Aracruz Credo – 40anos de Violacao e Resistencia no ES

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ARACRUZ CREDO 40 anos de violações no ES e resistência n e e esis S o S no n S S S E cia S S S r ES o o nc es re O la ê S t resist de es ên e a a sist r re C C 40 40 C C C C r ia tência ci t c a 0 0 r c ol stê st esis resist ci i resistênci r ci st ên t cia ê re RE no e sistên r e ên a ê stência ên ç nc s d ên c a n ia st nc ên nc ia tên st õe c CR CR C 0 0 0 0 0 s e violaçõ n vi os 4 4 os de violações v e e vio RE nos RE 40 ano 4 ED de s os R R R R R R a 0 4 4 4 0 anos de violaçõe C C C C o R an n s E s vi ED d CR CR CR C C C C D C CR CR CR C C C R C C C C C C D RED CR CR CR CR R CR CR CR CR CR C R D CR CR R R R EDO RE R CR CR RED RE CR CR C RE RED R C C CRE CR C C R D CREDO C D C C O R R O O CRED C REDO R CR CR O C C CRED CR EDO RE O DO REDO O CR REDO REDO O CRE CR C CRED C CREDO REDO REDO C EDO R R C C REDO REDO O RED R O CREDO C C C C C C C CREDO CR O EDO C C C RE C CREDO C C C C EDO C C O C C CREDO C CR CR C C RE C C C DO R CRE CREDO CREDO C CREDO C E CR O C C REDO CRED CR C C C RED CREDO O O CREDO REDO REDO C C DO CR CR O EDO O CREDO O EDO AC RE CREDO CR O D O R R EDO O ED O EDO O DO EDO E O E E E E O O DO ED U O U U O D R R R D D U DO O CR U U U C R R A A A A CR R CR AC A A A A AR AR AR AR A A A A A A CR ACRUZ A A ACRU CRU R CR R A A CR A A RUZ R R A ACR C RACR A CRUZ A A R ACRU A A R R A A R R Z CR ARACRUZ CR R R A CRU R R AR AR AR A A ACRUZ A A R AC ACR A A A A A ACR A R R RACRU A ARACRU A A ACR CRUZ R RACR R R R ACR A A A A ACR A RA R ARACR A A A U ACR C RUZ CRU R UZ R CR ACRU ACRU A R CRU U RACRU R ARACRUZ CRU U ACRU A A A A A ARACR Z R R CRU RU Z Z CRU ACR A RAC R R C CRU RACR CR AC A R R AR AR A A UZ CRU R RACRU U ACRU R UZ C RAC RU R Z RUZ C U C R AC A A ARA A CRUZ A A UZ A A CRU R R Z R ACRUZ A RU ACR Z C R R A A R A CR AR AR ACR AC A A A A C C A A R AR A A R

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A história de 40 anos da maior empresa de celulose branqueada de eucalipto do planeta é marcada por severos e irreversíveis impactos ambientais, sociais, culturais e econômicos no estado do Espírito Santo. Com vultosos financiamentos públicos e o incondicional apoio político do Estado, a Aracruz Celulose se apropriou indevidamente de territórios indígenas e quilombolas, destruindo o modo de vida comunal desses povos. Responsável por impor drásticas mudanças também na vida dos camponeses, essa empresa destruiu milhares de hectares de Mata Atlântica, sempre movida pela obsessão de lucros continuamente crescentes. Ao publicar Aracruz Credo, a Rede Alerta contra o Deserto Verde e a Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais pretendem explicitar a perversidade do atual modelo de “desenvolvimento” a partir da realidade dos territórios onde atuam as mega empresas. Por outro lado, é fundamental dar visibilidade e registrar o histórico processo de resistência e enfrentamento das comunidades locais contra a Aracruz. Atingidas diretamente pelos impactos, irregularidades e ilegalidades cometidas por essa empresa, os povos da região lutam desde a sua implantação – em plena ditadura militar – até os dias de hoje para ter os seus direitos fundamentais respeitados.

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ARACRUZ REDO C

40 anos de violaes

ncia resistno ES e

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Aracruz Credo 40 anos de violaes e resistncia no ES Rede Alerta contra o Deserto Verde e Rede Brasil sobre Instituies Financeiras Multilaterais Organizado por Helder Gomes e Winnie Overbeek, Editado por Patrcia Bonilha. Vitria, 1a edio, 2011 ISBN 978-85-88232-04-4 1. Deserto verde Aracruz/Fibria 2. Plantaes de eucalipto - impactos socioambientais, culturais e econmicos 3. Financiamento pblico prejuzo social 4. Modelo de desenvolvimento celulose Esprito Santo

Projeto Grfico e Ilustrao da capa: Guilherme Resende [email protected]

no ESHelder Gomes e Winnie OverbeekOrganizadores

Patrcia BonilhaEditora

1a Edio l Vitria, 2011

REDE ALERTA

CONTRA O DESERTO VERDE

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SUMRIO7 8 13

Apresentao Rede Brasil sobre Instituies Financeiras Multilaterais Introduo Rede Alerta contra o Deserto Verde Nota da editora

PARTE 117 31 35 54

Tupiniquim e Guarani: smbolos da resistncia Fbio Martins Villas Entre a terra e o carvo: as comunidades quilombolas Selma Dealdina A degradao socioambiental no Sap do Norte Simone Batista Ferreira Agronegcio e a vida das mulheres Gilsa Helena Barcellos e Simone Batista Ferreira

PARTE 279 86 91

A re-significao da gua pelo uso industrial Marilda Teles Maracci Papel para o Norte, hiper-consumo de gua no Sul: uma hidro-genealogia das fbricas da Aracruz Daniela Meirelles e Marcelo Calazans Desvios e represamento de rios: irregularidades e abusos Marilda Teles Maraccie Winnie Overbeek

107 Promessas de emprego e destruio de trabalho Alacir DeNadai, Luiz Alberto Soares

PARTE 3135 A viabilizao da Aracruz Celulose pelo Estado brasileiro Helder Gomes 151 Fraudes e ilegalidades Sebastio Ribeiro Filho 171 A construo simblica da Aracruz Celulose e dos movimentos sociais pela mdia Luciana Silvestre Girelli

PARTE 4188 Mudanas Climticas: uma lucrativa oportunidade Winnie Overbeek 190 Um fim para a cultura do consumo excessivo Patrcia BonilhaTamra Gilbertson

193 Fico quilombola e mercado de carbono Marcelo Calazans e Renata Valentim 197 Sobre os autoresEm 2009, as plantaes de monocultura ocuparam 6,3 milhes de hectares no Brasil: franca expanso da destruio da biodiversidade

Tamra Gilbertson

A implantao da fbrica da Aracruz Celulose em Barra do Riacho causou severos impactos socioculturais na comunidade

APRESENTAORede Brasil sobre Instituies Financeiras Multilaterais

O Brasil tem investido cada vez mais recursos pblicos em empresas transnacionais, tanto brasileiras quanto estrangeiras. Como na poca da ditadura militar, essas corporaes utilizam os subsdios do Estado para implementar projetos desenvolvimentistas que interferem de modo severo e irreversvel nas mais diversas regies do Pas.

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nde quer que essas transnacionais se instalem, a mesma forma de atuao pode ser verificada. Ocorre a apropriao indevida de terras, o cercamento e a expulso de comunidades tradicionais e camponesas, uma profunda degradao ambiental e a destruio do modo de vida e da cultura locais. Este o retrato da implantao da Aracruz Celulose, hoje em dia chamada Fibria, que desde 1967 instalou-se no Esprito Santo para promover o plantio da monocultura de eucalipto em larga escala e a produo de celulose para exportao. Vale ressaltar que a atuao da Aracruz no causou somente um grave conjunto de impactos negativos. O que se viu no Esprito Santo, por outro lado, foi um intenso processo de resistncia a partir das comunidades indgenas Tupiniquim e Guarani, das comunidades quilombolas do Sap do Norte e dos movimentos sociais do campo, resultando no final da dcada de 1990 na criao da Rede Alerta contra o Deserto Verde, uma experincia indita de articulao entre comunidades tradicionais, movimentos sociais do campo, ONGs, pastorais sociais e tambm indivduos dispostos a apoiar as lutas das comunidades que vm resistindo monocultura de eucalipto e que lutam pela re-

tomada do seu territrio. A militncia da Rede Alerta tambm tem se dedicado, nestes ltimos dez anos, ao estudo do projeto de expanso contnua do eucalipto e celulose nas suas diversas dimenses e impactos. O presente livro um esforo da Rede Alerta para sistematizar e disponibilizar esta acumulada experincia para o pblico. Para a Rede Brasil sobre Instituies Financeiras Multilaterais, que h quinze anos monitora as polticas e investimentos dos grandes bancos internacionais e regionais e, mais recentemente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social (BNDES) - no projeto de desenvolvimento no Brasil, esta publicao expe o significado desse projeto a partir da realidade dos territrios onde atuam as empresas beneficiadas por volumosos financiamentos, muitas vezes pblicos. Este livro apresenta uma srie de artigos que explicitam os graves impactos sociais, ambientais, culturais e econmicos causados por polticas governamentais inadequadas e aplicadas de forma autoritria. As instituies financeiras justificam os investimentos atravs do anacrnico e falso discurso de estarem trazendo para as regies onde se implantam o desenvolvimento, o progresso e a gerao de muitos empregos. Os textos mostram que o que ocorre, na realidade, justamente o contrrio: a qualidade de vida das populaes locais piora, a violncia aumenta e os empregos oferecidos tm carter exploratrio e, geralmente, causam grandes danos sade dos trabalhadores. Portanto, essencial conhecer com profundidade os impactos reais dessas polticas nefastas e, ao mesmo tempo, aprender com as lutas de resistncia das populaes impactadas. Este nos parece um dos caminhos para avanar na construo de projetos locais e regionais que se contraponham s polticas de desenvolvimento que continuam dominando a agenda poltica das aes do Estado brasileiro. A Rede Brasil sobre Instituies Financeiras Multilaterais contribuiu com enorme satisfao na realizao do presente livro e gostaria de convidar outras redes parceiras e movimentos aliados a seguir este caminho, sistematizando e socializando as informaes. Trata-se de uma contribuio fundamental na luta por um Brasil com justia social e ambiental.

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IntrOduORede Alerta contra o Deserto Verde

A proposta deste livro abordar os diversos impactos da implantao e dos subsequentes investimentos agroindustriais da empresa Aracruz Celulose no estado do Esprito Santo.

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esde os primeiros plantios de eucalipto na dcada de 1960, diversos movimentos populares e pesquisadores denunciam a Aracruz Celulose pela usurpao de direitos econmicos, sociais e culturais das camadas populares capixabas e, tambm, pela devastao ambiental vinculada a cada um de seus empreendimentos. Este livro fruto da riqueza de informaes acumuladas a partir desses movimentos de contestao. Sobretudo nos ltimos dez anos, a organizao desse material (artigos e teses acadmicas) foi possvel graas ao trabalho desenvolvido pela Rede Alerta contra o Deserto Verde. Esta articulao rene lideranas das comunidades impactadas pela monocultura do eucalipto (indgenas e quilombolas), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), bem como vrias outras organizaes com representao no estado, como a Federao de rgos para Assistncia Social e Educacional (Fase), a Comisso Pastoral da Terra (CPT), a Associao dos Gegrafos Brasileiros (AGB) e o Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), incluindo ainda pesquisadores, religiosos, estudantes e uma diversidade de ativistas que atuam no Esprito Santo e no sul da Bahia. A proposta da Rede Alerta sempre foi combater a expanso das plantaes de eucaliptos da Aracruz e de outras empresas atravs do apoio s lutas locais de resistncia das comunidades e movimentos impactados, muitos dos quais tiveram suas terras tomadas pela Aracruz, alm de incentivar e promover o debate com a sociedade sobre o nefasto modelo de desenvolvimento que o projeto da Aracruz representa para o estado e para sua gente. Desse modo, esta publicao apresenta um esforo de reflexo coletiva, disponibilizando, ao pblico em geral, mas, em particular, para a militncia popular, estudantes

e pesquisadores de outros estados brasileiros, um conjunto de textos que entendemos ser de grande relevncia para a compreenso de uma parcela significativa de nossa histria recente. As primeiras plantaes de rvores para a produo de celulose no Brasil ocorreram no final da primeira metade do sculo XX. A Klabin Irmos e Cia. foi uma das pioneiras nas experincias de produo interna de pasta de celulose associada produo de papel. Esta empresa nasceu da converso de uma grfica da famlia em uma companhia importadora de papel e produtora de materiais para escritrio e, posteriormente, tornou-se uma grande produtora nacional de celulose e papel. Segundo dados da Associao Brasileira de Celulose e Papel, j em 1950 a produo interna de celulose no Brasil chegava bem prximo de 100 mil t/ano (Bracelpa, 2008). Foi no final daquela dcada que o governo federal passou a planejar mais intensivamente a ampliao da produo de celulose no Brasil, dentro das perspectivas estratgicas do Plano de Metas, do governo Juscelino Kubitscheck. A partir dessa interveno governamental, outras tantas deram sequncia promoo das plantaes de rvores em regime de monocultura e, de forma combinada, na trajetria da produo de celulose no Brasil. At ento, a produo de celulose no Pas era motivada pelo abastecimento interno da indstria papeleira num modelo associado e verticalizado da cadeia produtiva de celulose e papel. A partir daquele perodo, alm do volume da produo de celulose ter se multiplicado em 1964 ultrapassava 500 mil t/ano (Bracelpa, 2008) , a composio de sua cadeia produtiva foi alterada e passou a se desvincular da produo interna de papel. Novas plantas industriais passaram a se especializar na produo de pasta de celulose de mercado e a se voltar para o comrcio exterior, visando atender demanda por insumos bsicos da indstria mundial de papel em franco crescimento. A elevao abrupta da produo nacional de celulose pressupunha resolver um problema clssico desse ramo industrial: a oferta de matria-prima. Por isso, os investimentos pblicos e privados, que passaram a ser articulados naquele mesmo perodo, se destinavam tambm elevao da produtividade na produo de madeira, o que exigia o incremento de pesquisas tecnolgicas e o intercmbio de informaes com equipes de pesquisadores dos pases tradicionalmente grandes produtores e consumidores de celulose e papel. A soluo encontrada pelos pesquisadores e pelas equipes de planejamento foi viabilizar economicamente a produo interna de celulose de eucalipto. Observou-se que, enquanto o tempo de produo das florestas nos pases de terras frias variava entre 25 e 100 anos, no Brasil, as rvores de eucalipto poderiam ser cortadas para a produo de celulose, em mdia, com sete anos, desde que se investisse no manejo das plantaes em regime de mono-

cultura de espcies adequadas s condies tropicais. A montagem dessa nova forma de organizao da produo de celulose no Brasil se adequava ao modelo que se constitua internamente como padro de desenvolvimento. Ou seja, a magnitude dos novos investimentos exigia, para a viabilidade de seu financiamento e tambm para a transferncia de tecnologia, a formao de joint ventures com o capital estrangeiro e uma grande participao estatal, inclusive na composio acionria dos novos negcios. Com esses novos movimentos empresariais e do governo federal, foi possvel iniciar a reverso do padro interno da emergente indstria de celulose, que estava baseado na produo integrada celulose-papel, abrindo um novo cenrio para a substituio de importaes a partir de plantas industriais exclusivas em celulose. Aps o Golpe de 1964 ocorreram significativos momentos de avano no processo de expanso das plantaes de eucalipto no Brasil. A princpio, em plena ascenso do regime militar, para alm de toda a poltica ortodoxa de controle monetrio, procedimentos do governo federal estimulavam uma nova perspectiva para o reflorestamento em geral e, posteriormente, para aquele voltado para a celulose em particular. A criao do Sistema Nacional de Crdito Rural e do novo Cdigo Florestal so exemplares da atuao do governo neste sentido. Tais medidas ampliavam o leque de oportunidades de investimentos internos na produo programada de madeira para fins diferenciados, como aqueles vinculados produo de carvo vegetal e ao processamento de celulose. Entretanto, somente na segunda metade dos anos de 1960 foram gestadas, interna e externamente, as condies para um novo e longo ciclo de expanso do plantio de eucalipto em territrio nacional. No processo de esgotamento do modelo de substituio de importaes, alguns empresrios perceberam a tima oportunidade de acumulao, possvel atravs do aumento da escala de produo interna visando alcanar os mercados internacionais de celulose, e estimulada pelos incentivos fiscais silvicultura de eucalipto. Naquele momento, as relaes comerciais e de investimento nos mercados internacionais, em geral, estavam sendo significativamente modificadas. Aps dcadas de controle e regulao dos Estados Unidos, as economias europia e a japonesa, plenamente reconstrudas e recuperadas dos abalos blicos causados pela Segunda Guerra Mundial, passavam a contestar o poder da economia estadunidense. A concorrncia europia e japonesa, depois de haver ganho a batalha comercial, enfrenta a do investimento direto externo. Assim, o processo de expanso das filiais e de transnacionalizao dos capitais procedentes destes pases comea a recortar o espao econmico mundial at ento

sob controle especificamente americano. Em particular, reforam uma segunda onda de industrializao dos pases da periferia. (Teixeira, 1993, p. 188) O movimento do capital mundial facilitava uma nova investida dos militares, que impunham um novo comando na poltica econmica ditada da recm construda Braslia. A poltica macroeconmica explicitava uma vertente expansionista, elevando os investimentos estatais em infraestrutura e na qualificao da fora de trabalho exigida pela expanso da produo e dos novos investimentos privados. Estes eram motivados por incentivos fiscais e linhas de financiamento subsidiado. A partir da Reforma Tributria de 1966-67, tambm ocorreu a centralizao da arrecadao tributria na esfera federal. A capacidade de articulao de interesses regionais de cada unidade federativa, junto ao poder central, marcava os resultados correspondentes na autorizao para criao de instituies e instrumentos locais de fomento produo industrial, uma vez que seu funcionamento dependia de recursos centralizados na esfera federal. (Gomes, 1998, p. 46) Tratava-se, portanto, de um contexto externo e interno muito particular para as oportunidades de investimentos voltados direta e indiretamente para a indstrias de celulose de mercado no Brasil. As alteraes legislativas e institucionais ocorriam no mesmo ritmo em que movimentos nos mercados internacionais apontavam para uma presso da demanda por papel e celulose mas, tambm, para grandes dificuldades de expanso da produo de madeira nos pases que tradicionalmente se destacaram como grandes produtores mundiais dessa matria prima estratgica. Tais perspectivas internacionais foram apontadas por uma pesquisa divulgada pela FAO (instituio da Organizao das Naes Unidas ONU voltada para a alimentao e a agricultura), que indicava as dificuldades encontradas pelos pases tradicionalmente grandes produtores e consumidores de celulose e papel em ampliar a oferta de madeira nas regies frias do planeta. Entre as principais dificuldades, destacavam-se a indisponibilidade de terras nos pases centrais, o longo perodo de maturao das plantaes, bem como as presses dos movimentos sociais contra o aumento das emisses de poluentes e a ampliao das monoculturas em seus respectivos pases. A notcia de que os mercados internacionais de madeira estavam abrindo oportunidades de localizao de novas fbricas de celulose motivou a intermediao de interesses no Brasil, especialmente a partir da interveno da, ento estatal, Cia. Vale do Rio Doce, que procurava al-

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ternativas de diversificao industrial. O primeiro resultado objetivo dessa articulao de interesses foi a promulgao da Lei n 5.106, de 02 de setembro de 1966. A nova legislao implicava na criao de amplos incentivos fiscais para o que chamavam de reflorestamento, numa ntida demonstrao do poder de articulao dos empresrios que pressionavam os militares por ampliao de benefcios do Estado brasileiro para a nova empreitada. Alm dos benefcios definidos pela Lei n 5.106/66, ainda existiam naquele momento as linhas de financiamento vinculadas ao Instituto Brasileiro do Caf (IBC)/Gerca, do Ministrio da Agricultura, voltadas para a diversificao agrcola e industrial nos estados atingidos pelos programas de erradicao de cafezais. Destacou-se tambm, dentre as aes do governo federal, a criao do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), em 1967, perodo em que tambm se formava a primeira turma de engenheiros florestais, curso mantido por convnio entre o IBDF e a FAO. Assim, o que na origem se apresentava como uma poltica nacional mais abrangente, voltada inclusive para a soluo de problemas energticos da indstria siderrgica brasileira, que demandava muito carvo, passou a se apresentar mais explicitamente como um planejamento de longo prazo, destinado ampliao das plantaes de eucalipto, em larga escala, objetivando a produo de celulose de mercado para a exportao. Todo o arranjo poltico e institucional construdo a partir do final dos anos de 1960 formou a base de sustentao pela qual o Estado passou a fomentar a produo de celulose de mercado no Brasil. A produo interna se multiplicou e em 1972 j ultrapassava um milho de t/ ano. Entretanto, a grande guinada da produo interna de celulose ocorreu na virada para os anos de 1980, quando entrou em operao o primeiro projeto industrial da Aracruz Celulose no estado do Esprito Santo, elevando a produo brasileira para mais de trs milhes de t/ano e abrindo uma sequncia de grandes investimentos nesse novo mercado. Em meados dos anos de 1990, novos investimentos dobraram novamente a produo de celulose no Brasil. Em 2007, cerca de 12 milhes de t/ano (Bracelpa, 2008) foram produzidas no Pas. A partir da primeira grande fbrica instalada no municpio de Aracruz, no norte do Esprito Santo, os novos investimentos industriais e a expanso das plantaes de eucalipto (e tambm de pinus) alteraram a distribuio da produo setorial em todo o Pas. Atualmente, as plantaes de rvores exticas em regime de monocultura ocupam grandes extenses de terras nas regies Sul, Sudeste e Centro-Oste, com exceo dos estados do Rio de Janeiro e Tocantins, onde os projetos ainda esto em fase de estudos e implantao. Destacam-se as plantaes de eucalipto localizadas em Minas Gerais, no sul da Bahia,

norte do Esprito Santo e no Maranho. E importante observar que, mais recentemente, expandiram-se as ocupaes de territrios na Amaznia, em especial no Par e no Amap. Alm da produo de celulose, as plantaes de rvores exticas em regime de monocultura destinam-se a vrios outros fins no Brasil. A expectativa de que esse processo de diversificao no uso da madeira expanda-se ainda mais, elevando a demanda por essa fonte de fibras celulsicas. Em particular, atualmente, h uma presso em relao aos novos usos para o eucalipto no sentido de aumentar a oferta diferenciada com a evoluo das pesquisas e com as primeiras experincias de produo de rvores transgnicas e a hidrlise de celulose voltada para a fabricao de etanol. Este o contexto geral em que se produz esta publicao. Contudo, como anunciado no incio desta introduo, este livro se prope a apresentar os impactos econmicos, sociais, culturais e ambientais dos investimentos desse amplo mercado numa regio especfica do Brasil: o Esprito Santo. Nessa perspectiva, dividiu-se o livro em quatro partes. primeira parte, ficaram reservados os textos que tratam das comunidades tradicionais, as primeiras a sofrer os impactos do projeto da Aracruz Celulose e tambm as que iniciaram as lutas de resistncia, que continuam at os dias de hoje. Portanto, em seu princpio, o livro explicita os impactos da chegada do Grupo Aracruz, em 1967, ao municpio de Aracruz, especialmente aqueles que envolvem a expulso das comunidades indgenas Tupiniquim e Guarani de suas terras, a intensificao da derrubada da Mata Atlntica e a sua substituio pela monocultura do eucalipto. Neste municpio, foi inaugurada, em 1978, a primeira das trs fbricas de celulose implantadas pela Aracruz, sendo que ela se localiza exatamente no mesmo lugar onde viviam os moradores da Aldeia Tupiniquim de Macacos. Tambm nesta poca aconteceram as primeiras manifestaes da luta dos Tupiniquim e Guarani pela recuperao de suas terras. Este movimento alcanou grande xito em 2007, com a recuperao de mais de 18 mil hectares do territrio tradicional. Ainda na primeira parte, o livro apresenta a expanso das plantaes de eucalipto do Grupo Aracruz para o extremo norte do estado nos anos de 1970. Os municpios de So Mateus e Conceio da Barra foram os principais receptores desses pesados investimentos na monocultura de rvores exticas e, tambm, os que experimentam, at hoje, os maiores embates do grande capital com as comunidades tradicionais, pois, tal investida significou tambm a invaso do territrio das comunidades quilombolas da regio do Sap do Norte. Num processo semelhante ao que ocorreu nas terras indgenas, as comunidades perderam suas terras e riquezas naturais e, s mais recentemente, a partir de maiores garantias legais, os qui-

Distribuio das plantas agroindustriais de madeira e celulose no Brasil

Fonte: Melo, 2008, p. 229

lombolas puderam intensificar a luta pela recuperao do seu territrio. Nas lutas pela recuperao de suas terras, das florestas, dos rios e da biodiversidade, as mulheres dessas comunidades sempre tiveram destaque. Vale ressaltar que, apesar de sofrerem os maiores impactos, as mulheres tm uma atuao cada vez mais crescente. Isso tambm se explicita nas aes das mulheres da Via Campesina na luta contra a expanso dessa monocultura no Esprito Santo e em todo o Brasil. Nessa primeira parte do livro procurouse demonstrar que, com a ocupao dos territrios indgenas e quilombolas, a Aracruz Celulose construiu a base para a apropriao dos grandes territrios de suas ope-

raes no Brasil. Ou seja, a partir da invaso de cerca de 130 mil hectares de terras anteriormente ocupadas pelas comunidades tradicionais e pela Mata Atlntica, concentradas em apenas trs municpios capixabas, foi possvel iniciar a rede devastadora que representa seus empreendimentos no Pas. A segunda parte apresenta os impactos especficos do complexo agroindustrial da Aracruz Celulose sobre as guas dos rios e crregos de importantes bacias hdricas no territrio capixaba. Os textos que abordam esta preocupao demonstram o severo significado da degradao e, at mesmo, do esgotamento de certos mananciais para as comunidades tradicionais ribeirinhas e demais

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famlias camponesas, as quais foram cerceadas do acesso a fontes de produo de alimentos devido ao consumo exorbitante de gua pelas plantaes de eucaliptos e pela produo industrial de celulose em larga escala. Na sequncia, so explicitadas as relaes entre a produo altamente mecanizada de eucalipto e celulose, as condies de trabalho e a oferta de emprego nas reas de abrangncia das atividades do Grupo Aracruz no Esprito Santo. De incio, estes impactos atingiram, em especial, as comunidades tradicionais. Mas, com o aumento da produo em terras de camponeses e com a introduo do programa de Fomento Florestal, terceirizando a produo de madeira para camponeses e fazendeiros, esses impactos comearam a se espalhar por vrias reas no estado, assim como por outras regies do Pas. O processo de expanso da Aracruz resultou especialmente da aquisio, em 2000, de 50% das aes da Veracel Celulose na Bahia e, depois, em 2003, da fbrica da Riocell no Rio Grande do Sul. Em 2009, o Grupo Votorantim comprou as aes do Banco Safra e do Grupo Lorentzen e tornou-se o principal acionista e dono da Aracruz a empresa estava praticamente falida por ter perdido cerca de US$ 2,13 bilhes devido especulao financeira no mercado internacional de derivativos (ttulos podres). Com participao de 12,5%, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social (BNDES), generosamente financiou R$ 2,4 bilhes para a operao de fuso e tornou-se o segundo maior acionista da Aracruz que, a partir da compra pela Votorantim, adotou o novo nome de Fibria. Portanto, de um mega-presente do BNDES, pago com recursos pblicos que deveriam beneficiar a classe trabalhadora, atualmente, esta mega-empresa a lder mundial no mercado de celulose, detm mais de um milho de hectares de terras em seis estados brasileiros (Esprito Santo, Bahia, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul e So Paulo) e se constitui em uma das maiores corporaes do agronegcio e uma das grandes beneficiadas pelos subsdios do governo brasileiro. A terceira parte desta publicao trata das relaes entre a empresa Aracruz Celulose e as diversas instncias do poder na sociedade brasileira. O estudo da rpida expanso desse conglomerado revela o quo importante foi a participao do Estado brasileiro na garantia de que esse crescimento pudesse ocorrer com o mximo de lucratividade possvel, inclusive financiando e subsidiando a Aracruz, principalmente atravs do BNDES. certo que essa relao de poder implica em uma rede de reciprocidades envolvendo uma gama de agentes pblicos e privados com interesses diretos em jogo. Uma das bases dessa relao de poder tem sido o financiamento de campanhas eleitorais de candidatos aos poderes executivo e legislativo - desde a presidncia da Repblica, passando por governadores, deputados federais e estaduais, at prefeitos e vereadores. Essa prtica expli-

ca a falta de compromisso do Estado em apurar as ilegalidades e irregularidades da Aracruz Celulose. Tambm de suma importncia para os interesses do grande capital que tudo isso fique invisvel para a sociedade e que apenas uma boa imagem empresarial seja divulgada. Isso se concretiza devido identidade ideolgica e, tambm, aos interesses financeiros que aproximam as principais e mais influentes empresas de comunicao social da Aracruz. Da, a proposta de apresentar nessa terceira parte do livro o poder que essa empresa exerce na grande mdia, em especial na Rede Gazeta de Comunicaes, afiliada da Rede Globo, lder de audincia no Esprito Santo. Apesar de todas as tentativas de greenwashing, apesar de se mostrar como farol da modernidade e do desenvolvimento capixaba, a Aracruz Celulose se tornou, para os movimentos camponeses capixabas, o maior smbolo do agronegcio no estado e, portanto, um alvo importante na luta pela reforma agrria e pela justia social, ambiental e econmica no campo. Na ltima parte, dois curtos textos pretendem alertar para a complexidade dos futuros desafios postos sociedade civil em seu enfrentamento a uma gigante como a Aracruz. O primeiro texto traz elementos sobre a atuao das empresas poluidoras no sentido de transformar o problema das mudanas climticas em mais uma oportunidade de lucro. Em seguida, um apanhado de dados explicita quem so os maiores interessados na manuteno do atual sistema mundial de produo e consumo de papel, quo injusta a distribuio desse produto e a urgente necessidade de rompermos com a cultura do consumo excessivo. Esta publicao termina com uma projeo da histria que, mesmo sendo fico, demonstra bem a realidade insana produzida pela lgica que perpassa o projeto da empresa Aracruz Celulose no Esprito Santo. O maior grupo econmico no seu setor em todo o mundo com grande capacidade de acumulao e influncia poltica, que passou e passa por vrias transmutaes patrimoniais, envolvendo um profundo processo de centralizao de capitais, e que conta com o apoio fundamental do Estado e sua incessante luta contra as camadas mais desprotegidas do povo brasileiro. Soa surreal, mas, infelizmente, no . RefeRncias BiBliogRficasBracelpa. Celulose: evoluo histrica da produo, 2008. Disponvel em http://www.bracelpa. org.br/bra/estatisticas/pdf/anual/celulose_00.pdf Gomes, Helder. Potencial e limites s polticas regionais de desenvolvimento no estado do Esprito Santo: o apego s formas tradicionais de intermediao de interesses. Vitria (ES): UFES (Dissertao Mestrado), 1998. Melo, Rafael Rodolfo de, et. al. Evoluo do setor florestal brasileiro. In: 4 Simpsio Latino-Americano sobre Manejo Florestal (Anais). Santa Maria (RS): UFSM/CCR, 26-28/ nov./2008. Teixeira, Alosio. O movimento da industrializao nas economias capitalistas centrais no ps-guerra. Rio de Janeiro (RJ): UFRJ/IEI, 1993.

NOTA DA EDITORA

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lguns aspectos precisam ser esclarecidos a respeito da publicao de Aracruz Credo. O primeiro deles o fato de que, apesar de em 2009 - a partir da compra da Aracruz Celulose pelo Grupo Votorantim - esta empresa ter adotado o nome de Fibria, os textos e o ttulo deste livro continuam a se referir empresa como Aracruz. Esta opo deve-se ao fato de que, primeiro, por mais que invista recursos substanciais para ser vista como uma empresa diferente e utilize um discurso politicamente mais sofisticado no trato com as comunidades locais, tentando construir a imagem de uma empresa social e ambientalmente responsvel, a sua atuao e a lgica de sua prtica no mudaram em absolutamente nada. Ao contrrio, a Fibria, com mais de um milho de hectares plantados com eucalipto no Pas, tem atuado de modo ainda mais agressivo no que concerne concentrao de terras. Por outro lado, nenhum esboo de mudana tem sido feito no sentido de devolver as terras quilombolas, devidamente identificadas e reconhecidas pelo Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria (Incra) e que foram indevidamente apropriadas destas comunidades, ou para a recuperao dos milhares de hectares de Mata Atlntica que foram destrudos no Esprito Santo. Tambm no se verifica qualquer disposio de produzir celulose de uma forma radicalmente diferente: em pequena escala, a partir de fontes de fibra diversificadas (evitando, desse modo, as grandes monoculturas), sem a massiva utilizao de agrotxicos, sem usurpar as guas dos rios e crregos da regio, sem impactar a agricultura familiar e camponesa e sem explorar os trabalhadores, por exemplo. Outro motivo a constatao de que a histria desses 40 anos de severos e irreversveis impactos que a Aracruz construiu no Esprito Santo no pode cair no esquecimento. Trata-se de um passado e de um presente manchados pelo profundo desrespeito vida, que devem necessariamente ser informados s futuras geraes para que elas compreendam o processo histrico e a realidade

na qual estaro inseridas e que, seguramente, ser impactada pelas aes e ilegalidades que esta empresa cometeu e ainda comete. Manter vivo este histrico, no permitindo que uma mudana de nome o apague da memria, uma forma de tentar evitar que a histria se repita. Tambm importante ressaltar que, ao publicarem este livro, tanto a Rede Alerta quanto a Rede Brasil tm como proposta dar voz s pessoas e comunidades que nunca foram consultadas sobre as extensas plantaes de eucalipto, sobre as drsticas mudanas nos seus modos de vida e nem sobre os impactos no meio em que viviam. Mesmo sob as mais adversas condies, essas pessoas ainda hoje lutam para ter seus direitos fundamentais respeitados. Portanto, vrios artigos de Aracruz Credo privilegiam justamente os depoimentos de indgenas, quilombolas, mulheres e trabalhadores. Personagens de uma vida impactada por inmeras violaes, seus testemunhos nos aproximam de um modo bastante singular dos desafios que a implantao da Aracruz imps diretamente s suas vidas. Por ltimo, vale reforar que este livro rene textos escritos em diferentes momentos dos ltimos dez anos em que a Rede Alerta atua contra o deserto verde na regio do Esprito Santo. Nesse sentido, apesar de os artigos terem sido, em linhas gerais, atualizados, alguns dados mais especficos podem estar defasados, ainda mais considerando a lgica que move mega-empresas como a Aracruz, em que a busca pelo crescimento e pelo aumento da produo e lucratividade so movidas por um ritmo bastante acelerado e insano. Oxal Aracruz Credo 40 anos de violaes e resistncia no ES possa ser um instrumento para a compreenso da atuao das mega-empresas e do funcionamento do sistema capitalista em que elas esto inseridas; e, por outro lado, da necessidade de, tendo em vista essa complexa realidade, nos organizarmos para a construo de um campo contra hegemnico e, finalmente, uma sociedade justa e solidria. Boa leitura!13

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A questo indgena A questo quilombola Impactos socioambientais no Sap do Norte Impactos sobre as mulheres

PARTE 1

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Uma revelao, recebida atravs de um sonho, pela lder religiosa Guarani, Tatantim Varet, foi determinante para encorajar a luta indgena

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Tupiniquim e Guarani: smbolos da resistncia

Fbio Martins Villas

A inteno deste artigo descrever e comentar o processo de resistncia e luta dos Tupiniquim e Guarani, localizados no municpio de Aracruz, estado do Esprito Santo (ES), pela reconquista de suas terras, desde 1967. Os Tupiniquim, originrios do Esprito Santo, perderam progressivamente parcelas significativas do seu territrio original desde o incio da colonizao portuguesa em 1500. Mas foi a partir da dcada de 1960, com a implantao da Aracruz Celulose, que este povo sofreu um golpe to forte e certeiro que quase comprometeu sua continuidade histrica como povo indgena. A empresa invadiu o que ainda restava de terra indgena e deu incio a extensas plantaes de eucalipto. Posteriormente, trs unidades de produo de celulose foram implantadas. Aps a retirada dos indgenas, a maioria das aldeias foi destruda, a mata nativa - que cobria uma grande rea - foi derrubada e rios e crregos foram sugados pela monocultura do eucalipto, comprometendo as condies de sobrevivncia fsica e cultural. Os crregos que no secaram foram reduzidos ao nvel mais baixo e/ou envenenados pelos agrotxicos utilizados pela empresa. Na dcada de 1960, pouco antes do incio da atuao da Aracruz na regio, um grupo de Guarani Nhdwa1 chegou ao Esprito Santo, vindo do sul do Brasil, numa caminhada que teve incio nos anos de 1940. O movimento migratrio uma caracterstica da cultura Guarani, remonta ao perodo pr-colombiano e realiza-se no que os Guarani consideram como o grande territrio Guarani, o Tekoa Guassu. A motivao para o Oguata (caminhar) religiosa mas, muitas vezes, provocada ou impulsionada por disputas de terras com no-ndios. Por isso, os Guarani caminham em busca da terra sem males (Yvy Mare Y), a qual possui uma dimenso mstica, alcanada aps a morte, e outra terrena, o lugar, uma aldeia,

um Tekoa, que garanta as condies ideais (mata, gua, caa, pesca, etc.) para a manifestao do modo de ser Guarani (Teko). Estas condies foram, em grande medida, encontradas pelos Guarani no territrio Tupiniquim, no Esprito Santo, e foram por eles acolhidos como parentes. Nos 40 anos de disputa com a Aracruz Celulose, os Tupiniquim e Guarani enfrentaram vrios desafios: a burocracia estatal, vrias operaes policiais, decretos e decises judiciais contra eles, criminalizao de lideranas, imposio de acordos ilegais, projetos econmicos integracionistas ao mercado, uma campanha difamatria patrocinada pela empresa, presses e chantagens de representantes dos governos federal, estadual e municipal, abaixo-assinados e passeatas da populao local manipulada pela empresa e o boicote de uma mdia comprometida com os interesses do agronegcio e, em particular, com a Aracruz Celulose. Porm, nada disso foi suficiente para arrefecer a luta e a resistncia dos Tupiniquim e Guarani, embora tenha contribudo para retardar o processo de reconquista do territrio, prolongando e agravando os impactos da monocultura do eucalipto sobre a terra e o meio ambiente e sobre as condies de sobrevivncia das famlias indgenas. Para superar esses desafios e conseguir recuperar uma parte significativa de suas terras, os ndios realizaram vrias aes, como ocupaes de terra (1979 e 2000), auto-demarcaes (1980, 1998 e 2005), ocupaes das fbricas da empresa (2005) e do Portocel, por onde exportada a celulose produzida pela Aracruz, (2006), derrubada e queima de eucaliptos (2006) e reconstruo de aldeias (2005, 2006 e 2007). Uma das caractersticas marcantes desta luta foi a capacidade dos ndios em agregar aliados e parceiros do Esprito Santo, do Brasil e do exterior - condio fundamental para o enfrentamento de uma empresa do porte da Aracruz Celulose. O apoio e a solidariedade da igreja catlica, atravs das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e do Conselho Indigenista Missionrio (Cimi), no perodo de 1979 a 1981; do Frum Campo e Cidade2, da igreja catlica e do Partido dos Trabalhadores (PT), no perodo de 1993 a 1998; e da Rede Alerta contra o Deserto Verde, no ltimo perodo de luta entre 2005 e 2007, foi fundamental para fortalecer a capacidade de resistncia e luta dos indgenas contra a Aracruz. Ao mesmo tempo, as campanhas contra a empresa e o governo deram uma ampla repercusso luta indgena, despertando e atraindo a solidariedade nacional e internacional em favor dos Tupiniquim e Guarani. O desfecho da disputa veio com a edio das Portarias de Delimitao (nmeros 1.463 e 1.464), em 27 de agosto de 2007, do Ministrio da Justia (MJ), declarando as terras (18.027 hectares)3 como tradicionalmente ocupadas pelos povos Tupiniquim e Guarani e determinando a sua

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A repercusso da luta indgena e da reconquista de suas terras circulou pelo Pas e pelo mundo e rendeu aos ndios e seus aliados manifestaes de apoio e solidariedade e homenagens como o prmio do Movimento Nacional de Direitos Humanos e o prmio Luta pela Terra, do MST, ambos em 2008. De 1500 a 1967: perodo de resistncia e de perdas sucessivas Calcula-se que no Brasil, antes da chegada dos colonizadores portugueses, existiam cerca de mil povos indgenas. Hoje, restam apenas cerca de 240. No entanto, povos indgenas tidos como extintos durante o processo de colonizao esto ressurgindo em vrias partes do Pas, notadamente nas regies leste e nordeste, e exigindo o reconhecimento oficial de sua indianidade e, consequentemente, de seus direitos (em particular, o da demarcao de suas terras). A simples sobrevivncia dos Tupiniquim ao processo de extermnio desencadeado a partir de 1500 pode ser considerada uma vitria desse povo. Porm, esta vitria foi acompanhada por sucessivas perdas: do territrio indgena e de seus recursos naturais; da populao indgena, dizimada pelas doenas, pelas guerras e pela escravizao; de elementos culturais e religiosos, inclusive do idioma Tupi, em funo dos programas de integrao (atravs dos aldeamentos e da catequese religiosa) e da represso; e de impactos profundos na identidade indgena. Neste particular, os Tupiniquim, um povo indgena autctone, possuidor de uma cultura construda e reconstruda milenarmente, foi taxado durante o perodo da colonizao de selvagem e bugre. Posteriormente, foram denominados caboclos, remanescentes indgenas e, mais recentemente (1976), considerados pelo governo militar como ndios aculturados e aptos a serem emancipados. Ao longo de todo esse processo foram, como os demais povos indgenas, sistematicamente pressionados a se integrar ao sistema econmico dominante, que tinha como objetivo a incorporao da mo-de-obra indgena, de suas terras e dos recursos naturais ao mercado. As consequncias foram, e continuam sendo, a expropriao dos seus bens materiais e imateriais e o seu empobrecimento. Os povos pertencentes ao tronco lingustico TupiGuarani sempre ocuparam, em sua grande maioria, o litoral brasileiro. No foi uma ocupao gratuita e espontnea. Ao contrrio, foi uma conquista sobre outros povos, ou seja, um territrio conquistado e construdo ao longo de sculos de ocupao. Em 1500, o territrio Tupiniquim compreendia uma rea situada entre o sul da Bahia e o Esprito Santo. Sua populao foi estimada por John Hemming4 em mais de 55 mil habitantes. Em 1610, aps sucessivos conflitos com os portugueses, este territrio foi drasticamente reduzido a uma sesmaria de terra no Esprito Santo, corres-

A luta indgena foi repercutida no Brasil e pelo mundo

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demarcao. Dito de outra maneira, a deciso do governo brasileiro, embora com um atraso de quarenta anos, reconheceu que as terras em disputa sempre pertenceram aos ndios e que a Aracruz Celulose as ocupou ilegalmente durante esse longo perodo. Posteriormente, em 03 de dezembro de 2007, foi assinado em Braslia, um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) entre os ndios e a Aracruz Celulose, tendo como intervenientes a Fundao Nacional do ndio (Funai) e o Ministrio Pblico Federal (MPF). Isto se fez necessrio para possibilitar a continuidade do processo de regularizao administrativa das terras. Sem o TAC, haveria a possibilidade (ameaa) da Aracruz contestar e suspender judicialmente os efeitos das portarias do MJ por tempo indeterminado, podendo inclusive colocar em risco a retomada das terras pelos Tupiniquim e Guarani. A demarcao fsica das terras foi concluda no ms de maro de 2008 e a homologao pelo presidente da Repblica, prevista para 2009, somente foi assinada em novembro de 2010. Entre abril e dezembro de 2009 foi realizado um estudo etno-ambiental com o objetivo de identificar as melhores alternativas de uso da terra, visando projetos e programas que promovam a auto-sustentao das comunidades indgenas e a recuperao ambiental do territrio conquistado. Este estudo tambm realizou, com a participao das comunidades indgenas, um plano de ocupao e uso do territrio indgena pelos Tupiniquim e Guarani. importante assinalar que essa vitria contra a Aracruz Celulose significa, em grande medida, uma vitria contra o agronegcio e o modelo de desenvolvimento que essa mega-empresa representa e tem sido adotado no Brasil e, em particular, no Esprito Santo - pelas elites, com total apoio do governo. A resistncia indgena sempre esteve inserida na luta contra o agronegcio e por uma mudana estrutural no modelo de produo e consumo.

pondente a seis lguas em quadro [a lgua de sesmaria tem 6.600 metros]. Em 1760, foram demarcadas apenas as terras habitadas dessa sesmaria, tendo como extenso 61 km de costa e 39 km de fundo (237.900 ha), o que significou, novamente, reduo das terras indgenas. Sem a proteo dos jesutas, expulsos do Brasil em 1760, e do governo portugus, as terras foram rapidamente ocupadas por fazendas, povoados e vilas. Pressionados, no incio do sculo XX, os Tupiniquim se refugiaram no norte do territrio demarcado, uma regio despovoada e coberta por densa mata nativa, com cerca de 150 mil ha5. Na dcada de 1940 ocorreram mudanas mais intensas na regio habitada pelos ndios. Cerca de 10 mil ha foram ocupados pela Companhia Ferro e Ao (Cofavi) com autorizao do Estado, com o objetivo de explorar a floresta para a produo de carvo vegetal. At a dcada de 1960 ocorreram novas redues. Antes da chegada da Aracruz Celulose, os ndios ocupavam 55 mil ha6 e habitavam preferencialmente a regio que circunda o atual municpio de Aracruz, onde, na poca, as matas e florestas naturais permitia que vivessem da pesca e da coleta de mariscos, da caa, da coleta de frutos e da agricultura de subsistncia, caracterizada pela itinerncia e a disperso espacial das reas de cultivo. Portanto, de um extenso territrio em 1500, restava aos Tupiniquim (e aos Guarani) apenas 55 mil hectares no final da dcada de 1960. Mesmo assim, esse territrio abrigava e proporcionava as condies de sobrevivncia a uma populao de dois mil ndios7, distribuda em quarenta aldeias, em sua maioria construdas no interior das florestas nativas, onde desenvolveram sistemas adaptativos e um modelo de sustentao que permitia, ao mesmo tempo, compatibilizar as necessidades do grupo, a manuteno dos recursos e a preservao da natureza.8 a invaso das terras pela aracruz celulose A expropriao das terras indgenas pela Aracruz Celulose, a partir de 1967, foi rpida e devastadora. Primeiro, ela adquiriu os 10 mil ha da Cofavi, que haviam sido entregues pelo governo na dcada de 1940. Em seguida, uma parte das terras dos Tupiniquim foi adquirida atravs de prepostos, como o do ex-prefeito de Aracruz, Primo Bitti (j falecido) e outros, que compravam a posse dos ndios, ou seja, a casa de estuque e palha e as benfeitorias (roas) por preos irrisrios, muitas vezes em troca de lotes na cidade de Aracruz. Para convenc-los diziam, segundo os ndios mais idosos, que a regio seria ocupada por uma empresa poderosa para o plantio de eucalipto e que eles ficariam ilhados e suas terras se tornariam improdutivas. Aps a negociao, mediam as terras, s vezes aldeias inteiras, registravam nos cartrios em seus nomes ou de terceiros e as vendiam de imediato Aracruz Celulose. Por fim, na parte restante das terras, daqueles que se

recusaram a vender suas posses, a empresa utilizou outra ttica. Em seu quadro de funcionrios havia militares reformados, como o major Orlando, responsveis pela segurana da empresa. A eles competia convencer os ndios que resistiam. Ameaas e intimidaes foram constantes, sempre conduzidas, ainda segundo os ndios, por um militar fardado e cheio de medalhas. Aqueles que, mesmo assim, continuaram a resistir foram expulsos da terra e suas casas e aldeias destrudas pelos tratores da empresa. Ao mesmo tempo, tratores de esteira unidos por correntes derrubaram a mata nativa que, na sequncia, era queimada. Segundo os ndios e moradores da regio, as fogueiras ardiam durante semanas. Junto madeira, morriam carbonizados animais de vrios portes e espcimes. Em pouco tempo, 37 aldeias Tupiniquim foram destrudas. Restaram apenas Caieiras Velhas e Pau Brasil, ambas com apenas 25 ha cada. A aldeia de Comboios foi preservada da destruio e do plantio de eucalipto por ser uma rea de restinga. Mesmo assim, foi invadida por posseiros, muitos deles oriundos de outras regies, atrados pela instalao da Aracruz Celulose. Cerca de 50%9 da populao indgena Tupiniquim migrou para a periferia das cidades vizinhas, inclusive para a capital Vitria. A outra metade se refugiou nas aldeias sobreviventes. Com a expropriao das terras, parte dessa populao passou a sobreviver do trabalho temporrio no plantio do eucalipto e na construo da primeira fbrica, inaugurada em 1978. As aldeias serviam apenas como dormitrios para essa mo de obra. Uma outra parte dos ndios foi buscar o sustento das famlias nos manguezais dos rios Piraqu-Au e PiraquMirim, onde passaram a realizar a pesca e a extrao de diversos tipos de mariscos de forma intensiva, com srias implicaes para esse importante recurso natural. A perda das matas nativas e a reduo significativa das terras representaram uma desestruturao do modo de vida desse povo, ao inviabilizar suas principais fontes de subsistncia. As prticas da agricultura, da caa e da coleta foram drasticamente comprometidas. Crregos e riachos desapareceram ou diminuram seus nveis. Alm disso, a extino das aldeias forou a um novo reordenamento geogrfico, provocando crise de sociabilidade e dissoluo dos laos de reciprocidade.10 Enfim, a desestruturao das formas sociais, culturais e econmicas quase levou os Tupiniquim ao extermnio. Os Guarani tambm sofreram os impactos, embora no tivessem se subempregado na Aracruz Celulose, e passaram a viver exclusivamente da venda do artesanato. Em 1972, em resposta s denncias dos ndios, a Funai transferiu os Guarani e alguns Tupiniquim para a Fazenda Guarani em Minas Gerais, onde mantinha um Reformatrio Agrcola para ndios de vrias partes do Pas que cometiam delitos em suas reas de origem, muitas vezes decorrentes da luta contra invasores de suas terras.

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A resistncia das aldeias Caieiras Velhas, Pau Brasil e Comboios, garantindo abrigo para as famlias das aldeias destrudas pela Aracruz e dos ndios que retornaram da Fazenda Guarani em 1976, foi determinante para impedir a extino dos Tupiniquim e possibilitar a retomada do processo de recuperao das terras a partir de 1979. Apesar de reduzidos e das dificuldades em proporcionar condies mnimas de subsistncia, esses espaos preservaram o vnculo dos ndios com a terra, fundamental para a manuteno da identidade tnica, da comunidade enquanto suporte da coeso sociocultural, das festas religiosas e da esperana na construo das possibilidades de futuro. as lutas pela reconquista do territrio indgena As denncias na imprensa da transferncia dos Guarani para Minas Gerais, em 1972, tiveram repercusso nacional e revelaram ao Pas a existncia dos Tupiniquim no estado do Esprito Santo. Em 1975, durante a reunio da Sociedade Brasileira para o Progresso da Cincia (SBPC), antroplogos presentes divulgaram denncias do indigenista da Funai, Joo Geraldo Itatuitim Ruas, sobre a situao vivida por eles. No mesmo ano, o presidente do rgo indigenista, general Ismarth de Arajo, visitou a aldeia de Caieiras Velhas. Porm, nenhuma providncia foi tomada em favor dos Tupiniquim e Guarani. Para o governo militar e principal acionista da empresa (o Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social - BNDES - detinha 51% das aes), o projeto Aracruz Celulose j estava consolidado. Em outubro de 1978, a empresa inaugurou a sua primeira fbrica, com a presena do general-presidente Ernesto Geisel. Neste perodo havia uma grande mobilizao da sociedade brasileira, com repercusso internacional, contra um projeto do governo federal que tramitava no Congresso Nacional e que permitiria que ndios e at comunidades inteiras fossem emancipados, ou seja, deixassem de ser tutelados pelo Estado, perdendo assim a proteo do governo, principalmente no tocante demarcao das terras. Segundo declaraes de Rangel Reis, ministro do Interior, ao qual a Funai estava vinculada, a aprovao do projeto permitiria a integrao de toda a populao indgena do Pas (na poca 220 mil ndios) sociedade nacional num prazo de 30 anos. O carter etnocida do mesmo era evidente. O extermnio dos povos indgenas no se daria mais pelas armas e doenas, como no passado, mas pelo bico da caneta. No de se estranhar que os Tupiniquim fossem considerados pelos militares como os mais aptos no Pas a serem emancipados. Neste contexto, foi realizado em 1978, na Universidade Federal do Esprito Santo (UFES), um seminrio sobre a questo indgena com a presena de antroplogos de

renome nacional. Alm do projeto de emancipao, foi denunciada a situao em que viviam os Tupiniquim e Guarani e exigida a devoluo de suas terras ocupadas pela Aracruz Celulose. Um representante do Ministrio do Interior estava presente no evento e diante das presses anunciou a demarcao das terras que haviam restado aos ndios, ou seja, 25 ha em Caieiras Velhas e 25 ha em Pau Brasil. A proposta, rechaada pelos presentes no seminrio, confirmou o posicionamento do governo em favor da empresa e o descaso para com a situao dramtica vivida pelos Tupiniquim e Guarani. A repercusso desse anncio nas aldeias provocou indignao e revolta. Com a convico de que no viriam solues de Braslia, os ndios iniciaram os preparativos de aes de retomada da terra, mesmo sabendo das possveis reaes contrrias, inclusive da violncia policial. No perodo compreendido entre 1979 e 2007, ano em que acontece a demarcao das terras reivindicadas pelos ndios (18.027 ha), ocorreram trs perodos de maior enfrentamento com a Aracruz Celulose e o governo federal: de 1979 a 1981; de 1993 a 1998; e de 2005 a 2007, que sero descritos a seguir. 1979 a 198111 Em 1978, a populao Tupiniquim aldeada em Caieiras Velhas, Pau Brasil e Comboios somava apenas 611 ndios. Os Guarani, cerca de 70 pessoas, moravam em Caieiras Velhas em apenas trs casas, uma delas alugada. No ms de outubro desse ano chegou ao Esprito Santo uma famlia Guarani Kayov, composta de sete pessoas, vinda do Mato Grosso do Sul em busca da terra sem males. J haviam percorrido vrios estados (Mato Grosso, Par, Minas Gerais e sul da Bahia) quando souberam da existncia dos Guarani no Esprito Santo e decidiram se juntar a eles. A vinda desta famlia vai desencadear a luta dos Tupiniquim e Guarani pela terra. Inicialmente, foram morar em Caieiras Velhas, mas no ms seguinte decidiram ocupar uma rea, com mata nativa, localizada na margem esquerda do Rio PiraquAu e prxima sua foz. Esta rea estava sob o domnio da Aracruz Celulose e da Cia. Vale do Rio Doce e media cerca de 300 ha. Os ndios de Caieiras Velhas, sobretudo os Guarani, usavam esta mata s escondidas para a caa e a extrao de material para a confeco de artesanato e remdios. Os Guarani Kayov foram mais alm: construram uma casa e comearam a preparar suas roas. Em janeiro de 1979, uma famlia Guarani Nhdwa se juntou a eles. Ainda nesse ms foram descobertos pelos seguranas da Aracruz e pressionados a retornar para Caieiras Velhas. Os ndios resistiram. A empresa, evitando o confronto, construiu duas casas de madeira em Caieiras Velhas, plantou feijo em volta das casas e aumentou a presso. Nos meses seguintes a situao foi se tornando

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insustentvel. Numa das idas dos seguranas ao local, o coronel Ovdio (chefe de segurana da empresa) endureceu o discurso e ameaou expuls-los. Uma das mulheres Guarani ameaou agred-lo com uma lana e ele fugiu. Os Guarani percebem que as duas famlias no conseguiro resistir sozinhas por mais tempo, mas ainda no se sentem preparados para uma ocupao da terra. Neste momento acontece outro fato determinante no desencadear da luta indgena. Tatantim Varet, lder religiosa dos Guarani, recebe uma revelao de Deus (Nnde ru), atravs de um sonho, apontando aquela terra ainda preservada do plantio de eucalipto como o lugar onde o milho Guarani (avati) deveria ser plantado. Os Guarani, ento, decidem ocupar a terra, onde depois constroem a aldeia Boa Esperana ou Tekoa Por.12 Assim, no dia 08 de maio de 1979, os Guarani e um grupo de quinze ndios Tupiniquim fazem a primeira ocupao de terra. A ao teve repercusso nacional. No incio, a Aracruz pensou tratar-se de uma provocao dos seus opositores, devido ao fato de, naqueles dias, estar recebendo a visita de cem empresrios de vrios pases que queriam conhecer melhor a empresa considerada, na poca, um modelo de eficincia empresarial. Depois de um ms, a Aracruz decidiu abrir mo dos 300 ha na esperana de pr fim ao conflito. No entanto, os ndios, com a adeso das trs aldeias Tupiniquim, mantiveram a disposio de lutar pela devoluo do restante das terras. Em julho de 1979, uma equipe da Funai, sem realizar um estudo aprofundado para identificar as terras indgenas no Esprito Santo, props a demarcao de trs reas descontnuas, a saber: Caieiras Velhas (2.700 ha), Pau Brasil (1.500 ha) e Comboios (2.300 ha), totalizando 6.500 ha. Aps a publicao da Portaria da Funai no Dirio Oficial da Unio (DOU) em 17 de dezembro de 1979, segue-se um longo perodo de espera pela demarcao das terras e a cada dia crescia a certeza de um recuo do governo. Ao mesmo tempo, os meios de comunicao capixaba tentam desviar a ateno da populao produzindo longas e frequentes matrias sobre os conflitos dos ndios com os posseiros que tinham casas em Caieiras Velhas (cerca de 55 famlias). As referncias sobre a Aracruz Celulose desaparecem do noticirio local, apesar dos jornais de circulao nacional manterem o foco na disputa da terra entre os ndios e a empresa. No ms de maio de 1980, o deputado Aldo Arantes, do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) pelo estado de Gois, divulgou na imprensa um documento com o carimbo de confidencial, produzido pela Aracruz Celulose e a Vale, no qual estabelecem como estratgia conjunta para impedir a demarcao dos 6.500 ha, gestes junto ao governo federal, utilizando inclusive a influncia do ministro da Fazenda naquele ano, Ernane Galveas, membro do Conselho de Administrao da Aracruz desde 1966.

No havendo nenhuma resposta do governo e temendo a anulao da portaria, os ndios decidem realizar a autodemarcao das terras. Embora no tivesse efeito legal, a ao pretendia consolidar os limites definidos pela portaria e a tomada de posse da terra. Assim, ainda em maio, os Tupiniquim e Guarani iniciam os trabalhos de demarcao da rea de Caieiras Velhas. A presena de um enorme contingente da Polcia Militar no intimida os ndios. Homens, mulheres e at crianas participam dos trabalhos, abrindo picada entre os eucaliptais e fincando marcos de identificao da terra indgena, a partir das coordenadas geogrficas definidas pela Portaria da Funai. No ms seguinte, realizam a demarcao da rea de Pau Brasil e antes de se deslocarem para Comboios so chamados pela Funai para reunies de negociao com a Aracruz. Diante da intransigncia da empresa, quanto ao reconhecimento dos direitos indgenas terra, os Guarani se afastam da negociao. Os Tupiniquim de Caieiras Velhas permanecem negociando (Pau Brasil e Comboios no participam desde o incio). Em abril de 1981 assinam um acordo com a empresa, no qual concordam com a reduo de 2.000 ha de terra em troca de recursos financeiros administrados pela Funai e aplicados na compra de mquinas e equipamentos e em projetos econmicos comunitrios. Aps a assinatura do acordo, o presidente da Funai, coronel Nobre da Veiga, esteve em Caieiras Velhas. Em seu discurso para os ndios, divulgado pela imprensa, afirmou que: os Tupiniquim no so os habitantes originais da regio e por isso no podem reivindicar a posse da terra; e ainda: os ndios no sofreram qualquer prejuzo, pois quem cedeu as terras que eles no tm o direito de ocupar foi a Aracruz; e quem voltar a fazer agitao junto com o pessoal do Cimi vou colocar na cadeia13. Disse ainda que alm de doar terras, ela resolveu dar um auxlio aos ndios para melhorar seu padro de vida e mostrar sua liberalidade 14. Apesar da reduo da terra e do estremecimento das relaes dos Guarani com os Tupiniquim de Caieiras Velhas, o saldo desta primeira luta foi positivo. Conseguiram conquistar 4.492 ha, assim distribudos: Caieiras Velhas (1.519 ha), Pau Brasil (427 ha) e Comboios (2.546 ha). preciso ainda salientar a coragem dos ndios para enfrentar uma empresa do porte da Aracruz Celulose, apoiada pelo governo federal, em plena ditadura militar e destacar a participao e a contribuio dos Guarani que, com sua sabedoria e seu modo particular de compreender o significado da terra para os povos indgenas, trouxe uma maior radicalidade para a luta, colocando em xeque o pensamento capitalista-mercantilista. Por fim, deve-se registrar o papel desempenhado pela Arquidiocese de Vitria nessa disputa. O posicionamento claro e contundente dos bispos15 em favor dos

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ndios, as intervenes da Comisso de Justia e Paz, principalmente nos momentos de conflito, as aes de apoio e solidariedade das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), com manifestaes pblicas e com campanhas de arrecadao de alimentos, e o apoio incondicional da equipe do Cimi, fizeram desta instituio a principal aliada dos Tupiniquim e Guarani naquele perodo. 1993-199816 A recuperao dos 4.492 ha de terras indgenas possibilitou, dentre outras coisas, a retomada das roas familiares, o retorno de dezenas de famlias desaldeadas e a reconstruo da aldeia Tupiniquim Iraj. Entretanto, as condies de sobrevivncia continuavam ainda bastante comprometidas. A populao indgena havia aumentado rapidamente. Dados da Funai17 apontavam uma populao de 1.308 ndios em 1993. Alm disso, grande parte das terras no eram adequadas para a agricultura e/ou exigiam altos investimentos. Cerca de 95% da Terra Indgena (TI) Comboios constituda por areia, o manguezal do Rio Piraqu-Au representa parcelas significativas da TI Caieiras Velhas e cerca de 1.700 ha foram devolvidos aos ndios com os tocos de eucalipto. Em 1993, a Comisso de Caciques e Lideranas Tupiniquim e Guarani, criada em 1991 com o objetivo de encaminhar questes de interesse coletivo, como a recuperao das terras e a assistncia nas reas de sade, educao e agricultura, reivindicou da Funai a realizao de estudos de identificao das terras indgenas no municpio de Aracruz. Estudos realizados entre os anos de 1994 e 1996 confirmaram 18.071 ha como sendo terras tradicionalmente ocupadas pelos ndios e propuseram a sua imediata demarcao como condio indispensvel para garantir a sobrevivncia fsica e cultural dos Tupiniquim e Guarani. Isto significava a ampliao das terras em mais 13.579 ha e a unificao das reas de Caieiras Velhas e Pau Brasil. A partir de 1996, quando j estava em andamento os procedimentos administrativos de demarcao das terras indgenas, a Aracruz Celulose passou a contribuir com o Nisi-ES18, principalmente com o sub-ncleo de agricultura, financiando projetos agrcolas. A inteno da empresa era seduzir as comunidades indgenas com o objetivo de faz-las desistir da luta pela terra e, ao mesmo tempo, demonstrar na prtica a tese de que os ndios poderiam conseguir a auto-sustentao econmica nas terras que j possuam, bastando apenas injetar recursos nas aldeias. No obtendo xito com esta estratgia e tendo suas contestaes ao relatrio do Grupo de Trabalho (GT) da Funai rejeitadas pelo rgo indigenista oficial, a empresa intensificou suas presses sobre o ministro da Justia, ris Rezende. Em resposta, o ministro exigiu da Funai a complementao dos estudos.

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No final de 1997, os Tupiniquim e Guarani realizaram uma Assemblia Geral para definir os rumos da luta. Diante de autoridades, como o vice-governador do Esprito Santo, do procurador geral da Repblica no estado, de parlamentares e de representantes da Funai, estabeleceram um prazo para o governo demarcar as terras e prometeram realiz-la caso o mesmo no fosse cumprido. Em janeiro de 1998, pouco antes do prazo se encerrar, o presidente da Funai, Sulivan Silvestre, foi ao Esprito Santo e negociou com os ndios um novo prazo e a realizao de mais um estudo complementar. O objetivo, como ficou demonstrado tempos depois, era retardar o processo de demarcao at que fosse encontrada uma soluo que beneficiasse a Aracruz Celulose. Assim, embora os estudos complementares confirmassem as concluses do estudo do GT da Funai quanto aos direitos dos Tupiniquim e Guarani aos 13.579 ha, o governo brasileiro novamente submeteu-se aos interesses da Aracruz Celulose. No ms de maro de 1998, o ministro da Justia assinou as portarias 193, 194 e 195, determinando a demarcao de apenas 2.571 ha. Revoltados, os ndios promoveram a auto-demarcao dos 13.579 ha e quando estavam prximos da concluso dos trabalhos, o governo federal determinou a interveno da Polcia Federal. As aldeias foram ocupadas por policiais federais fortemente armados. Integrantes do Frum Campo e Cidade, que prestavam apoio aos trabalhos de demarcao foram expulsos das aldeias. Alguns deles foram presos e processados. Para solucionar o conflito, os caciques foram levados para Braslia e sob presso assinaram com a Aracruz Celulose um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), com a intervenincia da Funai e da 6 Cmara do Ministrio Pblico Federal (MPF). Este TAC, flagrantemente inconstitucional, estabeleceu a concordncia dos ndios quanto aos limites da terra definidos pelas portarias do Ministrio da Justia e, em troca, a obrigao da empresa de repassar aos ndios US$ 12 milhes em parcelas semestrais durante 20 anos. O desfecho dessa segunda luta dos Tupiniquim e Guarani pela recuperao de suas terras foi considerado pela maioria dos ndios e por seus apoiadores como uma derrota. Apesar das fortes presses do governo federal sobre as lideranas indgenas nas reunies de negociao em Braslia e da presena ostensiva da Polcia Federal nas aldeias, a correlao de foras entre os ndios e a Aracruz, naquele momento, permitia manter a luta pela demarcao dos 13.579 ha, ou, pelo menos, pela ampliao das terras alm do que havia sido determinado pelo Ministrio da Justia. Ao contrrio da primeira luta, esta havia sido preparada e organizada pelos caciques, lideranas e comunidades indgenas desde o final dos anos de 1980; a popu-

Os indgenas souberam se articular, acumular foras e manter a autonomia: defesa dos direitos fundamentais e reconquista da terra

lao indgena era bem superior (290 famlias); a participao das comunidades19 nesta segunda auto-demarcao foi bem mais efetiva e havia uma organizao conduzindo o processo de luta e negociao; o grupo de apoiadores reunia representantes de importantes organizaes democrtico-populares do estado do Esprito Santo; e havia uma grande repercusso nacional e internacional. Alm disso, vivia-se no Pas um perodo de mais liberdade e democracia. Num primeiro momento, o TAC foi rechaado pelas comunidades indgenas. Porm, foram convencidas com o argumento falacioso de que sem ele corriam o risco de perder os 2.571 ha e as compensaes financeiras. Estas, talvez, foram as que mais pesaram nas argumentaes de algumas lideranas indgenas favorveis ao TAC. O Ministrio Pblico Federal, que havia participado da sua elaborao, retirou seu apoio, considerando-o inconstitucional. O resultado foi desastroso. Alm da reduo drstica da terra, o acordo permitiu Aracruz: estabelecer mecanismos de controle sobre os ndios e conduz-los a uma incorporao progressiva da lgica do capital. Pelo TAC, os recursos financeiros eram controlados pela empresa e repassados aos ndios mediante a apresentao de projetos econmicos aprovados pela Funai. Para prestar assistncia s comunidades indgenas, a Aracruz assinou convnio com o Instituto Capixaba de Pesquisa e Assistncia Tcnica e Extenso Rural (Incaper), o qual deu continuidade ao modelo convencional de agricultura voltado para o mercado externo, introduzido nas aldeias em

1996 com recursos da Aracruz. Ao mesmo tempo, a empresa devolveu os 2.571 ha com as plantaes de eucalipto. Aps os primeiros cortes e venda para a prpria empresa, os Tupiniquim e Guarani se tornaram os maiores fornecedores particulares de eucalipto da empresa.20 Pouco tempo depois, o Nisi-ES foi extinto e a Aracruz Celulose se tornou a principal parceira dos ndios. 2005-200721 A assinatura dos TACs trouxe profundas alteraes na organizao social e econmica das comunidades indgenas. Duas associaes, a Associao Indgena Tupiniquim de Comboios (AITC) e a Associao Indgena Tupiniquim e Guarani (AITG), foram criadas de fora para dentro e de cima para baixo como condio para receber os recursos da Aracruz Celulose. Em funo disso, a Comisso de Caciques foi, aos poucos, deixando de ser a principal organizao dos Tupiniquim e Guarani. A adoo de um modelo convencional de agricultura voltado para a produo para o mercado (caf, coco, maracuj), com o uso intensivo de insumos (adubos, pesticidas, sementes hbridas, mecanizao e irrigao), em detrimento da produo de alimentos, e a deciso de celebrar contratos de fomento com a Aracruz, a partir do ano 2000, sobre 1.800 ha, aceleraram o processo de dependncia e subordinao dos Tupiniquim e Guarani aos interesses da empresa. As possibilidades de uma retomada da luta pela terra ficaram cada vez mais distantes. Este processo no foi linear, ao contrrio, foi marcado

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por muitas disputas internas e gerou muita insatisfao nas comunidades indgenas. Aps sete anos, os ndios se convenceram de que os benefcios trazidos pelo TAC jamais os levariam a uma autonomia econmica. Nas palavras das lideranas indgenas, os projetos agrcolas e o fomento florestal so um cala-boca dos ndios na disputa pelas terras, uma vez que a retomada da luta significava o rompimento automtico do TAC.22 Assim, por iniciativa da Comisso de Caciques, foi realizada uma Assemblia Geral na aldeia de Comboios no dia 19 de fevereiro de 2005, com o tema Nossa Terra, Nossa Liberdade. Cerca de 350 ndios de todas as aldeias decidiram pelo rompimento do TAC e pela retomada dos 11.009 ha ainda em poder da Aracruz. Na nota pblica divulgada no dia 28 de fevereiro, a Comisso de Caciques afirmou que o TAC com a Aracruz no conseguiu resolver nossos problemas, ao contrrio, tem nos causado ainda mais dificuldades, gerando dependncia econmica, diviso entre as aldeias e enfraquecimento de nossa cultura. A morte da nossa cultura a morte simblica do nosso povo. A primeira providncia dos ndios foi solicitar Procuradoria Geral da Repblica no ES (PGR-ES) medidas legais para exigir do governo federal a anulao das portarias do Ministrio da Justia e a demarcao integral das suas terras (18.071 ha). Aps a instaurao de Inqurito Civil Pblico, que concluiu pela existncia de irregularidades nos procedimentos de demarcao e homologao das terras indgenas em 1998, a PGR-ES expediu para o presidente da Repblica e o ministro da Justia a Recomendao n 003/2005, para que fossem declaradas a nulidade das Portarias do MJ n 193, 194 e 195 e os correspondentes Decretos Homologatrios de 11 de dezembro de 1998, e para que editassem novos atos de reconhecimento das terras indgenas no estado, conforme as concluses do GT da Funai que havia identificado 18.071 ha como terras tradicionalmente ocupadas pelos Tupiniquim e Guarani. Entretanto, sabia-se que esta medida seria insuficiente para o governo federal reabrir o processo de demarcao das terras, dado o papel desempenhado pelo agronegcio no modelo de desenvolvimento do Pas e os compromissos assumidos pelo presidente Lula, desde 2003, com a expanso das plantaes de eucalipto e da Aracruz Celulose. Alm disso, as esperanas de mudanas na poltica indigenista, suscitadas pela vitria do PT nas eleies presidenciais do Pas em 2002, foram desfeitas ainda no primeiro mandato do governo Lula devido s presses de sua heterognea base de sustentao poltica e parlamentar. Como forma de presso, os Tupiniquim e Guarani decidiram realizar vrias aes de impacto. No ms de maio, mais de 500 ndios realizaram a terceira auto-demarcao

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de suas terras e, em seguida, reconstruram duas aldeias destrudas pela empresa na dcada de 1960: Olho Dgua, prxima aldeia de Pau Brasil, e Crrego do Ouro, prxima de Comboios. No ms de outubro, ocuparam as fbricas da Aracruz por 32 horas e s deixaram o local aps a vinda do presidente da Funai, Mrcio Gomes, ao estado. Sob forte presso das comunidades indgenas, a Funai acata, em parte, a recomendao da PGR-ES e cria outro GT para proceder a atualizao dos dados do GT anterior e assim reiniciar todos os procedimentos administrativos de demarcao previstos pelo Decreto Federal n 1.775/96, inclusive aqueles j realizados, dando Aracruz o direito nova contestao. No dia 20 de janeiro de 2006, os ndios foram surpreendidos por uma operao da Polcia Federal (PF), preparada e executada de forma sigilosa para cumprir um mandado de reintegrao de posse em favor da Aracruz Celulose, expedido por um juiz federal de Linhares (ES). Na ao, a PF retirou os ndios de forma truculenta e destruiu as aldeias Olho Dgua e Crrego do Ouro (casas e plantios) com o auxlio de tratores e mquinas da empresa e de um nibus da empresa Plantar, que presta servios Aracruz. Alm disso, feriu treze ndios com balas de borracha disparadas queima-roupa e efetuou a priso de duas lideranas em local de propriedade da empresa, que tambm serviu como base da operao para realizar a ordem judicial. Estas e outras irregularidades motivaram a PGR-ES a propor na Justia Federal uma Ao Civil Pblica com Pedido de Indenizao por Danos Morais Coletivos contra a Unio e em favor dos ndios Tupiniquim e Guarani. Este episdio lamentvel e inesperado possibilitou, no entanto, que dez dias depois alguns caciques e lideranas tivessem um breve encontro com o presidente Lula, no aeroporto de Vitria. Lula recebeu detalhes da ao da Polcia Federal em conjunto com a Aracruz, prometeu que as terras seriam demarcadas e que enviaria o ministro da Justia e o presidente da Funai ao estado para se reunir com a Comisso de Caciques. Assim, no dia 20 de fevereiro de 2006, em audincia na Assemblia Legislativa do Esprito Santo, o ministro da Justia, Mrcio Thomaz Bastos, informou aos ndios e a vrias autoridades presentes, que a ao ocorreu em segredo de justia e que houve presso sobre a PF para que montasse a operao, autorizada pela justia desde dezembro de 2005. Ele garantiu rigor na apurao do caso. Em relao s terras, o ministro prometeu concluir todos os procedimentos administrativos de demarcao at o final do ano e defendeu uma nova contestao da Aracruz para evitar aes futuras na justia contra a demarcao. Entretanto, a burocracia do Estado, aliada aos interesses da Aracruz, descumpriu todos os prazos estabelecidos pelo ministro. Novas aes de impacto foram necessrias.

Em setembro de 2006, os ndios derrubaram e queimaram cerca de 100 ha de eucalipto plantados na terra reivindicada, com os objetivos de acelerar os procedimentos de demarcao e manifestar publicamente que estavam lutando pelas terras sem os eucaliptos que sempre trouxeram prejuzos para as comunidades. Em resposta a essa ao, a Aracruz Celulose desencadeou uma campanha difamatria e racista contra os Tupiniquim e Guarani, divulgando calnias e mentiras na imprensa e no seu stio eletrnico; instalando outdoors em vrios pontos da cidade de Aracruz, com dizeres do tipo A Aracruz trouxe o progresso, a Funai os ndios; e em palestras nas escolas do municpio e nas empresas e entidades de classe que atuam na regio. A campanha questionava no s os direitos indgenas terra, mas sobretudo a indianidade dos Tupiniquim, reforando os preconceitos j existentes na sociedade capixaba contra os ndios e provocando constrangimentos, principalmente nos estudantes indgenas das escolas do municpio. Tambm organizou uma manifestao em Vitria com cerca de duas mil pessoas, principalmente trabalhadores diretos e indiretos da empresa, e colheu 75 mil assinaturas num abaixo-assinado entregue ao governo do Esprito Santo. Ao mesmo tempo, a ONG Esprito Em Ao, da qual fazem parte a Aracruz Celulose, a Vale, a Companhia Siderrgica do Tubaro (CST) que foi comprada pela Arcelor Mittal , a Rede Gazeta de Comunicao, a TV Capixaba e outras empresas, que tm como misso mobilizar a classe empresarial em defesa de seus interesses no estado, reforou a campanha difamatria da Aracruz contra os Tupiniquim e Guarani. O resultado foi to devastador que a PGR-ES moveu uma ao na Justia Federal contra a empresa. Uma deciso liminar impediu a continuidade da campanha. Revoltados e feridos na sua auto-estima, os ndios decidiram radicalizar. No ms de dezembro, cerca de 200 ndios ocuparam o Portocel. No dia seguinte, cerca de 1.500 trabalhadores da Aracruz e de empresas terceirizadas, principalmente da Plantar, mobilizados pelo Sindicato dos Trabalhadores nas Indstrias de Celulose (Sinticel) e pelo Sindicato dos Trabalhadores nas Indstrias Minerais (Sintiema), e liberados do trabalho pelas empresas, dirigiram-se ao porto para expulsar os ndios. Foi um dia de muita tenso e expectativa. Em vrios momentos temia-se por um massacre. Cercados no depsito de celulose, os ndios resistiram e ameaaram atear fogo, caso os trabalhadores se aproximassem. O contingente policial era insuficiente para conter a multido se o ataque se concretizasse. Uma tropa de choque da Polcia Militar de Vitria foi acionada, mas ficou estacionada a 30 km de distncia. Alguns ndios e apoiadores foram agredidos, inclusive o deputado estadual do PT e cadeirante Cludio Vereza. No final do dia, os trabalhadores se retiraram do porto em

silncio e foram vaiados pelos ndios que vieram das aldeias em socorro dos parentes. Ainda dentro do porto, os ndios se reuniram em Assemblia e decidiram pr fim ao movimento, que durou cerca de 30 horas. Dias depois viajaram para Braslia para exigir o cumprimento das promessas do ministro da Justia, cujo prazo dado por ele j estava se encerrando. Em Braslia, foram recebidos pelos consultores jurdicos do MJ e ouviram respostas evasivas. Retornaram s aldeias com o pressentimento de que as terras no seriam demarcadas. O desnimo tomou conta das lideranas e das comunidades indgenas, sobretudo quando foram, em meados de janeiro de 2007, mais uma vez para Braslia, e sequer foram recebidos no Ministrio da Justia. No incio do ms de fevereiro de 2007, o ministro da Justia, Mrcio Thomas Bastos, pouco antes de deixar o cargo, restituiu os processos administrativos de demarcao das terras dos Tupiniquim e Guarani Funai. O despacho do ministro, sem nmero, data de assinatura e sem publicao no Dirio Oficial da Unio (DOU), determinou Funai envidar esforos no sentido de aprofundar estudos com vistas a elaborar proposta adequada, que componha os interesses das partes. Ora, o ministro estava de posse de todos os elementos comprobatrios do direito dos ndios sobre as terras em disputa e das recomendaes da presidncia da Funai e da consultoria jurdica do prprio ministrio para o prosseguimento dos procedimentos, quer dizer, da edio das Portarias de Delimitao. Mas decidiu retornar os processos Funai, com um agravante: buscar novamente um acordo dos ndios com a Aracruz Celulose. Na sequncia, uma juza federal de Linhares, decidiu assumir esta tarefa e intimou os ndios para uma audincia, com o objetivo de apresentar uma proposta de acordo feita pela Aracruz. A inteno da juza era tentar uma conciliao entre as partes numa ao possessria, impetrada pela empresa, que tramitava naquele juzo. Resumidamente, a Aracruz propunha que os ndios abrissem mo da identidade indgena e da presena histrica na regio, como condio para receber a doao de uma rea, cujo tamanho seria definido pela empresa. Alm disso, esta rea e as reas j demarcadas passariam a ser consideradas reservas indgenas para evitar qualquer ampliao das mesmas no futuro, a no ser mediante desapropriao. Na segunda audincia de conciliao, realizada no dia 23 de maio, os ndios solicitaram juza, por ofcio, o encerramento das audincias, alegando a impossibilidade de qualquer acordo com a Aracruz e pela disposio de aguardar as concluses dos procedimentos administrativos. Em seguida, encaminharam cpia do ofcio ao novo ministro da Justia, Tarso Genro, solicitando a continuidade dos processos e a emisso das portarias de delimitao. No dia 05 de julho, o presidente da Funai, Mrcio Meira,

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nhas nacionais e internacionais contra a empresa e o governo federal e de outras aes de impacto, conseguiram acelerar os procedimentos administrativos de demarcao que culminaram na assinatura das portarias pelo ministro da Justia. Aps quase trs meses de intensos debates sobre as possveis perdas e ganhos em cenrios distintos (com ou sem TAC), as comunidades indgenas Tupiniquim e Guarani decidiram pela garantia da demarcao dos 18.027 ha, principal objetivo da luta. Terra Ao contrrio dos acordos anteriores (1981 e 1998), as terras foram reconhecidas e sero demarcadas em sua totalidade (18.027 ha). No TAC, foram estabelecidos os prazos para a demarcao fsica (concluda no ms de maro de 2008) e o compromisso da Funai de encaminhar o processo para a homologao do presidente da Repblica (assinada em novembro de 2010). segurana jurdica Segundo o TAC, as partes reconhecem e aceitam como definitivos os limites das terras indgenas Tupiniquim e Comboios conforme constam nas Portarias Declaratrias, com superfcie total de 18.027 ha. Isso significa que esses limites no podero ser alterados futuramente. Ou seja, se por um lado impede a ampliao das terras, por outro garante segurana jurdica aos Tupiniquim e Guarani. Porm, o artigo 231, pargrafo 4 da Constituio Federal estabelece que o direito dos ndios sobre suas terras imprescritvel, mesmo no estando ainda demarcadas. Assim sendo, no h impedimento legal para que terras adjacentes venham a ser identificadas e demarcadas como terras indgenas, bastando apenas que sejam objeto de estudo por parte da Funai. A segurana jurdica pretendida pela empresa desde o incio das negociaes foi contemplada no 1 Considerando do TAC, ao afirmar que a Funai realizou estudos de toda a regio e identificou apenas os 18.027 ha como terra indgena. Porm, esta afirmao no verdadeira, uma vez que apenas os 18.027 ha foram objeto de estudo. Por fim, bom lembrar que a prpria empresa ainda no est sujeita a limites em relao terra que pode ocupar no Pas. Essa medida seria muito mais pertinente do que esta imposio sobre os ndios j que, entre 1995 e 2003, a Aracruz duplicou sua rea total no Brasil, de cerca de 200 mil para mais de 400 mil hectares de terras. Atualmente, com o nome Fibria, essa empresa ocupa mais de 1 milho de hectares de terras no Pas. ocupao de boa f Segundo o pargrafo 6 do art. 231 da Constituio Federal, s permitido indenizar benfeitorias derivadas da ocupao de boa f. No caso em questo, a empresa concordou em abrir mo da indenizao em

Os ndios ousaram lutar pelas suas terras, mesmo durante a ditadura

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devolveu os processos ao Ministrio da Justia. Todos esses contratempos contriburam para aumentar o desnimo das comunidades indgenas e acirrar as disputas internas, sobretudo entre os que queriam manter a luta pela terra, preservando os eucaliptos para facilitar a demarcao, e aqueles que defendiam a ocupao da terra visando apenas a extrao da madeira, contratando inclusive no-ndios. O resultado foi a invaso progressiva dos 11.009 ha por no-ndios. Quando a situao parecia incontrolvel, as comunidades se mobilizaram e sob a coordenao da Comisso de Caciques e da AITG expulsaram os no-ndios e retiraram a madeira j cortada para beneficiar as famlias. Ao mesmo tempo, reconstruram as aldeias Olho Dgua e Areal e intensificaram novamente as presses sobre o ministro da Justia. Em 28 de agosto de 2007,Tarso Genro assinou as Portarias de Delimitao n 1.463 e 1.464 das Terras Indgenas Tupiniquim e Comboios, respectivamente. Em dezembro de 2007, aps trs meses de negociao com a Aracruz Celulose, assinaram o TAC, com intervenincia do Ministrio Publico Federal e da Funai. Aqui, cabe fazer uma necessria anlise sobre os efeitos do TAC23. Como em todo processo de negociao, houve perdas e ganhos para ambas as partes. Como foi dito anteriormente, os Tupiniquim e Guarani decidiram pela assinatura do TAC para possibilitar a continuidade do processo de regularizao administrava das terras, em virtude das ameaas da Aracruz de contestar e suspender judicialmente os efeitos das Portarias de Delimitao do Ministrio da Justia por tempo indeterminado, podendo inclusive colocar em risco a retomada das terras pelos ndios. importante salientar que a prioridade dos Tupiniquim e Guarani sempre foi, ao longo dos ltimos 40 anos, recuperar suas terras ocupadas pela Aracruz Celulose. Atravs da luta das lideranas e das comunidades e de seus apoiadores da Rede Alerta na realizao da auto-demarcao de suas terras, na reconstruo de aldeias, na ocupao da fbrica da empresa e do Portocel, de campa-

troca da retirada dos eucaliptos, no que os ndios sempre estiveram de acordo, pois alm de permitir celeridade no processo de demarcao das terras, possibilitaria condies para a busca de outras alternativas econmicas. O reconhecimento de que as benfeitorias foram derivadas de boa-f permite que os eucaliptos sejam retirados pela empresa, mas no significa eximir a empresa pelos danos provocados nas terras indgenas (a destruio das aldeias, da mata nativa, dos crregos e rios, etc.) durante o perodo em que esteve ocupando ilegalmente as mesmas. Os ndios continuam com o pleno direito de reivindicar judicialmente a reparao destes danos, independentemente se ocorreram de boa ou m-f. Alis, quem acredita que essa ocupao foi de boa-f? A empresa retirou os eucaliptos. Processos judiciais e inquritos policiais As partes concordaram com a desistncia de alguns processos judiciais e inquritos policiais. No houve consenso sobre outros, como no caso do processo contra membros da Rede Alerta contra o Deserto Verde. A empresa apresentou o caso como inegocivel, argumentando que os processados so inimigos da empresa e a atuao dos mesmos extrapola a questo indgena. Naquele momento, continuavam em andamento, contra os ndios: uma ao da Visel contra trs Tupiniquim; uma ao penal contra 17 ndios por furto de madeira (a Aracruz apenas retirou seu advogado, assistente de acusao do processo). Continuavam tambm em andamento, contra a Aracruz: ao penal (em fase de inqurito) do MPF-ES contra a Aracruz Celulose e outras empresas (terceirizadas) por crime de difamao e racismo; ao ordinria da Funai contra a empresa por uso indevido e difamatrio da imagem de Vilson (Jaguarat) Tupiniquim. Houve uma deciso judicial determinando o pagamento de indenizao. importante tambm frisar as seguintes medidas estabelecidas no TAC para as comunidades indgenas iniciarem a re-ocupao e recuperao das terras conquistadas: Projeto social emergencial A partir de dezembro de 2007, as comunidades indgenas receberam R$ 3 milhes da Funai para atender suas demandas emergenciais. estudo etno-ambiental De acordo com o TAC, a Funai selecionaria a empresa especializada ou um grupo de tcnicos para realizar estudo etno-ambiental com o objetivo de promover, atravs de projetos e programas, a recuperao ambiental das terras e a sustentabilidade econmica das comunidades indge-

nas. O termo de referncia desse estudo seria elaborado pela Funai e submetido aos ndios e os mesmos poderiam participar e indicar assistentes tcnicos para compor o grupo que faria o referido estudo. A Aracruz Celulose aportaria R$ 380 mil para a contratao da empresa especializada ou grupo de tcnicos e R$ 3 milhes para a execuo dos projetos e programas, sem interferir nos mesmos, devendo o governo federal aportar os recursos necessrios que excederem este valor, garantindo-os nos oramentos do perodo 2009 a 2012. Na realidade, os ndios elaboraram, com ajuda de sua assessoria e da Associao Nacional de Ao Indigenista (Anai), o termo de referncia, posteriormente aprovado pela Funai. Tambm foram eles, com ajuda da assessoria, que indicaram a Anai para realizar o estudo, que comeou no ms de abril de 2009 e foi encerrado em dezembro do mesmo ano. Dos R$ 3 milhes a serem aportados pela AracruzA identidade indgena foi extremamente desrespeitada pela Aracruz

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A crtica ao modelo de desenvolvimento sempre esteve presente na luta

Celulose para a execuo dos projetos e programas definidos pelo estudo, R$ 1,2 milho foi destinado para os projetos emergenciais. A Funai se comprometeu a repr esse valor para garantir a finalidade dos R$ 3 milhes. concluso Como foi dito anteriormente, a implantao da Aracruz Celulose no Esprito Santo na dcada de 1960 resultou num conjunto de alteraes na vida dos Tupiniquim e Guarani: a expropriao das terras, a destruio de quase todas as aldeias, o desmatamento e a desestruturao social, cultural e econmica. A resistncia das aldeias Caieiras Velhas, Pau Brasil e Comboios foi determinante para impedir a disperso e, provavelmente, a extino dos Tupiniquim e um caminhar forado dos Guarani para outras regies. Foi, inclusive, a partir desses espaos reduzidos, que os ndios puderam reagrupar suas foras para retomar o processo de reconquista do territrio, o qual foi concludo 40 anos depois. Nesse longo e penoso perodo de disputa permanente com a Aracruz Celulose, inquestionvel o acmulo de conhecimento e de foras por parte dos ndios. Processos formativos e organizativos, desencadeados a partir da luta pela terra, potencializaram a resistncia e qualificaram suas aes. Formas organizativas, como a Comisso de Caciques, as associaes indgenas (AITG e AITC)24 e, mais recentemente, os grupos de mulheres, surgiram da necessidade de aes mais organizadas e articuladas das comunidades indgenas na defesa dos seus direitos, particularmente na luta pela recuperao de suas terras. Ao mesmo tempo, o enfrentamento do agronegcio, apoiado e financiado pelo Estado, exigiu que os ndios estabelecessem alianas estratgicas com entidades civis e religiosas (1979 a 1981), com entidades e movimentos sociais reunidos no Frum Campo e Cidade (1993 a 1998) e com a Rede Alerta contra o Deserto Verde (2000 a 2007). Neste ltimo perodo da luta, a participa-

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o dos Tupiniquim e Guarani na Rede Alerta permitiu a incluso da luta indgena no conjunto das lutas contra a Aracruz Celulose, como a dos quilombolas pela recuperao das suas terras, dos sem-terra na realizao da reforma agrria, dos camponeses na defesa da agricultura camponesa e no combate monocultura do eucalipto e ao modelo de desenvolvimento que ela representa. Por sua vez, esses espaos de luta conjunta com grupos que tm em comum a experincia da expropriao, explorao, discriminao e excluso tm proporcionado aos ndios momentos privilegiados de formao polticoideolgica. Do mesmo modo, a participao dos caciques e lideranas nas organizaes e movimentos indgenas, em nvel regional e nacional25, e nos espaos pblicos e privados, onde so debatidas e decididas questes relacionadas aos seus direitos, tem contribudo para elevar o grau de conscincia e de conhecimento de seus direitos constitucionais. Ao mesmo tempo, a clareza das demandas, a capacidade de formular propostas viveis de superao dos problemas e a definio dos aliados e das estratgias de ao demonstram o crescente protagonismo dos ndios na construo da autonomia. Com a terra recuperada, mas em condies ambientais adversas e com um tamanho menor do que possuam no final da dcada de 1960, os ndios encontram-se diante de um novo e complexo desafio: o que e como fazer para que o territrio indgena garanta as condies necessrias para a sobrevivncia fsica e cultural dos Tupiniquim e Guarani de forma autnoma? Nesse sentido, o estudo etno-ambiental, realizado com a ajuda de profissionais especializados e comprometidos com a causa indgena, resultou na elaborao de um plano no qual foram identificadas as melhores alternativas de uso das terras, visando projetos e programas que possam promover a auto-sustentao das comunidades indgenas e a recuperao ambiental das mesmas. Ao mesmo tempo, esse plano tambm apontou formas de ocupao do territrio conquistado que contemplam as necessidades da populao atual e das prximas geraes. No entanto, preciso considerar tambm que os ndios esto localizados numa regio em acelerado processo de crescimento demogrfico e de industrializao e onde predomina o agronegcio. Para os prximos anos esto previstos vultosos investimentos da Petro