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    UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBACENTRO DE COMUNICAÇÃO, TURISMO E ARTES

    DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO MUSICALCURSO DE LICENCIATURA EM MÚSICA

    METODOLOGIA DO ENSINO DO NSTRUMENTO II(MEI II) 

    PROFESSORA: HARUE TANAKA

    João Pessoa –  PBMarço de 2015

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    Sumário 

    Apresentação .......................................................................................................................... 2

    Plano de Ensino ...................................................................................................................... 3

    Cronograma de Atividades ..................................................................................................... 6

    Parte A  –   Educação musical e sociedade: o ensino de instrumento em espaços nãoescolares (formais) de atuação ........................................................................... 7

    Texto 1 –  Atuação profissional do educador musical: terceiro setor .................. 7

    Texto 2  –  Musicalidade na performance: uma investigação entre

    estudantes de instrumentos….…………………………. .................................. 14

    Parte B –  Aspectos conjunturais no ensino de instrumento em espaços não escolares .......... 23

    Texto 3  –   Por que é importante o ensino de música? Considerações

    sobre as funções da música na sociedade e na escola ....................................... 23Texto 4 –  Projetos sociais em educação musical: uma perspectiva para o

    ensino e aprendizagem da música ..................................................................... 32

    Texto 5  –   Música, identidade e relações humanas em um país mestiço:implicações para a educação musical na América Latina ............................... 37

    Parte C –  Música e transformação social ............................................................................. 47

    Texto 6 –  Educação musical em ações sociais: uma discussão antropológicasobre o Projeto Guri ........................................................................................ 47

    Parte D –  Possíveis abordagens conceituais para o ensino de instrumento ......................... 49

    Texto 7 –  Ensino instrumental como ensino de música ...................................... 49

    Texto 8 –  A escolha de repertório na aula de violão como uma propostacognitiva ............................................................................................................. 55

    Texto 9 –  Crenças de autoeficácia: uma perspectiva sociocognitiva no

    ensino do instrumento musical ............................................................................ 92

    Parte E –  Possibilidades metodológicas ............................................................................. 102

    Texto 10 –  O ensino coletivo de instrumentos musicais na banda de música ... 102

    Texto 11  –  Proposta para um modelo de ensino e aprendizagem da performance musical ........................................................................................ 107Texto complementar –  Algumas considerações a respeito do ensino deinstrumento: trajetória e realidade.....................................................................127

    Texto 12 –  A Malandros do Morro: diário de uma ritmista…………………...143 

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    UFPB –  CCTA –  DEM –  CLMMetodologia do Ensino do Instrumento II

    Profa. Harue Tanaka

    Apresentação 

    As organizações civis têm desenvolvido diversas formas de atuar e reconfigurar suas

    estruturas sociais, econômicas e políticas. Da crise do socialismo ao capitalismo neoliberal,

    uma série de aspectos conjunturais tem influenciado esse desenvolvimento, articulando

     política, economia, educação e cultura entre outros. Nesse contexto, encontramos espaços e

     práticas educativas que podemos identificar como não formais (ao que preferimos não

    escolares), voltadas para demandas sociais emergentes, muitas vezes não alcançadas pelo

    Estado.

    A disciplina Metodologia do Ensino do Instrumento II tem como foco a formação do

     profissional que atuará em contextos dessa natureza, compreendendo as dimensões

     pedagógicas do ensino de instrumento e suas possibilidades de aplicação. A elaboração da

     presente apostila representa uma tentativa de sistematizar alguns aspectos que estarão presentes

    à realidade cotidiana do profissional dessa área, buscando o desenvolvimento dentro de uma

    formação mais condizendo com seus enfrentamentos diários. Trata-se, portanto, da compilação

    de alguns textos que possibilitarão: a) uma compreensão geral de aspectos conjunturais

    relativos aos espaços chamados não formais de educação musical; b) refletir sobre as

    relações entre o ensino de instrumento e as transformações sociais; c ) refletir sobre as

     possibilidades metodológicas para o ensino de instrumento em espaços não escolares; e d)

    elaborar propostas de ensino de instrumento consistentes e coerentes com as realidades de

    atuação nesses espaços. Assim, o objetivo maior desse material é ajudar à organização do

    trabalho pedagógico do discente junto a disciplina, no intuito de apontar possibilidades

    conceituais e metodológicas para que cada um desenvolva seus próprios princípios

     profissionais de atuação como professor e cidadão mais consciente e comprometido com a

    docência.

    Por fim, desejo que tenhamos um excelente semestre letivo e que a disciplina seja um

     passo importante em nossa trajetória acadêmica e profissional!

    Harue Tanaka 

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    Profa. Harue Tanaka

    CONTEÚDO PROGRAMÁTICO 

      Educação musical e sociedade: o ensino de instrumento em espaços não escolares deatuação.

      Aspectos conjunturais no ensino de instrumento em espaços não escolares.  Música e transformação social.

      Possíveis abordagens conceituais para o ensino de instrumento.  Possibilidades metodológicas diversas.

    METODOLOGIA/ATIVIDADES DIDÁTICAS 

      Aulas expositivas;  Estudos de textos;  Seminários;  Identificação, compreensão, análise e elaboração de propostas;

    metodológicas para o ensino de instrumento em contextos não escolares.

    ESTRUTURA(S) DE APOIO/RECURSOS DIDÁTICOS 

      Quadro branco, pincel atômico e apagador;  Textos impressos e/ou passados por e-mail ou Facebook; outros materiais

     bibliográficos;  Filmes e outras fontes de registros audiovisuais; TV; aparelhos de DVD e/ou CD;  Equipamento de som;   Notebook;  Projetor multimídia.

    AVALIAÇÃO 

    1.  A avaliação é diagnóstica, formativa e autoavaliativa.2.  A avaliação compreende, portanto, participação ativa nas aulas que podem incluir

    chamadas orais e pequenos relatórios de trabalhos de pesquisa, visando àconsolidação da matéria teórica.

    3.  Frequência: O comparecimento às aulas é parte expressiva da avaliação, sendoexigido para conclusão da disciplina um mínimo de 75% de frequência. Em se

    tratando de uma disciplina de 15 créditos, então, serão permitidas apenas 3,5 (trêsfaltas e meia), o que corresponde a 7 créditos. O abono das faltas estará adstrito àapresentação de atestado médico. Outros casos poderão ser analisados para fins deabono de faltas.

    4.  A avaliação, ainda, contará com o cumprimento de trabalhos requisitados durante adisciplina, dentro do prazo requisitado para sua entrega e/ou apresentação. Assim,entra no cômputo da avaliação geral: a apresentação de trabalhos em classe; o envio eentrega de trabalhos através de e-mails (no prazo acordado), notas obtidas nas

     provas, além da participação colaborativa dos alunos em sala de aula.

    5.  A definição do peso percentual das provas, apresentações e trabalho final ficamassim definidas:

      Exercício escolar 1 (apresentação de textos/seminários) –  30%  Exercício escolar 2 (participação, tarefas e presenças em aula) –  30%

      Exercício escolar 3 (trabalho escrito e/ou apresentação) –  40%

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    Exemplo de mensuração da avaliação final:

    Exerc. escolar nº 1 8,0 2,4 (peso 3)Exerc. escolar nº 2 6,0 1,8 (peso 3)Exerc. escolar nº 3 8,0 3,2 (peso 4)

    TOTAL  7,4 

    AVALIAÇÃO (síntese) 

    Aspectos a serem avaliados: 

      Pontualidade, assiduidade e participação.

      Compreensão dos temas trabalhados.

      Desenvolvimento da capacidade de comunicar (verbalmente e textualmente)opiniões críticas e reflexivas sobre os temas trabalhados.

      Capacidade de elaborar propostas práticas e fundamentadas para o ensino deinstrumento em contextos não escolares.

    Instrumentos de avaliação: 

      Participação nas discussões;

      Fichamentos, estruturas de tópicos e análises escritas dos textos trabalhados;

      Apresentação de seminários;

      Elaboração de propostas metodológicas para o ensino de instrumento emcontextos não escolares.

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    BIBLIOGRAFIA 

    ALMEIDA, Cristiane Maria Galdino de. Educação musical não-formal e atuação profissional. Revista da ABEM , Porto Alegre, v. 13, p. 49-56, set. 2005.

    ARANTES, Lucielle Farias. Educação musical em ações sociais: uma discussãoantropológica sobre o Projeto Guri. Revista da ABEM , Porto Alegre, v. 21, p. 97-98, mar.2009.

    CAVALCANTI, Célia Regina Pires. Crenças de autoeficácia: uma perspectivasociocognitiva no ensino do instrumento musical. Revista da ABEM , Porto Alegre, v. 21, p.93-102, mar. 2009.

    CERQUEIRA, Daniel Lemos. Proposta para um modelo de ensino e aprendizagem da performance musical. Revista Opus, Goiânia, v. 15, n. 2, dez. 2009, p. 105-124.

    CUERVO, Luciane; MAFFIOLETTI, Leda de Albuquerque. Musicalidade na performance:uma investigação entre estudantes de instrumento. Revista da ABEM , Porto Alegre, v. 21, p.35- 43, mar. 2009.

    FRANÇA, Cecília Cavalieri. Performance instrumental e educação musical. Per Musi.Belo Horizonte, v.1, p. 52-62, 2000.

    FIREMAN, Milson. A escolha de repertório na aula de violão como uma propostacognitiva. Em Pauta, Porto Alegre, v. 18, n. 30. p. 93-129.

    HARDER, Rejane. Algumas considerações a respeito do ensino de instrumento:trajetória e realidade. Revista Opus, Goiania, v. 14, n. 1, p. 127-142, jun. 2008. Disponívelem: <http://www.anppom.com.br/opus/data/issues/archive/14.1/files/OPUS_14_1_Harder.pdf >.Acesso em: 23 dez. 2014.

    HIKIJI, Rose Satiko Gitirana. A música e o risco: etnografia da performance decrianças e jovens. São Paulo: Edusp, 2006. 256 p.

    HUMMES, Júlia Maria. Por que é importante o ensino de música? Considerações sobreas funções da música na sociedade e na escola. Revista da ABEM , Porto Alegre, v. 11, p.17-25, set. 2004.

    ILARI, Beatriz. Música, identidade e relações humanas em um país mestiço: implicações para a educação musical na América Latina. Revista da ABEM , Porto Alegre, v. 18, p. 35-44, out.2007.

    KATER, Carlos. O que podemos esperar da educação musical em projetos de ação social. Revista da ABEM , Porto Alegre, v. 10, p. 43-51, mar. 2004.

    KLEBER, Magali. Projetos sociais e educação musical. In.: SOUZA, Jusamara (org.). Aprender e ensinar música no cotidiano. Porto Alegre: Sulina, 2009.

    . Educação musical: novas ou outras abordagens –  novos ou outros protagonistas. Revista da ABEM , v. p. 91-98, mar. 2006. Disponível em:. Acessoem: 23 mar. 2015.

    http://www.anppom.com.br/opus/data/issues/archive/14.1/files/OPUS_14_1_Harder.pdfhttp://www.abemeducacaomusical.org.br/Masters/revista14/revista14_artigo9.pdfhttp://www.abemeducacaomusical.org.br/Masters/revista14/revista14_artigo9.pdfhttp://www.anppom.com.br/opus/data/issues/archive/14.1/files/OPUS_14_1_Harder.pdf

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    7 05/05/15 Seminário / Música e transf. social / A música e o risco: capítulo II

    8 12/05/15 Seminário / Música e transf. social / A música e o risco: capítulo III

    9 19/05/15 Seminário / Música e transf. social / A música e o risco: capítulo IV

    10 26/05/15 Seminário / Música e transf. social / A música e o risco: capítulo V

    11 02/06/15 Aula expositiva / Possíveis abordagens conceituais (AbordagemPONTES)

    12 09/06/15 Aula expositiva / Possíveis abordagens conceituais (Tese de TanakaSorrentino, 2012)

    13 16/06/15 Aula expositiva / Possíveis abordagens conceituais

    14 23/06/15 Aula expositiva / Possibilidades metodológicas

    15 30/06/15 Aula expositiva e prática / Possibilidades metodológicas

    16 07/07/15 Entrega e apresentação de trabalhos escritos/ apresentação

    17 14/07/15 Entrega e apresentação de trabalhos escritos/ apresentação18 21/07/15 Avaliação Final / Elaboração de propostas

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    revista

    daabem número 8 

    março de 2003 

    Atuação profissional do

    educador musical: terceiro setor  

     Alda de Oliveira 

    PPG-Música – UFBAMembro da SONARE Ltda.

    e-mail: [email protected]  

    Resumo. Este texto reflete sobre a formação de professores de música diante das modificações impostaspelo mercado de trabalho atual em mudança, especialmente no setor das organizações nãogovernamentais (ONGs). 

    Palavras-chave:formação, professores de música, ONGs 

    Abstract. This text reflects on the preparation of music teachers challenged by the several changesinfluenced by the different types of jobs and tasks in modern society, specially at the non governamentalorganizations (NGOs). 

    Keywords: training, music teachers, NGOs 

    Lendo os textos de Cristina Grossi e de 

    Cássia Virgínia Souza1

    , comecei a refletir sobre os mercados de trabalho para os formandos em licen- ciatura em música e os docentes que já trabalham na área em escolas e cursos particulares. Interes- sei-me também pelo capítulo do livro organizado por Colwell (1992) sobre o ensino de diferentes habilidades musicais e de conhecimento em dife- rentes contextos educacionais. Estimulada por es- ses materiais, comecei a refletir sobre o assunto com base na experiência que tive na criação e de- senvolvimento de uma ONG em Salvador. Espero que a partir das informações que apresento o tema possa despertar expectativas, questões, reflexões 

    e propostas para uma educação musical afinada 

    com o seu tempo. 

     A autora Fröehlich (1992, p. 561) ressalta que, apesar das diferenças dos ambientes, exis- tem nos Estados Unidos, por exemplo, aspectos comuns que podem ser observados como um ensi- no de música que pretende desenvolver a compre- ensão de conceitos de música através de habilida- des de discriminação musical, que, no ensino ele- mentar (em geral compulsório), objetiva equipar a pessoa para fazer escolhas educadas sobre músi- ca no futuro. E que no ensino médio inicial é obri- gatório ou eletivo, dependendo das leis do estado 

    1 Cristina Grossi foi a coordenadora do Fórum 4 do XI Encontro Anual da ABEM , cujo tema foi “Atuação Profissional: Quais mercadosde trabalho?” (2002). Membros da mesa: Alda de Oliveira, Cássia Virgínia Souza, Ana Lúcia Louro. Observador externo: Carlos Kater. 

    93 OLIVEIRA, Alda de. Atuação profissional do educador musical: terceiro setor . Revista da ABEM , Porto Alegre, V. 8, 93-99, mar.2003. 

    mailto:[email protected]:[email protected]:[email protected]

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    número 8 março de 2003 

    revista da 

    abem 

    ou das decisões dos conselhos locais. Em todos 

    os casos do ensino médio, o objetivo do ensino geral da música está mais na integração do co- nhecimento e na construção do conhecimento (des- coberta) do que na aquisição de habilidades e co-  nhecimentos testados. Por outro lado, no ensino médio avançado (geralmente de caráter eletivo em banda, coral ou orquestra), o objetivo é desenvol- ver habilidades vocais ou instrumentais e conheci- mentos básicos sobre estilo, sendo o processo muito competitivo. Assim, nessa fase, o aluno deve se tornar membro de um grande conjunto musical dentro da escola e ter conhecimentos fundamen- tais suficientes para ser um performer ativo e auto- 

    suficiente. Tanto no método de ensino particular  individualizado como no ensino escolar em grupo, existe ainda a dicotomia entre o desenvolvimento de habilidades específicas de  performance e o ensino que envolve a aplicação de conceitos. A autora fala também sobre o impacto da tecnologia de música e da tecnologia educacional no ensino de música. Fatores como esses acima podem in- fluenciar muito as opções de mercado de trabalho para o educador musical. Hoje, o licenciado preci- sa estar atualizado não somente nas metodologias e habilidades de performance, mas também nas 

    tecnologias e diferentes formas de administração de ensino e produção cultural. 

    Na realidade brasileira ainda está presente a dicotomia entre prática e teoria nos vários níveis de ensino. Além disso, existem problemas graves de seqüenciamento da aprendizagem devido a fa- tores como: número insuficiente de professores de música, falta de livros didáticos e de instrumentos musicais, falta de continuidade dos alunos nas tur- mas de um ano para o outro, ausência de sistemas de avaliação adequados para a música e as artes.  A discrepância entre a prática de ensino e as reco- 

    mendações dos textos que guiam as decisões  

    curriculares nas escolas são freqüentes. Já há al- gum tempo sabemos que não dispomos de um nú- mero suficiente de professores especializados em música para desenvolver as habilidades necessá- rias em música no nível fundamental. Os professo- res generalistas, em geral, fazem atividades de execução com as crianças como atividade de lazer  ou como auxílio para outras disciplinas. Ao contrá- rio do que recomenda a área, o ensino específico de música é obrigatório no nível médio. Aqui o ob-  jetivo é proporcionar conhecimentos gerais de mú- sica, para que o aluno possa aumentar a sua ba- gagem cultural, não preparando o aluno para en- 

    frentar um exame de vestibular para o curso supe- rior de música ou para participar de um conjunto musical como orquestra, banda ou coral. Algumas escolas, no entanto, oferecem atividades de coral ou banda como eletivas, mas, em geral, não incor- poram atividades de literatura ou de leitura musi- cal. Alguns educadores já questionam a obriga- toriedade do ensino de música no nível médio, pois é justamente na fase da adolescência que o traba- lho de ensinar música se torna mais difícil para o  professor. No nível fundamental a atividade musi- cal e artística é em geral prazerosa e atraente, o 

    que torna a tarefa para o professor mais facilitada.  As escolas ainda não têm clareza quanto à neces- sidade de atingir os objetivos de compreensão de conceitos e de levar o aluno a fazer escolhas educadas musicalmente. Mesmo havendo os do- cumentos orientadores, ainda há muita indeci- são a respeito de para onde conduzir os alunos. 

    Dessa maneira, torna-se ainda mais difícil a construção das PONTES2 de ensino e aprendiza- gem, de seqüenciamento, de escolha de repertóri- os, de desenvolvimento de habilidades e concei- tos. Sentimos muito a ausência de um planejamento 

    2 PONTES: termo usado pela autora para referir-se às Estruturas de Ensino e Aprendizagem que servem para interligar o que oprofessor vai ensinar aos saberes que o aluno já possui. Os termos “estruturas  de ensino e aprendizagem” foram usados em textos dadécada de noventa para exprimir o planejamento em conjuntos significativos para cada tipo de repertório e de ação didática. Essaterminologia contrasta com a concepção de planejamento por planos de aula, que são organizados tendo como referência os objetivos,o tempo disponível para a aula e, em geral, a partir de conteúdos. Já as PONTES são concebidas pela autora como atividades integradasàs necessidades do aluno, da escola, do professor e da área de conhecimento, são fechadas em si mesmas, ou seja, os tamanhos e acomplexidade dependem da TOTALIDADE da ação educacional (com completude), são orgânicas (adequadas ao momento) e significativasmusicalmente (o repertório musical e o nível de desenvolvimento do aluno são a base inicial para a reflexão e para o seqüenciamento dasatividades). Visando tornar a explicação mais didática, compus a seguinte orientação descritiva para as PONTES: 

    [P]ositividade. Abordagem positiva, segura. Perseverança, poder de articulação e habilidade de manter a motivação do aluno; 

    [O]bservação. Capacidade de observar cuidadosamente o aluno, o contexto, as situações do cotidiano, os repertórios, as representações; 

    [N]aturalidade. Simplicidade nas relações com oaluno, naturalidade com os conteúdos do currículo escolar e de vida, com as instituições,

    o contexto e os atores; [T]écnica competente, adequada a cada situação didática; habilidade para reaplicar, compor e desenvolver novas e adequadas estruturasde ensino/aprendizagem; 

    [E]xpressão: criatividade, habilidade de expressar-se, esperança e fé no desenvolvimento, aprendizagem e expressividade do aluno; 

    [S]ensibilidade às diferentes músicas e às diferentes linguagens artísticas. 

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    revista da 

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    curricular que ofereça oportunidades para que o 

    aluno possa desenvolver uma visão global da mú- sica, dos estilos, dos instrumentos musicais, das formas, dos repertórios das músicas do mundo, da apreciação crítica, da composição e da improvisa- ção, assim como da não incorporação dos saberes do aluno e dos elementos da sua cultura. Quando  isso acontece, o sistema não incorpora os saberes de forma a agregar valor, conhecimento e reconhe- cimento dos saberes. 

    Fizemos essa recapitulação de problemas visando a contrastar a situação brasileira com as realidades dos países desenvolvidos. Contudo, in- 

    sisto em deixar claro que, apesar de todos esses entraves, temos também facilidades e pontos posi- tivos que tornam o indivíduo no nosso contexto uma pessoa musical ou musicalizada. As crianças que aprendem música na rua, nas creches, associações de bairro, ONGs ou em casa, sozinhas ou com a  TV, o rádio ou familiares e amigos são exemplos vivos disso. Apesar das defasagens que ocorrem no contexto educacional, a música brasileira é muito divulgada, a população tem laços muito estreitos com a música, a atividade comercial em música é muito grande, o número de bandas jovens tem cres- cido muito e existem muitas experiências educaci- onais em música, e nas artes, de muito valor. Mui- tos indivíduos aprendem um pouco na escola e, mesmo com esse pouco, fazem muito na sua vida  profissional. Mas como, onde e quando acontece o desenvolvimento musical da população? 

    Temos dados recentes de pesquisa3 feita com jovens que tocam em bandas de música po- pular que mostram o desejo desses jovens em aprender muito mais de música do que é oferecido nas escolas ou na rua. Até mesmo fazem críticas ao ensino e propõem atividades que possam aju- 

    dar o processo de profissionalização dos grupos musicais. 

    Diante das questões levantadas no texto de Cristina Grossi e de Cássia Coelho para esse Fórum, vou abordar mais especificamente as de- mandas do mercado de trabalho das ONGs (cha- mado terceiro setor) e demais espaços alternati- vos como associações de bairro, creches, casas e cursos de apoio ao idoso e aos portadores de ne- cessidades especiais. Isso porque esse mercado 

    número 8 março de 2003 

    de trabalho está em franco desenvolvimento para 

    o educador musical, e porque tenho vivenciado recentemente essa realidade. Como sabemos, a formação do educador musical ainda não inclui conhecimentos ou mesmo disciplinas que dêem fundamentação e competências necessárias para tal. Aspectos desse mercado precisam ser discuti- dos e clarificados. Quando estávamos criando e organizando o projeto da Escola Pracatum (1996- 2000)4 , por exemplo, vivenciamos realidades bas- tante diferentes daquelas para as quais, em geral, o curso de licenciatura em música das universida- des prepara o aluno. Vou ressaltar algumas carac- terísticas vitais para um bom desempenho dentro 

    dessas realidades. 

    Uma ONG é uma organização não governa- mental criada para solucionar problemas específi- cos de um contexto sociocultural, que, de outra for- ma, não seriam solucionados pelo governo ou pela sociedade em geral. Um grupo de pessoas capaci- tadas e comprometidas com a missão da ONG pre- cisa estar unido em torno dos objetivos, das me-  tas, das atividades e dos problemas surgidos, a  fim de que as propostas principais da instituição sejam cumpridas e a sobrevivência auto-suficiente seja atingida e mantida. 

    Durante a etapa de seleção da equipe de trabalho, vimos como é importante o relacionamen- to entre as pessoas, o sistema de seleção e avali- ação, as formas de comunicação dentro e fora da equipe com os órgãos de financiamento do proje- to, o sistema de valores de cada um, os hábitos de vida, o caráter e as coisas com que se identifica  (religião, repertório musical, etc.). Na realidade, são pelas características e qualidades mais sutis que as pessoas se diferenciam e se qualificam para o mercado de trabalho. 

    Dentre as dificuldades que uma equipe pode passar estão a forma de avaliar não somente o conhecimento e as competências de cada candi- dato, mas principalmente as coisas menos percep- tíveis e vistas geralmente como adereços da per- sonalidade, que, ao longo do tempo na instituição, vão se tornando elementos de destaque e fatores de atrito ou de expressão de unidade da equipe.  Asseio pessoal, vestuário, repertório de termos e gírias na fala, expressão vocal e timbre da voz 

    3 Pesquisa integrada (2000-2002) apoiada pelo CNPq, desenvolvida pelas Dras Jusamara Souza, Liane Hentschke e Alda de Oliveira:  Articulações pedagógicas em ambientes escolares e não escolares: estudos multicasos. 

    4 Nesse período participei da equipe do projeto de criação da Escola Pracatum,by Carlinhos Brown, Profissionalizante de Músicos. Em1987-1988 fui diretora da escola e nos demais anos, participei do Conselho Deliberativo da Associação. Atualmente, a coordenadorapedagógica é Flávia Candusso, Mestre em Educação Musical pela UFBA, que trabalhou sob a minha orientação. A sua pesquisa foisobre a banda Lactomia, que inclui vários alunos da Escola Pracatum e é liderada por Jair Rezende. 

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    (agradável ou incômodo), gestual do corpo, habili- dades de relacionamento e comunicação inter-

    pessoal, atualização e vontade de aprender conti- nuamente, capacidade de liderança, flexibilidade para admitir e trabalhar o erro, aceitação das dife- renças grupais, capacidade de análise das diver- sas situações-problema e outros inúmeros detalhes podem ser elementos que irão facilitar ou não a afinidade profissional e emocional do professor com o seu trabalho na instituição. 

    No mercado de trabalho das ONGs, o mem- bro da equipe precisa entender a estrutura de fun- cionamento da instituição, assim como quais são os interesses e expectativas das instituições que 

    apóiam financeiramente o projeto. A capacidade de análise de estruturas de funcionamento e de seus recursos financeiros, humanos e materiais precisa ser estimulada e estar muito clara nas men- tes dos seus colaboradores. 

    Os aspectos da formação musical são im- portantíssimos para o perfil daquele que vai traba- lhar numa ONG que tem a música como elemento básico, pois definem realmente o que pode acon- tecer como atividades músico-pedagógicas na prá- tica. O gosto musical, os níveis das habilidades  musicais (voz e instrumento), a capacidade criati- 

    va e expressiva, o nível de apreciação crítica do repertório musical, a autocompreensão sobre os próprios saberes e competências, sabedoria e modéstia mas, ao mesmo tempo, autoconfiança e alegria pelo que consegue fazer, a capacidade de trabalho interdisciplinar e as habilidades de nego- ciação administrativa e pedagógica podem interfe- rir decisivamente para o sucesso do profissional numa determinada ONG. A inteligência lógico-pe- dagógica visando atuação adequada no ensino, através de um bom seqüenciamento de atividades e repertórios, tomando em conta os diversos fato- 

    res de variabilidade da população e da instituição, é uma das principais qualidades a serem observa- das no profissional da equipe. 

    Porém, muitos desses pontos em destaque não são trabalhados nos cursos de treinamento de professores de música e, assim, nesse tipo de mercado de trabalho, onde os salários são até mesmo mais altos que nas escolas regulares, o índice de satisfação da instituição pela performance no trabalho do profissional varia muito. Às vezes, o professor é muito competente em música mas não tem um maior entendimento pedagógico ou 

    administrativo, ou até em capacidades de relacio- namento pessoal. Assim sendo, nos testes de se- leção e de treinamento de recursos humanos a equipe diretora do projeto tenta verificar mais de 

    perto as qualidades e problemas de cada candida- to a administrador, captador de recursos, profes- 

    sor, secretário ou artista em residência na ONG.  Atualmente, o repertório musical varia muito 

    de contexto a contexto. Como as ONGs, em geral, se propõem a atuar para o desenvolvimento da ci- dadania, usando a música como elemento  agregador e de desenvolvimento psicossocial e estético, o trabalho dentro desses mercados tem altas expectativas do profissional que espera tra- balhar no terceiro setor. Abertura mental para acei- tação do gosto dos alunos e dos demais professo- res, habilidades gerais e específicas para execu- tar, apreciar, analisar e compor músicas de estilos 

    diversos e de vários locais e compositores, capa-  cidade de organização pedagógica e artística para estimular a ONG e a comunidade a dar suporte para a entidade e para os profissionais, elevando a auto- estima profissional e artística de todos e mantendo o apoio à instituição como um todo. 

    Outro ponto a ressaltar é a competência para a pesquisa, pois dentro das ONGs é necessário 

    documentar as atividades, avaliá-las e fazer análi- ses qualitativas e quantitativas do progresso de 

    todos os participantes, assim como fazer  autodiagnoses e previsões de planejamento futu- 

    ro. Além do cuidado com a documentação da atua- ção, ainda existem as pesquisas sobre a realidade do entorno e dos moradores do local, suas históri- as e produtos, suas necessidades atuais e futuras. 

    Muito relevante é a capacidade e o treina- mento para a flexibilidade, sem contudo o profissi- onal ser desorganizado e sem objetivos, estrutu- ras ou metas. É com a capacidade para a flexibili-  dade que o membro da equipe pode perceber o outro e adaptar-se às necessidades que vão sur- gindo no cotidiano da organização. A pessoa que trabalha com liberdade e flexibilidade aprende a respeitar também a liberdade do outro e as deci- sões da equipe e seu sistema (hierárquico ou coo- perativo) de funcionamento, podendo ter mais su- cesso do que aquela pessoa que é mais rígida nos seus conceitos de desenvolvimento e administra- ção institucional. 

    Para observar a competência metodológica dos candidatos, as organizações tendem a fazer  testes preliminares de seleção básica e geral, re- sultando em um número maior do que o que vai contratar, e em seguida oportunizam um treinamen- 

    to geral e detalhado para atingir os objetivos da ONG. Esse treinamento é, geralmente, bastante sutil e organizado, pois os detalhes maiores das características dos candidatos se mostram, às ve- 

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    zes, fora das atividades regulares, ou seja, nos in- tervalos, nas refeições, nos recreios, nas ativida- 

    des artísticas e sociais. Essa consciência precisa estar presente nos cursos de formação de profissi- onais em música, para que as oportunidades nes- se mercado de trabalho possam ser melhor apro- veitadas por aqueles que se interessam pelo as- sunto. 

    Recentemente tive oportunidade de conhe- cer vários formandos que têm preferido ingressar  em ONGs a trabalhar em escolas superiores e con- servatórios, não só pela oferta de salários e posi- ções mais gratificantes, mas também pelo tipo de trabalho a ser desenvolvido com os alunos, que, 

    em geral, é mais artístico, oferece mais chances de criação individual, é mais flexível em horários e metodologias, além de oferecer uma maior visibili- dade dentro da comunidade. 

    No texto de Cristina Grossi (p. 2) ela lembra que é importante “voltar nossa atenção para  os vários saberes das pessoas”. Concordo plenamen- te. Muito especialmente nas ONGs, o profissional precisa estar preparado para autoconhecer-se e desenvolver-se continuamente, para avaliar a sua atuação diante dos saberes do outro, avaliar o ou- tro em relação aos objetivos da entidade, em rela- 

    ção a ele próprio e aos colegas. Não adianta ape- nas querer fazer: a pessoa precisa ter a capacida- de de saber os seus limites e competências, a fim de estar no seu lugar certo, onde possa desenvol-  ver-se e fazer as suas tarefas com desembaraço, desenvoltura e competência criativa. Para esse desempenho, o profissional pode desenvolver o hábito de planejar por PONTES e não somente por  planos de aulas. 

    Para desenvolver o aluno, tanto em grupo como individualmente, o professor de música usa competências para ensinar não somente concei- tos musicais mas também algumas habilidades de  performance e composição, pois todos são impor- tantes. Para facilitar esse desenvolvimento, o pro- fessor precisa ter consciência principalmente de para onde o aluno deve ir, a fim de construir as pontes com elementos seqüenciados que levarão o aluno aos resultados previstos. De acordo com Froehlich (1992, p. 562), seqüenciamento é “uma progressão ordenada e contínua de atividades de 

    ensino que vão do ponto A ao ponto B. Essa pro-  gressão é intencional e pode ir do simples ao com- 

    plexo, do familiar ao não-familiar, do fácil ao difícil, ou do conhecido ao desconhecido”5 . Raciocinan- do e agindo com lógica pedagógica dentro de um ensino significativo de música, o profissional esta- rá, sem dúvida alguma, contribuindo para chegar  aos objetivos com eficácia e eficiência, sabendo também lidar com flexibilidade nos imprevistos e falhas. 

     Ao iniciar as atividades com o projeto da Escola Pracatum (no Candeal Pequeno de Brotas, em Salvador, Bahia), percebi que alguns colegas e companheiros de profissão viam a minha esco- 

    lha com olhares desconfiados e preconceituosos. Por estar perto de pessoas simples, de níveis socioeconômico e educacional mais baixos, na sua maioria da raça negra, e que, em geral, lidam com tambores e instrumentos de percussão, levantava atitudes de estranhamento. Não presenciei reações extremamente negativas, mas algumas atitudes de descrédito e dúvida. Porém, ao contrário dessas reações mais negativas do lado acadêmico,  vivenciei reações muito positivas de pessoas da própria comunidade, de políticos, de artistas, de professores universitários com mentalidade mais aberta e também de financiadores. A capacidade de enfrentamento dos problemas oriundos do pre- conceito é também muito necessária ao profissio- nal e precisa de esclarecimentos e preparação, pois, caso o licenciado tenha uma personalidade mais sensível, poderá não ter os argumentos e o  temperamento para sobrepor-se, e, assim, fracas- sar. No meu caso, o trabalho de equipe ajudou a preparar os profissionais para esses preconceitos. O enfrentamento de problemas de identidade são muito relevantes na formação do educador musi- cal, pois, para que ele tenha sucesso profissional  e pessoal, as identificações precisam ser verda- 

    deiras, firmes e conscientes6 . 

    Outro problema na formação de licenciados é a dificuldade de pensar o planejamento das ações educativas de acordo com a missão das institui- ções contratantes. Dentro das habilidades em pla- nejamento, está a do profissional pensar com os olhos e os sentimentos do outro, em vez de so- mente pensar e planejar através da sua própria ótica. Numa ONG, é muito importante a obtenção 

    5 Existem, no entanto, discordâncias entre os educadores sobre a conceituação de seqüenciamento. O termo aqui é aplicado no sentido

    do professor se esforçar para ir de um ponto a outro de forma ordenada e contínua, e não, forçosamente, de seguir uma só ordem deseqüência adotada por algum critério. 

    6 Certa vez, logo que aceitei o cargo de diretora da Escola Pracatum, um colega da universidade disse pra mim, brincando: “Daqui a unsdias você vai chegar aqui na escola pintada de Timbalada e com o cabelo de trancinhas!”. 

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    revista da 

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    de financiamentos para os objetivos para os quais ela se propõe. Portanto, não somente é importante 

    atrair as instituições de fomento, mas também mantê-las sempre interessadas e informadas so- bre os avanços e os problemas que surgem no caminho. Transparência nas ações administrativas e pedagógicas, é fundamental. Relatórios, presta- ções de conta, apresentações didáticas, publica- ções e reuniões de avaliação são muito importan- tes. O preparo do profissional das ONGs inclui co- nhecimentos e habilidades relacionados à admi- nistração pedagógica, ao acompanhamento e su- pervisão das atividades didáticas e artísticas, as- sim como conhecimentos para a confecção de re- latórios, programas e currículos de música. Como 

    a avaliação está presente em todo o processo de  criação, desempenho e desenvolvimento da pro- posta, o profissional precisa conhecer as varieda- des dos processos de avaliação, para usar as téc- nicas com propriedade durante cada etapa, sem, contudo, desmerecer os trabalhos de cada mem- bro da equipe, e usando a avaliação para o próprio desenvolvimento da instituição. 

    O processo de adaptação à forma adminis- trativa das ONGs pode ser difícultado por uma for- mação semelhante à de funcionário público, ou seja, aquela pessoa que se forma e pretende in- gressar no mercado através de um concurso linear  e que espera encontrar não um trabalho real e cri- ativo, mas apenas um emprego, onde vai estar  dentro de um horário padrão, com tarefas específi- cas e pré-determinadas de maneira rígida e contí- nua. Gostei do termo apresentado por Cássia, o da “qualificação humanizadora” (p. 1) É preciso refletir sobre os aspectos que demandam  posicionamentos humanos e outros que extrapolam as nossas capacidades. Quando a formação do educador musical não oferece meios de análise de vários sistemas de administração e seus proble- 

    mas, o licenciado pode ter muitos problemas den- tro da organização, já que as ONGs, para sobrevi- verem, muitas vezes extrapolam horários, pois re- cebem convites de visitantes repentinos, novas oportunidades aparecem e precisam ser aprovei- tadas. Tudo isso exige muita compreensão e des- prendimento dos seus profissionais. Além disso, os problemas do contexto socioeconômico, geralmen- te, afetam os financiadores e as aberturas de no- vos contratos. Dessa forma, as crises relaciona- das com a manutenção da instituição acontecem principalmente quando existem problemas internos 

    de relacionamento, no ensino ou na administração da entidade. Quando a ONG está em fase inicial, o governo, em geral, tem o papel de cobrar impostos e fiscalizar. Esses impostos são muito altos e reca- 

    em sobre os recursos captados, principalmente dentro do pagamento de pessoal. Porém quando 

    os trabalhos e os resultados positivos começam a nascer, em geral, o setor governamental quer ob- ter os lucros da visibilidade e se mantém interes- sado em investir também. Mesmo sabendo que esse interesse é muito bom, o corpo de recursos humanos da ONG precisa estar atento às condi- ções, às intenções e àquilo que ele vai exigir de volta da entidade financiada, para que não entre em choque com a missão inicial. Por essas razões, é tão importante que, dentro das habilidades dos profissionais, esteja a capacidade de análise críti- ca sobre a estrutura, os objetivos, a missão, os papéis de cada membro, os objetivos a serem al- 

    cançados com os alunos da ONG, além das metas a serem alcançadas para cada um dos finan- ciadores. 

    Para concluir, lembro principalmente das expectativas que existem dentre os empreendedo- res, os criadores das ONGs, os seus presidentes e conselheiros. A realidade empresarial é muito mais imediatista que a realidade dos cursos superiores nas universidades. Não quero aqui defender uma ou outra, mas, no entanto, lembro a grande neces- sidade que as pessoas têm de terem o seu empre- go. Há alguns anos não se discutia tanto as exi- gências do mercado, a realidade sociocultural, os aspectos de cidadania, a articulação entre os am- bientes escolares e não escolares, os projetos so- ciais e a relação das artes na comunidade. Obser- vo, portanto, a grande necessidade da discussão das diferentes frentes de trabalho para o educador  musical e das formas que ele pode ter de desem- penhar as suas diferentes funções com o sucesso que todo ser humano merece ter na sua vida pro- fissional e artística. Concordo que a universidade, além de preparar o aluno para enfrentar as exigên- cias do mercado, o prepara para manter e desen- 

    volver saberes em que o mercado não tem interes- se. A universidade precisa também ser prospectiva, e, para isso, prepara o aluno para o presente e  para o futuro, embora também tenha um pé no pas- sado. Além da preparação nos cursos superiores, os educadores musicais estão buscando outras formas de aprender a lidar com os vários merca- dos e indo atrás de quem tem saberes a comparti- lhar. Isso é muito positivo. 

    No texto de Froehlich são identificados al- guns pontos a serem pesquisados atualmente, e, dentre eles, estão os educadores musicais como corpbo profissional decisório e como funcionários públicos e empresários; a relação entre professo- res de música de escolas públicas, professores de 

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    estúdio e pesquisadores, e a viabilidade de uma agenda de pesquisa como base para a ação de 

    vários educadores musicais. Esse tema não se esgota aqui. A ABEM está fazendo um debate mui- to produtivo e necessário para o momento atual. É 

    com grande curiosidade que remeto os temas que abordei neste texto, a partir dos textos das colegas 

    do Fórum, para essa excitante platéia de colegas de profissão, companheiros de trabalho e da mis- são de educar musicalmente o povo brasileiro. 

    Referências 

    FROEHLICH, Hilgard C. Issues and characteristics common to research on teaching in instructional settings. In: COLWELL, Richard(Ed.). Handbook of Research on Music Teaching and Learning . New York: Schirmer Books, 1992. p. 561-567. 

    GROSSI, Cristina. Atuação profissional: Quais mercados de trabalho? (Texto-base) Natal: XI Encontro Anual da ABEM, 2002. (Mimeo) 

    SOUZA, Cássia Virgínia. Atuação profissional: Quais mercados de trabalho? (Texto complementar). Natal: XI Encontro Anual da ABEM, 2002. (Mimeo) 

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    Mus icalidade na perfo rmance:uma inves t igação en tre

    estudantes de instrumento  

    Luciane Cuervo 

    Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) [email protected]  

    Leda de Albuquerque Maffioletti 

    Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) [email protected] 

    Resumo. A presente pesquisa acompanha o processo de aprendizagem da flauta doce de um grupode 17 sujeitos, com idades entre nove e 13 anos, que participa de um projeto de extensão oferecidopor uma escola pública de ensino fundamental e médio em Porto Alegre, buscando compreendercomo se dá o desenvolvimento da musicalidade. Apoia-se na concepção de musicalidade como umacaracterística humana, constituída pela capacidade de geração de sentido musical através de uma performance expressiva. A metodologia de pesquisa possui abordagem qualitativa, com a realizaçãode um estudo de caso em grupo por meio de observações de aulas e apresentações coletivas de

    flauta doce. Os resultados demonstraram que o repertório, a prática e estudo, o contexto sociocultural,o acesso à técnica, criação e leitura musical e a ocorrência de apresentações musicais são fatoresque influenciam o desenvolvimento da musicalidade. 

    Palavras-chave: musicalidade, flauta doce, performancemusical 

    Abstract. The present research traces the recorder learning process of a group of seventeen peopleaged between nine and thirteen, which participates in an extension program held by a public schoolin the city of Porto Alegre. This research aims to understand how musicality is developed, based onthe concept that this is a human characteristic, constituted by the capacity of creating musical mean-ing through expressive performance. The methodology applied has a qualitative approach. A groupcase study was made through class observation and collective recorder presentations. The resultsdemonstrated that: repertoire; practice and study; sociocultural context; access to technique, composi-tion, improvisation, and musical reading; and the occurrence of musical presentations are factors that

    influence musicality development. 

    Keywords: musicality, recorder, musicalperformance 

    Caracterização da temática de pesquisa 

    O presente trabalho é um recorte da disser- tação de mestrado (Cuervo, 2009), na qual foi re- alizada uma investigação sobre o desenvolvimento da musicalidade na performance de um grupo de estudantes de flauta doce em atividade extraclasse de uma escola pública na cidade de Porto Alegre. 

    Supomos, inicialmente, que o desenvolvi- mento da musicalidade na  performance pode ser  observado em qualquer indivíduo, de qualquer  

    idade ou nível de aprendizagem. Para entendermos esse processo, procuramos identificar os fatores que influenciaram a trajetória dos estudantes de flauta doce envolvidos na pesquisa e os indicadores de musicalidade, os quais foram agrupados em quatro categorias de análise: sonoridade, condução do fraseado, fluência na execução musical  –  na 

    improvisação, leitura de partitura ou no tocar de cor  e a interação musical. Essas categorias de análise foram fundamentais para a caracterização científica do presente trabalho. 

    35 CUERVO, Luciane; MAFFIOLETTI, Leda de Albuquerque. Musicalidade na performance: uma investigação entre estudantes de instrumento.Revista da ABEM , Porto Alegre, V. 21, 35-43, mar. 2009. 

    mailto:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]

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    revista da 

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    Constatamos que não poderíamos chegar  a uma clara definição do que seria a musicalidade 

    brasileira, já que não há como generalizar um con-  junto de ações e habilidades específicas de forma a enquadrar, em um só conceito, grupos sociais heterogêneos com enorme diversidade cultural como existem no país. Sendo assim, o conceito de musicalidade da presente pesquisa foi cunhado a partir da fundamentação teórica e em sintonia com o contexto de observação de campo. 

    O termo “musicalidade”, também menciona- do como “habilidade” ou “competência musical”, é descrito como a capacidade de geração de sentido de acordo com Gembris (1997), Swanwick (2003) e Stefani (2007, p. 1), “compreendendo o saber,  o saber fazer e o saber comunicar”. 

     A concepção de performance nesse trabalho está em conformidade com Sloboda (2008), quando diz que o termo abarca todos os comportamentos musicais manifestos, num sentido conceitual mais amplo que execução instrumental ou interpretação.  A performance musical é descrita por Clarke (2002) como a constituição e articulação de significado musical, abarcando atributos cerebrais, corporais, sociais e históricos do executante. O pensamento 

    desses autores converge para a compreensão da musicalidade como a habilidade de gerar sentido musical através da performance. 

     A metodologia utilizada possui abordagem qualitativa em um estudo de caso em grupo. As indagações em relação à temática de pesquisa e necessidades metodológicas foram verificadas e discutidas a partir da fundamentação teórica em conformidade com orientações de Laville e Dionne (1993) e Bogdan e Biklen (1997), aliada à reali- zação do estudo-piloto. Dessa forma, os estudos teóricos e as atividades práticas de pesquisa se retroalimentaram nesse processo de elaboração, revelando a abordagem metodológica mais ade- quada para o registro, codificação e análise do material coletado numa abordagem qualitativa. 

     A problemática da pesquisa, portanto, pode ser sintetizada na pergunta: 

    • Como se dá o desenvolvimento da musica- lidade na performance com a flauta doce? 

    Os desdobramentos da problemática apre- 

    sentam-se nos seguintes questionamentos: 

    •  Quais os indicadores de musicalidade podem ser observados na performance dos estudantes de flauta doce? 

    • Quais os fatores que influenciam o desen- volvimento da musicalidade na performance 

    através da flauta doce? 

    Dessa forma, a presente pesquisa buscou uma compreensão do desenvolvimento da musi- calidade na performance com a flauta doce, valo- rizando o discurso musical dos sujeitos. O olhar da pesquisa para o educador foi no sentido de registrar  e perceber a sua forma de interação e mediação  no processo, especialmente no que se refere a um modelo no qual o aluno se inspira, procura imitar  ou responde. 

    Fundamentação teórica: refl exões sobre 

    musicalidade 

    É comum encontrarmos estudantes e pro- fessores que almejam “tocar com  musicalidade”, mas, normalmente, não há reflexão sobre o que é musicalidade ou como ensiná-la. Nesta seção, discutimos esse conceito apresentando os fatores que, segundo Piaget (1973, 1978), interferem no desenvolvimento intelectual da criança e relacio- nando-os à construção da musicalidade no sujeito. Em seguida, tecemos um diálogo com autores da área de educação musical e filosofia da música, 

    destacando-se Blacking (1976), Gembris (1997; 2006), Elliot (1998) e Hallam (2006), além de  pesquisas recentes de Sacks (2007), entre outros estudos, com o intuito de aprofundar o debate acerca das concepções de musicalidade. 

    Hallam (2006) menciona que o termo “mu- sical” é normalmente remetido a outros  termos, como “habilidade” (define a capacidade ou poder), “aptidão” (propensão natural ou talento), “talento” (uma faculdade ou atitude especial) e “potencial” (o que pode vir a ser ou a própria ação, latente). 

    O uso do termo adequado para se referir  à musicalidade é uma dificuldade mencionada por Alda Oliveira, tradutora da obra de Swanwick (2003, p. 84). Em nota de rodapé, explica que não há palavras em nosso vocabulário que possuam o mesmo significado atribuído a musicality e mu- sicianship, devendo a primeira ser relacionada a talento natural e a segunda a habilidade adquirida e sensibilidade. Pesquisadores brasileiros também utilizaram distintos termos, como “expressividade do discurso musical”, de acordo com França (2000), ou “talento musical”, para Figueiredo e Schmidt 

    (2005, 2008). 

    Na sociedade ocidental, o termo “musicalida- de” passou por distintas fases conceituais. Gembris (1997) dedicou-se a analisar o perfil histórico do 

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    conceito de musicalidade, identificando três fases: a fenomenológica, entre 1880 e 1910/1920, a qual 

    consistia na ênfase na discriminação musical, na  distinção entre a música boa da medíocre. A segun- da fase foi denominada psicométrica, com ocorrên- cia a partir de 1920 e chegando aos nossos dias, onde o principal objetivo é o de testar habilidades musicais, independentemente dos aspectos socio- culturais do indivíduo. A terceira fase é destacada como a de geração de sentido musical , relacionada à habilidade musical de compreender e transmitir  o sentido da música que está sendo executada, ouvida ou criada. O autor fundamenta-se em alguns dos principais trabalhos concernentes a esse tema, como de Sloboda, Blacking e Stefani (Gembris, 

    1997), entre outros autores. Em afinidade com a terceira abordagem, buscamos construir um referencial teórico que privilegiasse esse conceito inserido no contexto sociocultural da investigação, analisando o direcionamento das pesquisas que mapeiam os indicadores desse conhecimento. 

    Na presente pesquisa, portanto, a musica- lidade não foi considerada um dom ou um talento inato, mas um conhecimento que pode ser desen- volvido e potencializado na aula de música. Tam- bém entendemos que a musicalidade não passa 

    somente por apreciação estética ou treinamento e repetição, mas, sim, é permeada por um conjunto de elementos inter-relacionados, os quais resulta- rão em uma performance musical expressiva. Nas palavras de Maffioletti (2005, f. 240), “utilizar  a mú- sica como expressão é acreditar na possibilidade  de um entendimento mútuo”. 

    Musicalidade: uma característica humana 

    Não há consenso sobre a definição do termo “musicalidade”, mas Hallam (2006) afirma, conver- gindo com os demais autores vistos até aqui, que a tendência atual é de considerar a musicalidade como uma característica humana. Conforme essa corrente, todos possuem a capacidade (natural) de desenvolver sua musicalidade, que será poten- cializada ou contida, de acordo com as normas do contexto sociocultural no qual o sujeito vive. 

     Alguns autores relacionam a capacidade para a música com a capacidade universal para a linguagem, como Ilari (2006), Sacks (2007) e Sloboda (2008), em afinidade com a corrente ina- tista proposta por Chomsky (1998).1 Para Sloboda 

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    (2008, p. 25), “dizer que a linguagem e a  música são universais é dizer que os humanos têm uma 

    capacidade geral de adquirir competências lingü- ísticas e musicais”. 

    Ilari (2006) afirma que há inúmeras evidên- cias sugerindo que os bebês recém-nascidos já estão predispostos a prestar atenção aos elemen- tos musicais da fala e dos padrões sonoros, em conformidade com Barceló Ginard (2003), o qual sugere que a música é natural ao cotidiano da criança. Em concordância com esses trabalhos, Gembris (2006) afirma que a atitude musical existe desde os estágios iniciais da vida humana e, talvez, semanas antes do nascimento. 

    Enquanto Blacking (1976) afirma que as pessoas são musicais conforme os valores de um determinado contexto, e que umas apresentam maior musicalidade do que outras, para Sacks (2007, p. 103) “o talento musical é muito  variável, mas existem indícios de que praticamente toda pessoa é dotada de alguma musicalidade inata”. Segundo ele, a expressão pela música está inti- mamente ligada à natureza do ser humano assim como a linguagem, acrescentando que: 

    Nós, humanos, somos uma espécie musical além delingüística. […] Todos nós, (com pouquíssimas exce-

    ções) somos capazes de perceber música, tons, timbre,

    intervalos entre notas, contornos melódicos, harmonia e,

    talvez no nível mais fundamental, ritmo. Integramos tudo

    isso e “construímos” a música na mente usando muitas

    partes do cérebro. (Sacks, 2007, p. 10). 

     A falta ou excesso de sensibilidade à música possui fatores relacionados “à percepção,  decodi- ficação e síntese de sons e tempo”, que,   segundo ele, caracterizam variadas formas de amusia2 (Sa- cks, 2007, p. 105). A conceituação de musicalidade, para esse autor, abrange uma variada gama de habilidades e receptividades, “das mais  elemen- tares percepções de tom e ritmo aos aspectos superiores da inteligência e sensibilidade musical, e todas elas, em princípio, são indissociáveis umas das outras”. Ele acrescenta que “todos somos mais fortes em alguns aspectos da musicalidade, mais fracos em outros” (Sacks, 2007, p. 104). 

     Acreditamos que todas as pessoas possam vir a desenvolver sua musicalidade, dependendo de um contexto favorável em diversos aspectos, 

    1 O inatismo de Chomsky (1998) prega que os seres humanos teriam um Dispositivo de Aquisição de Linguagem (DAL), estando,assim, previamente configurados para adquirir a linguagem no que diz respeito aos aspectos biológicos de sua constituição. 2 A amusia é a dificuldade – por meio de surdez parcial – em perceber tons e ritmos. Na amusia total, “os tons não são reconhecidoscomo tais, e a música, portanto, não é vivenciada como música” (Sacks, 2007, p. 107). 

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    o qual englobaria um ambiente familiar e escolar  propício, como também a oportunidade de interagir  

    em diversas modalidades da experiência musical ao longo da vida. A qualidade da interação entre o sujeito e o objeto “é dada por dois fatores comple- mentares: um sujeito ativo num meio desafiador ” (Becker, 1999, p. 18, grifo do autor). 

    Em relação ao desenvolvimento da musicali- dade, é sensato argumentar que esse processo não se inicia repentinamente, mas é construído passo a passo, na interação do sujeito com o objeto, nesse caso, a música. No entanto, é natural ao ser  humano a existência de mecanismos necessários para essa construção. Mesmo que não haja con- 

    dições favoráveis, a musicalidade “corre pela  veia de todos” (Barceló Ginard, 2003, p. 218). 

    Hallam (2006) sugere que a qualidade do desempenho (no fazer musical) parece depender  de uma complexa rede de ligações, destacando conhecimento prévio, motivação, esforço e eficácia. Do ponto de vista dos alunos de música, saber o  que estudar (conteúdo), como (metodologia de estudo e ensaio) e por que fazê-lo (motivação),  talvez sejam alguns dos princípios básicos que podem resultar em um fazer musical bem sucedido 

    e gratificanteSegundo Piaget (1973), existe umconjunto de fatores que influenciam o desenvolvi- mento intelectual da criança. Com a convicção de que esse pensamento esteja intimamente ligado ao desenvolvimento musical do sujeito, propomos uma analogia às suas afirmações. O autor argumenta que há variações na velocidade e na duração do desenvolvimento, sugerindo interpretá-las a partir  dos elementos ligados a quatro fatores principais:  1) fatores biológicos (hereditariedade, relaciona- do à maturação interna); 2) experiência física do sujeito a partir do contato com o objeto; 3) fatores sociais (transmissão educativa e cultural); e 4) equilibração (a aprendizagem nova gera um jogo de regulações e de compensações que exige uma equilibração progressiva e dinâmica). 

    Esses fatores não agem de forma isolada e progressivamente, mas concomitantemente. Em relação à musicalidade, bem como em qualquer  área de desenvolvimento intelectual, fatores bio- lógicos e culturais são complementares, formando uma rede de elementos indissociáveis entre si. Relacionando essas afirmações à música, cons- tatamos que a musicalidade é constituída por um 

    conjunto de elementos do fazer musical que vão 

    além de habilidades técnicas específicas. Esse pensamento é defendido também por Blacking 

    (1976), Zuckerkandl (1976) e França (2000), entre outros autores. 

    Diversos autores, como Blacking (1976), Elliot (1998), Hallam (2006) e Gembris (2006),  consideram os conceitos de música e musicalida- de intimamente ligados ao contexto sociocultural, conforme a experiência, gostos e hábitos de cada um. Blacking (1976) e Elliot (1998) afirmam que o contexto sociocultural do indivíduo é fator determi- nante na definição e desenvolvimento da musicali- dade. Segundo Elliot (1998, p. 17, 1998, tradução minha), “a música, no sentido de obra audível, está 

    histórica e contextualmente determinada”. 

    É fundamental, portanto, conhecer a origem e a cultura na qual a atividade musical está inserida, para que se possa realizar um fazer musical que gere sentido para os indivíduos envolvidos. 

    Metodologia de pesquisa 

    Do ponto de vista da abordagem do proble- ma, a pesquisa é qualitativa, e utiliza a categoria  estudo de caso em grupo como uma forma de 

    conhecer e compreender as ações de um grupo de sujeitos no seu contexto de produção. Os procedimentos técnicos da coleta de dados são a investigação por observação como forma central de trabalho e a entrevista semiestruturada, como fonte complementar de dados. 

    Encontramos em Bogdan e Biklen (1997) a concepção de grupo como pessoas que interagem e se identificam umas com as outras, partilhando expectativas relativas ao comportamento uma das outras. Percebemos que essa caracterização se aproximava do contexto de pesquisa, pois havia no grupo musical essa afinidade entre os sujeitos,  constatada em conversas, ações e manifestações de preferências. 

    O presente estudo de caso foi realizado em um grupo composto por 17 alunos de nove a 13 anos de idade, sendo dez meninas e sete  meninos. Desse grupo, 14 alunos são oriundos de uma escola pública da cidade de Guaíba (RS) e outros três alunos do próprio Colégio.3 O grupo de flautas doces do Colégio é coordenado pela pro- fessora Júlia, licenciada em música, com um perfil 

    de organização, espontaneidade e dinamicidade 

    3 Obtive autorização para divulgação de dados da pesquisa, mas optei por manter o anonimato da instituição, dos estudantes e dosprofessores envolvidos, através da utilização de pseudônimos. “Colégio”, em letra maiúscula refere-se à instituição que acolheu a pes-quisa. Entre os estudantes, os pseudônimos mais solicitados foram inspirados em personagens da novela adolescente Rebeldes. 

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    cativante, envolvendo todos os alunos nas ativida- des. Os componentes do grupo já se conheciam e 

    se encontravam com regularidade nas escolas de origem. Esse fato promove a consolidação de um grupo para fins de estudo. Triviños (1987) consi-  dera fatores como a importância dos sujeitos para o tópico pesquisado, a facilidade de encontrar as pessoas, a disponibilidade dos sujeitos para as entrevistas, entre outros, como aspectos prepon- derantes na conformação da amostra. 

     A realização da coleta de dados ocorreu em quatro etapas, ao longo de dois semestres letivos.  A análise dos dados coletados foi realizada em conformidade com o trabalho de Minayo (2000), 

    que propõe três etapas de organização do material.  A etapa de pré-análise consiste na seleção dos documentos a serem analisados, no retorno dos questionamentos iniciais da pesquisa, confrontan- do-os com o material da coleta e na elaboração de indicadores que direcionem a etapa final de interpretação. A segunda etapa, de exploração do material, é essencialmente a ação de codificação. A etapa final é a de tratamento dos resultados obtidos e a interpretação dos mesmos. 

     Através das entrevistas, foi constatado que 

    as expectativas das famílias dos sujeitos eram diferentes, pois familiares de alguns alunos de Guaíba esperavam que a aula de música pudes- se se tornar uma forma de sustento futuro, como artistas locais ou professores. Enquanto isso, as crianças de Porto Alegre viam a aula de flauta doce como uma opção de lazer e, entre seus familiares, não havia expectativas em relação a uma possível colocação sobre o futuro no mercado de trabalho na área artística. Também foi observado que o valor da mensalidade,4 apesar de ser bastante acessível e de condição obrigatória para perma- nência no projeto, era visto de formas diferentes entre os dois subgrupos. Para os alunos de Guaíba a mensalidade era paga com bastante esforço e, em algumas ocasiões, necessitavam de apoio para mantê-la em dia, mas, para os alunos do Colégio e residentes em Porto Alegre, a mensalidade era vista como uma contribuição simbólica. 

     A turma apresentava muita disposição para aprender, com excelente receptividade a essa pesquisa, elemento facilitador para a criação de vínculo da pesquisadora com os alunos. A primeira observação realizada se inicia ainda fora da sala de 

    música, ao perceber o comportamento extrovertido do grupo de alunos na sua entrada no prédio. Os primeiros momentos em sala de aula também re- 

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    velam a motivação e seriedade com que encaram a aula de música, e o apoio paralelo que recebem 

    da professora Marília, de Guaíba. 

     As crianças chegaram com 15 min. de antecedência e

    são identificadas pelos sons da sua chegada: conversas

    em tom forte e animado, risos e notas tocadas na flauta

    doce. Tocavam pelos corredores, conversavam sobre

    assuntos da aula de música e sobre a apresentação

    musical mais recente, que ocorrera pela manhã em sua

    cidade (naquele mesmo dia pela manhã em Guaíba!).

    […] Antes da profa. Júlia iniciar a aula, as crianças   já

    estão sentadas e com as partituras a postos. Cada uma

    possui uma pastinha com sacos plásticos, além de uma

    agenda confeccionada pela profa. Marília (de Guaíba),

    somente para eventos ligados ao grupo de flautas. (Di-

    ário de campo, segunda observação, 2 out. 2007). 

    Percebemos que o contato com aspectos teóricos da escrita musical ocorre de modo direto e simples, atendendo à demanda espontânea dos alunos. 

    Musicalidade na performance com a fl auta 

    doce: resultados da pesquisa 

     A desejável conexão entre revisão bibliográfi- 

    ca, pesquisa de campo realizada e prática pessoal das pesquisadoras revelou um ponto-chave na pesquisa, relativo ao conceito de musicalidade: não seria encontrada uma definição formal e única, mas, sim, construiríamos uma concepção de musicalidade ligada ao contexto sociocultural e educacional, abarcando experiências e valores estético-musicais e buscando compreender as concepções musicais dos sujeitos da pesquisa. 

    Todos os autores pesquisados nesse traba- lho dedicaram-se a descrever as condições neces- sárias para o desenvolvimento da musicalidade, a forma de ocorrência e a necessidade de refletirmos sobre essa temática a fim de enriquecermos nos- sas práticas e saberes musicais como músicos e educadores. No entanto, encontramos em Gem- bris (2006) uma definição objetiva do conceito de musicalidade, relacionada por ele à habilidade musical, a qual norteou a seção conclusiva dessa investigação. Para o autor, a atitude musical é a  capacidade de perceber e dar forma a sons e a  habilidade resultante de comunicar sentido, signi- ficado e sentimentos. A habilidade musical e seu desenvolvimento não formam campos isolados, 

    e devem ser vistos igualmente nos contextos de outros aspectos de personalidade e de condições socioculturais. 

    4 O valor da mensalidade, em 2007, era equivalente a quatro passagens de ônibus urbano comum. 

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    Nessa investigação, portanto, o conceito de musicalidade foi construído levando-se em conta 

    todos os fatores acima mencionados, e pode ser  sintetizado na seguinte definição: a musicalidade na performance com a flauta doce é caracteriza- da pela habilidade de gerar sentido através da música. 

     A relação entre a compreensão do discurso musical e a técnica musical promovem uma execu- ção musical fluente, seja em uma improvisação, seja na execução de cor de uma música que conhece de ouvido, ou ainda lendo partitura. Dentre essas atividades, o grupo investigado apresentou menor  familiaridade com a terceira, demonstrando que a 

    leitura de partitura, por vezes, pode dificultar a per- formance, especialmente quando é proposta simul- taneamente ao aprendizado inicial do instrumento. 

     A interação permite ao grupo realizar trocas entre práticas e saberes afetivos e cognitivos entre os próprios sujeitos com a música e entre eles e as professores. Participando ativamente do processo de aprendizagem coletivo e individual, os sujeitos fortalecem sua autonomia de pensamento, auto- estima, criatividade na resolução de problemas, entre outros aspectos do desenvolvimento musical. 

    Segundo Swanwick (1994): 

    Para começar, fazer música em grupo nos dá infinitas

    possibilidades para aumentar nosso leque de experi-

    ências, incluindo aí o julgamento crítico da execução

    dos outros e a sensação de se apresentar em público.

     A música não é somente executada em um contexto

    social, mas é também aprendida e compreendida no

    mesmo contexto. A aprendizagem em música envolve

    imitação e comparação com outras pessoas. Somos

    fortemente motivados ao observar os outros, etendemos

    a “competir” com nossos colegas, o que tem um efeito

    mais direto do que quando instruídos apenas por aquelas

    pessoas as quais chamamos “professores”. 

    Conclusões 

    Uma das características marcantes do processo de desenvolvimento da musicalidade observada no campo de pesquisa foi a constatação de que os sujeitos progrediam paulatinamente em pontos distintos de leitura e técnica instrumental.  A técnica instrumental do grupo, desenvolvida de forma gradativa ao longo dos dois semestres de observação, esteve sempre subordinada à expres- 

    sividade musical, mesmo que de forma intuitiva. 

     A complexidade do conjunto de elementos necessários para uma boa execução instrumental por leitura era tamanha, que parecia impossível 

    progredir em todas as dimensões de forma homo- gênea. Quando tentavam ler a partitura, acabavam 

    relaxando no andamento ou na sonoridade, por  exemplo. Sloboda (2008) chama a atenção para a dupla tarefa enfrentada pela criança, de tocar um instrumento e ler a partitura, afirmando que cada uma delas requer habilidades distintas que juntas parecem intransponíveis. A solução para esse problema, segundo o autor, seria liberar a execu- ção instrumental da leitura da partitura, através da memorização da melodia. Esse comportamento musical levou-nos a refletir sobre o papel da cons- ciência de nossas ações e a sintonia entre intenção e desempenho: podemos “querer tocar de  forma expressiva”, mas não conseguirmos manifestar

    isso na execução musical. Uma etapa mais com- plexa é a consciência sobre esse processo: tendo um objetivo a alcançar e conseguindo identificar  os obstáculos a seguir, o sujeito poderá agir mais eficazmente na resolução dos problemas. 

    Com o objetivo de contextualizar e analisar  os dados encontrados na pesquisa de campo, procuramos agrupá-los em relação aos fatoresque influenciam o desenvolvimento da musicali- dade no grupo observado. Os fatores identificados foram: 

    a) A construção do repertório: O reper- tório, bem explorado, motivou os sujeitos a superar seus limites técnicos. Depois do trabalho com o arranjo funk , que marcou o início da atuação da professora Júlia com a orquestra de flautas, os sujeitos estavam mais receptivos a outros gêneros musicais, e também mais confiantes em sua capacidade de execução instrumental. No trabalho com a Gavote, de Praetorius, foi notório o empenho dos alunos na resolução dos problemas de leitura e execução musical, apesar de ser  uma peça considerada fácil e desconhe- cida (portanto desinteressante) para eles. Por esses elementos, entendemos que o repertório possui fundamental importância como gancho temático dentro da proposta pedagógica da professora Júlia. 

    b) Prática coletiva e estudo individual: De um modo geral, o grupo de flautas doces do Colégio demonstrou incomum engajamento individual e coletivo nas atividades musicais ao longo dos dois semestres de observação. 

     A repetição exaustiva do estudo e execução da mesma peça não era um empecilho para a aula, já que os alunos desejavam muito superar suas dificuldades e realizar uma boa apresentação musical. 

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    c) Acesso à técnica, criação e leitura mu- 

    sical:  A concepção de uma boa execução 

    musical para os alunos significava tocar as notas certas, e depois conseguir tocá-las rapidamente. Sendo assim, mesmo que haja pouco som (som fraco em função do pouco ar emitido no tubo da flauta), mesmo que a articulação esteja “mole”,  imprecisa, irregular, os sujeitos valorizam a execução daquele aluno (colega) que toca rápido e com as posições certas dos dedos na flauta doce. 

    d) Contexto sociocultural: O fator so- cioeconômico foi destacado nas primeiras 

    descrições feitas pela professora Júlia e torna-se mais relevante à medida que os alu- nos de Guaíba surpreendem pela motivação e engajamento, tentando superar todas as dificuldades financeiras que enfrentam. 

    e) Apresentações musicais:  As apre- sentações musicais consistem em grande estímulo para estudantes, gerando expec- tativas, acelerando o processo de estudo, contribuindo, quando bem conduzidas, para a desenvoltura da capacidade de expressão 

    individual e coletiva. As crianças constataram que as apresentações musicais também são um momento de forte interação musical entre os colegas e integrantes de outros grupos, com os quais se comparavam e buscavam superar de forma construtiva. 

     Ao elencar alguns dos fatores os quais jul- gamos de maior relevância no desenvolvimento da musicalidade na  performance instrumental, concluímos este artigo destacando o papel da atividade musical coletiva e das ações que geram sentido no fazer e na aprendizagem. Permeando todos os fatores anteriormente apontados, de forma integral ou parcial, as ações coletivas possibilita- ram um crescimento do grupo como um conjunto de sujeitos que possuem o mesmo objetivo: fazer  música através da flauta doce, e fazê-lo de forma expressiva e prazerosa. 

     A identidade do grupo formou-se a partir de características de cada sujeito, mas constituiu-se como uma “entidade coletiva”. No grupo,  histórias pessoais – trágicas, comuns ou felizes –  somam- se a saberes e ações, formando um mosaico  

    colorido e instigante de fatores, responsáveis por  uma aprendizagem que possui sentido no grupo. Segundo Becker (2002), crianças e adolescentes não deixam de fazer alguma coisa por ser difícil, mas porque não tem sentido para eles. 

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    Mesmo os alunos novos possuem uma boa sonoridade e a produzem de forma espontânea, o 

    que nos leva a crer que esse indicador de musica- lidade é acessível a qualquer estudante de flauta doce. Podemos supor, também, que a sonoridade é um dos primeiros, se não o primeiro indicador que poderia ser explorado, pois necessita apenas de ar – com a condução do mesmo no tubo da flauta doce – como matéria-prima. 

     As aquisições técnicas de digitação e arti- culação, contudo, formam uma complexa rede de elementos que nem sempre se desenvolveram  de forma gradual e regular. A diferença percebida entre os alunos novos e antigos se deu a partir da 

    desenvoltura na digitação (os antigos conhecem mais notas na flauta doce e conseguem executá-las mais rapidamente). Mesmo aqueles sujeitos que não conseguem articular regularmente procuram separar os sons com outros recursos, como a interrupção do ar através do movimento de abrir e fechar a boca. E a digitação, de um modo geral, é o primeiro ponto técnico perseguido enfaticamente pelos alunos  –  eles querem tocar rápido, e nem sempre priorizam a sonoridade. 

    Nessa direção, acreditamos que não haja 

    uma ordem rígida no desenvolvimento desses indicadores, mas uma sequência dinâmica de aquisição de habilidades, conforme os interesses e necessidades de cada sujeito e a abordagem da professora na condução do grupo. Há uma  interdependência entre a digitação, articulação e sopro, mas os sujeitos encontram estratégias de compensar a falta de agilidade em um dos elemen- tos, buscando a resolução dos problemas de forma espontânea e criativa. As estratégias das crianças acontecem por aproximações do que elas julgam ser um modo de aprender: guiam-se por aspectos mais imediatamente acessíveis ou visíveis, como imitar o movimento dos dedos da professora. 

    Coordenar essas habilidades – sopro, articu- lação e digitação de forma concomitante à leitura de partitura, no entanto, configurou-se como um grande desafio no desenvolvimento do grupo. Em alguns momentos, chegamos a questionar: a leitura de partitura ajuda ou prejudica a construção da musicalidade do estudante de flauta doce? 

    O que constatamos no campo de pesquisa foi a importância da motivação pessoal e coletiva 

    para a construção de uma performance expressi- va. Exemplo disso vem do repertório, pois mesmo aparentando ser tecnicamente superior ao queo grupo poderia executar, pôde ser eficazmente interpretado em apresentações públicas. Ao fazer  

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    sentido para os sujeitos, as músicas selecionadas por eles ou propostas pela professora Júlia foram 

    estudadas com afinco e interpretadas de forma expressiva pelo grupo. 

    No complexo e dinâmico processo de de- senvolvimento da musicalidade, a imitação de um modelo a seguir, como o som da professora ou a destreza na digitação de um colega, foi um fator  relevante na investigação. Quando eles combinam estratégias entre si, ou procuram ouvir a professora ou os colegas mais experientes, estão centrando sua atenção na audição, que desenvolve uma so- fisticada percepção dos sons que almejam saber  produzir. 

     A aquisição gradativa das habilidades musi- cais promove, em cada aprendizagem nova, uma noção de totalidade do saber-fazer, que possibilita a 

    expressividade na performance. Essa aprendizagemnova, por sua vez, também se amplia e se modifica 

    durante o desenvolvimento da musicalidade. 

     Acreditamos, portanto, que o desenvolvi- mento da musicalidade na performance é marcado pela capacidade crescente de coordenar diver-sos elementos que fazem parte do contexto do fazer musical. As coordenações tornam-se mais complexas, não só por envolver mais elementos, mas porque a conexão feita gera sentido musical expresso na performance. 

    Podemos dizer, dessa forma, que o desen- volvimento da musicalidade não é uma trajetória 

    que se dirige a um determinado alvo onde se quer  chegar de modo definitivo, mas experiências em um processo contínuo, sem que possamos definir  um ponto inicial ou um marco final. 

    Referências 

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    HALL