia hora atrasados para o jantar.Garanto, meus senhores, que quando os convidei para uma reunioque esperava ser interessante, achei que a minha cozinha deviamanter-se altura da sua fama. Seja como for, vamos fazer opossvel. Acredito que todos considerariam uma verdadeira loucuragastarmos desnecessariamente o nosso ar ligando o fogo a gs.

    Aprontei umas modestas provises de carne fria, fruta e po que,juntamente com umas boas garrafas de vinho, vo servir muita bem.Devo agradecer isto tudo a voc, minha querida. Continua sendo,como de costume, a rainha das donas de casa.

    E era realmente motivo de maravilha ver a decorosa dedicaodomstica, to tpica da dona de casa inglesa, com que a senhoraaprontou em poucos minutos a mesa com uma toalha branca comoneve, distribuiu os guardanapos, e trouxe a carne fria perfeitamentearrumada na bandeja. Colocou ento a lmpada eltrica no meio da

    mesa e ns descobrimos, com ainda mais espantada surpresa, queestvamos com um formidvel apetite.

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  • 8/6/2019 Arthur Co