ARRIGUCCI, David. O Cacto e as Ruínas

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    O cacto e as runas

    Coleo Esprito Crtico

    O CACTOE AS RUNAS

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    Davi Arrigucci Jr.

    Coleo Esprito Crtico

    Conselho editorial:

    Alfredo Bosi

    Antonio Candido

    Augusto MassiDavi Arrigucci Jr.

    Flora Sssekind

    Gilda de Mello e Souza

    Roberto Schwarz

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    O cacto e as runas

    Davi Arrigucci Jr.

    O CACTOE AS RUNAS

    A poesia entre outras artes

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    Davi Arrigucci Jr.

    Livraria Duas Cidades Ltda.

    Rua Bento Freitas, 158 Centro CEP 01220-000

    So Paulo - SP Brasil Tel. (11) 220-5134 Fax (11) 220-5813

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    Copyright Duas Cidades/Editora 34, 2000

    O cacto e as runas Davi Arrigucci Jr., 1997

    A fotocpia de qualquer folha deste livro ilegal e configura uma

    apropriao indevida dos direitos intelectuais e patrimoniais do autor.

    Capa, projeto grfico e editorao eletrnica:

    Bracher & Malta Produo Grfica

    Reviso:

    Mara VallesIracema Alves Lazari

    Cide Piquet

    2 Edio - 2000

    Catalogao na Fonte do Departamento Nacional do Livro

    (Fundao Biblioteca Nacional, RJ, Brasil)

    Arrigucci Jr., Davi, 1943-

    A624c O cacto e as runas: a poesia entre outrasartes / Davi Arrigucci Jr. So Paulo: Duas Cidades;

    Ed. 34, 2000.160 p. (Coleo Esprito Crtico)

    ISBN 85-7326-171-4

    1. Poesia brasileira - Histria e crtica.

    I. Ttulo. II. Srie.

    CDD - 869.9109

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    ndice

    A belezahumilde e spera

    I. ................................................................................. 11II.................................................................................. 21

    III. ................................................................................. 87

    Arquitetura damemria

    I. ................................................................................. 95II. ................................................................................. 115

    III. ................................................................................. 123

    ndice onomstico ...................................................... 151Sobre o autor............................................................. 153

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    Davi Arrigucci Jr.

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    memria de

    Joo Luiz Machado Lafet

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    A beleza humilde e spera

    Vive per violenza e more per libert...

    Gran potenzia le d desiderio di morte.

    Scaccia con furia ci che soppone a su ruina.

    Leonardo da Vinci

    Ce monstre de la beaut nest pas ternel.

    Guillaume Apollinaire

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    I.

    1. A fora calma

    Libertinagem (1930) e Estrela da manh(1936) contm ospoemas em que se definiu o estilo maduro de Manuel Bandeira.Do a conhecer, de corpo inteiro, um grande poeta na fora ena liberdade de sua arte, aps longos anos de aprendizagem, ex-tensa prtica e duros padecimentos.

    Isso significa que ele era agora capaz no s de escrever bonspoemas, ou um ou outro poema excepcional, como no incio dacarreira. Mas, que era dono de um modo inconfundvel de dizer

    as coisas que pretendia, com domnio completo do ofcio, comemoo na justa medida do necessrio ao assunto, j liberto dogosto cabotino da tristeza e assim desperto para o mundo emtorno. E que sabia onde procurar ou esperar o que podia acharou no.

    Era, dentro do possvel, senhor de si, de seus meios e limi-tes: at onde podia ir com a linguagem. No que almejasse a maes-tria ideal de um artista clssico. Passara pela tradio e suas re-gras, sempre curioso, porm, pela diferena e a novidade. Esta-va pronto para ser livre. Nisso radicaria a modernidade mais pro-funda dele, descoberta antes do Modernismo, que antecipou,

    mantendo-a sempre depois, mais afinada, limpa de cacoetes, in-

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    corporada como uma conquista ao modo de ser e, por isso mes-mo, com a maior naturalidade.

    Sabia, por outro lado, que no lhe bastava a doma das pa-lavras: rebeldes e irrequietas, diziam mais ou menos que o preci-so termo, exigindo trabalho para ajust-las e exprimir o mximocom o mnimo. No convinha, entretanto, atentar contra a li-berdade delas, seu poder elstico de significar ambiguamente,sendo necessrio descobrir-lhes antes o contexto exato para tan-to. Tinha o senso construtivo da composio acabada, que por

    vezes lhe custava enorme esforo em vo e o obrigava a convivercom o risco do que no se pode dizer, mas que sempre precisobuscar: inacessveis praias, to bandeirianas.

    E ainda assim, tudo isso no bastava; a poesia era dona vol-vel, de incertos caprichos, e podia ou no manifestar-se, mesmodiante do maior empenho e da mais devotada corte. Acreditavanuma sorte de inspirao momentnea, de instantes propcios detranse ou alumbramento. Confiava na espera do inesperado, aten-to ao encontro inslito, sempre atrado pelo magnetismo passio-nal do momento: volpia ardente, minada pelo senso do transi-trio e do perecvel, pela busca de uma beleza que parecia trazer

    na face o sinal da destruio. Lidara com a doena e a ameaa damorte desde cedo. Uma profunda humildade caracterizava suaatitude artstica.

    Dela, so frutos esses livros. Representam pontos luminososde expresso potica de uma concentrada experincia pessoal queviera se formando lentamente, num trabalho mido e constantecom as palavras, em largo contacto com o mundo, com a tradioliterria e as outras artes. Alm disso, marcam o momento hist-rico de sua maior adeso ao Modernismo, que anunciara em livrosanteriores como um verdadeiro So Joo Batista, no dizer deMrio de Andrade. O Modernismo cruzou o seu caminho; de

    algum modo, sempre estivera preparado para receb-lo, indepen-

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    dentemente de qualquer inteno programtica, levado por in-quietaes que, desde o princpio, eram no fundo j modernas.

    Trata-se, portanto, de livros vinculados trajetria mais n-tima de Bandeira e, a uma s vez, relacionados com um momentoespecialmente fecundo, intenso e complexo da histria culturalbrasileira na dcada de 20, quando se renova a conscincia arts-tica nacional e vo se firmando em nosso meio as tendncias daarte moderna.

    O Modernismo representava o movimento da inteligncia

    brasileira (de certos setores dela) para reconhecer-se a si mesma,seu passado histrico e a verdadeira face do Pas no presente, atravsda recusa dos entraves tradicionais que a impediam de atualizar-se e inserir-se no mundo contemporneo. Correspondia a diver-sas transformaes histricas da sociedade e a determinadas aspi-raes de classe, de certas camadas mais avanadas da burguesia,nas duas primeiras dcadas do sculo XX, num pas que comea-va a industrializar-se, a urbanizar-se e a viver os problemas mate-riais e os conflitos ideolgicos do mundo capitalista, agravados pelosdesequilbrios internos do desenvolvimento histrico e das desi-gualdades sociais. No plano da cultura, as contradies entre a

    adeso aos problemas da realidade brasileira, convertida muitasvezes em acendrado nacionalismo, e o cosmopolitismo, prpriode uma abertura para o mundo internacional das vanguardas ar-tsticas, apenas uma face das muitas tenses conflituosas queatravessam o contexto brasileiro no momento em que surgem osdois livros propriamente modernistas de Bandeira.

    Por isso, esses livros do princpio da dcada de 30 podemser vistos, em certa medida, como a resultante literria, plasma-da em forma potica particular e com marcado cunho individual,de foras contextuais, no apenas literrias, que vieram se com-binar s diretrizes internas da obra bandeiriana. Havia as tenses

    prprias desse campo mais geral de foras interiores e exteriores

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    vida do Pas que, na dcada anterior, desembocavam nos em-bates entre tradio e renovao, no terreno da cultura, aguan-do a conscincia de uma realidade em que se misturavam, emgraus variados e em mesclas peculiares, o arcaico e o moderno, oatraso e o desenvolvimento. Eram as foras que catalisavam ascontradies histricas do momento, envolvendo decerto tam-bm as tendncias nacionalistas e vanguardistas da poca. A elasvinham se coadunar as inclinaes prprias do poeta, em cerra-do amlgama, depois de um longo percurso pessoal que se for-

    mara antes, no quadro histrico do fim de sculo, sob circuns-tncias diferentes.

    O modo como se articulam texto e contexto o modo dese compreender criticamente a prpria qualidade profunda e apeculiaridade da poesia de Bandeira, no momento decisivo de de-finio de seu estilo dentro dos novos rumos da modernidade. que ele soube inventar, com a modesta grandeza de seu esti-lo humilde,1 uma forma potica admiravelmente simples, capazde encerrar o mais complexo, fundindo em smbolos de alcancegeral os traos fiis de uma fisionomia potica nica e de um mo-mento especfico. Assim deu vida perene poesia concebida sob

    o signo do perecvel como era aquela que despontava, tocada poruma beleza que trazia a marca da contingncia moderna.

    A poderosa conjuno de foras histricas daquele momentoatuava tanto sobre o iderio esttico, quanto sobre a nova mat-ria e os novos meios trabalhados pelos modernistas no processo

    1 Associo aqui a idia de uma modesta grandeza, formulada por Mrio

    de Andrade, noo de estilo humilde, que desenvolvi sobre o poeta em Humilda-

    de, paixo e morte: a poesia de Manuel Bandeira, So Paulo, Companhia das Le-tras, 1990. Cf. Mrio de Andrade, Da modesta grandeza, in Tel Porto AnconaLopez (org.),Manuel Bandeira: verso e reverso, So Paulo, T. A. Queiroz, 1987,

    pp. 122-3.

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    prtico de estruturao das obras. Nas mos sbias de um arte-so experimentado em todas as sutilezas da linguagem poticacomo j era ento Bandeira, os novos temas e tcnicas, ao toma-rem uma configurao formal, tendiam a incorporar sob a for-ma de tenses estruturalmente organizadas esses fatores contex-tuais da experincia pessoal e histrica.

    O poeta dava forma concreta verdade ntima que porven-tura podia achar nas circunstncias: a sua era uma poesia de cir-cunstncias e desabafos, como sempre costumava dizer.2 O mo-

    mento estava atravessado por foras antagnicas, que ele sabiaconverter, no entanto, na fora calma da realizao artstica dopoema.3 Na simplicidade com que ali d forma ao complexo re-side o alto mistrio de sua arte.

    2. Inextinta estrela

    Um dos traos fundamentais da arte de Bandeira, tal comoa se revela, est justamente na sua capacidade de operar com con-textos diversos. Desloca e justape elementos de procedncia

    variada, reaproveitando dados da tradio ou introduzindo no-vidades inesperadas, articulando ou rearticulando insolitamente

    2 Cf., por exemplo, Itinerrio de Pasrgada, in Manuel Bandeira, Poesia eprosa, vol. II, Rio de Janeiro, Aguilar, 1958, p. 107.

    3 Numa das cartas de junho de 1925, diz Mrio ao poeta: Releio a Evoca-

    o. como tudo que voc est fazendo nestes ltimos tempos e que conheo.

    Uma delcia silenciosa. O que eu mais quero da sua poesia, tanto certo que a gente

    mais quer o que no tem, a extraordinria impresso de fora calma que d. Cf.

    Mrio de Andrade, Cartas a Manuel Bandeira, Rio de Janeiro, Simes, 1958, p.

    111.

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    novos conjuntos, formando estruturas novas por assemblageoumontagem.

    Essa inclinao, j em si moderna, para integrar elementosheterogneos em estruturas descontnuas, desentranhando-osdasmais diferentes esferas da realidade e operando mesclas com n-veis distintos de linguagem, aparece muito cedo em sua obra, ain-da quando a tradio finissecular, misturando Parnasianismo eSimbolismo, pesava forte sobre sua formao de poeta ps-sim-bolista. Nasceu provavelmente, como um fruto da lenta apren-

    dizagem, da sua prpria experincia no trato com a linguagempotica, com os diversos gneros e a tradio literria, mediantea observao e a imitao de outros poetas, do exame de varian-tes e correes, do estudo dos pequeninos nadas que podiammelhorar ou estropiar um verso, da tarefa de tradutor de poesia,a que se dedicou muito cedo e em que foi sempre um dos maio-res do Brasil. Mas sofreu decerto um impulso decisivo por in-fluxo das vrias tendncias de vanguarda que estavam, por assimdizer, no ar nas primeiras dcadas do sculo.

    A sensibilidade para religar experincias diversas foi, comonotou T. S. Eliot, um dos traos marcantes de definio da poe-

    sia moderna. Consiste talvez ainda numa dimenso da capaci-dade mimtica do poeta, no no sentido da representao fala-ciosa, por meio de rplicas verbais, de objetos externos, mas node formar, pelo movimento da imaginao, harmonias paralelas natureza. Nesta direo, a imaginao potica aparece comouma faculdade plstica e estruturadora, capaz de dar unidade aodiverso, formando novos conjuntos articulados, operando espa-cialmenteuma nova harmonia das imagens. No plano do ritmo,a tendncia moderna parece caminhar no mesmo sentido, pelaincorporao do heterogneo estrutura do verso, rompendo ospadres tradicionais da mtrica, jogando com o rudo de fora,

    como se v pela absoro dos elementos prosaicos no verso livre.

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    Os surpreendentes significados que brotam da reestrutura-o das imagens no espao do poema ou dos ritmos inusitadosdo verso livre, imitando a andadura menos marcada da prosa, soo resultado dessa sensibilidade liberta para um novo potico. Umpotico no mais restrito aos padres da versificao, ao purismode linguagem dos acadmicos ou ao repertrio dos grandes te-mas da tradio, mas susceptvel de brotar de onde menos seespera, fora dos limites antes previamente determinados para suamanifestao.

    No quadro de irradiao da arte moderna no Brasil, e emespecial no momento modernista dos livros em questo, Bandeirarevela desde logo as antenas sutis que possua e fora afinando paracaptar uma poesia difusa no mundo das pequenas coisas do dia-a-dia, recolhendo elementos de contextos diversos, que ele apren-deu a considerar, aproximando-se do que at ento no era tidopor potico. Poesia que se podia dar inesperadamente, num sbitoalumbramento, como chamou a esse instante de inspirao ou ilu-minao: ecloso de uma emoo elevada, que podia manifestar-se em raros momentos em qualquer parte, exigindo sempre dopoeta uma atitude de apaixonada escuta. Um novo potico de

    fato para uma sensibilidade liberta, imantada para detectar a pre-sena dessa poesia metida na ganga bruta da realidade, no chodo cotidiano mais prosaico, de onde podia ser desentranhada.

    Essa operao de desentranhar o poema da realidade mul-tifacetada do mundo, que ele transformou numa espcie de prin-cpio de sua potica madura, envolvia j por si uma espcie dears combinatoria, pelo casamento de diversas concepes poti-cas. Por um lado, supunha um fazer concreto (o ato material dedesentranhar), mas tambm uma forma de expresso (o desen-tranhar como tirar das entranhas ou da interioridade) e, porfim, um meio de conhecimento (o desentranhar como descobri-

    mento ou revelao do oculto). Na prtica potica essa operao

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    se traduzia quase sempre num modo de formar que dependia dareorganizao do espao potico, com nfase na articulao dasimagens, transpostas de contextos diferentes para um novo es-pao, donde o reforo do aspecto visual ou pictrico do poema,to marcante em sua obra, muito voltada para essa vertente ex-perimental da escrita moderna.

    Por vezes, Bandeira se aproximaria assim da tcnica de cons-truo cubista, de recortes simplificadores e geometrizantes doreal, fazendo confluir percepes contrastantes e simultneas de

    um mesmo objeto; ou da montagem surrealista, recombinandoem misturas inslitas esferas diversas da realidade, minada peloonrico, pelo absurdo ou pelo nonsense. Na verdade, era herdei-ro ainda da atitude libertria dos romnticos, radicalizada pelasvanguardas que, no caminho de Baudelaire, se lanaram pes-quisa lrica atravs das mesclas mais variadas, do sublime ao ab-jeto, do mais prosaico ao elevado, dilatando o espao da poesiaat as margens da impureza e do reconhecimento de novas e ines-peradas dimenses da sensibilidade potica.

    Resulta de tudo isso um notvel aumento de complexida-de nos poemas ali reunidos. So ao mesmo tempo produtos de

    uma novidade momentnea e de uma demorada sedimentao,o que os transforma em ndices de um momento decisivo, massustentados por um teor de verdade pessoal e histrica que s per-manece em realizaes plenas da arte. E por isso que a novida-de de Bandeira permanece sempre intacta, alcanando a mais altaqualidade pelos meios mais simples.

    A importncia histrica central desses dois livros se funderealmente sua qualidade esttica, pois enfeixam alguns dos me-lhores poemas bandeirianos, de modo que o que poderia pare-cer apenas trao de adeso a fatos e novidades de um momento,se converte em substncia ntima de sua forma orgnica, man-

    tendo o vio perene, prprio da verdadeira poesia.

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    So, por isso mesmo, poemas exemplares, sob diversos as-pectos, da contribuio inovadora e da conscincia artstica deBandeira com relao nova lrica. Guardam, em estilo humil-de, na mescla moderna de elementos altos e baixos, depurada naforma da simplicidade natural, a surpresa do novo. Feitos compalavras de todo dia, tirados do cotidiano mais corriqueiro, domundo mais prosaico, conseguem, no entanto, conter, conden-sadas, a mxima complexidade e a emoo mais alta. Por outrolado, ao apresentarem o poeta de corpo inteiro e em pleno do-

    mnio do ofcio, permitem ver com clareza o modo de formarque caracterizava sua nova potica, fundamental para os rumosque tomaria ento a poesia moderna no Brasil. Ensaiar sobre essasobras implica, pois, um incontornvel desafio, j que exige, paraa sua exata compreenso crtica, a necessria integrao do pon-to de vista esttico ao histrico. o que se vai tentar, mediantea leitura cerrada de um nico poema. Por meio dela, talvez sejapossvel reconhecer os traos principais que definiram a fisiono-mia peculiar e a qualidade daquela poesia. A poesia que repontasempre nova inextinta estrela , nesses livros admirveis dopassado modernista.

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    O CACTO

    Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estaturia:Laocoonte constrangido pelas serpentes,

    Ugolino e os filhos esfaimados.Evocava tambm o seco Nordeste, carnaubais, caatingas...

    Era enorme, mesmo para esta terra de feracidades excepcionais.

    Um dia um tufo furibundo abateu-o pela raiz.O cacto tombou atravessado na rua,

    Quebrou os beirais do casario fronteiro,

    Impediu o trnsito de bondes, automveis, carroas,

    Arrebentou os cabos eltricos e durante vinte e quatro horas

    [privou a cidade de iluminao e energia:

    Era belo, spero, intratvel.

    Petrpolis, 1925

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    II.

    1. O monstro prosaico e sublime

    Datado de 1925, O cacto deixa ver, como vrios outrospoemas de Libertinagem, as mudanas profundas do trabalho ino-vador de Bandeira no decorrer da dcada de 20.

    Nessa poca, recolhido em seu quarto pobre e solitrio domorro do Curvelo no Rio4, mas aberto para o mundo e os no-vos ventos da aventura modernista, busca objetivar na forma con-creta do poema uma experincia a duras penas acumulada. im-portante notar como asituao no espao da vida cotidiana con-

    diciona-lhe o modo de olhar o mundo e tem conseqncias naelaborao dos poemas.

    Por esse tempo, j publicara trs livros de versos: A cinzadas horas, em 1917; Carnaval, em 1919; O ritmo dissoluto, em1924. Mas ali, naquela espcie de alto refgio de sua solido,onde permanecer de 1920 at 33, que escreve, alm do ltimo

    4 Na verdade o morro era o de Santa Teresa, mas assim se referia Bandeira

    sua moradia naquela poca. Cf., por exemplo, o Itinerrio de Pasrgada, in Ma-

    nuel Bandeira, Poesia e prosa, vol. II, edio citada, pp. 51-2.

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    dos livros mencionados, os poemas de Libertinagem, parte dosde Estrela da manh, e mais um livro de prosa, Crnicas da Pro-vncia do Brasil(1937). Perodo, portanto, de grande fertilidadee decerto decisivo para o conjunto de sua produo literria.

    fundamental observar, ao longo dessa poca, o movimentocontraditrio que o animava e ter deixado marcas fundas no seuestilo, incorporando-se como um componente interno da obra,ao marcar-lhe a atitude diante da realidade e da arte.

    que aparentemente recolhido ao isolamento do quarto,

    resguardo da sade precria e da memria, Bandeira na verdadese abre para o mundo, para a vida bomia da Lapa, ao p do morrode Santa Teresa, para a pobreza em torno, para os amigos, paraas novas leituras, para a vida, enfim, em seu mais heterogneo ehumilde cotidiano. nessa experincia da rua que redescobre oscaminhos da infncia e os rumos do desejo que o levam maisintensa emoo potica, ao reino feito de realidade e imagina-o, de memria e sonho, que Pasrgada e a poesia.

    Esse movimento, a uma s vez para dentro e para fora evaso do e para o mundo , permite uma resoluta objetivaoda experincia mais funda na forma do poema, desentranhado

    ao mesmo tempo da alma e da circunstncia, fundindo mem-ria e momento numa linguagem cuja concentrao depurada noexclui a porosidade s palavras comuns do dia-a-dia, extradas dafala coloquial.

    ainda esse movimento, noutro plano, que lhe permite mo-bilizar, superando-os, os dados da tradio literria, bebida nosclssicos e na mescla parnasiano-simbolista de sua formao emque fora um jovem poeta penumbrista, e lhe permite ainda, aomesmo tempo, abrir-se s novidades poticas do momento, dedentro e de fora do contexto brasileiro. Novidades vindas tam-bm decerto com a variadssima leitura de poetas estrangeiros

    portugueses, franceses, belgas, italianos, hispano-americanos, ale-

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    mes, ingleses e americanos , formadores da tradio do novo,que era a modernidade potica.

    O poema saiu pela primeira vez naquele mesmo ano de suacomposio, no terceiro e ltimo nmero de Esttica, a revistaimaginada por Prudente de Moraes, neto, e Srgio Buarque deHolanda. Estes jovens escritores, ento ainda sem obra, movidospelo esprito renovador do Modernismo, procuravam dar-lhecontinuidade atravs desse rgo de difuso, preenchendo a la-cuna aberta com o desaparecimento da revistaKlaxon, que de So

    Paulo fizera ressoar as ltimas palavras de ordem do movimen-to. Bandeira, que h pouco travara contacto com os modernis-tas do Rio e de So Paulo por intermdio de Ribeiro Couto, logose enturmou com os rapazes da revista e ali publicou vrios ou-tros poemas, depois tambm recolhidos em Libertinagem.

    Mas o O cacto deve ter causado grande impacto, desde aprimeira leitura na revista. Mrio de Andrade, a cuja argcia cr-tica nada passava despercebido, notou, em cima da hora, j em30, o carter emblemtico do poema e sua emocionante simpli-cidade de expresso.5 Destacou o verso final como caractersticodo ritmo anguloso, incisivo e seco do poeta, apontando para uma

    contradio bsica entre a essnciaintratveldo indivduo Ban-deira e o lrico que nele havia, como se naquele texto tipogrfi-co, feito para ser lido, as reentrncias e salincias da forma livreimitassem de algum modo as angulosidades de uma personali-dade spera. Sua observao, embora breve, de longo alcance.

    Num primeiro plano, de cunho psicolgico, captando so-bretudo a tendncia da personalidade potica, de que Libertina-gem era a cristalizao, para um escarpado individualismo. Re-

    5 Ver: Mrio de Andrade, A poesia em 1930. Em seus:Aspectos da litera-

    tura brasileira, So Paulo, Martins, s.d., pp. 27-45 (sobretudo pp. 27-32).

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    conhece, ao mesmo tempo, porm, um desejo ntimo de gene-ralizao, levando o sujeito a sair de si mesmo, mediante certosprocedimentos expressivos. Na verdade, um movimento de des-personalizao que se formalizava no tratamento de determina-dos temas (como o Vou-me embora pra Pasrgada) e naquelartmica to pessoal e, a uma s vez, de tanta fora generalizadora,fazendo Bandeira tornar-se maior ao escapar de si mesmo. As-sim, pode-se dizer que Libertinagem era para Mrio um livro ondeo poeta tomava liberdades com a idia do eu sou, libertao

    bsica do lirismo, que na viso de Andr Breton definia a poesiamoderna, tornando-se um verdadeiro lema bandeiriano, comose l explicitamente no verso clebre de Potica:

    No quero mais saber do lirismo que no libertao.

    Relido hoje, o poema revela seu carter exemplar e, desdelogo tambm, a qualidade da nova lrica, de que era um dos gran-des momentos. Mostra-se de fato muito representativo de um m-todo e de um modo de conceber e praticar a poesia. Ou seja, con-tm implicitamente uma potica. Embora no se mostre osten-sivamente primeira leitura, a poesia acaba inscrita no assunto

    em pauta, permitindo ver a atitude de Bandeira diante de sua artee da natureza.

    Mesmo ao mais rpido exame, possvel notar, a comeardo ttulo, que o poeta se prope a dar forma a um determinadocontedo natural, vinculando-o, porm, ao universo do desesperoe da dor, ao drama humano em sua face mais alta e pungente.Parece buscar a representao potica de um simples elementoda realidade fsica, ao tomar por motivo dominante um ente co-mo o cacto, em geral ligado ao mundo de dificuldades materiaisdas regies ridas e pobres, decerto bem conhecidas e corriquei-ras para algum proveniente do Nordeste brasileiro. No entan-

    to, parece tambm dar vazo s associaes comuns que se fazem

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    com relao a essa planta, mas noutro plano, o da realidade espi-ritual, envolvendo grandes problemas humanos, elevados e srios,cujas ligaes com o mundo fsico so igualmente complexas.

    Suscita, portanto, o carter altamente problemtico de umassunto pobre ou baixo e questes no menos problemticas quan-to forma do tratamento, como se estivesse s voltas com umapreocupao prpria da tradio artstica do realismo moderno,a que tiveram de se adaptar as formas de tratamento clssico, nomomento em que se mesclaram os nveis da matria e da lingua-

    gem. Na tradio da lrica moderna, era esse, como se sabe, o ca-minho aberto por Baudelaire ainda na raiz da modernidade, acen-tuando a atitude libertria dos romnticos, que romperam a se-parao clssica dos nveis de estilo, pela mistura do sublime aogrotesco, do elevado ao abjeto, e deram incio explorao lri-ca do mundo prosaico.

    Com efeito, estamos diante de problema at certo pontosemelhante, na origem, ao da esttica clssica, no que diz respei-to imitao da natureza, que , no entanto, tratada de formamuito diferente. Basta atentar para um verso como o do fim, paraque se d conta da juno inusitada de elementos contrastantes

    e at incompatveis a postos em jogo, afastando o poema da es-fera ideal, equilibrada e sem mescla da arte clssica.

    O motivo natural, apesar de remeter a certas imagens datradio clssica (Laocoonte e Ugolino), e em parte por isso mes-mo, parece ter recebido um tratamento chocante, libertrio e ino-vador, no mbito de um poema que se quer decididamente mes-clado. Paradoxalmente, so as imagens tiradas da tradio da arteclssica que servem transposio metafrica do motivo, alan-do-o do plano da realidade fsica para o da representao artsti-ca do sofrimento humano. So assim elas prprias elementos damescla estilstica que logo se impe neste caso, por necessidade

    formal. que a mescla deve dar conta, coerentemente, da fuso

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    das diferentes esferas da realidade em jogo e tambm dos nveiscorrespondentes da linguagem em que essas esferas so expres-sas e plasmadas, de modo a se configurar o poema como um todoorgnico. Digamos que a mescla aparece como uma condio dacoerncia formal quando, para a sensibilidade moderna, se tratade dar forma a um contedo misturado, implicando o carterproblemtico, srio e elevado de elementos baixos. E aqui, des-de o princpio, se nota o impulso para o pattico elevado e parao trgico, embora se trate de um ser destitudo de qualquer ele-

    vao, a no ser a enormidade fsica. Somos conduzidos, portanto,a contemplar uma espcie de tragdia de um monstro vegetal, pro-saico e sublime ao mesmo tempo.

    Assim, qualquer coisa diversa que a se expresse sobre essemotivo tirado da natureza no poder excluir o problema com-plexo da prpria forma e do contedo que se toma por tema, bemcomo o de suas mtuas e intrincadas conexes.

    Alm disso, se torna evidente, desde o primeiro verso, a incli-nao de Bandeira para a busca de aproximaes da poesia coma linguagem de outras artes; no caso, com a forma plstica daestaturia e a representao pictrica do gesto humano, tudo nos

    levando a contemplar o drama de um ser da natureza, mas perso-nificado e realado plasticamente na forte visualidade do poema.

    2. Cactos comparados

    Formado na tradio do Simbolismo, as relaes entre poesiae msica sempre foram para Bandeira uma questo fundamen-tal, que abordar com lcida conscincia terica, vrias vezesexplcita em textos em prosa, como se v principalmente no Iti-nerrio de Pasrgada. Mas as relaes da poesia com as artes pls-

    ticas, menos explcitas nesse aprendiz de arquiteto e crtico bis-

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    sexto de pintura, no sero menos importantes, ocupando umaposio de ponta, medida que avana rumo modernidade.

    Alm disso, no se pode deixar de levar em conta o papeldecisivo que tiveram as artes plsticas na inaugurao das novastendncias da arte moderna, balizadas, entre ns, por diversosmarcos histricos relevantes: a exposio de Anita Malfatti, em1917; a descoberta do escultor Victor Brecheret pelo grupo pau-lista na mesma ocasio; a presena em nosso meio do pintor La-sar Segall, no comeo dos anos vinte; a pintura antropofgica,

    literalmente avant la lettre, de Tarsila, no final da dcada. Per-mitem, por isso, compreender melhor a dinmica interna domovimento de renovao e a posio da poesia em meio s ou-tras artes.

    semelhana de outros pases onde a arte moderna se irra-diou a partir dos centros europeus, sobretudo de Paris, as artesplsticas (em especial a pintura) apresentaram resultados novosimediatos, mais rapidamente do que a literatura, que logo reve-la sementes de insatisfao com a tradio herdada, mas tarda amostrar pegadas claras na direo dos novos rumos da internacio-nalizao vanguardista. Essa situao, que, por um momento,

    coloca a pintura na crista da onda renovadora, acaba por con-verter essa arte numa espcie de dominante esttica ou modeloa ser imitado, quando se busca a renovao. Da disseminar suasconvenes e padres formais s outras artes, como a literatura,que ento dela se aproxima, ao se arriscar na prtica inovadorada experimentao. Essa forte aproximao da poesia s artesplsticas, sobretudo pintura, que se nota aqui e fora, nesse mo-mento, constitui, conseqentemente, um campo de observaodo maior interesse para se compreender por dentro o processode modernizao.

    Situada numa posio privilegiada, nesse momento, no con-

    texto literrio brasileiro, a obra de Bandeira particularmente

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    frtil sob esse aspecto, deixando ver na estruturao dos poemasas intrincadas filigranas que assume o processo geral de renova-o no interior da forma potica concreta, em seu movimentode aproximao s outras artes. Com efeito, ela parece tender, pormeio de certos procedimentos de construo, para um tipo depoema que se diria imagtico ou pictrico, avizinhando-se dastendncias cubistas e surrealistas (mediante a reduo estruturalou a percepo simultanesta, ou ainda, atravs da montagemsurreal de elementos inslitos em contexto dissociado, onrico ou

    absurdo). de se notar tambm sua inclinao para a deforma-o expressionista, como neste caso se pode observar pelo volu-me gigantesco do cacto, cuja aparncia enorme parece corres-ponder a uma fora interior desmesurada, compelida a deformara realidade, ao se plasmar exteriormente.

    Por tudo isso, o exame mais detido do poema talvez per-mita a compreenso da virada decisiva da poesia bandeiriana na-queles anos, tanto do ponto de vista terico quanto prtico. Pelaanlise, se poder avaliar como a viso potica se articula, emprofundidade, tcnica de construo no espao concreto do tex-to. E assim se ter de fato, quem sabe, uma introduo leitura

    crtica desses livros fundamentais para a obra de Bandeira e oModernismo brasileiro.

    *

    Desde a primeira abordagem, possvel perceber as mui-tas semelhanas que relacionam O cacto aos demais poemasdos livros em questo: um ar de famlia os vincula pela tcnicae a atitude, pela posio do esprito que parece ter regido suacomposio.

    Para tanto, basta reparar primeiro, como fez Mrio de An-drade, no uso do verso livre, j a essa altura perfeitamente domi-

    nado e incorporado pelo poeta que levara anos no exerccio de

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    aproximao a esse novo tipo de verso. Depois, na constante ten-dncia extrema simplificao que parece ter presidido orga-nizao formal da linguagem, submetida mais completa poda,num claro esforo de reduo do discurso lrico s palavras es-senciais ao assunto. Tendncia que se delineara bem cedo na obrade Bandeira, como observou Joo Ribeiro a propsito deA cin-za das horas, mas que s se configura plenamente, nos termos deum despojamento que lembra uma verdadeiraarte povera, emmeados da dcada de 20.

    importante notar como nesse momento Bandeira se achaperto, apesar de diferenas especficas igualmente profundas, deoutros modernistas e da vanguarda internacional, marcados porum pendor semelhante pela forma despida, a drstica reduo auns poucos elementos compositivos, pela deformao da figu-ra e por certa inclinao primitivista, que tivera sua origem noestudo da arte negra, em voga na Europa no princpio do sculoXX e provavelmente reativada pela presena entre ns do autordaAnthologie ngre, o poeta franco-suo Blaise Cendrars. Podeser extremamente reveladora a comparao que, nesse sentido,se fizer com a poesia Pau-Brasil de Oswald de Andrade e com

    a pintura de Tarsila do Amaral, bem como de todos eles com Cen-drars, que visitou o Brasil, pela primeira vez, em 1924, trazendona bagagem literria muitas das novidades poticas do momen-to, entre as quais a moda primitivista e um ascetismo formal denotao epigramtica e telegrfica da realidade.

    J tive ocasio de estudar a reveladora confluncia que apro-xima Bandeira de Oswald e Cendrars, frisando ao mesmo tem-po as diferenas profundas que singularizam a arte bandeiriana,imprimindo-lhe uma complexidade e um alcance simblico quevo muito alm das semelhanas. Nesse sentido, alis, muitosignificativo que Bandeira no tenha publicado um poema como

    Cidade do interior, que lhe pareceu demasiado pau-brasil,

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    conforme conta.6 Agora preciso acrescentar a referncia a Tar-sila, cuja correlao, no plano da pintura, com a poesia de Oswaldj tem sido apontada. Sua presena aqui deve ser evocada pelanatural associao que se faz diante das freqentes imagens decacto que ela nos deixou em telas e desenhos, destacando-as emrelevo plstico, com total despojamento.

    Alm disso, preciso lembrar ainda, por razes igualmentereveladoras, do ponto de vista tcnico, e afinidades mais fundase gerais, outro grande artista, decisivo naquele perodo: Lasar

    Segall. Bandeira dedicou-lhe a maior admirao, e a obra dele,marcada pelo Expressionismo, por vezes associou, na fase brasi-leira, a imagem do cacto representao do sofrimento e da mi-sria, a que o pintor se ligava por intensa e sentida solidarieda-de. Na dcada de 40, na srie de gravuras do Mangue, que o poetacomentou em crnica, evocando aquela zona pobre de prostitui-o do Rio que cantara num antigo poema, pelo menos uma vezSegall junta face da dor do ser decado a figura torturada docacto, que j lhe servira de motivo caracterstico nas primeiraspaisagens brasileiras, aps seu retorno definitivo ao Pas em 1923.Veja-se, por exemplo, aPaisagem brasileira, de 25, onde as ima-

    gens de cactos se associam, em paralelismo, a figuras humildesde gente pobre e animais domsticos, ao p de colinas azuladase casinhas geomtricas, que lembram Czanne.

    No caso do poema, a semelhana do tratamento plsticoimpresso figura salta vista. Trata-se de idntico princpio es-trutural a simplificao e de anlogo tratamento deforma-

    6 O poemeto, claramente oswaldiano na aproximao e no contraste entre

    o elemento tradicional da realidade brasileira, com sua simplicidade ingnua, e a

    novidade moderna vinda de fora, diz assim: O largo/ O ribeiro/ A matriz/ E a

    poesia dos casares quadrados/ (A luz eltrica forasteira). Cf. Manuel Bandei-

    ra, Poesia e prosa, vol. I, Rio de Janeiro, Aguilar, 1958, p. 1.166.

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    Mulher do Mangue com cactos, 1926-28, Lasar Segall,ponta-seca, 24 x 17,5 cm, gravura extrada do

    lbumMangue(Rio de Janeiro: R. A. Editora, 1943).

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    dor, aplicados ao mesmo motivo tomado da realidade brasileirade que se servia a pintura da poca. Os meios verbais se deixa-vam tantalizar pelos efeitos plsticos. Quer dizer: a poesia rea-proveitava o mesmo objeto da pintura na nova organizao doespao potico, feita semelhana do espao pictrico. Alm dis-so, o motivo especfico do cacto levava a outros pontos de con-tacto com a esfera das artes plsticas do tempo. O prprio espa-o pictrico de uma pintora de formao cubista como Tarsilase acercava tambm, tecnicamente, ao espao da escultura, a que

    sugestivamente se relacionava a imagem da planta. E as defor-maes da figura por Segall se prestavam expresso comoventeda dor humana, encontrando nesse motivo uma correspondn-cia natural. Alm do mais, tratava-se de um motivo recorrentenesses pintores, que apresentavam um claro vnculo metonmicocom a experincia da realidade brasileira que tanto lhes atraaento o olhar.

    Pela reiterao, depois de um certo tempo, o cacto se trans-figurou de motivo recorrente num smbolo selvagem e fiel da artede Tarsila. Discretamente inscrito j nos seus quadros de mea-dos dos anos vinte, ele acaba por assumir formas gigantescas

    mandacarus assombrativos, dir Bandeira , quase devoran-do todo o espao do quadro, na fase antropofgica que ela inau-gurou no final daquela dcada. Compe com as palmeiras e ba-naneiras os elementos principais das paisagens simplificadas emque ela estilizou a realidade do campo, com claro sentido orna-mental: o mundo caipira de sua infncia de filha de gente fazen-deira a que se ligou profundamente sua sensibilidade to refina-da. As fortes impresses com que reavivou as reminiscncias daformao interiorana, quando de sua viagem a Minas, de voltade Paris em 24, por certo tero deixado, sob aquela atmosfera donacionalismo modernista, vivas sugestes da paisagem brasileira

    em sua pintura, devedora, por outro lado, de tendncias da van-

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    guarda europia como o Cubismo, que absorveu de seus mestresAndr Lhote, Albert Gleizes e Fernand Lger em Paris.7Juntocom Oswald, esteve tambm muito prxima de Cendrars, a cujostextos serve muitas vezes de ilustrao. como se diagramasseperfeitamente aquele registro epigramtico da realidade objetiva,descarnada no traado prosaico dos versos livres do poeta e nasimplicidade da linha de seus desenhos. Quer dizer: com tcni-ca anloga, em sua linguagem prpria, ela despia a paisagem, re-duzindo-a a seu trao cada vez mais despojado, como se se tives-

    se desfeito de tudo e feito voto de pobreza, conforme notou ain-da Bandeira a propsito de sua fase antropofgica.8

    Igualmente em Lasar Segall, o cacto aparece como um mo-tivo brasileiro, integrado sua dramtica pintura, ligada aoExpressionismo, mas devedora tambm de certo modo de orga-nizao cubista.9

    Convm, no entanto, ter presente os limites do nacional,no que se refere utilizao de um motivo aparentemente genunoda paisagem regional brasileira. No Mxico, onde o cacto tam-bm uma das marcas da paisagem, surge em artistas da vanguar-da ora como um ndice da realidade nacional em meio absor-

    o de tendncias internacionais, conforme se observa no casodo Surrealismo de Frida Kahlo veja-se, por exemplo, a paisa-

    7 Ver, nesse sentido, o ensaio Vanguarda e nacionalismo na dcada de 20,

    de Gilda de Mello e Souza. Em seus: Exerccios de leitura, So Paulo, Duas Cida-

    des, 1980, pp. 249-77.8 Cf. Manuel Bandeira, Tarsila antropfaga. Em suas: Crnicas da Pro-

    vncia do Brasil, inPoesia e prosa, vol. II, edio citada, pp. 225-6. Sobre a arte

    do gesto simples nos desenhos de Tarsila, ver ainda Victor Knoll, A arte da li-

    nha,Arte-Hoje, n 24, 1979, pp. 46-9.9 Cf. Gilda de Mello e Souza, Vanguarda e nacionalismo na dcada de 20,

    op. cit., p. 262.

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    gem surreal deAbrazo de amor, ora como um trao de me-xicanizao de artistas estrangeiros ali radicados, como o do es-cultor Rodrigo Arenas Betancourt, autor de um Cactus hombre,que pelo universo plstico e ideolgico se aproxima dos muralis-tas mexicanos.

    Com evidente preocupao social, Segall incorpora traosparticulares da realidade brasileira, que o fascina e o choca, aotratamento do tema universal do sofrimento humano. O cacto,que juntamente com as bananeiras e os lagartos indicia a presena

    marcante da paisagem local, se presta sua expresso de nossaface da misria: o rosto sofrido do negro ou das prostitutas po-bres do Mangue.

    Uma anloga conjuno de elementos da experincia pes-soal com vertentes artsticas do momento compe tambm ocomplexo contexto da poesia bandeiriana de ento. Nele o cac-to sugere logo a lembrana da terra de origem. Mas o poeta, pormais que possa ter guardado elementos de reminiscncia da suainfncia nordestina o cacto, evidentemente, uma das plan-tas tpicas da paisagem do Nordeste que deve ter se arraigado emsua memria , naquela poca se acha voltado para a paisagem

    urbana da cidade moderna, para a experincia do cotidiano dasruas e o recolhimento do quarto solitrio, ainda que neste pos-sam vir ecoar de repente as evocaes do passado pernambucano,como em vrios poemas dos livros em estudo. No se deve su-bestimar, no entanto, a fora de atrao das vanguardas, cujasrupturas e novas convenes se impem naquele momento, mag-netizando no apenas as tcnicas, mas tambm os temas.

    O fato que se forma uma conjuno no mnimo instigante,provavelmente representativa das contradies do tempo. Por umlado, o cacto enquanto motivo plstico , por assim dizer, umdos elementos que abrasileiram a pintura de Tarsila e Segall; por

    outro, enquanto motivo potico, mas relacionado pintura e

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    escultura, generaliza a poesia de Bandeira, revelando suas preo-cupaes com o tratamento artstico conforme certas direes,sobretudo cubistas e expressionistas, da vanguarda internacional.O que, no entanto, garante sua eficcia esttica e seu poder deirradiao simblica a forma de tratamento em cada caso, cer-tamente singular, onde depende da frmula pessoal que cada ar-tista soube encontrar ou no para plasm-lo como parte integrantede uma estrutura orgnica, capaz de fundir os traos localistas,para alm de um pitoresco regional, na universalidade concreta

    e simblica da arte.Somente a leitura cerrada, portanto, poder permitir uma

    penetrao mais reveladora nas implicaes que tem o uso de ummotivo como esse no poema de Bandeira, onde aparece, sem d-vida, articulado a um procedimento como o da simplificao, li-gado, por sua vez, ao carter inovador da prtica artstica do mo-mento. Ele se constitui de fato como um ndice ao mesmo tem-po singular e geral de sua poesia e da nova potica que praticavaento, grafada na prpria forma de um poema como o que estem foco.

    3. Matria e mtodo

    Objetivismo lrico

    Na leitura de O cacto, um dos primeiros aspectos a cha-mar nossa ateno, conforme se sublinhou, o motivo central,tomado da natureza. Ora, para se compreender como tratadoesse tema, escolhido, alm do mais, entre tantos possveis (o quecoloca outra questo relativa ao carter significativo da escolhado tema e sua motivao mais funda), preciso antes de tudo des-

    crever a estrutura do poema enquanto objeto verbal: os compo-

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    nentes em sua organizao interna. Para tanto, convm ir deva-gar, tateando o todo e as partes.

    Destacado com nfase no isolamento do ttulo, o cacto, en-quanto ponto de referncia ou tema ostensivo do discurso, , pri-meiro, deslocado da natureza para o plano da cultura, integran-do-se dramaticamente ao universo humano, mediante refern-cias artsticas e literrias, em que vem comparado com famosaspersonagens da tradio cultural do Ocidente: Laocoonte e Ugo-lino.10 Depois, por assim dizer reintegrado seca paisagem de

    10 O primeiro, como se sabe, uma aluso a um grupo escultrico (hoje no

    museu do Vaticano) que uma das obras-primas da arte grega do perodo hele-

    nstico, provavelmente da segunda metade do sculo I a. C., trabalho de esculto-

    res de Rodes (Agesandro, Polidoro e Atenodoro). Refere-se, como tudo indica, a

    uma passagem famosa daEneidade Virglio (II, vv. 199 ss.). Laocoonte, sacerdo-te de Apolo, teria despertado a clera do deus, ao profanar o templo a ele consa-

    grado, unindo-se sua mulher diante da esttua da divindade. Mas os troianos, a

    quem advertiu quanto ao perigo do cavalo de madeira deixado pelos gregos em

    Tria, viram nisto a causa de sua trgica morte. Ao sacrificar um touro a Netuno,

    foi destrudo, juntamente com os filhos que procurava proteger, por duas mons-

    truosas serpentes vindas do mar. E do cavalo de pau veio a destruio da cidade. A

    escultura inspirou pginas clebres da reflexo esttica no sculo XVIII: primeiro

    as de Winckelmann, e, em parte por causa destas, as de Lessing, sobre as diferen-

    as entre as artes do espao e as do tempo. J Ugolino della Gherardesca o conde

    pisano que se transformou numa figura trgica do Inferno de Dante (canto

    XXXIII): aparece roendo o crnio do arcebispo Ruggieri degli Ubaldini, seu anti-

    go aliado, que o acusou de traio, prendendo-o com dois filhos e dois netos (ou

    sobrinhos) na Torre da Fome, onde morreram, gradualmente, mngua. Na ex-

    traordinria passagem, o v. 75 mantm na ambigidade, para os intrpretes mo-

    dernos, o fato terrvel, que permanece, entretanto, sugerido, de Ugolino ter podi-

    do devorar, vencido pelo jejum maior do que a dor, os descendentes. Cf., nesse

    sentido, a bela leitura de Borges: El falso problema de Ugolino, em seus Nueve

    ensayos dantescos, Obras completas, Buenos Aires, Emec, 1989, pp. 351-3.

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    uma especfica regio brasileira, a que pertence originariamente(bem como o poeta). Em seguida, desgarrado de novo no meiourbano, mas atacado por um elemento natural, o tufo, ressurgecomo a vtima herica de um combate mortal, em que tomba,resistindo, porm, extraordinariamente. O cacto , portanto, apersonagem central da histria de uma vida em resumo, apa-nhada no momento dramtico e extremo de sua destruio, quan-do tomba, resistindo. Por fim, ao que parece, conforme o versofinal em destaque frase incisa do narrador da histria ,

    objeto de uma espcie de juzo esttico e moral ao mesmo tempo.Esquemtico e concentrado, o poema se apresenta, pois, an-

    tes de tudo, como o relato dramtico, escrito em terceira pessoa,em versos livres por vezes de um acentuado prosasmo, sobre umaexistnciain extremis. Aps uma breve e intensa caracterizaoda personagem, que ocupa a primeira estrofe, vem a narraodireta do processo de sua destruio e de sua resistncia, na es-trofe seguinte. Conclui-se por aquela espcie de juzo de valor,contido no ltimo verso solto aparentemente a nica inter-ferncia, assim mesmo indireta, do observador distanciado queconta a histria.

    Em lugar da expresso imediata da subjetividade, prpriada lrica, o que se tem, portanto, uma narrativa em versos li-vres, de cunho fortemente prosaico. Uma historieta centradasobre o modo de ser e os feitos de um determinado objeto per-sonificado, expostos de forma exemplar, no sentido de algo ilus-trativo de um carter e de uma conduta. Assim, primeira vista,o sujeito lrico se oculta, abrindo espao para o objeto, tratadocom relativa autonomia e distncia.

    A linguagem objetiva e seca parece evitar de fato toda in-terferncia subjetiva at o juzo final, quando se opina sobre oobjeto. Ainda aqui, no entanto, se mantm a distncia, marcada

    pelo travesso e pela forma verbal, no imperfeito do indicativo e

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    em terceira pessoa: frisa-se, desse modo, a separao com relaoao mundo anteriormente narrado. O movimento objetivador quea se conclui j comeara de fato com a primeira palavra do tex-to, o demonstrativo aquele, referido ao cacto: relativo terceirapessoa do discurso, e no primeira (este) ou segunda (esse),indica, singularizando-o, o ser de que se vai tratar como um objetoa distncia, relativamente autnomo com relao ao sujeito.

    A forma pica adotada em primeiro plano, necessariamen-te mais objetiva e decerto mais modesta, retm contido o liris-

    mo, que explode, porm, poderoso para o leitor, da condensadahistorieta, contada com mxima brevidade, a secas. Configura-se um objetivismo lrico, contraditrio e surpreendente.11A maisalta emoo como que brota da secura: condizente com o cacto,a forma despojada tende a imitar a natureza do objeto.

    Uma variante reveladora

    Quando de sua primeira publicao, na revistaEsttica, opoema apresentava uma variante no ltimo verso da estrofe ini-cial, com uma palavra a mais, na expresso abenoada terra,

    reduzida a simplesmente terra na edio de Libertinagem e nasposteriores, que nesta se basearam. Convm observar de perto estacorreo, que pode ser umas das vias de acesso ao prprio mto-do de trabalho do poeta, tal como se configura tambm no casoem estudo.

    11A expresso objetivismo lrico foi utilizada primeiramente por Srgio Buar-

    que de Holanda, para caracterizar a poesia de Blaise Cendrars, em 1924. Ver a

    resenha que escreveu sobre Kodak, no primeiro nmero da revistaEsttica. O tex-

    to foi reproduzido por Alexandre Eullio em seu: A aventura brasileira de Blaise

    Cendrars, So Paulo/Braslia, Quron/INL, 1978, p. 163.

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    Conforme Bandeira mesmo nos conta em seu Itinerrio dePasrgada(1954) livro onde relata a formao de sua expe-rincia potica, fundindo a autobiografia a comentrios crticose a elementos explcitos de sua arte potica , o exame das varian-tes foi um dos caminhos que lhe abriram a conscincia para apoesia enquanto forma de linguagem. Consciente j de que o po-tico para ele s se manifestava na emoo sbita e inesperada deraros instantes de alumbramento momentos catrticos de transee revelao espiritual , descobre tambm, segundo a lio de

    Mallarm, somente mais tarde aprendida, que a poesia se faz compalavras e no com idias e sentimentos.12 Embora sabedor deque sem a fora do sentimento ou a tenso do esprito no aco-dem ao poeta as palavras propcias, d com a carga de poesia er-rante nas palavras, ao examinar a superioridade de certas varian-tes. Este mtodo de aprendizagem da poesia enquanto arte ver-bal no ser, por certo, menos rendoso, se aplicado anlise cr-tica do procedimento do prprio Bandeira.

    No caso especfico de O cacto, o poeta ter se dado con-ta, provavelmente, da interferncia indevida da subjetividade noemprego do particpio passado, que minava a forma adequada,

    em sua exigncia interna de objetivao por meio do ocultamentodo sujeito lrico. Depois, aquela palavra a mais enfraquecia oparadoxo entre a regio de origem do cacto o seco Nordes-te e a expresso esta terra de feracidades excepcionais, noverso seguinte,tornando talvez explcita demais a insinuao ir-nica. Alm disso, do ponto de vista do ritmo e do significado,havia ainda outras razes para o corte: o alongamento excessivocom que aquela palavra comprida fazia crescer e abrandava a ter-ra, diminua a enormidade do cacto em contraste, afrouxan-

    12 Cf. Itinerrio de Pasrgada, edio citada, p. 22.

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    do ritmicamente o verso. Mas o fato capital que a poda aumen-tou a secura, adequando-se ao sentido do todo.

    Nesse detalhe, pequenino nada como diria Bandeira, sepode notar, contudo, o movimento fundamental com que d for-ma aos materiais mobilizados, revelando o seu senso agudo daestruturao e a sua lucidez quanto ao carter relacional dos ele-mentos internos postos em articulao na formao lingsticado poema: uma adequao mimtica (ainda no sentido aristot-lico) ao objeto representado, o que, no caso, confere valor signi-

    ficativo ao despojamento, como um princpio estrutural.Despojar, tornando mais simples, significa aqui, paradoxal-

    mente, obter maior complexidade, pelo aumento das conexesestruturais dos elementos lingsticos na direo de suas proje-es significativas, tornadas provveis ou necessrias em funodo sentido do todo, para mais intenso efeito esttico da coern-cia formal. Esta encontra sua garantia justamente nessa articula-o interna (de que depende tambm, com certeza, a qualidadedo poema), mediante a qual a pluralidade das partes componen-tes, sem perder suas marcas de diferena, se torna fator da uni-dade. A complexidade se faz maior porque acrescida a cada passo

    pela variedade mantida das partes, as quais, todavia, so perce-bidas, por fim, como partes de um mesmo todo.

    O ascetismo aparente da composio no anula a riqueza;antes, promove-a, fazendo ressaltar a multiplicidade no uno. Asecura, posta em relevo aqui, como um princpio do mtodo ar-tstico, d a ver uma enorme e complexa fertilidade. E assim, doprprio objeto representado, da matria de que se trata, nasce omtodo artstico que lhe d forma orgnica: o poema como umtodo, seu resultado, , portanto, como uma natureza prolonga-da que o movimento da imaginao artstica plasmou em formahumana. A histria do cacto, dada a ver como um exemplo,

    tambm a histria exemplar de um modo de dar forma: numa

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    obra de arte articulada como esta, a sua concepo se exprime apartir dela prpria.

    Esse movimento do mtodo de construo, que dependeorgnica e intrinsecamente da matria de que se trata, exige areconsiderao detida do todo e de suas partes em suas mtuasrelaes.

    4. Anlise

    Impresses iniciais

    No conjunto de poemas de Libertinagem, O cacto apa-rece, desde logo, como um figura singular e isolada. No h alinenhum outro poema que tome por motivo central um ente danatureza. Em nenhum outro, tampouco, se encontra como aliuma forma de tratamento capaz de dar a impresso, fortementevisual, de uma composio plstica, anloga de um quadro ouescultura. Apesar disso, conforme j se observou, guarda com re-lao a todo o livro o ar de famlia, que depender de afinidades

    temticas mais profundas e menos ostensivas, assim como de se-melhanas de fatura, perceptveis, entre outros aspectos, segun-do tambm j se apontou, na simplicidade de expresso, no em-prego do verso livre e em certa propenso narrativa.

    Antes, porm, de perceber qualquer desses elementos sutisde afinidade quanto ao assunto ou ao estilo, que em geral depen-dem de anlise mais detida, o leitor chamado a sentir, instan-taneamente, outro tipo de afinidade: uma verdadeiraempatia. E,por fim, um forte e comovente impacto.

    Com efeito, levado a identificar-se com o cacto, concen-trando-se na especificidade desse ser isolado e de seu drama hu-

    mano. Esta deve ser a expresso adequada, pois ele se impe

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    nossa ateno, feito uma figura artstica, apontada ou dada a verem seu seco e pattico dramatismo, como se fosse a representa-o de uma figura humana paralisada no gesto extremo da dor.Depois, mostrado em ao, numa brava luta, igualmente de-sesperada, e decerto tambm dramtica, no momento em quereage com energia destrutiva sua prpria destruio. Por fim, resgatado num juzo sobre seu modo de ser e seu comportamen-to, como se tratasse de uma verdadeira personagem, cuja beleza,fora moral e liberdade (prprias do livre movimento da vonta-

    de de uma pessoa moral confrontada com o inevitvel) se reve-lassem naquele conflito de morte.

    Quer dizer: o cacto primeiro gesto e drama; depois, gestae histria; por fim, um exemplo de beleza e resistncia moral. Etodos esses mltiplos aspectos, to complexos e coadunados en-tre si, parecem derivar naturalmenteda prpria imagem fsica daplanta, que tem alguma coisa da aparncia humana, como se en-carnasse, ser solitrio do deserto, a figura do homem submetidos condies adversas e incontornveis da natureza, com umapoderosa sugesto de fora pattica e trgica. Esta analogia de basereal, que em si mesma o poema no explicita, mas est latente

    na imagem artstica com que vem relacionado no texto, atua de-certo como motivao profunda no sentido de nossa identifica-o com ele. Nele nos reconhecemos de algum modo, o que nospredispe a sentir, no seu, o nosso drama, abrindo caminho paraa objetivao das emoes que, atravs dele, percebemos viva ehumanamente encarnadas.

    Ora, este mecanismo de identificao com o objeto animado imagem do homem, a partir da analogia com base na semelhan-a fundada na realidade natural, se faz ainda mais contundenteneste caso, porque se torna ele prprio um elemento do poema:o cacto visto em sua semelhana com as obras da estaturia que

    representam nossa imagem no extremo da dor. A empatia que

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    est na base da recepo e da fruio das obras de arte, como nose cansam de insistir os tericos, parece reforada quando o ob-jeto da identificao j se assemelha ele prprio forma huma-na, tal como se configura artisticamente.13A prpria condioda recepo artstica (a identificao emptica necessria) est emjogo e enfatizada quando a natureza deixa de ser apenas con-tedo para ser vista enquanto forma artstica, extenso do huma-no. O poema nos coloca na situao de receptores ou fruidoresdiante de um ser natural a ser contemplado em sua semelhana

    com relao s obras de arte (o cacto como smile da escultura),em que se representa nosso prprio desespero.

    O impacto s pode ser grande: o poema nos toca, e a vagade poderosas emoes que nos atinge indicia o grau de envolvi-mento que capaz de despertar no leitor, movendo-o profun-damente a identificar-se com aquilo que se objetiva naquela ima-gem em ao, em sua histria dramtica e exemplar.

    Na verdade, o poema parece dar forma objetiva a uma des-medida fora dramtica de sentido trgico, encarnada na figuraespinhosa (intratvel) da planta que lembra o homem dilacera-do pela dor, plasmando-a primeiro semelhana de uma obra

    escultrica paixo paralisada em gesto de esttua , para emseguida mostr-la em movimento numa cena narrativa em quese desenvolve a potencialidade trgica da imagem pattica do in-cio: o sentido trgico desenvolvendo-se pelo confronto da liber-dade moral contra a necessidade da destruio fsica; por fim, pararecolher a imagem total, resumida num conceito com seus atri-butos paradoxais e desconcertantes.

    13 Penso nos tericos que depois dos escritos decisivos de Theodor Lipps

    voltaram constantemente ao tema, como Wilhem Worringer em seu Abstrao e

    empatia, ou Herbert Read, em O significado da arte.

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    difcil dizer de onde deriva mais poderoso o efeito sobreo leitor: se da prpria figura da planta, enorme, mas parecida comgente, paralisada no gesto extremo de sofrimento como se fossede fato humana; se dos atos que ela sofre e pratica, ao respondercom energia destrutiva prpria destruio; se do juzo lapidarque a fixa na memria, pelo destaque das qualidades contrastan-tes que rene em si, ou se, enfim, da forma despojada e cortantedo todo que tudo sintetiza num n complexo de significaes. como se presencissemos a fbula de um deus moribundo,

    encarnado num simples vegetal, humanamente retorcido pelador, mas ainda movido por uma prodigiosa energia vital em faceda morte. Convm examinar detidamente como est construdaessa fbula.

    Construo

    Em primeiro lugar, o que se observa no poema visto comoum todo que ele est constitudo por uma histria que rigo-rosamente a imitao de uma ao una e completa.

    Essa imitao comea pela apresentao de seu objeto, em

    posio esttica. Com efeito, a narrativa se abre por uma carac-terizao fsica e moral do cacto, que apresentado, por via ana-lgica, mediante as imagens, tomadas como exemplos ou termosde comparao, da tradio artstica e literria em que ele fazpensar, assim como, pelas imagens de sua paisagem originria,com base na contigidade da realidade que ele naturalmente traz mente.

    Em seguida, na segunda estrofe, esse ente, j fsica e moral-mente caracterizado, posto em movimento, mostrando-se emao, por intermdio da narrao direta em que surge, primeirocomo vtima de uma fora natural (o tufo), e depois na funo

    de agente do processo que leva a desordem e a destruio cida-

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    de. Assim, como se nos fosse dado observar os estertores catastr-ficos de um gigante primitivo e selvagem, estranho ao meio, quetombasse, resistindo e desencadeando o caos na ordem urbana.

    A frase final no toa que ela tende a se destacar la-pidarmente sob a forma de uma locuo parte se enlaa narrativa acabada como a hera runa, no caso de um aforismoou provrbio14: moral da histria que se abre num significadolatente, para dizer outra coisa sob as imagens, primeiro paralisa-das e depois movidas, como um sentido alegrico que brotasse,

    se enroscasse e por fim se libertasse nesse movimento de derro-cada, narrado feito fbula.

    Considerada em plano mais abstrato, a narrativa combinao primitivo e selvagem com o cultural e o civilizado: seu ncleocondensado parece ser mesmo o embate dramtico entre o ob-jeto natural, tirado de seu ambiente prprio, mas movido pelafora da natureza contra o espao ordenado da civilizao (a ci-dade). A tenso do objeto isolado, logo insinuada pela compa-rao do cacto com gestos extremos do mundo da estaturia,depois se mostra intensificada como embate entre o objeto ain-da isolado e o espao coletivo da cidade, resolvendo-se pela rea-

    lidade fsica do movimento que o leva destruio, ao projet-lo no meio urbano, onde, por sua vez, gera a desordem. Com istose revela, provavelmente, o que ele , no momento em que en-frenta sua prpria destruio.

    Do ponto de vista figurativo e plstico, para tentar tradu-zir de algum modo a impresso primeira que nos impe o poe-ma, essa tenso dramtica no objeto, e entre este e o espao,que constituem a base da construo. Faz pensar, por isso, que

    14 Cf. Walter Benjamin, O narrador. Em suas: Obras escolhidas: magia e

    tcnica, arte e poltica,So Paulo, Brasiliense, 1985, p. 221.

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    o princpio da simplificao tem aqui a ver em parte, pelo me-nos, com a reduo cubista da realidade, e em parte tambm coma deformao expressionista da figura. A proximidade com oCubismo se percebe no tanto no sentido da visualidade simul-tnea ou da percepo sincrnica do objeto em rotao, comose d tambm mais claramente em outros poemas pictricos deBandeira e aqui se sugere, at certo ponto, nas imagens que ca-racterizam o cacto por aspectos diversos. Mas, no sentido de queo espao do poema (como no caso de uma escultura ou de um

    quadro cubista) recebe um dado direto da realidade, tomadocomo motivo central de uma estrutura na qual o deslocamentoespacial e a sucesso temporal se casam na apresentao de como o objeto em si mesmo e em sua relao com o espao. Diga-mos que assim se procede a uma espcie de investigao do ob-jeto: visto como coisa no mundo; como forma isolada no es-pao (modelo para o olhar que lembra outros modelos); por fim,como encarnao de uma idia ou de um conceito (como umexemplo geral ou como um arqutipo).

    sabido que a concepo cubista do quadro enquanto planoplstico praticamente elimina a distino entre pintura e escul-

    tura, at em termos tcnicos. No caso da literatura, como se vpelas tentativas experimentais de Blaise Cendrars e sobretudo deGuillaume Apollinaire, tambm terico e crtico do Cubismo, anatureza da linguagem verbal obriga a transposies analgicasdesse princpio estrutural.

    O poema de Bandeira comea por estabelecer um vnculoanalgico entre o cacto, apontado como modelo, e o mundo daarte, por meio da linguagem figurada:

    Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estaturia:

    Como se pode observar, ele aparece desde o incio j des-

    garrado de sua realidade prpria no mundo natural primitivo,

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    como uma figura singularizada capaz de funcionar no espao dassignificaes humanas que nem um objeto de arte a escultu-ra , criado pelo prprio homem para exprimir-se. Pela com-parao metafrica ou smile, estabelecida atravs da forma ver-bal lembrava, tende a ser identificado com a estaturia. Me-diante essa transposio da linguagem numa imagem, assume afuno precisa de uma pea escultrica em que se plasmam mo-mentos patticos da dor humana em seu pice, encarnada nosgestos. Dos gestos nasce o ritual e deste, o drama humano.

    Na verdade, desde o incio, o verso se abregestualmente,apontando na direo do cacto: Aquele cacto... A nfase dagestualidade implcita nas palavras confere fora simblica lin-guagem, carregando-a com um cmulo de sentido.

    Conforme notou Richard P. Blackmur, a fora do gesto en-carnada nas palavras d-lhes a dimenso de smbolos, fazendo-as exprimir o que no se poderia dizer em termos diretos, segundose v na poesia onde a linguagem efetivamente atua muitas ve-zes como gesto.15A importncia do gesto na formao dos sm-bolos poticos, talvez se esclarea, como no caso do poema emestudo, se se pensar que a nfase gestual implcita em certas pa-

    lavras como que as ritualiza, tornando-as parte de um movimentomaior e reiterado, de um ritmo, mediante o qual algo narrado,ou seja, uma histria, um mito se configura. O gesto residualtransforma as palavras em componentes de uma dana, em cujodesenvolvimento rtmico o enredo (o mito) se forma ou se cons-titui em narrativa. Paralisado o movimento da narrao, cadacomponente figura gestual, um smbolo, parte que remete aotodo que compe.

    15 Cf. Richard P. Blackmur, Language as gesture. Em seu: Language as

    gesture: essays in poetry, Nova York, Harcourt Brace, 1952, pp. 3-24.

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    No poema, paralisado o movimento pelo gesto indicativo,resta o cacto como figura escultrica, imobilizado, mas carrega-do de sentido como parte de um todo, que vai desenvolver-se rei-terativamente num ritmo, numa narrao, ou, ao menos, desdo-brar-se, sem o movimento, num mdulo de outras figuras repe-tidas. Indicado por um gesto, o cacto visto em sua paralisia degestos reiterando a dor, como figura humana feita arte escul-tura. Desde o princpio se confere forma humana ao contedonatural, aproximando-se a planta da esfera do mito.

    A transposio metafrica humaniza, com efeito, o cacto,ao fazer dele uma dramtica forma humana. Ele surge personifi-cado pela correspondncia com a arte, fora selvagem aprisiona-da na forma resultante do fazer humano. A converso em ima-gem o arranca de seu espao natural de origem, abrindo para esseente primitivo e singular a dimenso geral do espao significati-vo da arte em sua potncia expressiva do humano. Assim ele setorna portador de sentido, forma significativa, signo em que podese encarnar a paixo, como se nele se plasmasse tambm o gestoextremo da dor: cone do supremo sofrimento, sustentado pelacontigidade e pela semelhana que aproximam sua figura ao

    gesto humano na arte. Mas, ao mesmo tempo, essa figura arts-tica revela seu vnculo com a natureza primitiva, com a foraselvagem que nela se plasmou em forma humana.

    A figura do cacto, em sua realidade fsica, pode de fato as-semelhar-se figura humana, e suas ramificaes, que sugerembraos, podem imitar gestos de desespero. No entanto, no essaimitao direta do humano que est em foco (a rplica verbal doobjeto externo), mas a expresso da dor pela mediao da arte aque ele pode se prestar, por fora da semelhana escultrica: ocacto no propriamente tratado como o objeto da representa-o enquanto ser diretamente copiado da natureza em correspon-

    dncia com o humano; ele um ser extrado da natureza que fun-

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    ciona com a potencialidade de uma obra de arte, em sua expres-so do humano, no espao do poema. O cacto, claro est, temnatureza metafrica. Da tambm sua potencialidade para encar-nar simbolicamente o drama e para dizer outra coisa, para des-dobrar-se em alegoria, para aludir a um contedo geral a partirde sua forma ou imagem particular, estudada em seus desdobra-mentos no espao e no tempo.

    Embora, como se v, um certo pendor ainda clssico emrelao imitao da natureza seja perceptvel, o poema enfatiza

    mais exatamente a funo do elemento natural no espao pr-prio da arte, onde ele adquire uma espcie de funo exemplar,conforme se nota pelo carter geral do termo de comparao aque aproximado: os gestos desesperados da estaturia. Dessemodo, Bandeira parece acercar-se, at certo ponto, do funciona-lismo cubista, visvel tambm na pintura de Tarsila, mas numadimenso e com uma complexidade que vai muito alm do carterornamental desta. Na verdade, se aproxima muito mais do univer-so de Lasar Segall, pela densidade da problemtica do sofrimen-to humano que carreia com sua figura gigantesca e convulsa.

    Com efeito, em certa medida apenas, o cacto um mode-

    lo: aps a caracterizao por semelhana metafrica com obrasde arte, ou por contigidade metonmica com sua paisagem deorigem, se ver como funciona ainda em seu confronto com oespao da cidade. Nesse desdobramento, porm, sobretudo afora dramtica que ele encarna que est em jogo e no propria-mente a visualidade da organizao estrutural, como na tendn-cia cubista. Dela talvez dependa, no entanto, um certo esquemaracional de investigao do objeto que se percebe ainda subja-cente a essa operao de construo do poema, organizando asrelaes do objeto com o espao sob a estrutura da histria dra-mtica em que projetado. Provavelmente tambm ser respon-

    svel pelo deslocamento de contexto do objeto para o espao

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    reorganizado da obra de arte (o cacto no espao do poema) e peloefeito realista que se mantm com a presena de um objeto to-mado diretamente da natureza, como um dado da experinciada realidade. Por isto, alis, a projeo simblica do objeto, quepode remeter a significados mais amplos, semelhana de umaforma artstica, se assenta sobre a base realista da imagem, nasci-da da experincia da realidade.

    A nfase, prpria do Cubismo, sobre a estrutura e as proje-es mais ou menos abstratizantes que possam derivar das rela-

    es estruturais entre os elementos por elas articulados no des-carta o vnculo com o real, trazido para dentro da prpria estru-tura pela relao metonmica, fundada na contigidade, como umndice da realidade em torno.16 Um dado da paisagem brasileiracomo o cacto penetra assim no espao do poema (ou do quadro,conforme se v em Tarsila) com todas as implicaes que possaconotar, determinadas por sua insero originria num contextoparticular anterior. A funo e o valor que adquire no interior donovo contexto em que se insere dependem em parte dessa opera-o de deslocamento a que foi submetido, para ser montado naestrutura do poema (ou do quadro), arrastando consigo tudo aquilo

    que naturalmente evoca do contexto anterior, incluindo as rela-es da experincia pessoal que se possa ter com esse contexto.

    Certamente, nesse modo de operar, no apenas a prpriaoperao da arte que se descobre e enfatiza, mas a experincia darealidade, que mesmo assim mediada, est em questo e se re-nova, pela viso que sobre ela se pode projetar a partir da formanova a que ela, deslocada e reaproveitada, deu origem. Dado aver como se fosse uma obra de arte em sua encarnao expressi-

    16 Sobre o aspecto realista da arte cubista, ver, por exemplo: Giulio Carlo

    Argan, Larte moderna 1770/1970, Florena, Sansoni, 1986, p. 369 (reimp.).

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    va da dor humana, o cacto uma forma em que se pode exem-plificar um modo de lidar com o sofrimento, ao mesmo tempona esfera da experincia pessoal e da arte que lhe d expresso.

    O elemento primitivo ou selvagem, tornado significativo noespao das formas humanas por obra da linguagem figurada,fundada na analogia com a escultura, se faz, portanto, um meioexemplar para exprimir a relao da arte com o humano. Umapoderosa fora dramtica se mostra ento j nesse primeiro versodo poema, pela tensa articulao que se estabelece entre o ele-

    mento de natureza selvagem, os gestos humanos de desespero ea estaturia, enlaando conotaes a uma s vez afins e confli-tuosas num n de significaes de grande potncia e complexi-dade expressiva.

    Ao se falar em cacto, logo nos vem mente a imagem co-mum que em geral temos dessa planta das regies ridas, mar-cada por traos que so ao mesmo tempo indcios e efeitos de suarealidade fsica: nua, seca, pobre, de aspecto torturado etc. Quan-do mostrada, como no verso, em comparao com a extremacrispao do gesto humano, tomado pelo desespero, essas conota-es so ativadas e, unindo-se a novos traos do termo da compa-

    rao, desencadeiam um processo de significao de fato muitomais complexo, pois os significados, insolitamente enlaados, setornam elsticos e se desenvolvem surpreendentemente, desdo-brando o sentido em vrios planos concomitantes: atributos darealidade fsica de uma planta ganham uma dimenso moral, coma personificao do cacto, mobilizada pelo gesto humano; um ele-mento da natureza primitiva se torna expresso da natureza huma-na no movimento extremo da paixo, movimento esse, drama-ticamente paralisado no gesto a que se atribui forma escultrica.

    Assim se constitui, como sabido, num determinado ins-tante, o complexo intelectual e emocional caracterstico da ima-

    gem potica, cuja ambigidade e poder de impacto dependem

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    desse sentido plurvoco, por sua vez resultante de um encontroinslito de vocbulos, como gostava de dizer Bandeira. No caso,a anlise que podemos realizar, depois de receber o impacto emo-cional da imagem, que torna instantnea e una a multiplicidadedos elementos em jogo, talvez permita compreender um poucomelhor esse n de significaes com que se abre o poema.

    Grande parte do impacto inicial parece derivar da prpriaforma do verso livre em que vem engastada a poderosa imagem.Numa afirmativa lapidar, plasma com incisivo dramatismo o con-

    tedo j de si dramtico, inscrevendo-se epigramaticamente soba sugesto da forma escultrica do cacto. Contm, com efeito,uma frase completa, impondo sua unidade de sentido com umanica observao seca. Mas tambm uma sentena algo aforsticae engenhosa pela comparao que estabelece e, por outro lado,muito condensada e breve, se se considera o contedo comple-xo que veicula. Evoca, assim, ela prpria, a forma lapidar das ins-cries poticas antigas, como o epigrama, em que o carter pri-mitivo da poesia se deixava ver na mescla embrionria dos gne-ros. Segundo se frisou anteriormente, o poema, ocultando a prin-cpio o sujeito lrico, se mostra como uma narrativa, parecida a

    uma fbula, guiando-se pelo tom pico, com distanciamento eobjetividade, ao imitar uma ao una e completa, marcada porcontundente conflito dramtico. A mistura peculiar de gnerosque o caracteriza se coaduna perfeitamente bem com essa suges-to de simplificao primordial ou primitiva que se manifestadesde o incio pelo recorte epigramtico do verso, alm de seadequar tambm ao princpio geral de tratamento, com que setende a imitar a natureza primitiva do cacto.17

    17 Segundo se sabe, antes de se definir, se que se definiu alguma vez, co-

    mo um poema breve de fundo satrico, o epigrama a inscrio que indica, em

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    Alguma coisa semelhante, quanto a esse carter aforstico eepigramtico que se percebe de incio em O cacto, se repeteno verso final, conforme j se notou acima, de modo que o poe-ma parece se fechar como se abriu: inscrevendo-se todo ele soba imagem visual do cacto, erguida escultoricamente no princ-pio, para tombar no fim, com grande resistncia. Em tudo isso,se manifesta, na verdade, o forte carter emblemtico do poema,que a visualidade do cacto s faz acentuar.18

    sua condensao, maneira de um marco pico, conforme observou Hegel, que

    algo de plstico existe em determinado lugar, anunciando sua simples presena:

    ali alguma coisa. Numa fase posterior, eliminado o desdobramento do objeto em

    figura exterior e inscrio, passa a representar simplesmente o objeto, independente

    de sua presena real. Aproxima-se ento dos gnomos ou sentenas morais, em queo contedo proverbial ganha uma generalidade mais abstrata e duradoura do que

    a coisa sensvel que indica, tornando-se mais permanente que o monumento erigido

    para comemorar uma ao, ou que os dons votivos, as colunas e os templos. O

    contedo moral como que esculpido em forma lapidar, exprimindo-se, assim, o

    lado pico da sabedoria, com os liames indissolveis, na esfera espiritual, entre o

    mundo das aes humanas e o saber. O carter pico das sentenas se revela na

    autonomia com relao ao ponto de vista individual e o sentimento subjetivo, nageneralidade de cunho pragmtico do contedo que afirmam, como algo que se

    deve ou no fazer. Mas, como ainda notou Hegel, essas formas primitivas acusam

    um forte hibridismo, pois apresentando o tom geral prprio de um determinado

    gnero, por vezes aplicam esse tom a um assunto que nele no cabe, do mesmo

    modo que adotam, em sua indefinio, outros tons possveis. O tom lrico se fazigualmente presente, da mesma forma que algum elemento dramtico poder ser

    apontado quase sempre nesse terreno moral das sentenas, de onde brotam tam-

    bm a ao individual e os conflitos de vontades.18 Aparentado ao epigrama, ao aforismo e fbula, j de si prximos, o

    emblema primitivamente, como se sabe, um objeto, quase sempre de natureza

    distinta, que se acrescenta a outro objeto maior, para assinalar que um todo com-

    posto por uma multiplicidade de fragmentos diferentes, ou para significar por si

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    O cacto e as runas

    Aps o ttulo, que se pode tomar como um mote, por as-sim dizer se ergue a imagem escultrica do cacto que o ilustra deforma lapidar e, logo aps vrios desdobramentos em outras ima-gens, envolvida num enredo cuja forma fabular de certo modoa explica, projetando-a, em seu modo de ser, como figura exem-plar e alegrica de poderoso contedo moral, resumida no versoaforstico do fim. O poema, no todo, dado a ver como um em-blema: pode ser considerado nos termos de uma conexo entreum mote e uma imagem desdobrada numa historieta explicati-

    va, ou seja, numa alegoria, seguida de uma chave conceptual.O emblema, na sua forma tradicional, conforme se nota nos

    livros de emblemas, uma espcie de enredo visual paralisado nagravura, mas contendo decerto o movimento latente do desenro-lar da ao nos desdobramentos da imagem, explicada em geralpor versos que aludem a seu contedo alegrico de sentido did-tico-moral. Esta analogia com a estrutura emblemtica na compo-sio do poema mostra, desde logo, a forte tendncia para a for-ma simples que o caracteriza, condizente com a mistura de g-neros e, o que fundamental, com a natureza primitiva do tema.

    mesmo esta diversidade enquanto assemblageou montagem de componentes he-

    terogneos. sua potencialidade alegrica o fragmento que alude ao todo sem

    poder encarnar o sentido do todo enquanto totalidade (ao contrrio do smbolo)

    veio somar-se, em seu emprego ao longo da histria, a forte visualidade de seus

    desdobramentos em palavra, figura e verso explicativo. que gravuras concretas

    passam a ilustrar uma palavra tomada como mote e se fazem acompanhar de uma

    breve explicao em verso arguto e engenhoso, formando um conjunto em geral

    de carter didtico e de inteno alegorizante, ao reduzir conceitos em imagens

    sensveis, como se observa nos livros de emblemas, to em voga na Europa nos

    sculos XVI e XVII. Para a poesia maneirista e barroca, para os poetas metafsicos

    ingleses (basta pensar em Shakespeare e Donne), os emblemas passam a constituir

    uma fonte riqussima de imagens poticas.

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    A beleza humilde e spera

    Na contemplao do cacto, oferecido como um objeto vi-sual, o olhar percorre o caminho da imagem concreta sua abs-trao no conceito: atravs desse percurso se pode reconhecer ummodo de ser especfico que se d como exemplo geral. No poe-ma se configura, portanto, uma historieta que contm uma re-velao: um enredo ou mythos, na expresso aristotlica, em quealgo se d a conhecer pelo desenrolar da ao imagem em mo-vimento at o ponto do reconhecimento do sentido (aanagn-risis, para Aristteles), quando se manifesta tambm a coerncia

    de todo o desenrolar a sua unidade.Assim se cumpre a imitao da ao enquanto fbula ale-

    gorizante, emblematicamente ilustrativa de um carter (de ummodo de ser) tomado como exemplo. Essa imitao se realiza nocomo uma reproduo ou cpia de um objeto externo, cuja r-plica se encontrasse no texto, mas como imitao formal de umdeterminado contedo natural (o cacto), imagem que se desdo-bra e se desenrola no enredo em que sua natureza se d a conhe-cer como revelao. A imitao da natureza se d na relao en-tre a forma significante e seu contedo: o que no mais fundose d a ver no processo do enredo, que imita a imagem em ao,

    revelando-a.Como se pode ento observar, a simplificao formal, do-

    minando a construo, mobiliza uma srie de elementos prpriosda poesia primitiva epigramticos, aforsticos, fabulares per-feitamente coadunados entre si, traos todos aparentados que so.Ligam-se, por sua vez, ao carter emblemtico, de mesma ordem,que, por fim, assume o poema enquanto forma acabada. Esta ,pois, o resultado coerente e uno de um mesmo movimento es-truturador que se imprime matria, com marcado cunho pri-mitivista, adequado natureza do objeto.

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    Laocoonte e seus filhos, c. 175-50 a. C.,

    Agesandro, Atenodoro e Polidoro de Rodes, mrmore,

    altura 242 cm, Museu Pio Clementino, Vaticano.

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    A beleza humilde e spera

    Caracterizao: as imagens

    Transformado em objeto cultural, pelo smile, o cacto podeento ser comparado, com determinao maior, a obras de arteespecficas, identificando-se diretamente a imagens artsticas queso verdadeiras personagens paradigmticas do sofrimento:

    Laocoonte constrangido pelas serpentes,

    Ugolino e os filhos esfaimados.

    Com estes dois versos se desenvolve, na verdade, um pro-cesso de caracterizao imagtica do cacto que se havia iniciadoj no primeiro verso, ainda que fosse apenas indicativo. Agora oprocesso toma a forma de uma seqncia enumerativa, s con-cluda no final da primeira estrofe. A partir do segundo verso, como se o cacto fosse tomado como um motivo pictrico sobreo qual se superpem outras imagens paradigmticas equivalen-tes (imagens que ele lembraou evoca), recortadas de realidadesheterogneas (da escultura, da literatura, da sua terra de origem),mas que formam com ele uma espcie de interseco.

    O procedimento pode parecer, primeira vista, um enfi-

    leiramento de imagens conforme a tcnica dos poetas imagis-tas, maneira de Pound, ou dos ultrastas, como no caso doBorges dos poemas da dcada de 20.19 No se trata, porm, deimagens que reconstituam metaforicamente uma experincia nostermos de um equivalente pictrico. Na verdade, a imagem docacto ela prpria tomada como um assunto ou motivo, ao qualvm se juntar ou superpor as outras imagens marcadamente pls-

    19 Bandeira se refere diretamente sua iniciao, por intermdio de Gilberto

    Freyre, na leitura de poetas ingleses e norte-americanos, entre os quais, Robert e

    Elisabeth Browning, Amy Lowell e os imagistas. Cf. Reportagem literria. Em

    sua: Poesia e prosa, Rio de Janeiro, Aguilar, 1958, vol. I, p. 1.166.

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    ticas. Nesse sentido, o procedimento bandeiriano pode parecermais prximo de um poeta como William Carlos Williams, quedepois de 1915 e de seus poemas influenciados pelo imagismopoundiano, se aproxima de fato da materialidade da pintura e datcnica cubista, at onde isto possvel. Parece tratar ento opoema como uma tela, tendendo a composies parecidas a na-turezas mortas, com as quais se poderia comparar tambm as deBandeira, como no