Arte e mudança

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ARTE E MUDANÇA [email protected] Morris Weitz afirma que ‘o aspecto expansivo e aventuroso da arte, suas mudanças constantes e novas criações, fazem com que seja logicamente impossível assegurar qualquer conjunto de propriedades definidoras’. Weitz chama de grandes teorias da arte, uma série de hipóteses que se contradizem e não parecem ser capazes de ser confirmadas por evidências. Ele sugere que provavelmente a falha nas chamadas ‘teorias estéticas clássicas’ seriam no tipo de questão que elas tentam responder. Ao invés de olhar para a natureza da arte (‘o que é arte?’), a preocupação deveria ser deslocada para o ‘uso ou emprego do conceito de arte’ (WEITZ: 1995, 187), uma abordagem lingüística, de acordo com as idéias de Wittgenstein, especialmente o conceito de ‘semelhança familiar’, que Weitz usa para organizar seu argumento de que a arte é um conceito aberto, impossível de ser definido, uma vez que tem um uso social que envolve mudanças, em oposição a um conceito fechado e estabelecido, facilmente definido. “Um conceito é aberto se suas condições de aplicação são corrigíveis e emendáveis, por exemplo, se uma situação ou caso podem ser imaginados ou assegurados que solicitariam algum tipo de decisão da nossa parte para estender o uso do conceito que abrigue esta ocasião, ou para fechar um conceito e inventar um conceito novo para lidar com o novo caso e sua propriedade.” (WEITZ, 1956: 188) O que Weitz idealiza quando aponta a arte como um conceito aberto é que é dinâmica, viva e transforma conforme seus usos. A chamada ‘decisão’ implica uma (ou muitas) escolhas pessoais de uma idéia abstrata, dificilmente descritível ou materializada, em oposição, por exemplo à idéia de um carro. Possui condições essenciais, necessárias ou suficientes, independente das transformações que um carro passe em seu tamanho, design, aparência, performance, etc. Independente de quão complexo o conceito do carro seja, é possível encapsulá-lo (apesar de com limitações) para realizar uma descrição limitada. Entretanto, tal idéia não explica o fato que, quando aplicamos este conceito, como ele sugere (o uso), há uma certa concordância generalizada em referir-se a certas coisas como arte e outras não. Isto quer dizer que, embora as fronteiras e limites sejam ‘obscuras’, A fonte (Fountain) Marcel Duchamp 1917 (original perdido), Readymade: urinol de porcelana, 60 cm, Philadelphia Museum of Art

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Como a abertura e a transformação são incorporadas no conceito de arte e ainda assim distinguimos arte e não-arte.

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ARTE E MUDANÇ[email protected]

Morris Weitz afirma que ‘o aspecto expansivo e aventuroso da arte, suas mudanças constantes e novas criações, fazem com que seja logicamente impossível assegurar qualquer conjunto de propriedades definidoras’. Weitz chama de grandes teorias da arte, uma série de hipóteses que se contradizem e não parecem ser capazes de ser confirmadas por evidências. Ele sugere que provavelmente a falha nas chamadas ‘teorias estéticas clássicas’ seriam no tipo de questão que elas tentam responder. Ao invés de olhar para a natureza da arte (‘o que é arte?’), a preocupação deveria ser deslocada para o ‘uso ou emprego do conceito de arte’ (WEITZ: 1995, 187), uma abordagem lingüística, de acordo com as idéias de Wittgenstein, especialmente o conceito de ‘semelhança familiar’, que Weitz usa para organizar seu argumento de que a arte é um conceito aberto, impossível de ser definido, uma vez que tem um uso social que envolve mudanças, em oposição a um conceito fechado e estabelecido, facilmente definido.

“Um conceito é aberto se suas condições de aplicação são corrigíveis e emendáveis, por exemplo,

se uma situação ou caso podem ser imaginados ou assegurados que solicitariam algum tipo de

decisão da nossa parte para estender o uso do conceito que abrigue esta ocasião, ou para fechar

um conceito e inventar um conceito novo para lidar com o novo caso e sua propriedade.” (WEITZ,

1956: 188)

O que Weitz idealiza quando aponta a arte como um conceito aberto é que é dinâmica, viva e transforma conforme seus usos. A chamada ‘decisão’ implica uma (ou muitas) escolhas pessoais de uma idéia abstrata, dificilmente descritível ou materializada, em oposição, por exemplo à idéia de um carro. Possui condições essenciais, necessárias ou suficientes, independente das transformações que um carro passe em seu tamanho, design, aparência, performance, etc. Independente de quão complexo o conceito do carro seja, é possível encapsulá-lo (apesar de com limitações) para realizar uma descrição limitada. Entretanto, tal idéia não explica o fato que, quando aplicamos este conceito, como ele sugere (o uso), há uma certa concordância generalizada em referir-se a certas coisas como arte e outras não. Isto quer dizer que, embora as fronteiras e limites sejam ‘obscuras’,

A fonte (Fountain) Marcel Duchamp1917 (original perdido), Readymade: urinol de porcelana, 60 cm, Philadelphia Museum of Art

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não são tão indiscerníveis a ponto de chamar uma pessoa ou uma fruta arte. Sua ‘abertura’ não é tão ampla e aleatória como poderia ser possível, se não para determinar exatamente os limite deste conceito, pelo menos para diferenciá-lo de outros conceitos.

Ademais, a expansão do conceito de arte não nega o que foi definido previamente como arte. Por exemplo, a famosa e controversa fonte de Duchamp, que transformou dramaticamente ou, pelo menos pediu uma revisão do conceito de arte, embora não tenha feito com que Teóricos da estética ou historiadores da arte questionassem se a Mona Lisa de Leonardo ou a Odisséia de Homero ainda poderiam ser consideradas arte. Tais objetos não perderiam seu status artístico como conseqüência de um conceito mais amplo de arte. Isso nos deixa com uma limitação mais específica, histórica, do conceito de arte que expande desde um centro ou conceito inicial para um mais amplo, que necessariamente engloba aqueles anteriores com os quais se relaciona.

A abertura do conceito não é completa, mas relativa e, embora as fronteiras estejam obscuras, elas não são inexistentes.

Mandelbaum explora adicionalmente que a idéia de semelhanças familiares e tem muito êxito em apontar que as similaridades em familiares não é totalmente acidental, são devido a laços genéticos que são extrinsecamente identificáveis como semelhanças. A mesma origem genética, expandida, dá origem a diversos indivíduos, em que características diversas se manifestam, devido a uma possibilidade ampla de combinações. A idéia de uma conexão genética e origem também é uma idéia histórica de mudança e evolução através do tempo.

“’Arte’, em si, é um conceito aberto. Novas condições (casos) surgem constantemente e irão surgir indubitavelmente; novas formas de arte, novos movimentos irão surgir que reivindicarão decisões da parte daqueles interessados, normalmente profissionais ou críticos, se o conceito deve ser estendido ou não.” (189) Nesta passagem, Weitz deixa subentendido a historicidade da abertura do conceito de arte, posteriormente explorada por Levinson.

Esta é a base no argumento de Levinson de historicidade: “alguma conexão com uma prática anterior de arte deve ser preservada” (DAVIES, 1991: 18) Embora algumas relações óbvias podem estar obscurecidas na expansão do conceito, fazendo com que alguns aspectos pareçam mais evidentes que outros, á um progresso do conceito baseado num conceito anterior.

Mona Lisa (La Gioconda)Leonardo da Vinci

c. 1503-14, pintura a óleo, 77 x 53 cm, Musée du Louvre, Paris

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“ (I’t) X é uma obra de arte em t = df X é um objeto sobre o qual é verdade que alguém ou

algumas pessoas, possuindo propriedade apropriada sobre X, intencionalmente pretente (ou

pretendia) que X seja visto-como-obra-de-arte, ou seja, considerado de certa forma (ou formas)

em que os objetos com as extensão de ‘obra de arte’ antes de t são ou foram corretamente (ou

padronizadamente) considerados.” (LEVINSON, 1984: 232)

Com esta afirmação, Levinson diz que as obras de arte são definidas em um certo intervalo temporal. A arte é “necessariamente uma questão de um olhar retroativo” (p.232). Como exemplo de obra de arte que foi reconhecida apenas como tal algum tempo depois de sua produção, poderíamos nos referir ao caso amplamente conhecido de Van Gogh, que não vendeu uma única tela enquanto vivo, com exceção de seu irmão Theo. Levinson em verdade diferencia o tempo de criação física do objeto (tp), o tempo da criação proposital do objeto (ti) quando o objeto é suscetível a transformações de acordo com certa intenção em relação a este, e o tempo de tornar-se arte (ta). Idealmente, a concepção de uma obra de arte deveria ser tp=ti=ta, mas não é estritamente necessário que seja deste modo e ainda nos ajuda a compreender como o tempo é uma variável poderosa ao conceito de arte.

Quanto a isso, Levinson acrescenta a variável de arte revolucionária e a relação estabelecida entre obras de arte presentes e passadas não está apenas relacionada ao mesmo de tipo de visão de um modo linear, mas relações entre visões anteriores e atuais, similar à matriz de Danto da visão artística em que a introdução de uma variável faz com que a ausência desta variável seja igualmente importante, o que significa que a relação entre as obras de arte não é sempre direta e lógica mas também poderia ser contraditória e irônica como as Caixa de sabão Brillo de Andy Warhol.

“Caixa de sabão Brillo entram

no mundo da arte com a mesma

tônica da incongruência que

os personagens da Commedia

dell’arte trazem a Ariadne auf

Naxos. Qualquer que seja o atributo

artisticamente relevante em virtude

do qual conquistam seu espaço, o

resto do Mundo da Arte torna-se

muito mais rico ao ter o predicado

oposto disponível e apreciável pelos

seus membros.” (DANTO: 1964, 212)

Embora possa ser identificada a transformação

Caixa de sabão brillo (Brillo Box) Andy Warhol

1986, 38,73 x 47 x 32 cm, Serigrafia em papelão, Assinado duas

vezes. Coleção particular.

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característica inerente à idéia de arte, sendo capaz de mudar e permitindo a entrada de novos objetos no novo conceito, há uma ‘idéia inerente’ de totalidade no conceito da arte, algo que faz deste conceito mais do que apenas uma coleção de partes independentes, relacionadas ao acaso, mas de algum moda a idéia de um todo que possui um princípio de auto-regulação que permitiria que certos objetos seja parte do conceito, ou seja, muitos serão rejeitados e novas visões não serão poderosas o suficiente para mudar a estrutura anterior ou básica ou essência do conceito.

Quanto mais o conceito evolui, mais difícil é sua estrutura básica essencial devido à complexidade sempre acrescentada. O ponto inicial torna-se mais indiscernível quanto mais as fronteiras se ampliam.

É por isso que a tentativa de definir arte como um conceito fechado é visto por Weitz como apropriado apenas para coisas passadas, que podem ser isoladas em um período temporal, tomada a distância necessária, como por exemplo, a tragédia grega ou o Renascimento. Entretanto, se visto como um processo histórico, as fronteiras parecem obscuras, indiscerníveis.

Poderíamos, seguindo o exemplo de Wittgenstein no parágrafo 76, comparar a tentativa de definir arte como tirar a fotografia de uma cena em movimento: se você quiser registrar o movimento da cena, o que significa uma longa exposição, não será capaz de registrar formas precisas, mas uma trajetória indistinta, imprecisa, o que dará a sensação do movimento (conceito aberto). Por outro lado, para fazer uma definição precisa da cena, terá que abrir mão da variável do tempo de, digamos, um objeto numa relação espaço-tempo, como na vida real (conceito fechado).

Em relação a este ponto concluímos que Háv algo que chamamos arte, em um sentido prático e aplicável que permite as pessoas escolherem obras de arte no mundo e diversos (provavelmente mais) objetos seriam escolhidos em diversos tempos o que significa que a arte pode ser tanto um conceito aberto, como visto historicamente, como um conceito fechado, em determinado intervalo de tempo. Uma vez que a evolução de um conceito fechado em determinado espaço e tempo evolui em um conceito aberto através dos usos múltiplos da palavra arte, por isso torna-se difícil definir qual conceito fechado prevalece sobre outro. Embora fechados, são como imagens de uma câmera simultaneamente dinâmica e precisa, ou seja, uma boa abordagem teórica e filosófica necessária para retratá-la propriamente.

“Pelo contrário, desejo reavaliar seu papel [da teoria estética] e contribuição primeiramente para mostrar que é de grande importância para nossa compreensão das artes.” [WEITZ, 1953:184] “Cada [teoria estética] pretende ser uma declaração completa sobre as características definidoras de todas as obras de arte e ainda, cada uma delas exclui algo que outras consideram central. (...) Tornam-se relatórios factuais sobre a arte.” (186) Isto é porque a teoria estética, como os exemplos dados, é influenciada pela produção artística (e também por estilos e movimentos) do período em que a teoria é escrita, sendo capazes de fornecer conceitos fechados temporariamente fixos que fazem parte de uma compreensão maior de arte através da história, como um conceito aberto. A idéia de Weitz é muito influenciada pela incerteza da definição de arte em sua época depois de Duchamp. Algo como se a própria oscilação da teoria estética, assim como os conceitos de arte, são subordinados às visões temporais.

Como sugerido na idéia de jogos, não são as características externas, percebidas nos jogos que

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determinam nosso conceito de jogo, mas algo que não é percebido, uma qualidade ou aspecto intrínseco (sem ‘propriedades comuns’(188), ou seja, bens materiais), relacionados à sua genealogia, historicidade, essência que torna possível nosso reconhecimento deles como jogos (ou das artes, de fato).

“... realmente, alguém se pergunta se elas [teorias estéticas] são talvez definições honorificas de

‘arte’, ou seja, redefinições propostas em termos de condições eleitas para aplicar o conceito de

arte, e não relatos verdadeiros ou falsos nas propriedades essenciais da arte.” (186)

Weitz parece dar uma conotação negativa para o processo decisório envolvido no mesmo uso do conceito de arte como algo degradante, embora seja o mesmo processo de escolhas e decisões que faz com que o conceito esteja vivo e não perdido, cristalizado numa experiência passada. Ainda que tais decisões somente possam ser aplicadas na fundamentação de algo que é temporariamente estável, um conceito fechado temporalmente. A ‘análise factual relativa a propriedades necessárias e suficientes’ pode referir-se apenas à determinação de conceitos fechados.

Embora seja necessário reconhecer o impacto das idéias de Weitz na teoria estética reorientando a busca de uma análise descritiva a uma abordagem mais profunda e investigativa, as características relacionais que afirmam que arte é um conceito aberto resultam no mesmo que afirmar que é uma atividade humana dinâmica. Todavia, não é suficiente para nos ajudar a compreender o que esta atividade humana chamada de arte é ou, como Weitz prefere, significa.

É apenas através de pedaços de conceitos fechados, ou seja, uma abordagem parcial, que nós somos capazes de conceber a totalidade. Não é a complexidade de um conceito que nos impede de compreendê-lo, mas a tentativa de abarcá-lo de uma só vez. Certas perdas e limitações no processo são necessárias para decifrar o mundo. No caso da teoria estética, o aspecto do tempo deve ser colocado relativamente de lado em conceitos fechados que nos permitam analisar outras variáveis.

A semelhança com movimentos estáticos (frames) em seqüência nos dará uma ilusão possivelmente mais próxima da realidade, que podemos reconhecer e identificar com a vida, como a sétima arte exemplifica: o cinema.

Deste modo, o ‘conceito aberto’ de Weitz estaria se referindo à dimensão histórica da nossa compreensão de arte. E a criatividade processual da arte estaria baseada na mudança, sendo a ‘mudança’ em si incompatível com qualquer espécie de conceito fechado.

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Bibliografia:

WEITZ, Morris. ‘The role of theory in aesthetics’. In: The Philosophy of Art, Readings Ancient and Modern. McGraw-Hill, 1995. pp.183-192

MANDELBAUM, Maurice. ‘Family resemblances and Generalizations Concerning the Arts’. In: The Philosophy of Art, Readings Ancient and Modern. McGraw-Hill, 1995. pp.192-201

BELL, Clive. ‘ the aesthetic hypothesis’. In: The Philosophy of Art, Readings Ancient and Modern. McGraw-Hill, 1995. pp- 99-110

DANTO, Arthur. ‘The Artworld’. In: The Philosophy of Art, Readings Ancient and Modern. McGraw-Hill, 1995. pp.201-213

DICKIE, ‘The new institutional Theory of Art’. In: The Philosophy of Art, Readings Ancient and Modern. McGraw-Hill, 1995. pp. 213-223

LEVINSON, Jerrold. ‘Defining Art Historically’. In: The Philosophy of Art, Readings Ancient and Modern. McGraw-Hill, 1995. pp. 223-239

DAVIES, Stephen. ‘Weitz’s Anti-essentialism’. In: Definitions of Art. Cornell University Press, 1991.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations. Par. 65-77 Blackwell, 1963.

http://www.colorado.edu/English/ENGL2012Klages/saussure.html