ARTETERAPIA

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UnP - UNIVERSIDADE POTIGUAR PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU ALQUIMY ART ESPECIALIZAÇÃO EM ARTETERAPIA ARTETERAPIA NO CONTEXTO EDUCACIONAL DESVELANDO A CRIATIVIDADE POR MEIO DA BRINCADEIRA E DOS JOGOS TEATRAIS ANA CRISTINA CAMANO PASSOS São Paulo 2005

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ARTETERAPIA

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  • UnP - UNIVERSIDADE POTIGUAR PR-REITORIA DE PESQUISA E PS-GRADUAO LATO SENSU

    ALQUIMY ART ESPECIALIZAO EM ARTETERAPIA

    ARTETERAPIA NO CONTEXTO EDUCACIONAL

    DESVELANDO A CRIATIVIDADE POR MEIO

    DA BRINCADEIRA E DOS JOGOS TEATRAIS

    ANA CRISTINA CAMANO PASSOS

    So Paulo

    2005

  • ANA CRISTINA CAMANO PASSOS

    ARTETERAPIA NO CONTEXTO EDUCACIONAL

    DESVELANDO A CRIATIVIDADE POR MEIO DA BRINCADEIRA E DOS JOGOS TEATRAIS

    Monografia apresentada Universidade Potiguar, RN e ao Alquimy Art, de So Paulo, como parte dos requisitos para obteno do ttulo de Especialista em Arteterapia.

    Orientadora: Prof MsC. Deolinda F. Fabietti.

    SO PAULO

    2005

  • Passos, Ana Cristina Camano Arteterapia no contexto educacional. Desvelando a criatividade por meio

    das brincadeiras e dos jogos teatrais / Ana Cristina Camano Passos. So Paulo; [s.n.],

    2005.

    84p.

    Monografia (Especializao em Arteterapia) UnP - Universidade

    Potiguar. Pr-Reitoria de Pesquisa e Ps-Graduao Lato Sensu (RN) e Alquimy Art

    (SP).

    1.Jogos teatrais 2. Brincadeira 3. Criatividade

  • SP/BGFS CDV.51

    UnP - UNIVERSIDADE POTIGUAR

    PR-REITORIA DE PESQUISA E PS-GRADUAO LATO SENSU

    ALQUIMY ART

    ARTETERAPIA NO CONTEXTO EDUCACIONAL

    DESVELANDO A CRIATIVIDADE POR MEIO DA BRINCADEIRA E DOS JOGOS TEATRAIS

    Monografia apresentada pela aluna Ana Cristina Camano Passos, ao curso de

    Especializao em Arteterapia em ___/___/___, e recebendo a avaliao da Banca

    Examinadora constituda pelos professores:

  • ___________________________________________________________________ Prof. MsC. Deolinda M. C. F. Fabietti Orientadora e Coordenadora da Especializao.

    Prof. Dra. Cristina Dias Allessandrini Coordenadora da Especializao.

    Prof. Marisa Bianco - Leitora Crtica.

  • Ao meu pai, que no percurso de suas grandes conquistas

    ensinou-me a buscar com honestidade e competncia nossos objetivos.

    minha me, o desafio de alinhar, em sua efmera passagem nesta vida,

    amor, intuio, sensibilidade, conhecimento e carisma.

    Ao Helder, meu companheiro,

    por acreditar e participar do meu sonho.

    Aos meus filhos, Philipe, Andria, Graziela e Rafael

    pelo carinho e incentivo em todas as minhas realizaes.

    Ao meu tio Joaquim

    pela possibilidade de viabilizar este desejo.

  • AGRADECIMENTOS

    EMEE Anne Sullivan, pela oportunidade de tantas descobertas e realizaes.

    Aos meus alunos que acreditaram na construo de um projeto inovador na escola e

    muito se empenharam na descoberta do nosso SER, de nossas possibilidades e

    limitaes.

    s minhas amigas da escola, Flvia, Mrcia e Maria Matos que acompanharam e

    intercederam na realizao desta reflexo por meio da escuta, da troca de

    conhecimentos e de prticas realizadas.

    Em especial a Ana Maria, pelo trabalho em equipe que conseguimos desenvolver e

    ao carinho com que traduziu o resumo desta monografia para o Ingls.

    A toda equipe docente do Alquimy Art que, direta ou indiretamente, conduziu o

    nosso olhar para nossas possibilidades internas, alinhando nosso poder de

    criatividade e conhecimento terico, com sabedoria e humildade, no processo da

    cura teraputica.

    s minhas amigas do Alquimy Art, pelo carinho e pela saudade.

    A Priscila Rocha com carinho, minha amiga e companheira de estgio, a

    possibilidade de discutir, trocar, criar, intuir, construir - destruir, planejar, organizar,

    desorganizar para re-organizar e re-construir a nossa atuao nas oficinas

    teraputicas.

    E a Margaret Pela, que com seu olhar cauteloso e certeiro, atuou com preciso na

    reviso deste texto.

  • RESUMO

    Esta monografia apresenta a importncia da arte para um grupo de adolescentes

    surdos, alunos da Escola Municipal Educao Especial (EMEE) Anne Sullivan que

    acreditavam que arte era coisa para beb. Na busca de processar a defesa da

    importncia da arte para aqueles alunos, desvela-se um mundo inteiramente novo. O

    trabalho vivenciado revelou os diversos olhares que compem um mesmo grupo e a

    busca do educador, que sua maneira, tentou unir a teoria e a prtica sua histria

    pessoal e profissional. A LIBRAS, a lngua de sinais desenvolvida e utilizada pela

    comunidade de surdos no Brasil, foi utilizada como meio de comunicao para a

    realizao e o desenvolvimento das atividades propostas. A LIBRAS a lngua

    materna do surdo. O trabalho desenvolvido abordou principalmente os jogos teatrais

    e teve como base a estrutura de orientao proposta pela metodologia de Viola

    Spolin, (o qu, quem e onde) que contribuiu para organizar o pensamento do

    surdo em funo do objeto, do personagem e do ambiente. Nossa inteno nesta

    monografia foi contagiar a ao dos profissionais envolvidos na educao

    encorajando-os a buscarem novos encaminhamentos no fazer pedaggico,

    transformando as mesmices do dia a dia em prticas prazerosas e inovadoras.

    Neste sentido, a proposta arteteraputica propiciou dinmicas em que a arte

    facilitadora de novas aprendizagens.

    Palavras-chave: jogos teatrais, brincadeira, criatividade.

  • ABSTRACT

    This paper presents the course of our work focusing the importance of art for a group of

    hearing impaired children and adolescents who attended a public school - the EMEE Anne Sullivan, in the city of So Paulo, and believed art to be for babies. Searching for a process to support the importance of art for those students we came across an entirely new world. The

    experienced work revealed to us different views of a same group and the search of the

    educator, who in his own way, tried to join theory and practice to his own personal and

    professional background. LIBRAS, the Brazilian sign language, was used as means of

    communication to achieve and develop the proposed activities. LIBRAS is the sign language

    developed and used by the deaf community in Brazil. LIBRAS is the deafs mother language. The orientation structure was based on drama exercises drawn from Viola Spolins methodology (what, who and where) and contributed to organize the deafs thinking having in mind the object, the character and the environment. This paper purpose was to

    influence the professionals involved in educational actions encouraging them to look for new

    ways in the pedagogical act, transforming the daily routine into new and joyful practices.

    With this in mind, art therapeutic proposals prove that dynamics using the resource of art can

    provide news ways of learning.

    Key words: role play, games, creativity.

  • SUMRIO

    AGRADECIMENTOS.................................................................... 05

    RESUMO....................................................................................... 06

    ABSTRACT................................................................................... 07

    INTRODUO

    ABRINDO AS CORTINAS........................................................

    09

    CENA I

    NOS BASTIDORES..................................................................

    15

    CENA II

    NA COXIA.................................................................................

    47

    CENA III

    NO PALCO................................................................................

    61

    CENA IV

    ENTRE APLAUSOS E VAIAS..................................................

    73

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS............................................. 83

  • 9

    ABRINDO AS CORTINAS

    Abro o primeiro captulo da minha monografia com o desejo de compartilhar a razo

    pela qual escolhi a ARTETERAPIA como fundamento terico e prtico para

    enriquecer minha prtica pedaggica com crianas com necessidades especiais.

    Sou professora efetiva da Escola Municipal de Educao Especial Anne Sullivan, no

    bairro de Santo Amaro (municpio de So Paulo) onde, em parceria com os alunos,

    construmos e nos apropriamos da nossa prtica e, no convvio com o corpo

    docente, pesquisamos e fundamentamos nossa ao pedaggica.

    Apesar da Anne Sullivan ser uma escola especial para surdos ela tambm integra

    crianas com outros comprometimentos fsicos e neurolgicos como, por exemplo,

    surdos com problemas visuais, surdos com deficincia fsica, surdos autistas, surdos

    com comprometimentos mentais etc.

    Consideramos surdos aqueles indivduos que nasceram ou perderam a audio

    antes de adquirir a linguagem oral de forma natural, ou seja, ouvindo-a. Dependendo

    da perda auditiva, o surdo pode ouvir um pouco, muito pouco ou quase nada.

    (MOURA, 2000).

    Quando me formei, h mais ou menos 25 anos atrs, o surdo era considerado

    deficiente auditivo. Deficiente e doente no sentido mdico do termo.

  • 10

    O deficiente auditivo precisava ser treinado para adquirir a linguagem oral e para

    isto, ele era equipado com aparelhos de amplificao sonoro individuais. Estes

    aparelhos tinham por funo amplificar os sons da fala e do ambiente ajudando-os a

    desenvolver a linguagem oral.

    Naquela poca, na escola, acreditvamos na proposta oralista da educao de

    surdos, ou seja, o foco do nosso trabalho baseava-se no desenvolvimento da leitura

    orofacial e na crena de que a criana surda aprenderia a falar.

    Desenvolvamos, nas reas de linguagem, a habilidade na criana de ler nos lbios

    do interlocutor os sons da fala utilizando o treinamento auditivo como recurso para a

    conquista de tal objetivo.

    Algumas crianas se beneficiaram com a proposta oralista, geralmente aquelas que

    possuam uma perda leve.

    Ns, na maioria das vezes, nos frustrvamos com o resultado do nosso trabalho,

    tendo em vista que, a maior parte dos alunos no conseguia desenvolver a

    linguagem oral, e conseqentemente apresentava muitos problemas na escrita.

    Por volta de 1974, mais ou menos, ocorreram os primeiros contatos, de estudiosos e

    pesquisadores brasileiros, com a proposta americana que desenvolvia trabalhos com

    a Comunicao Total. (MOURA, 2000).

  • 11

    A Comunicao Total apresentava uma outra proposta para ensinar a criana

    deficiente auditiva: inclua fala, leitura orofacial, treinamento auditivo, expresso

    facial, mmica, e sinais. A proposta era utilizar toda forma que funcionasse para

    transmitir vocabulrio, linguagem e idias entre o falante e a criana surda. No

    oralismo, no era permitido utilizar sinais nem a expresso corporal.

    Os sinais utilizados pela Comunicao Total passaram a representar objetos, aes

    e idias. Uma revoluo na educao do surdo! Esse novo paradigma ampliou

    consideravelmente a utilizao do uso dos sinais na comunicao entre surdos e

    ouvintes, transformando nossa ao, que compreendia os sinais restritos aos gestos

    de apoio ou mesmo mmica.

    A criana passou a ter uma imagem visual da fala, ou seja, passamos a representar

    objetos aes e idias por intermdio da configurao das mos. O rosto, a

    expresso facial, o olhar e a expresso corporal passaram a ocupar papis

    lingsticos importantes.

    Passamos a enxergar a criana no mais como deficiente ou doentes que buscam a

    cura por meio do desenvolvimento da fala. Abandonamos a condio do ouvinte

    como parmetro no trabalho com o surdo e passamos a compreend-lo dentro das

    suas especificidades lingsticas.

    O desenvolvimento das crianas deficientes auditivas melhorou muito com a

    Comunicao Total: elas passaram a se comunicar com mais facilidade, a

  • 12

    comunicao oral no ficou to prejudicada quanto esperavam (opositores) e o

    desempenho escolar melhorou bastante.

    Nas escolas, a forma de comunicao era bimodal (utilizao da fala acompanhada

    de sinais), mas a nfase de algumas escolas ainda era para o oralismo. A criana

    ainda era vista como deficiente auditiva.

    A Lngua de Sinais encaminhou uma nova viso poltica e ideolgica, relacionadas

    identidade, ao conceito de cultura, grupos minoritrios, direito de cidadania e a uma

    lngua. (MOURA, 2000).

    Iniciou-se, ento um movimento nos Estados Unidos que reuniu as minorias dos

    mais diversos tipos (minorias tnicas e pessoas com necessidades especiais) que

    reivindicavam o movimento de uma cultura prpria, denunciando a discriminao

    que sofriam. Este movimento foi denominado de multiculturalismo. Inseridos neste

    contexto, os Surdos comearam a ser ouvidos pela comunidade ouvinte. Os surdos

    passaram a reivindicar o direito de utilizar a sua lngua, que apesar de excluda pela

    educao oralista, continuou viva entre os surdos. (MOURA, 2000).

    Os surdos passaram a reivindicar o direito de serem ouvidos no mais na condio

    de sua deficincia, mas na condio de pertencerem a um grupo minoritrio com

    direito a serem respeitados pela sua diferena, com direitos de serem educados na

    sua prpria lngua: a Lngua de Sinais. Hoje no mais nos referimos ao Surdo como

    deficientes, mas como indivduos surdos. (QUADROS, 1997).

  • 13

    A partir do final da dcada de 80, no Brasil, as escolas que possuam alunos surdos,

    passaram a adotar uma abordagem mista. Apesar de acreditarmos nas mudanas e

    apoiarmos o movimento de identidade da cultura surda, ainda tnhamos o oralismo

    como nfase no trabalho. Algumas vezes, percebia-me agindo a favor de uma

    pedagogia renovada, mista, bimodal, porm, em outras com atitudes arcaicas do

    oralismo.

    O movimento dos Surdos, aqui no Brasil, contou com o apoio de lingistas,

    educadores, surdos de outros pases e estudiosos da questo. O resultado

    conquistado pelas suas lutas e reivindicaes levou implantao de um sistema de

    educao que considera a Lngua de Sinais a primeira lngua a ser adquirida pela

    criana surda.

    A equipe docente da escola precisou se reciclar e aprender a Lngua de Sinais

    Brasileira para desenvolver no surdo, filho de pais ouvintes, a sua lngua materna.

    Hoje, ns estamos reformulando o currculo da escola adequando-o a proposta

    bilnge educao do surdo.

    Esta proposta considera a Lngua de Sinais como a lngua natural do surdo e o

    portugus escrito como a sua segunda lngua. Desta forma, desenvolvemos um

    trabalho de consolidao da primeira lngua, para garantir o desenvolvimento

    cognitivo, social e afetivo no surdo para depois apresentarmos o portugus escrito,

    para que ele possa ter acesso ao conhecimento da cultura ouvinte.

  • 14

    A nossa escola realiza um trabalho pedaggico que abrange desde a Educao

    Infantil (1, 2 e 3 estgio) at o Ciclo II do Ensino Fundamental; ou seja, at o 8

    ano. O corpo docente tem formao em pedagogia com especializao na rea de

    educao para deficientes auditivos.

    Uma das maiores dificuldades no exerccio da nossa prtica pedaggica com o

    aluno surdo conhecer as suas especificidades e ser fluente em sua lngua

    materna: a Lngua de Sinais Brasileira.

    O surdo, filho de pais ouvintes, muitas vezes chega escola sem compreender seu

    mundo porque a lngua que lhe exposta no lhe traz nenhum sentido.

    no exerccio da convivncia social com outros surdos que eles vo se apropriando

    da sua lngua materna, a Lngua de Sinais, e da cultura surda. A escola especial

    um referencial na aquisio e no desenvolvimento da Lngua de Sinais.

    Ns educadores temos que nos constituir interlocutores confiveis da sua Lngua,

    para possibilitar o desenvolvimento de suas mltiplas inteligncias, o

    reconhecimento e a ampliao de seus talentos, bem como, promover discusses e

    reflexes sobre a diversidade de valores existentes na sociedade para que o aluno

    possa, ao discutir, tomar conhecimento e opinar sobre o que foi apresentado

    construindo assim, sua prpria identidade.

  • 15

    CENA I

    NOS BASTIDORES

    No ano de 1999 eu estava na funo de Auxiliar de Direo na EMEE Anne Sullivan,

    desenvolvendo atividades organizacionais e burocrticas na escola.

    Neste mesmo ano, uma professora do perodo noturno entrou em licena

    maternidade e como no havia professora para substitu-la eu assumi suas aulas de

    arte com adolescentes surdos do 5 ao 8 ano do Ensino Fundamental.

    Ao entrar na sala de aula, percebi o quanto a Arte estava distante e desprovida de

    significados para os alunos. No havia interesse pela ARTE. Os alunos estavam

    descontentes e desmotivados. Desenhar, pintar, trabalhar com massinha e argila

    para eles era atividade de beb; eles queriam ir alm do que lhes era proposto, mas

    no tinham claro o que realmente desejavam.

    Para aqueles alunos, o importante era dar continuidade ao contedo de matemtica

    e portugus, pois estes fundamentam e embasam seu conhecimento no ingresso ao

    Ensino Mdio como tambm constituem ferramenta preciosa na seleo de

    empregos.

    Arte para eles era perda de tempo. Foi difcil intervir na maneira como eles sentiam e

    presenciavam a Arte. Passamos ento a organizar os sentimentos que vinham

    tona na calorosa discusso sobre o que Arte e o que ela significava para cada um.

  • 16

    Durante alguns encontros ns refletimos sobre os descontentamentos e as

    insatisfaes que os envolviam nas aulas de artes para reconstruir e reorganizar o

    nosso trabalho com maior significado.

    Tinha como preocupao inicial apresentar a Arte como uma expresso artstica que

    nos permitisse vivenciar sonhos, emoes, prazer, descobertas e autoconhecimento

    por meio da criao e do uso de diferentes linguagens numa abordagem mais

    criativa da vida. Porm, nossa insero neste tema s foi possvel por meio do vis

    cultural, histrico e econmico da Arte.

    Iniciamos nossas reflexes revendo a Arte como um patrimnio cultural da

    humanidade. na diversidade cultural de um povo que esto gravados seus sonhos,

    sentimentos e desejos: msica, dana, pinturas, esculturas, folclore, casos, histrias

    etc.

    Com este objetivo, apresentei algumas esculturas do nordeste brasileiro, aos alunos,

    com o propsito de ampliar e atribuir sentido Arte. Por intermdio das esculturas,

    enumeramos algumas hipteses sobre a histria das famlias nordestinas: seus

    sonhos, desejos, frustraes, realidade scio-econmica e cultural.

    Discutir a Arte passou a fazer sentido para aquele grupo de alunos. Eles perceberam

    que havia um valor cultural, social e econmico naquelas esculturas apresentadas e

    que com a arte tambm se ganha dinheiro. Nesta fala, ficou clara a preocupao

  • 17

    dos alunos em entrar no mercado de trabalho, buscar autonomia e independncia

    econmica.

    A Arte deixou de ser coisa de criana e passou a ser compreendida como uma

    atividade social, um modo de compreender a construo e os contedos do

    imaginrio de um povo, situado num determinado espao, com caractersticas

    histricas e econmicas peculiares.

    Observamos que o homem deixa seu registro, a sua presena, a sua leitura de

    mundo, o seu prazer e seu descontentamento sobre o mundo que o rodeia, por meio

    das diferentes formas de expresso, entre elas, a pintura, a escultura, a msica, a

    dana, a representao cnica, a escrita, a poesia, etc.

    Assim, amparada pelas possibilidades apresentadas pelos Parmetros Curriculares

    Nacionais, PCNs, no que diz respeito Arte nos deparamos com as Artes Visual e

    Musical, com o Teatro e a Dana.

    A pedido dos alunos, preparei-me para desenvolver um projeto com a arte cnica

    com o objetivo de evocar a percepo de si mesmo, do outro e do espao social

    utilizando a representao como elaborao e sntese da realidade.

    Na busca da construo do nosso saber procurei identificar o que os alunos

    entendiam por teatro e o que conheciam sobre a rea a ser estudada.

  • 18

    Teatro para aqueles alunos consistia nas proezas dos personagens Chaves e do

    Chapolin Colorado1.

    Eu desconhecia esse programa e com o objetivo de compreender suas elaboraes,

    os alunos passaram a represent-los, mostrando-me a graa e o encanto daqueles

    personagens. Ento, eles arrumaram um espao na sala de aula e se organizaram

    apresentando algumas cenas engraadas para o grupo, caricaturando, por exemplo,

    a graa e o charme da Chiquinha, as trapalhadas do Sr. Madruga e do Quico, as

    enrascadas do Chaves, os tiques da Dona Florinda etc.

    Durante algumas aulas, selecionamos alguns trechos do programa, que os alunos

    trouxeram para a escola, para tomarmos conhecimento da histria que eles

    realmente gostariam de representar.

    O grupo passou a utilizar os personagens dessas histrias como referncia nas

    elaboraes de suas cenas teatrais. Inicialmente, suas representaes estavam

    coladas s imagens da televiso. Suas aes expressavam um amontoado de

    situaes desordenadas, com cenas descontextualizadas, sem enredo e sem trama.

    Na minha concepo, considero a trama o alinhavo de todos os acontecimentos na

    representao cnica visando alcanar uma unidade. Desta forma, a criao de uma

    histria no jogo teatral deve conter comeo, meio e fim.

    1 Personagens de programa cmico infantil de origem mexicana televisionado pelo Sistema Brasileiro de

    Televiso (SBT) com direitos de retransmisso cedidos pela emissora mexicana Televisa.

  • 19

    Pelo desenvolvimento da histria, do encadeamento de seus fatos que nos

    deparamos com o conflito de uma situao problema e com uma possvel resoluo

    do mesmo.

    Para que o leitor ou a leitora possa melhor compreender o meu percurso, gostaria de

    situ-los no lugar de onde foco o meu olhar, esclarecendo que no sou especialista

    na rea da Arte, como j esclareci no incio desta monografia mas, por meio dos

    jogos de improvisao para o teatro, presenciei uma metodologia clara que tambm

    possibilitou o desenvolvimento da narrativa no texto teatral.

    Quando o aluno imita outro personagem ele escolhe gestos, tiques, comportamentos

    e emoes que o caracterizam. O aluno passa a viver o problema do outro, a se

    colocar na situao do personagem como se aqueles acontecimentos representados

    estivessem acontecendo com ele.

    Foi por meio da imitao que os alunos passaram a representar simbolicamente

    outras situaes, outros contedos, que lhes permitiram entrar no mundo da

    representao cnica.

    No princpio, os alunos trouxeram fatos relacionados a sua vida diria para

    dramatiz-la como por exemplo: o namoro proibido, situaes engraadas no

    contexto escolar, brigas entre irmos, drogas, assaltos que observaram no nibus ou

    mesmo nos entornos de seus bairros, aborto, violncia familiar e social , infidelidade

    e estupro.

  • 20

    O teatro passou a ocupar um lugar seguro para expressar e vivenciar suas emoes

    mais profundas e, na tentativa de solucion-las, os alunos buscaram solues

    criativas para o problema. importante destacar que na tentativa de solucionar um

    problema, eles tinham a oportunidade de aprender a pensar sobre o fato em si.

    O surdo, normalmente, recebe tudo pronto de seus familiares. Os pais, na tentativa

    de ampar-lo ou mesmo neg-lo (pelo fato de terem gerado uma pessoa diferente

    do padro normal) terminam super protegendo-o, ou o considera no capacitado

    para solucionar problemas. Isto resulta em uma falta de oportunidade de pensar

    sobre as coisas, sobre os fatos e de se colocar como indivduo com desejos e

    opinies divergentes. Da a importncia de a instituio escolar desenvolver um

    trabalho de parceria com os familiares informando-os que pela comunicao visual

    (lngua de sinais) o surdo pode ver, sentir e participar da sociedade.

    Na produo do texto teatral, percebi que os alunos criavam diferentes solues

    para resolver os seus problemas: driblavam a rigidez da famlia que no autorizava o

    namoro, elaboravam situaes simblicas para lidar com a violncia urbana, criavam

    situaes que facilitavam a sua incluso na sociedade e muitas vezes, evidenciavam

    situaes cmicas do dia-a-dia numa sociedade basicamente ouvinte.

    Lembro-me de uma cena em que alguns alunos improvisaram a situao de um

    surdo tocando campainha em um prdio:

    O porteiro perguntava: Qual o andar? E eles no escutavam, claro!!!

    Novamente o porteiro perguntava: Onde vocs vo? E eles tentando responder em

    Lngua de Sinais, no conseguiam ser compreendidos pelo porteiro.

  • 21

    Ou seja, o porteiro lhes perguntava onde iriam e eles em outra lngua respondiam

    que eram surdos.

    O porteiro bastante irritado com os toques constantes da campainha chega

    portaria muito bravo, solicitando que os mesmos saiam dali porque aquele no

    lugar de badernagem.

    Naquela encenao ficou evidente a dificuldade e o pr-conceito que o surdo

    enfrenta em uma sociedade ouvinte, onde a falta de conhecimento da populao

    dificulta a sua incluso social.

    A linguagem cnica ajudou o aluno a tomar conhecimento do real, a conhec-lo, a

    refletir sobre si mesmo buscando sadas criativas para seus problemas. Nas

    diversas representaes, os medos, os trauma, os desejos, as frustraes eram

    enfrentadas, discutidas por meio do jogo e superadas criativamente.

    Os jogos teatrais ampliaram a capacidade de dialogar, conviver, trocar informaes

    do cotidiano, manifestar opinies e decepes, promover debates e respeitar a

    opinio do outro.

    Por intermdio das observaes, dos registros e das reflexes da nossa prtica com

    os jogos teatrais, pude perceber que o jogo pde ser utilizado no s como lazer e

    entretenimento, mas tambm na busca do autoconhecimento, da cidadania; da

    identidade surda.

    No teatro, os alunos produzem histrias que so improvisados pela ao coletiva do

    grupo e socializados platia. As aes e imagens emergem fisicamente na

    construo do texto teatral, enquanto que no texto literrio elas permanecem

  • 22

    interiorizadas na mente do leitor (KOUDELA, 1998, p. 105) A histria teatral

    materializada cenicamente por meio da produo esttica do grupo e compartilhado

    com a platia.

    Com o projeto do teatro ns resgatamos o ldico, a intuio, a auto-estima, a

    expressividade, o autoconhecimento e o respeito pelo outro.

    Nas representaes os alunos se sentiam livres para expressar suas idias, criativos

    para solucionar e transformar sua realidade. Uma realidade que foi re-construda por

    meio da vivncia e da interao com outros surdos.

    Como sistemtica de trabalho e fundamentao terica utilizei a proposta de

    trabalho de Viola Spolin (1998) contida em seu livro Improvisao para o Teatro e

    de sua pesquisadora Ingrid Koudela (1998) na certeza de contagiar professores e

    profissionais da educao com o fascinante percurso do desenvolvimento do fazer e

    do pensar artstico e esttico dos alunos nas artes cnicas.

    Spolin (1998) e Koudela (1998) concordam com a importncia do jogo teatral como

    uma atividade social, uma experincia grupal que propicia envolvimento, interao,

    liberdade e criao na realizao da tarefa.

    Descobrimos por intermdio da leitura de Spolin (1998) e Koudela (1998) que os

    nossos conhecimentos nas artes so aprendidos, experimentados, construdos e

    assimilados desde a nossa infncia no convvio com os nossos familiares, vizinhos,

    amigos de escola como tambm enriquecidos pelos meios de comunicao social.

  • 23

    Ao ler Spolin (1998), algumas cenas da minha histria vieram tona, no meu

    inconsciente, roubando o espao da leitura proposta pela autora.

    Ler mobiliza nossa imaginao, relaxa nossas preocupaes, ativa o nosso

    imaginrio desvelando significados at ento desconhecidos. Foi em uma dessas

    viagens ao imaginrio, em que a prpria leitura nos encaminha o passaporte, que re-

    lembrei as inmeras vezes que presenciei minhas filhas e sobrinhas organizando

    jogos teatrais e transformando o espao existente em minha casa em cenrio.

    Elas buscavam vestimentas nos nossos armrios para a apresentao do show,

    que geralmente ocorria no final da tarde do domingo. O show, como denominavam,

    era apresentado a ns, pais, avs e amigos; enfim a todos que estivessem

    presentes.

    Organizavam a sala de modo a nos colocar na posio de platia. O cenrio era

    improvisado com almofadas, baldes ou bacias da lavanderia, brinquedos, e

    pertences da cozinha.

    As toalhas de banho se abriam para ns, platia, com a mesma magia das cortinas

    do teatro, nos deixando perplexos e encantados. Havia um ritual em suas aes: a

    apresentadora expunha a seqncia das atividades que seriam apresentadas no dia

    dando incio apresentao, momento to esperado por todos ns. Elas criavam

    coreografias, cantavam, contavam piadas, improvisavam pequenas histrias,

    dublavam e, muitas vezes, tambm recitavam, divertindo e alegrando a todos. Foram

    tardes gostosas, divertidas e muito prazerosas.

  • 24

    Elas permaneciam to envolvidas com as prprias atividades, criando e organizando

    suas aes, para nos apresentarem, que nem percebiam o tempo passar. Era como

    se desligassem os botes de acesso realidade para permanecer no mundo do faz

    de conta, no mundo da fantasia.

    Representar e improvisar cenas e aes fazia parte das suas brincadeiras; de seus

    jogos infantis. A energia mobilizada pelo brincar impulsiona a espontaneidade e a

    liberdade de criar, inovar, transformar e de se aventurar sem medo na re-

    apresentao das imagens absorvidas nos emaranhados das relaes vividas no dia

    a dia. (SPOLIN, 1998).

    Novas imagens ocuparam o espao das minhas lembranas. Mobilizada com a

    leitura da autora e com as imagens que surgiam selecionei uma muito especial para

    ampliar e enriquecer as reflexes que apresento neste trabalho.

    Ao organizar os meus registros, minhas hipteses e observaes sobre os jogos

    propostos por Viola descobri, conversando com minha av, que em 1915 ela j fazia

    teatro no Collegio Immaculata Concezione, na cidade de Ivrea (Itlia), onde morava.

    Era um colgio de freiras em regime semi-interno. As alunas saiam do colgio s no

    final da semana para ficar com a famlia.

    O teatro era utilizado nas aulas de italiano como um instrumento de aperfeioamento

    da lngua. A proposta das educadoras, segundo a minha av, era com a escrita e

    com a pronncia correta do italiano.

  • 25

    Nas aulas de teatro as alunas escolhiam os temas que seriam abordados na

    representao cnica e desenvolviam a trama por escrito. s vezes, as freiras

    tambm determinavam o tema para ser desenvolvido. A classe escolhia a melhor

    histria para ser representada e as freiras distribuam os papis e as falas dos

    personagens para as meninas da classe. As freiras, segundo a minha av,

    chegavam sala de aula com o texto todo recortado para ser entregue as alunas.

    Elas determinavam os papis que cada uma iria desenvolver.

    As narrativas da Dona Armida, minha av, (hoje com seus 99 anos de lucidez e

    encantamentos) eram sempre escolhidas pela classe. Suas amigas gostavam das

    suas histrias porque eram picantes e atrevidas.

    O Collegio Immaculata Concezione obrigava a leitura sistemtica da Bblia e da

    literatura italiana, porm o que a minha av mais apreciava era a literatura francesa.

    No colgio havia uma biblioteca com uma grande variedade de livros. Ns

    podamos escolher as duas literaturas. Os franceses descreviam as coisas como

    elas realmente eram. Eles tinham temas mais corriqueiros, temas curtos de coisas

    que acontecem no dia-a-dia.

    A literatura enriqueceu muito seu repertrio. Os melhores textos da escola eram

    enviados ao jornal de Turim. As freiras - dizia a minha av, sempre criticavam as

    minhas histrias porque tinham um fim trgico, porque falavam de separao, morte

    do cnjuge, traio, filhos deficientes etc., mas as minhas histrias sempre iam para

    o jornal.

  • 26

    A minha av escrevia as histrias, mas no podia participar representando os seus

    personagens, opinando na distribuio dos papis, na evoluo da trama e na

    direo da representao.

    As freiras arrumavam os personagens. Traziam tudo pronto. Roupas, peruca e

    adereos para cada uma. Ns no podamos falar nada.

    Ela disse que tinha muita vontade de representar mas como j tinha escrito o tema,

    tinha que permanecer sentada ao lado das educadoras. Elas dirigiam a pea e

    vestiam as personagens.

    No dia da apresentao as freiras ficavam sentadas no tablado corrigindo a

    pronncia de cada uma e a maneira como se comportavam perante o grupo.

    No final da pea, a concentrao para representar os personagens e a trama era to

    grande que muitas vezes todos acabavam chorando. As pessoas choravam porque

    se compenetravam. As pessoas mostravam realmente o que estava escrito. At eu

    ficava emocionada quando via as minhas histrias tomarem vida e emoo.

    Aos doze anos, com a morte precoce de sua me, minha av foi obrigada a voltar

    para o Brasil. Chegando em So Paulo, ela veio morar com seu pai. Meu bisav era

    pintor de igrejas e catedrais.

  • 27

    Minha av, acostumada a escrever histrias para o jornal italiano pediu a seu pai se

    poderia trabalhar para o jornal, aqui em So Paulo, escrevendo contos ou mesmo

    relatando fatos e acontecimentos polticos da poca.

    Naquela ocasio, no se concebia a possibilidade da presena da mulher

    trabalhando e atuando na sociedade. Meu bisav no aceitava o fato de consentir

    liberdade e permisso para minha av trabalhar fora, principalmente escrevendo

    para a imprensa. Seria uma desonra para a famlia, dizia a minha av.

    Dona Armida parou de escrever e passou a se dedicar s tarefas do lar passando

    roupas, cozinhando, arrumando a casa e costurando. No entanto, juntava todos os

    trocadinhos que seu pai lhe dava no final do ms, para comprar livros italianos e

    franceses.

    na reflexo e no fazer das nossas atividades que nos surpreendemos com o nosso

    processo, com nossos insights, com nossas descobertas. Por meio do estudo dos

    jogos teatrais de Spolin (1998), mobilizei minha sensibilidade, minha memria, minha

    histria de vida. De repente, me dei conta que a arte de representar, o prazer pela

    leitura e pela escrita correu pela nossa histria por trs geraes: Minha av

    escrevendo histrias para o teatro, minhas filhas brincando de representar e eu no

    processo de reflexo da minha ao prtica, resgato essa magia que transcende a

    nossa carga gentica.

    A literatura alimentou a criao esttica dos personagens, cenrios e trama e o

    teatro resgatou a lucidez, a expressividade, a comunicao e a socializao da

  • 28

    leitura de um mundo que a minha av possua. Estimulada pela representao

    cnica ela buscou ampliar o seu acervo literrio na leitura e exercitou a fluncia da

    sua lngua materna.

    Na escola, presenciei, inmeras vezes, os alunos organizando jogos e brincadeiras

    para serem socializados com o grupo. Tentamos resgatar os jogos que os divertiam

    quando eram crianas.

    Alguns jogos foram aprendidos por meio das brincadeiras de rua, outros no convvio

    com a famlia e outros experenciados nas atividades da igreja de Vila Mariana

    (Bairro da cidade de So Paulo).

    Vrios jogos de rua ou brincadeiras de infncia foram resgatados em nossos

    encontros. O aluno descrevia o jogo ou a brincadeira para o grupo, utilizando-se da

    Lngua de Sinais e da dramatizao como meio para descrever as regras do jogo.

    Neste momento, o aluno trabalha com a comunicao elaborando uma linguagem

    interativa com seu grupo.

    Segue abaixo, o registro de alguns jogos socializados pelos alunos em nossas

    aulas.

    - O jogo do palhao Todos em um crculo formando uma grande roda.

    Um aluno se coloca no centro do crculo e aleatoriamente aponta para

    outro aluno. Este deve colocar as suas mos fechadas sobre o nariz.

    Imediatamente o seu vizinho da esquerda coloca a sua mo direita sobre a

  • 29

    orelha esquerda do aluno palhao em forma de uma concha e o vizinho

    da direita deve colocar a mo esquerda na orelha direita do aluno

    palhao. Denominamos por aluno palhao quele que foi apontado pelo

    jogador no centro do crculo. Esse jogo precisa ser executado com rapidez

    e requer ateno dos participantes do grupo. O aluno que no prestar

    ateno no jogo no acompanha a brincadeira. Quem errar sai do jogo.

    - Jogo dos sinais. Todos em p em um grande crculo. Cada aluno

    apresenta o seu sinal ao grupo e em seguida o seu colega do lado direito

    repete o sinal apresentado, identificando o amigo ao lado. O jogo continua

    at chegar no primeiro aluno que apresentou o sinal de identificao inicial.

    Os ltimos devero repetir todas os sinais anteriores apresentados e por

    fim o seu prprio sinal.

    - Jogo da contao de histria. Todos em crculo. Um aluno comea

    uma histria sobre qualquer coisa que desejar e os demais devero

    continu-la com coerncia e coeso a partir do ponto em que o ltimo

    aluno parou.

    - Canes bblicas tambm apareceram nos jogos de aquecimento que

    antecediam o teatro. Um aluno iniciava uma cano sinalizando ou mesmo

    interpretando-a com a linguagem corporal e em seguida o amigo ao lado

    dava continuidade a cano.

  • 30

    Spolin (1998) explica que o jogo uma atividade em que as regras e os acordos so

    aceitos pelo grupo que decide participar. Inseridos nas relaes de jogos, os

    jogadores participam com entusiasmo e alegria respeitando o conjunto de regras

    definidas, e o mesmo se d com a experincia de jogos teatrais.

    Spolin (1998) e Koudela (1996) concordam com a importncia do jogo como uma

    atividade social, que propicia envolvimento, interao, liberdade e criao na

    realizao da tarefa.

    No jogo, o aluno aprende a administrar a sua relao com o outro, desenvolve o

    exerccio da escuta, aprende a fazer escolhas, toma decises, planeja situaes e

    estratgias; desenvolvendo linguagem (SPOLIN, 1998).

    Spolin (1998) sugere que o processo para atuao no teatro deve ser baseado na

    participao em jogos. Categorias como jogos de observao, jogos de memria,

    jogos de aquecimento, jogos sensoriais e jogos de comunicao no verbal

    desenvolvem no aluno habilidades no teatro improvisado.

    Ainda segundo a autora,

    Improvisar a abertura para entrar em contato com o ambiente e o outro, atuar sobre o ambiente observando e refletindo a realidade de maneira espontnea expressiva e criativa compartilhar com o outro sua experincia de vida, seus desejos, sonhos; suas idias. (1998, p. 23).

    Todo jogo tem um objetivo a vencer, um problema a ser solucionado e deve haver

    acordo de grupo sobre as regras do jogo. Assim como os jogos de entretenimento,

    os jogos teatrais tambm so constitudos por regras e acordos grupais que

  • 31

    asseguram chegar no objetivo final do jogo. Spolin (1998) e Koudela (1996) utilizam-

    se do termo jogador para identificar aquele que joga ou aquela pessoa que cria a

    realidade teatral.

    Meu objetivo era criar, a partir do jogo, um contexto em que a linguagem pudesse

    ser contextualizada espontaneamente, onde o pensar, agir e sentir pudesse fluir

    pela ao do grupo. Alm de utilizar situaes de linguagem espontnea, por meio

    dos jogos, encontrei na metodologia de Spolin subsdios para ampliar o universo

    lingstico dos alunos.

    A estrutura de orientao proposta pela metodologia de Spolin (1998), O QU,

    QUEM e ONDE, contribuiu para organizar o pensamento do aluno em funo do

    objeto, do personagem e do ambiente, dando fundamento e coerncia s histrias

    que desenvolviam em grupo.

    O contedo da improvisao surge e se desenvolve sempre no grupo. O professor

    orientador do trabalho estabelece o objeto do jogo, ou seja uma situao a ser

    solucionada. Este o grande desafio para todos aqueles que participam do jogo.

    Assim como todo jogo nos coloca um objetivo a vencer, os jogos de improvisao

    para o teatro nos desafiam a solucionar objetivos ou dificuldades, mantendo todos

    os participantes envolvidos na soluo do problema apresentado. (SPOLIN, 1998).

  • 32

    Segue abaixo, o registro de alguns eventos, socializados pelos alunos nos jogos de

    improvisao para o teatro, apresentados no Projeto de Pesquisa Integrao das

    Tecnologias da Comunicao ao processo de Letramento do Surdo 2.

    Este registro foi fruto de um trabalho realizado com os alunos surdos da 7 srie do

    perodo noturno de 2000. Participaram deste projeto cnico duas classes totalizando

    16 adolescentes.

    Com o objetivo de preservar a identidade dos participantes utilizarei somente as

    iniciais de seus nomes.

    Utilizando a estrutura O QU

    Apontamentos do nosso 3 encontro: 17/05/00

    Proposta de trabalho individual: o jogo do tato.

    Sentados, em crculo, cada aluno se concentra no tato de um objeto colocado em

    uma sacola.

    Pediu-se para os alunos deixar que suas mos sentissem o objeto: a textura, o peso,

    a forma e a temperatura do objeto. Com os olhos vendados o aluno deve descrever

    o objeto e suas caractersticas para o grupo.

    2 Apresentao feita pela autora na FAPESP/ Escola do Futuro/ USP/ 2001.

  • 33

    P. retirou da sacola um peso de um quilo, de fazer ginstica. Ele sinalizou conheo,

    referindo-se ao objeto. leve, representando a atividade fsica de um esportista

    fazendo exerccio para fortalecer os braos.

    G. retirou o Pikachu3 - um bichinho de pelcia. Ela falou: Parece de brincar.

    macio, pequeno e quentinho. Parece um coelho. Ao abrir os olhos ela falou:

    Conheo da televiso. Como o nome dele? Eu respondi e ela no

    compreendendo pediu para que eu escrevesse na lousa o nome do brinquedo.

    D. retirou da sacola uma pedra ornamental, objeto de enfeite da minha casa. Ele

    sinalizou: Pesado, duro e no conheo. Pediu se podia desenhar na lousa o objeto

    porque ele desconhecia a palavra que o identificava.

    Perguntei ao grupo se seria permitida essa possibilidade de desenhar o objeto caso

    no soubessem identific-lo. O grupo aprovou a idia e D. representou, por meio do

    desenho, o fundo do mar, corais e alguns peixes. Em seguida sinalizou ao grupo que

    no fundo do mar havia muitos peixes coloridos e muitas pedras. Disse j ter visto em

    uma revista o fundo do mar. L muito bonito.

    O desenho de seus corais era muito parecido com as caractersticas fsicas da

    minha pedra ornamental.

    A. retirou uma chapinha de resistncia de rdio. Sinalizou: Coisa que fica dentro da

    televiso, pequeno e leve. No sei o nome.

    3 Nome de personagem de desenho animado.

  • 34

    Os alunos utilizam diferentes linguagens para comunicar ao grupo o seu objeto:

    dramatizam, sinalizam, falam, escrevem e desenham. Trabalham com a

    comunicao elaborando uma linguagem descritiva do objeto.

    Utilizando a estrutura QUEM

    Apontamentos do nosso 6 encontro: 21/06/00

    Proposta de trabalho individual: Jogo do exagero fsico.

    Cada aluno deve assumir, durante a cena, uma qualidade fsica exagerada de um

    personagem. Exemplo: um homem muito gordo, uma madame, um velhinho etc.

    Durante um minuto cada aluno ir representar o seu personagem para o grupo. O

    grupo, neste momento, atua como platia participando dos eventos, fazendo

    perguntas, questionando etc.

    J. R. representou um velhinho esperando o nibus. Ele no simulou a idade da

    pessoa por meio da expresso corporal. Permaneceu no ponto de nibus com os

    ps encostados na parede, como se fosse um adolescente.

    A platia no identificou o personagem idoso que deveria ter sido representado pelo

    aluno. Pedimos para J. reapresentar a sua cena dando maior expressividade ao seu

    personagem. O aluno recomeou a cena mostrando ser um velhinho arcado, com

  • 35

    bengala nas mos e com muita dificuldade para se locomover. Ele tremia muito ao

    andar. Ficou cansado e esperou o nibus sentado.

    D. simulou uma madame andando pela calada. Ela rebolava muito. Tinha um corpo

    empinado e empurrava um carrinho de beb. Ela fez sinal para o nibus e subiu.

    Entrando no nibus, pediu licena para passar e pagou a passagem.

    A platia questiona ao jogador onde estaria o carrinho com o beb. Nesse momento

    o jogador, D. percebe que havia esquecido o carrinho com o beb no ponto de

    nibus. Ele recomea a cena. Novamente, faz sinal para o nibus e entra com o

    beb no colo. Paga a passagem e pede lugar para sentar. O beb chorava muito e

    ela, a madame, ficava balanando o beb.

    A platia questiona, ao jogador D., o que foi feito com o carrinho? Voc esqueceu o

    carrinho no ponto, falava G.

    D. inicia a cena novamente, subindo no nibus com o carrinho e o beb.

    Quando o aluno observa uma pessoa ele pode inferir vrias coisas sobre ela, por

    exemplo, classe social, profisso, estado emocional, seus desejos, medos,etc. por

    meio da ao desse personagem que o aluno comea a criar o texto em cena. O

    texto compartilhado com a platia, grupo de alunos que observam a representao

    do jogador, que tambm est envolvida com a histria.

  • 36

    A platia participa dos eventos observando, buscando alternativas, antecipando

    conseqncias, comparando atitudes e comportamentos. Ela argumenta, faz a

    interveno e a crtica quele que desenvolve o texto.

    Utilizando a estrutura ONDE

    Apontamentos do nosso 12 encontro: 23/08/00

    Proposta de trabalho em grupo. Jogo: trabalhando com imagens visuais.

    Selecionei duas telas para serem representadas pelo grupo: uma de Van Gogh, Os

    Comedores de Batata e outra de Portinari da Srie Trabalhadores Brasileiros, O

    Fumo.

    Dividi a classe em dois grupos. Cada grupo ficou com uma imagem para

    representar. Combinamos que os grupos teriam dez minutos para criar uma

    representao para as telas, cinco minutos para apresent-la platia, e dez

    minutos para avaliarmos o nosso encontro.

    Os grupos se dividiram para a improvisao do texto em ambiente diferentes com o

    objetivo de fazer surpresa no momento da apresentao.

    O grupo que ficou com a tela de Van Gogh, organizou a sala de leitura (espao fsico

    da escola onde desenvolvemos o jogo teatral) colocando as cadeiras em um

    pequeno crculo como se estivessem reunidos mesa de jantar. Iniciaram a cena.

  • 37

    A me (G.) estava sentada mesa com as suas filhas (A. P. e R.). R. era muito

    fresca, metida e exibida. A. P., segundo a famlia, era a filha mais normal. Ela no

    queria ser melhor que as outras.

    Bateram na porta. A me levanta e abre a porta. Entra o pai, o chefe da famlia,

    muito cansado do trabalho. Todos se sentam mesa e o pai, J. R. comea a falar

    sobre o trabalho, salrio baixo, dificuldade para viver porque tudo esta muito caro e

    comenta sobre o nibus que estava lotado.

    A., marido da Roseli, entra em cena. Ele bate na porta.(Ele bate na porta do armrio

    para fazer o barulho). Entra totalmente bbado, tropeando em suas pernas, e cai

    sentado na cadeira da mesa onde todos esto jantando. Todos desaprovam a sua

    atitude (a expresso facial e corporal demonstram a rejeio atitude de A.). R.,

    esposa de A., fica decepcionada e, muito envergonhada, se levanta da mesa.

    O outro grupo, influenciado pela imagem de Portinari, utilizou o espao da sala de

    leitura posicionando-se da mesma forma que os trabalhadores brasileiros da imagem

    O Fumo.

    F., chefe dos trabalhadores, era arrogante e bravo. Ele ganhava muito dinheiro.

    Ficava vigiando o trabalho dos seus empregados para ver se os mesmos no

    relaxavam no servio. Ele tinha nas mos um chicote (representado por um pedao

    de pano) que era lanado sobre o empregado toda vez que este deixava o trabalho

    para descansar.

  • 38

    Os trabalhadores se aproveitavam das sadas momentneas do chefe para armar

    uma rebelio contra a sua dominao.

    Os trabalhadores combinavam para fugir noite, no escuro, levantaram a hiptese

    de matar o chefe quando este volta ao local de servio e observa o motim. Ele

    chicoteia todos os trabalhadores pelo no cumprimento das ordens deixadas. Os

    trabalhadores voltam ao servio.

    Neste encontro, ns no conseguimos cumprir com o nosso planejamento. No deu

    tempo de avaliarmos o trabalho. Influenciados pela vivncia nas oficinas de teatro do

    Sesc de Vila Mariana, os alunos, pela primeira vez, sentiram necessidade de utilizar

    os adereos da escola para melhor caracterizar seus personagens. Esse movimento,

    por parte dos alunos, de buscar no acervo da escola adereos para a representao

    das suas cenas, tomou o nosso tempo da avaliao final.

    Tenho observado, por meio dos jogos de improvisao, que o jogo realmente cria

    eventos, conflitos e resoluo de problemas que so discutidos e elaborados pelo

    grupo.

    Os alunos tm histrias e casos que podem ser desenvolvidos e narrados no grupo.

    Eles comunicam o seu texto e a sua histria pela sua expresso, pelo seu

    movimento, pela sua sensibilidade. A pea o prprio texto representado.

  • 39

    Os jovens vivem a vida ficcional nas histrias que criam. Eles querem ser bandidos,

    soldados, drogados, viciados, agressivos, romnticos etc. Querem experimentar

    diferentes papis, diferentes posies sociais.

    A narrativa nasce do trabalho coletivo dos alunos que por intermdio da

    improvisao atribuem significado e coerncia ao texto.

    No teatro a comunicao direta, acontece no momento em que se joga. A idia

    precisa ter coerncia para o texto fruir. Esse exerccio do pensar, criar e desenvolver

    o texto em sinais no grupo para depois narr-lo muito importante, tanto para o

    desenvolvimento lingstico do surdo como para o seu desenvolvimento como

    sujeito.

    Hoje, refletindo sobre a minha prtica com os jogos teatrais na escola, cheguei

    concluso que compartilhar experincias pessoais a partir de uma situao problema

    a ser solucionada em grupo foi um trabalho teraputico, que desvelou sentimentos,

    emoes, valores e conhecimento por meio da expresso cnica.

    Assumir diferentes papis, nos jogos teatrais, ajudou os alunos a reviverem sua

    memria emocional, a se colocarem no lugar do outro, a elaborarem uma sntese

    conjunta com os demais participantes buscando sadas criativas para seus

    problemas. Os alunos passaram a ouvir e a observar o outro no contexto familiar e

    social.

  • 40

    O jogo teatral motivou-os a se perceberem como agentes no seu processo de

    identidade, refletindo e se apropriando da sua histria e do seu processo de

    crescimento pessoal na busca de solues criativas de convivncia social.

    Momento de avaliao na relao PALCO/ PLATIA

    Nos jogos de improvisao a turma separada em dois subgrupos. Enquanto o

    primeiro subgrupo apresenta a cena, o segundo, na funo de platia aprecia a

    representao da cena. Em seguida trocamos os papis: o subgrupo que apreciou a

    primeira cena apresenta-se e o outro, agora platia, observa.

    No final da atividade temos o momento da avaliao que tem como objetivo

    desenvolver a argumentao e a contra-argumentao crtica e fundamentada tanto

    na observao da platia como no desenvolvimento e aprimoramento da narrativa.

    A avaliao ocorre, depois que os dois grupos se apresentaram. Todos participam

    da avaliao, at o professor. O aluno da platia no est ali para atacar ou proteger

    o amigo, mas para versar sobre o que realmente foi comunicado (VIOLA, 1998, p.

    24).

    Quando esta relao com a platia compreendida, os alunos perdem o medo do

    julgamento do bom/mau e do certo/errado. O que nos propomos a fazer pensar,

    refletir e melhorar esse processo de narrar fatos ou histrias tentando torn-las

    compreensveis e interessantes. E isto aprendido.

  • 41

    Com o objetivo de focar e analisar o que acontece no momento da avaliao dos

    grupos no apresentarei o texto desenvolvido pelos alunos.

    A turma foi dividida em dois grupos. Um grupo sorteou a comanda: cenas em um

    avio e o outro, cenas que acontecem no velrio. No momento da apreciao da

    platia, muitos elementos foram evidenciados:

    Avaliao da platia para o grupo

    que desenvolveu a cena em um

    avio

    Avaliao da platia para o grupo

    que desenvolveu a cena no velrio

    - faltou maior expressividade

    para o piloto do avio

    - o comissrio de bordo

    carregava a bandeja na mo e

    no avio existe um carrinho que

    leva os lanches para os

    tripulantes.... Eu j vi na

    televiso. Ele fez errado.... Ele

    parecia garom

    - Faltou uma comissria para

    trazer um pano para limpar a

    cala da Roseli que estava suja

    de suco. Tambm deveriam ter

    limpado o cho do avio

    - O tempo foi muito curto...

    Poderiam ter pensado em mais

    coisas para continuar a histria.

    - O piloto no fez certo. Faltou

    maior expressividade.

    - Faltou expressividade na

    encenao. O J.R. no ficou

    nervoso nem saiu para

    fumar.

    -Ningum desmaiou no

    velrio.

    -A G. dava risada no velrio

    e depois chorava. No pode

    dar risada. Precisa ficar

    direito.

    -O M. no chorou nada.

    - O J.R. nem pegou no leno

    para assoar o nariz.

    - O A. achou que foi um

    choro pobre sem

    expressividade.

  • 42

    Na aula seguinte, ns trocamos os temas trabalhados. O grupo que desenvolveu a

    histria do avio recebeu como proposta de trabalho, desenvolver e ampliar o tema

    do velrio e o outro grupo a proposta de ampliar a histria no avio.

    Os alunos concluram que houve introduo no tema, ampliao de eventos,

    problematizao no decorrer do texto e resoluo dos problemas. (registro do 10

    encontro/ 11 de agosto 2000).

    Foi um trabalho desafiador construdo no prprio fazer e re-planejar de nossas

    aes.

    Desenvolver um trabalho sem ser especialista na rea me trouxe muitas dvidas,

    questionamentos, ansiedade e medo. Medo pelo novo, pela continuidade do

    desconhecido, do trabalho a ser desenvolvido nos prximos grupos.

    Que fundamentos tericos eu deveria procurar para dar prosseguimento ao trabalho

    com os jogos teatrais? Meu foco buscava uma base terica que me desse subsdios

    para compreender com mais clareza, a enxurrada de contedos e sentimentos que

    aos poucos foram sendo refletidos e redirecionados pelo grupo.

    Senti que o nosso grupo se fortaleceu. Constitumos um vnculo muito forte porque o

    trabalho mexeu com a estrutura interna dos alunos, com sua auto-estima e com a

    sua valorizao pessoal.

  • 43

    Foi nesse momento de busca que eu cheguei a Arteterapia.

    Com as atividades prticas propostas pelo curso, ns ultrapassamos as barreiras

    que a conscincia nos coloca impedindo-nos, muitas vezes, de nos aproximarmos

    de ns mesmas.

    A linguagem plstica tem a magia do poder de alcanar, tocar, re-viver e transformar

    nossas emoes mais profundas.

    A Arte consegue este dilogo interno com maior facilidade porque ela livre, corre

    pela nossa histria sem rdeas e sem censura, percorre nossas emoes com

    leveza, perspiccia e sabedoria. Ela perpassa pela nossa autocrtica, pelos nossos

    pr-conceitos, pelas nossas atitudes cristalizadas no tempo; desenraiza a nossa

    lgica linear e cartesiana de pensar e agir. Ela nos provoca, nos sensibiliza, nos

    contagia ascendendo nossas emoes mais profundas. Ela nos coloca frente a

    frente nossa verdade interior, ao nosso SER.

    Muitas vezes, esse encontro dolorido e sofrido, porque evoca sensaes e

    sentimentos que afogamos no decorrer da nossa vida; talvez, por no ter tido

    coragem ou sabedoria para lidar com ele, naquele momento. Da o choro, a reflexo,

    o contato com a dor, o re-pensar e o poder de transformar ou no a nossa histria.

    Eu tambm me transformei no decorrer da construo desse nosso novo olhar. Hoje,

    consigo atribuir novos significados Arte: Arte no apenas como meio de expressar

  • 44

    pensamentos e sentimentos para outras pessoas, mas arte como instrumento de

    transformao pessoal, de dilogo consigo mesmo, com o outro e com o mundo.

    Por meio da Arte ns podemos refletir e transformar experincias passadas

    tornando-as mais positivas para reviv-las em novas situaes do presente. Ns

    somos, transformamos e constitumos a nossa histria.

    Utilizei a fundamentao dos diferentes mdulos do curso de especializao em

    Arteterapia para melhor compreender o meu SER: Ser-criana, Ser-razo, Ser-

    sentimento, Ser-emoo, Ser-educadora, Ser-arteterapeuta, para melhor

    compreender o outro SER.

    Passei a compreender o potencial teraputico dos processos criativos que emergem

    nas oficinas de arte.

    Experincias riqussimas ocorreram nesse espao cnico. Os jogos teatrais

    ampliaram a capacidade de dialogar, conviver, trocar informaes do cotidiano,

    manifestar opinies sobre questes do dia-a-dia, promover debates; respeitar a

    opinio, o sentimento e a emoo vivenciada pelo outro no grupo.

    A linguagem plstica acessa nossas experincias internas, nossos desejos,

    frustraes, angstias, receios... desvelando significados riqussimos para reviv-los

    e transform-los na busca do autoconhecimento, da transformao pessoal e de

    uma qualidade melhor de vida.

  • 45

    por meio das diferentes linguagens artsticas que o indivduo se apropria da sua

    realidade social; toma cincia do seu Ser.

    Quando falamos em linguagem, para ns educadores, logo nos vem a mente a fala

    e a escrita; ou seja, pensamos na linguagem oral e no registro escrito porque nos

    constitumos como seres simblicos.

    Nossa insero na realidade sempre mediada pela linguagem porque o homem

    um ser simblico. Ele pensa, reflete, transforma, cria; inova. O homem se descobre e

    se constri psquica e socialmente por meio da linguagem quer seja ela oral, grfica,

    pictrica ou cnica. Porm, nos esquecemos que linguagem toda forma de pensar,

    sentir, interpretar, refletir, re-organizar; re-construir, re-planejar; expressar uma idia,

    um pensamento ou uma ao. Da, a importncia dos fundamentos e das oficinas de

    arteterapia para compreendermos a extenso e a potencialidade criadora do nosso

    fazer cotidiano no contexto escolar.

    Aprendi a escutar o outro, a respeitar o limite de cada um, a compreender o

    comportamento dos alunos para sobreviver em um mundo desigual, que dificilmente

    integra e inclui o diferente. Contudo, descobri que existe um ser criativo que habita

    em cada um de ns, capaz de levantar possibilidades inovadoras para sobre-viver

    numa sociedade que exclui o idoso, o pobre, o deficiente, a mulher, o obeso...

    Observei tambm que o trabalho com a arte propicia o poder da cura, num

    movimento dialgico de transformao pessoal por meio do contato e da reflexo

    das vivncias internas de cada um. Vivenciar, refletir e transformar os sentimentos

  • 46

    negativos enraizados em nossa memria para transform-los em aes positivas de

    mudana, ativa o nosso poder de cura pessoal e a possibilidade de sermos feliz.

    Quando o aluno constri e atribui vida a um personagem no contexto teatral, ele, na

    maioria das vezes, evoca e revive cenas ou imagens das suas experincias de vida,

    como por exemplo, lembranas, medos, alegrias, tristezas, dificuldades, apuros,

    desejos; sonhos tanto da infncia como da adolescncia. Nesse momento, a ao

    do personagem se mescla com a imagem da histria do aluno e ela re-aparece em

    cena transformada, como se a cena o ajudasse a evocar, refletir e transformar sua

    prpria histria.

    Apurei a representao cnica como um falar pleno que vai alm do discurso lgico,

    linear e temporal. Experimentei a expresso do desejo, da dor, da frustrao, dos

    acertos e desacertos na transformao do pensar e agir.

    Acredito que, intuitivamente, existe um SER terapeuta dentro de cada um de ns

    adormecido em nosso fazer. ELE precisa ser alimentado pelo estudo cientfico do

    saber, lapidado pela ao reflexiva do fazer e socializado com os nossos pares mais

    avanados na busca do conhecimento. Permitir... Sensibilizar... Querer... Pensar...

    Refletir... Redirecionar... Reorganizar... Transformar... Registrar.... Teorizar...

    Experimentar... Vivenciar... Pulsar... constituem alimentos indispensveis para

    mobilizar o Ser terapeuta dentro de cada um de ns.

  • 47

    CENA II

    NA COXIA

    Antes de relatar alguns recortes e reflexes sobre a Arteterapia no contexto escolar,

    inserida em sala de aula, gostaria de salientar que essa vivncia fruto das

    discusses e descobertas realizadas por meio das atividades desenvolvidas com os

    alunos surdos do 2 ano da EMEE Anne Sullivan de So Paulo, com idades que

    variam de 10 a 12 anos. 4

    Esse projeto tambm foi construdo na interao do grupo, por meio de questes e

    dvidas trazidas pelos alunos no decorrer de nossos encontros com o objetivo de

    vivenciar e refletir sobre o corpo humano (semelhanas e diferenas) e sobre a

    diversidade de gnero, incorporadas em suas falas e comportamentos.

    fundamental que a escola possa ajudar na formao da identidade e possibilitar um desenvolvimento mais harmonioso, porque todo mundo sabe que a sexualidade fator essencial na questo da identidade: o ser menino ou ser menina, o que ser homem ou ser mulher, os comportamentos e aes de cada gnero. Essas so as primeiras questes que aparecem para as crianas na escola e tm a ver com essa identidade bsica, com a formao da sua identidade. importante trabalhar com um conceito amplo de relaes de gnero, que mostre que h infinitas formas de ser homem e mulher. E de expressar isso. (EGYPTO, 2003, p. 19).

    Desde o nascimento, a famlia, a escola e a sociedade ensinam meninos e meninas

    a se comportarem, sentirem e agirem com base nos papis e modelos de condutas

    existentes em cada sociedade, em um dado momento histrico.

    4 A escola e os pais autorizaram a divulgao das imagens das crianas para este trabalho. As autorizaes esto

    arquivadas no Alquimy Art (SP).

  • 48

    A sexualidade est presente desde o nascimento e ser constituda a partir das

    relaes sociais, da interao do beb com a me, com a famlia, com os amigos;

    com os valores culturais da sociedade. Cabe a ns, educadores, responder s

    manifestaes da sexualidade infantil na medida em que elas aparecem em sala de

    aula como tema de curiosidade e interesse entre as crianas. (EGYPTO, 2003).

    O Projeto de Orientao Sexual fez parte da grade curricular desses alunos. Nossos

    encontros, reflexes e questionamentos semanais tiveram como objetivo oferecer

    espao para o dilogo, para a troca de experincias, para a discusso de valores;

    para a reconstruo e ampliao do que j se sabe, dentro de um contexto ldico e

    prazeroso.

    Dentro deste contexto, o projeto de Orientao Sexual se estruturou em trs eixos

    fundamentais, conforme orientao do Grupo de Trabalho e Pesquisa em Orientao

    Sexual (GTPOS): o corpo humano, as relaes de gnero e a preveno s doenas

    sexualmente transmissveis.

    A transdisciplinariedade tem como referncia o pensamento hologrfico (a dinmica do todo e das partes) e a teoria da complexidade, e como referncia filosfica a fenomenologia e a viso ecolgica sistmica. Essa nova postura diante dos fenmenos implica numa busca de uma viso global, na dinmica entre as diferenas e na busca de identidades, que tenta resgatar o interjogo da complexidade dos fenmenos, numa compreenso em rede. (ABED, 2000, p. 39).

    O movimento da cincia ps-moderna visa relao e ao dilogo entre as diferentes

    disciplinas do saber. Essa proposta, no anula a particularidade de cada rea, mas

  • 49

    pelo contrrio, lida com a dinmica de todas as partes, com a viso sistmica do

    conhecimento, na busca de uma viso mais global do saber. (ABED, 2000).

    Segundo a autora, essa busca reintegra construo do conhecimento o

    imaginrio, recriando as pontes entre a Cincia, a Filosofia e a Arte (ABED, 2000, p.

    40). na dinmica da relao entre a teoria e a prtica, o saber e a vida, a

    objetividade e a subjetividade, que o indivduo reintegra no processo de construo

    do seu conhecimento a sua identidade, o seu compromisso social, cultural e poltico.

    neste movimento da reconstruo e da des-construo, do des-organizar para

    organizar, que na dialtica do saber o indivduo se descobre, toma conscincia da

    sua histria e se re-constri diariamente. (ABED, 2000).

    A transdisciplinaridade, ainda segundo a autora, vai alm do limite racional e

    cognitivo. Ela resgata o fazer, o sentir, o destruir para reconstruir, o intuir, o refletir

    sobre o vivido para reformular e transform-lo.

    A transdisciplinaridade rompe com o modelo do saber estagnado, fechado em si

    mesmo.

    Por que no ousar, extrapolar e transcender? Por que no integrar, incluir e

    relacionar diferentes contedos numa rede dinmica de conhecimentos onde os

    diversos saberes circulem com liberdade de expresso, com espontaneidade e

    criatividade?

    E assim, tudo comeou ...

  • 50

    Na sala de leitura da escola o grupo pesquisava textos sobre bruxas, feitios e

    magias. Ns havamos compartilhado a leitura de algumas lendas, na semana do

    folclore e o sentimento de medo, terror e fantasia aguou a pesquisa para outros

    tipos de textos.

    Fantasmas, drculas, vampiros e bruxas visitaram o imaginrio dos alunos e dentro

    desse contexto desenvolvemos nosso tema sobre diferenas de gnero.

    Imersos na fantasia, eu os levei a participar de uma longa viagem. Contei aos alunos

    que daquele momento em diante eles seriam os meus prisioneiros e eu me

    transformaria em uma poderosa bruxa malfica.

    Imaginariamente, utilizei meus poderes sobrenaturais para concretizar um caldeiro

    no centro da sala. E to logo a magia se fez o caldeiro se constituiu no imaginrio

    de todos. Colocamos ratos, sapos, perna de barata, rabo de lagartixa, olho de gato e

    p de defunto. Saa muita fumaa do nosso caldeiro!!!

    Falei ao grupo que estava preparando uma magia que tinha o poder de trocar o sexo

    de todos eles, de modo que os meninos se transformariam em meninas e elas em

    meninos.

    Eu mexia o caldeiro lentamente com o objetivo de envolv-los de maneira

    participativa na histria.

  • 51

    No momento em que a poo estava pronta, chamei aluno por aluno para a troca

    dos sexos.

    Retirei do caldeiro o rgo genital feminino e com a ajuda da varinha mgica,

    transformava meninos em meninas. Do mesmo modo, depois de mexer e remexer o

    caldeiro, retirava do fundo daquele panelo, o rgo genital masculino e,

    individualmente, transformei os rgos genitais femininos em masculinos.

    As meninas se transformaram em meninos e estes em meninas.

    Foi uma surpresa para todos de repente se depararem no papel do sexo oposto. Os

    meninos comearam a rebolar e as meninas a pensar no papel que deveriam

    desenvolver naquele momento. Um papel muito diferente daquele que vivem

    diariamente.

    Avisei ao grupo que eles seriam convidados para uma grande festa no palcio dos

    bruxos.

    Ento, nos dirigimos sala de leitura e eles se transvestiram para o grande evento.

    Os meninos escolheram os vestidos mais rodados do armrio (do teatro) e as

    meninas se preocuparam com a escolha das gravatas e palets. Eles tambm

    pediram batom e sombra para passar nos olhos, elas pediram lpis para fazer barba

    e bigode.

  • 52

    As meninas pintaram os meninos como se estivessem se maquiando no cabeleireiro

    e eles, com o lpis nas mos desenharam a barba e o bigode nas meninas. lgico

    que no momento que antecedeu a grande festa todos pediram para ir ao banheiro

    observar toda transformao!

    Foto 1 - Momento da maquiagem.

    Foto 2 - Apreciao da transformao pessoal.

  • 53

    Dando continuidade a esse imaginrio, demos incio a grande festa.

    Os meninos chegaram festa rebolando e mexendo os quadris, imitando as

    meninas, sentaram nas cadeiras cruzando as pernas, arrumando o cabelo e

    ajeitando a roupa.

    As meninas tambm imitaram o andar dos meninos cruzando as pernas ao

    sentarem-se como se fossem homens. Pediram cerveja, arrumaram o n da gravata

    e algumas comearam a fumar.

    Na nossa fantasia, a sala de aula j havia se transformado em um grande salo de

    festas. Alguns meninos dirigiram-se ao centro da sala e comearam a rodar os seus

    vestidos como se estivessem bailando pelo salo. Os outros aprovaram a idia e

    tambm passaram a rodar e rodar pela sala com o propsito de levantar e armar os

    seus vestidos rodados.

    Foto 3 Vivenciando a grande festa.

  • 54

    Lembrei muito das minhas filhas quando usavam vestidos rodados. Elas passavam

    horas brincando de rodar e girar o corpo para levantar a saia do vestido.

    Aos poucos, depois de muita risada por parte das meninas elas, que na brincadeira

    eram os meninos, levantaram-se para tir-los para danar. Alguns pares danaram

    juntos, outros frente a frente, outros levaram um copo de cerveja para a parceira

    acompanh-lo em um breve bate-papo.

    Foto 4 - Escolha dos parceiros.

  • 55

    Foto 5 - Afinando o ritmo na parceria da dana.

    Avisei que o nosso tempo havia terminado. Trouxe novamente a imagem do

    caldeiro para a sala de aula e com a mesma varinha mgica retirei o rgo sexual

    feminino dos meninos e o masculino das meninas devolvendo seus rgos genitais

    de origem, e todos voltaram realidade.

    Depois da vivncia conversamos sobre a diferena de gnero.

    Os meninos gostaram de colocar vestidos e perucas, passar batom, lpis e sombra.

    Apreciaram rodar com os vestidos e faz-los armar.

    F. falou que no comeo ficou com vergonha porque parecia bicha.... mas que foi

    gostoso brincar de trocar os sexos.

    D. pediu se poderamos continuar com o jogo na prxima sexta-feira. Foi legal

    colocar vestido e imitar mulher.

  • 56

    As meninas tambm pediram para continuarmos o jogo simblico na prxima

    semana. A. P. disse: Tem mais coisas que homem faz que no deu tempo de

    fazer.

    Eles esperaram ansiosamente a sexta-feira para darmos continuidade troca de

    papis.

    No dia do encontro, pediram o caldeiro, a varinha de condo e novamente

    revivemos toda a experincia da troca dos sexos.

    Desta vez, trouxe do nosso espao pedaggico para a sala de aula trs bebs

    acoplados a uma placenta e uma maleta com recursos mdicos como seringas,

    estetoscpios, termmetro etc. (materiais ldicos) para enriquecer e alimentar a

    nossa vivncia.

    Os meninos se transvestiram de meninas e estas de meninos e juntos, construram a

    histria daquele encontro.

    Naquele dia, o grupo definiu alguns papis para a brincadeira: tinha o padre, o

    mdico, a enfermeira, as mulheres que dariam a luz e os homens que iriam trabalhar

    fora para trazer dinheiro para a famlia.

    Pedi ao grupo para definirem seus nomes, uma vez que os papis sexuais estavam

    trocados.

  • 57

    As meninas transformaram seu nome para o masculino mudando a letra a final em

    o e os meninos transformaram seu nome para o feminino, mudando o final do

    nome por a. Somente D. ficou irritado ao descobrir que seu nome terminava com

    a e teve de adotar um outro nome feminino.

    Eles escolheram o padre e este realizou dois casamentos: D. com E. e C. com P.

    que experimentavam SER em outra funo de gnero.

    W. foi mdica ginecologista que, com a ajuda do T., realizou duas cesreas. D. e C.

    deram luz na maternidade. O parto da D. e de C. foi difcil. Elas no conseguiam

    expulsar os bebs da barriga, respiravam rapidamente e gritavam pedindo ajuda s

    enfermeiras W. e F.

    Foto 6 - Preocupao com a respirao na hora do parto.

  • 58

    Foto 7 - Primeiras contraes de T.

    P. com o E. saram para trabalhar enquanto as mames D. e C. cuidavam da casa e

    do beb.

    Foto 8 - Visita ao pediatra.

    O T. foi pescar.

  • 59

    Nessa atividade, o brincar rompeu a barreira do preconceito. Os meninos

    incorporaram a atividade da maternidade, do acolher e cuidar da prole, cozinhando,

    lavando e arrumando a casa.

    As meninas buscaram no trabalho a garantia do sustendo da famlia. P. era um

    pintor de paredes e E. consertava liquidificadores. Para T. foi escolhido o papel de

    pescador, talvez pelo fato de ser de origem japonesa, com o objetivo de trazer e

    vender os peixes para a comunidade.

    W. no papel de mdica, F. de enfermeira e R. ficou como consultor do Posto de

    Sade.

    No final do encontro discutimos os diferentes papis que desenvolvemos na famlia

    como homens e mulheres e chegamos a concluso que:

    - os homens tambm podem ajudar nos servios domsticos cuidando dos

    filhos, fazendo a comida, lavando roupa ou mesmo limpando a casa.

    - No trabalho de bicha - concluiu F.

    - que ns podemos realizar qualquer tipo de trabalho, no interessa se ele

    considerado pelos outros como sendo trabalho masculino ou feminino.

    - Que gostoso brincar de assumir outros papeis - sinalizou D.

    - -Foi legal brincar de dar a luz. Reflexo de T.

    - legal cuidar dos filhos - sntese de D.

  • 60

    - preciso respeitar os homens que se vestem de mulher e as mulheres que

    se vestem de homens ou de mulheres para namorarem outras mulheres -

    pensamento de P.

    Novamente o jogo e a brincadeira entram em cena.

    Por meio da brincadeira a criana comea a se perceber e a se distinguir das outras

    crianas. Na fase dos 9 aos 10 anos de idade, mais ou menos, a criana j se

    percebe como um ser distinto e diferente dos demais amiguinhos da classe, por ter

    valores e algumas concepes de vida j diferenciadas pela sua prpria histria.

    Eles comeam a tomar conscincia da diversidade de valores sociais que permeiam

    a brincadeira, dando vazo a socializao de idias de uma maneira ldica e

    prazerosa.

    Uma vez, um aluno que brincava com miniaturas de bonecos de pano, no aceitou a

    unio que estava sendo feita de uma mulher branca com um homem negro. Ele

    disse que branco no pode se casar com preto... Os amigos levantaram a questo

    do racismo e do preconceito com liberdade, espontaneidade e criatividade. Um dos

    meninos falou que o seu pai era negro e a sua me era branca e no havia

    problema nenhum em ter cores diferentes.

    Uma outra falou que tinha um irmo pretinho filho de outro pai e algum mencionou

    que na televiso tambm tem casamento de branco com preto...

  • 61

    CENA III

    NO PALCO

    O trabalho de Spolin fascinou-me pela maneira delicada e mgica com que ela lidou

    com a representao corporal, as emoes e a resoluo de problemas nos jogos

    teatrais.

    Sua metodologia surge nos anos sessenta, vinculada ao movimento de renovao

    do teatro norte-americano, que re-aparece questionando o processo expressivo e

    criativo do ator de comportamentos de palco mecnico e rgido5.

    Ela acredita na experincia viva do teatro, onde qualquer pessoa possa atuar e

    improvisar (crianas, idosos, profissionais ou amadores) criando a sua cena, sem

    precisar ser dirigido por um dramaturgo ou por um diretor graduado. Sua proposta,

    em seu sistema de ensino, parte de situaes problemas a serem devolvidos a

    platia e solucionados durante a atuao do grupo.

    Quando a criana tem a oportunidade de vivenciar e experimentar diferentes

    habilidades como tocar um instrumento, danar, cantar, representar, nadar , jogar,

    cozinhar, recitar etc., ela entra em contato com suas infinitas potencialidades.

    Todos ns temos potencialidades a serem desenvolvidas, o que nos falta so

    oportunidades para vivenci-las e experiment-las.

    5 Expresso de Koudela em texto de sua autoria para a introduo do livro de Viola.

  • 62

    Nos jogos teatrais os jogadores precisam se envolver intelectual, fsica e

    intuitivamente para jogar. Segundo a autora, o intuitivo que o mais vital para a

    situao de aprendizagem, negligenciado (1998, p. 4) porque apresenta uma

    conotao mstica e sobrenatural. Na verdade no nada disso. Muitas vezes

    damos respostas certeiras que simplesmente surgem do nada ou fazemos coisas

    certas sem pensar.

    Nos jogos teatrais trabalhamos com a espontaneidade, com o intuitivo no aqui e

    agora.

    No momento em que a criana ou o adulto jogam, a criatividade e a inventividade

    aparecem para solucionar qualquer problema que o jogo apresente. O importante

    para o jogador atingir o seu objetivo, solucionar a situao-problema obedecendo

    sempre as regras do jogo.

    O jogo psicologicamente diferente em grau, mas no em categoria, da atuao dramtica. A capacidade de criar uma situao imaginativamente e de fazer um papel uma experincia maravilhosa, como uma espcie de descanso do cotidiano que damos ao nosso eu, ou as frias da rotina de todo o dia. Observamos que essa liberdade psicolgica cria uma condio na qual tenso e conflito so dissolvidos, e as possibilidades so liberadas no esforo espontneo de satisfazer as demandas da situao. (SPOLIN, 1998, p. 5).

    O objetivo do jogo, a resoluo da situao problema o foco da concentrao do

    jogador. Resolver uma situao-problema evoca uma energia criativa dos jogadores

    no grupo. Essa energia desperta a espontaneidade e a liberdade de criar, inovar,

    transformar; de se aventurar sem medo nessa grande aventura.

  • 63

    Os jogos de improvisao apresentaram caractersticas diferentes quando

    trabalhadas com adolescentes e crianas. Com os adolescentes, ns conseguimos

    compreender o papel da platia no como um amontoado de juzes crticos e chatos,

    mas como um grupo com o qual eles compartilham suas experincias.

    Sem platia no h teatro, sem pblico no h como reverenciar a arte dos

    jogadores.

    Minha experincia com os alunos do 2 ano no chegou ao refinamento de

    apresentar e compartilhar experincias com a platia. Aqui, diferencio o jogo teatral

    da brincadeira.

    Meu objetivo era criar a partir do jogo um contexto em que a linguagem pudesse ser

    contextualizada espontaneamente, onde o pensar, agir e sentir pudesse fluir por

    intermdio da ao do grupo. Utilizando situaes de linguagem espontnea, por

    intermdio dos jogos, os alunos se organizavam distribuindo papis, criando a

    histria, encaminhando e solucionando as situaes problemas que criavam; porm

    num estgio que antecede ao jogo teatral propriamente dito porque no existe a

    necessidade da platia.

    Observei ento, a necessidade do grupo em reviver o brincar. Existia participao e

    colaborao de todos e material para desenvolver o jogo. Os alunos delimitaram o

    espao onde desenvolveriam o jogo, distribuam funes e papis para desencadear

    a histria coletiva com muita inspirao, espontaneidade e criatividade.

  • 64

    Os alunos se organizavam distribuindo papis, criando a histria, encaminhando e

    solucionando as situaes-problema que criavam; porm num estgio que antecede

    ao jogo teatral propriamente dito, porque no existe a necessidade da platia.

    Observei, ento, a necessidade do grupo em reviver o brincar. Existia participao e

    colaborao de todos e material para desenvolver o jogo. Os alunos delimitaram o

    espao onde desenvolveriam o jogo, distribuam funes e papis para desencadear

    a histria coletiva com muita inspirao, espontaneidade e criatividade.

    Existe o desejo de jogar, de entrar em contato com o outro e com o ambiente criado;

    porm no existem subgrupos que definam a platia, no existe o olhar do outro

    para compartilhar o problema. Todos participam e compartilham, juntos no brincar, a

    resoluo do problema.

    A brincadeira no contexto educacional foi bastante utilizada por Friedrich Froebel,

    criador do jardim da infncia. Ele defendia o uso de brinquedos e jogos

    organizadores em sala de aula como ferramentas e parceiros silenciosos que

    desafiam a criana a expandir sua criatividade, possibilitando novas descobertas

    sobre seu mundo.

    no ato de brincar que a criana se apropria da realidade em que est inserida,

    atribuindo-lhe novos significados. A gnese da brincadeira simblica est presente

    nas primeiras relaes que a me, ou quem a representa, estabelece com a criana

  • 65

    desde o nascimento. Portanto, a brincadeira aprendida por meio das relaes que

    se estabelece no meio social em que vive. (KISHIMOTO, 1998).

    Nas relaes com o outro ou com os objetos com os quais interage, ela vai

    incorporando outros modelos ao seu repertrio, observando e internalizando-os

    como sendo seus.

    representando os diferentes papis pela imitao, que a criana vai incorporando

    suas caractersticas prprias, modificando-as, ampliando-as ou mesmo

    transformando-as.

    Quando a criana brinca de esconder o rosto com as mos para ser descoberta pela

    me, ela se engaja na brincadeira, descobrindo as regras e a seqncia de aes

    que permeiam o brincar. Muitas vezes, alm de perceber as regras que esto sendo

    utilizadas na brincadeira, a criana alterna a seqncia de aes inserindo novos

    elementos na brincadeira. Ora ela esconde o rosto, ora ela procura o da sua me.

    Essas brincadeiras interativas contribuem para o desenvolvimento cognitivo e para a

    aquisio da linguagem. (KISHIMOTO, 2002).

    A relao entre o brincar, a aquisio de regras e o desenvolvimento da linguagem

    foi bastante evidenciada em vrias obras de Bruner que considera as brincadeiras

    de esconder, como relevantes para o desenvolvimento cognitivo, estimulando a

    aprendizagem da linguagem e a soluo de problemas (apud KISHIMOTO, 2002, p.

    143).

  • 66

    Segundo Kishimoto, o jogo visto como uma forma de violar os padres de

    comportamento sociais da espcie (2002, p. 140). Por meio da observao e da

    imitao, a criana experimenta situaes do dia-a-dia nos momentos ldicos, com

    grande liberdade, sem medo do erro ou da punio do adulto. No brincar toda ao

    pode ser experienciada, re-organizada e reconstruda por aquele que brinca. O

    importante o prazer e a motivao na realizao da atividade. No existe uma

    preocupao com o resultado final, o objetivo explorar a situao e ir alm,

    arriscar-se ao novo e ao desconhecido.

    Bruner entende que a criana aprende ao solucionar problemas (apud

    KISHIMOTO, 2002, p. 145) e o brincar uma atividade que favorece esse processo.

    Bruner caracteriza trs caractersticas que participam da aprendizagem: a aquisio

    de nova informao, sua transformao ou recreao e avaliao (apud

    KISHIMOTO, 2002, p. 144).

    A aquisio de nova informao varia conforme metodologia empregada: aprendizagem dirigida, com informaes explicaes do professor ou ao da criana, visando a descoberta por meio de brincadeiras. [...] A transformao o processo de internalizao que reorganiza a informao dentro da estrutura de idias disponveis e a avaliao representa sua compatibilidade e possibilidade de expresso. (KISHIMOTO, 2002, p. 144).

    Segundo a autora, em situaes de brincadeira a criana desenvolve a

    intencionalidade no sentido de re-criar, re-organizar e re-constituir a ao observada

    na sua vida diria para transform-la.

    O brincar ajudou os alunos a tomar conhecimento do real, a vivenci-lo,

    experimentando os diferentes papis que lhes eram atribudos pelo grupo: me,

  • 67

    professora, costureira, empregada, cachorro, ladro, polcia, mdico, enfermeiro...

    No brincar, os medos, os traumas, os desejos e as frustraes eram enfrentados

    criativamente pelo grupo por meio do jogo coletivo.

    Na morte do paciente, por exemplo, houve o enterro, a presena do motorista do

    carro fnebre, o padre e a soluo da morte: o esprito do paciente subiu ao cu e

    depois renasceu no grupo novamente. A angstia da morte foi vivenciada e re-

    elaborada no brincar.

    Na brincadeira a comunicao tambm direta, acontece no momento em que se

    joga. A espontaneidade e a criao acontecem no aqui e agora.

    A criana tem a oportunidade de vivenciar diferentes papis na brincadeira:

    compartilha suas experincias com o outro, revive a me, a professora, o pai, o

    mdico, o cachorro, a empregada ou qualquer outro personagem que deseja

    representar. Ela assume integralmente o seu papel re-organizando seus

    sentimentos, suas emoes, seus valores; sua histria.

    O jogo simblico, e as brincadeiras favorecem a auto-estima das crianas e a

    interao com seus pares, propiciando situaes que instigam a reflexo da sua

    realidade.

    Quando a criana experimenta um novo papel, ela se coloca na posio do outro,

    imitando-o para compreend-lo, neg-lo ou reinvent-lo na busca da construo da

    sua identidade.

  • 68

    A brincadeira permite essa sntese interna, esse re-viver, essa busca interna da sua

    identidade.

    Toda ao pressupe relao factual ou simblica, entendendo-se por simblica a

    relao com pessoas reais ou imaginrias, que tm sua presena representada.

    (ALMEIDA et al., 1988, p. 49)

    Na viso de Moreno, o homem possui como recursos internos a espontaneidade, a

    criatividade e a sensibilidade para agir na cena da vida social. O homem na