antropolitica 10 11b

download antropolitica 10 11b

of 221

Transcript of antropolitica 10 11b

ANTRO POLTICA

ISSN 1414-7378

REVISTA CONTEMPORNEA DE ANTROPOLOGIA E CINCIA POLTICA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

1 /2 Semestres2001

10/11

A n t r o po l t ic aNo 10/11 l/2-semestres 2001

ISSN 1414-7378 Antropoltica Niteri n. 10/11 p. 1-201 1./2. sem. 2001

2 0 0 3 Programa de Ps-Graduao e m Antropologia e CinciaPolticadaUFF Direitos desta edio reservados E d U F F - Editora da UniversidadeFederalFluminense-Rua Miguel de Frias, 9 - a n e x o - sobreloja - Icara - C E P 2 4 2 2 0 - 0 0 0 -Niteri,RJ-Brasi-Tel.:(21) 2 7 0 4 - 2 1 1 9 - Telefax: (21) 2 6 2 1 - 6 4 2 6 http://www.uff.br/eduff -E-mail: e d u f f @ v m . u f f . b r proibida a r e p r o d u o total ou parcial d e s t a o b r a s e m autorizao e x p r e s s adaEditora. Edio de t e x t o : Tais Monteiro Projeto grfico, d i a g r a m a o e c a p a : J o s Luiz Stalleiken Martins Reviso: Rosely C a m p e l l o Barroco e Snia P e a n h a Editorao eletrnica: Vvian M a c e d o de S o u z a e Camilla Pinheiro d e S o u z a Superviso Grfica: Kthia M. P. M a c e d o Coordenao editorial: Ricardo B. B o r g e s Tiragem: 5 0 0 exemplares

Catalogao-na-fonte (CIP)A636 A n t r o p o l t i c a : revista c o n t e m p o r n e a de Antropologia e Cincia Poltica. n. 1 (2. s e m . 1 9 9 5 ) . Niteri : EdUFF, 1995- . v . : il. ; 2 3 c m . Semestral. Publicao do P r o g r a m a de P s - G r a d u a o e m Antropologia e Cincia Poltica d a Universidade Federal Fluminense. ISSN 1414-7378. 1. Antropologia Social. 2. Cincia Poltica. I. Universidade Federal Fluminense. P r o g r a m a de P s - G r a d u a o e m Antropologia e Cincia Poltica. CDD 300

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSEReitor Comit editorial da Antropoltica

Ccero Mauro Fialho Rodrigues Vice-reitor Antno Jos dos Santos Peanha Laura Graziela F. F. G m s oe Clia Fiazo Linhares Hdete Pereirade Melo Hermes de Arajo Ivan Ramaho de Almeida Luiz Antonio Botelho Andrade Magnlia Brasil Barbosa do Nascimento Marco AntonioTixeira Porto Marene G m s M n e i o e eds ReginaHelena Feneirade Souza Rogrio Haesbaert da Costa S e Duk u rc Vera Regina Sales Sobral Virgnia Maria Gomes de Mattos FontesComisso Editorial Diretora da EdUFF

Delma Pessanha Neves (PPGACP/UFF) Eduardo R. G m s (PPGACP/UFF) oe Simoni Lahud Guedes(PPGACP/UFF) Giso Cerqueira Filho (PPGACP/UFF) Secretria; InezAlmeida VieiraConselho editorial da Antropoltica

oCariosdeAlmeida(PPGACP/UFF) Arena Figueiredo (Unicamp/Cebrap) Ari de Abreu Siva (PPGACP/UFF) AyMnela(UFSC) Charles Pessanha(IFCS/UFFU) Qirfa Fonseca ( F G ) UR S Delma Pessanha Neves (PPGACP/UFF) Eduardo Diatahy B. de Meneses (U FCE) E u n o R. G m s (PPGACP/UFF) dad oe Eduardo Viola (UnB) BianeCantarinoO'Dwyer(PPGACP/UFF) GislioCerqueira Filho (PPGACP/UFF) Glucia Obrada Siva (PPGACP/UFF) Isabel Assis Rbeirode0^ifa(lFCS/UFRJ) Jos Augusto Dfummond (PPGACP/UFF)

Jos Carlos Rodrigues (PPGACP/UFF) Josefa SaieteBartx)sa Cavalcanti (UFPE) LauraGiaziela F. F. G m s (PPGACP/UFF) oe Lvia Barbosa (PPGACP/UFF) LourdesSola(USP) Lcia ppi de Oliveira ( P O ) CD C LuizCastro Faria (PPGACP/UFF) Luis Manuel Fernandes (PPGACP/UFF) Marcos Andr Melo (UFPE) Marco Antnio da S. Mello (PPGACP/UFF) Maria AntonietaPLeopoldi (PPGACP/UFF) Maria CenaS.cfArajo(PPGACPAJFFCPDOQ MarisaPeirano(UnB) OtvioVelho (PPGAS/UFRJ) Rapuido Heraldo Maus (UFPA) Renato Boschi(UFMG) Renato Lessa(PPGACP/UF-IUPERJ) ReneAmTand Dreifus (PPGACP/UFF) Roberto Da Matta (PPGACP/UFUniversityofNotreDame) Roberto Kant de Uma (PPGACP/UFF) Roberto Mota (UFPE) Smort Lahud Guedes (PPGACP/UFF) Tnia Stolze Lima (PPGACP / UFF) ZaroCheibub (PPGACP/UFF)

SUMRIO

ARTIGOS

PROFISSIONALISMO E MEDIAO DA AO POLICIALDOMINIQUE MONJARDET

5 31

THE PLAINTIFF-ASENSE OFINJUSTICELAURA NADER

RELIGIO E POLTICA: EVANGLICOS NA DISPUTA ELEITORAL DO RIO DE JANEIROMARIA DAS DORES CAMPOS MACHADO

45

UM MODELO PARA MORRER: LTIMA ETAPA NA CONSTRUO SOCIAL CONTEMPORNEA DA PESSOA?RACHEL AISENGART MENEZES

65 85

TORCIDAS JOVENS: ENTRE A FESTA E A BRIGAROSANA DA CMARA TEIXEIRA

O DEBATE SOBRE DESENVOLVIMENTO ENTRE O BRASIL E OS EUA NA DCADA DE CINQENTAW MICHAEL WEIS

105 139 155

EL INDIVIDOU FRAGMENTADO YSU EXPERIENCIA DELTIEMPOCARLOS RAFAEL REA RODRGUEZ

IGREJA DO ROSRIO: ESMO DE NEGROS NO RIO COLONIALLUITGARDE OLIVEIRA CAVALCANTI BARROS

IN NOMINE PATER: A CINCIA POLTICA E O TEATRO INTIMISTA DEA.STRINDBERGGISLIO CERQUEIRA FILHO

173 181

TERRA: DDIVA DIVINA E HERANA DOS ANCESTRAISOSVALDO MARTINS DE OLIVEIRA

RESENHA

ESTADO E REESTRUTURAO PRODUTIVAMARIA ALICE NUNES COSTA

193 217

DISSERTAES

ARTIGOS

7PROFISSIONALISMO E MEDIAO DA AO POLICIAL*

D O M I N I Q U E MONJARDET**

O texto apresenta a anlise da prtica institucional e profissional da polcia, em situao de interveno junto populao urbana, especialmente de Paris e, por reflexo comparativa, de Nova York. A anlise est organizada a partir de questes que revelam os princpios estruturantes dessa prtica institucional: a) o carter contraditrio de sua objetivao. Ela , por um lado, legitimada pela sua institucionalizao como fora pblica a servio da lei e pelas condies prescritivas do emprego dos recursos. Por outro lado, entretanto, ela exercida pela opacidade e impermeabilidade das orientaes hierarquizadas e impessoais; b) a autonomia institucional delimitada por diversas formas de mediao ou interdependncia: o cdigo penal, que enuncia crimes e delitos; o cdigo processual penal, que define mtodos e meios da ao policial; e o acatamento de decises que emanam de terceiros (um juiz ou um tribunal). Para decodificar os mecanismos e os processos pelos quais uma administrao, na prtica, se libera da instrumentalidade que lhe fundamenta, o autor contrape a anlise dos circuitos virtuosos aos viciosos, a partir dos quais a ao institucional se configura. E deduz sobre condies e dispositivos pelos quais esses mecanismos poderiam ser invertidos. Palavras-chave: polcia urbana; prtica mediao social. institucional;

* A verso inicial deste texto foi redigida em 1996 para publicao numa obra coletiva Warin (Autonne 1997). Desde ento, 0 colquio de Villepinte e a implementao dos Contratos Locais de Segurana levaram a polcia urbana a engajar-se em caminhos de certo modo prximos daqueles aqui explorados. Assim, a redao de Professionalisme et mdiation de 1'action policire em Les Cahiers de la Scurit Intrieure, n. 33, p. 21-49, juil.-sept. 1998 fundamenta-se na atualidade de sua contribuio. **Sociologue et Directeur de recherche au CNRS.Antropoitica N i t e r i , n. 1 0 / 1 1 , p. 7 - 2 9 , 1./2. sem. 2 0 0 1

8Instituda como "fora pblica" a servio da lei, a polcia s tem legitimidade quando a servio desta mesma lei e, neste sentido, ela puro "instrumento", caracterizado pelos recursos que detm (essencialmente a fora) e pelas condies, prescritas de forma restritiva, do emprego desses recursos 1 . Porm, o instrumento policial se concretiza numa organizao administrada por uma prtica profissional2 e essas dimenses organizacionais e profissionais de cada polcia tm suas dinmicas prprias, que geram muitos obstculos ao funcionamento instrumental esperado. de observao corrente que as injunes direcionadas ao aparelho policial (programas de reforma anunciados pela autoridade poltica, por exemplo) se chocam, por um lado, com a opacidade e a inrcia da organizao e, por outro, com as "vantagens adquiridas" e mais amplamente com cultura profissional dos agentes. Selecionada e filtrada pela organizao e pela prtica profissional, a orientao oriunda da cpula sofre, assim, considerveis remanejamentos prticos, de tal modo que os resultados obtidos tm constantemente apenas uma relao longnqua com os objetivos inicialmente visados. Em outra ocasio, apresentamos Polcia Nacional na Frana (MONJARDET, 1996) alguns estudos de caso (reforma da formao, uso do policiamento por quarteires 3 , engajamento em polticas de preveno da delinqncia) que testemunham, to bem quanto os programas de profissionalizao ou da polcia comunitria na Amrica do Norte (FOGELSON,Antropotica

1993) , a generalidade dos mecanismos de "resistncia mudana", que so observveis de forma idntica em qualquer grande administrao. A polcia uma street-level bureaucracy*, assim como o sistema de seguridade social, a escola ou os correios e, como mostrou M. Lipsky (1980), as grandes polticas definidas pela cpula so finalmente concretizadas pelo empregado no guich, pelo professor na sala de aula ou pelo agente de polcia no cruzamento. A autoridade poltica responsvel pela polcia, quer se trate do poder executivo na Frana, do prefeito na Amrica do Norte ou do burgomestre5 na Blgica, comumente levada a resignar-se com esse fato, como vemos em todos os casos em que a autoridade poltica assume suas funes com um projeto divulgado como "reforma da polcia", mas que acaba logo se satisfazendo simplesmente em "contla" ou em se esforar para isso. Esta assero deve ser matizada, pois todo aparelho policial composto por diferentes segmentos, dentre os quais alguns so mais facilmente instrumentalizveis do que outros: a polcia de ordem (a CRS6 e a polcia militar mvel na Frana, por exemplo), diretamente submetida s ordens do poder e funcionalmente gerida de um modo muito disciplinado, ope pouca resistncia (inrcia, opacidade) sua direo. Pode-se imaginar que o Ministrio Pblico defina as polticas penais de maneira suficientemente precisa, de modo que a polcia judiciria tenha que dobrar-se a essa mesma definio. O lugar da maior opacidade e da maior inrcia aquele das chamadas polcias urbanas, isto , da polcia cotidiana local, de proximidade, queN i t e r i , n. 1 0 / 1 1 , p. 7-29, 1 / 2 sem. 2 0 0 1

9forma os grandes batalhes de cada aparelho policial (na Frana elas renem, sob o termo "Segurana Pblica", em torno de 65% dos efetivos da Polcia Nacional, bem mais do que nos pases anglo-saxnicos ou escandinavos, onde a polcia de ordem e as polcias judicirias especializadas no tm a extenso que tm naquele pas). H aqui um aparente paradoxo, j que definimos que o servio mais prximo e que se efetua sob o olhar constante do pblico , ao mesmo tempo, o mais opaco e o mais impermevel s orientaes da cpula. Este paradoxo encontra na Frana um fundamento aparente naquilo que constituiu a exceo francesa em matria de polcia: desde a estatizao em 1941, as polcias urbanas so unificadas e geridas por uma direo central do Ministrio do Interior. Pode-se deduzir que a prpria estatizao, reforada pela disposio natural dos franceses centralizao, em si um fator poderoso de burocratizao. Mas as polcias urbanas de nvel municipal, da maior parte dos outros pases com que se pode comparar, diretamente submetidas autoridade dos eleitos locais, esto longe de dispor de uma plasticidade superior. A observase igualmente a "resistncia mudana". Se a centralizao francesa um fator agravante, ela no esgota o paradoxo. preciso, portanto, observ-lo mais de perto.

1 O S CRCULOS VICIOSOSTrs mecanismos acumulam seus efeitos por gerarem uma resistncia eficaz qualificao policial. O primeiro j foi evocado: como o empregado no guich ou o professor, o agente policial dispe de uma considervel autonomia operacional, reforada, no seu caso, pelaimprevisibilidade das ocorrncias ou das demandas (chamadas, queixas) que norteiam sua ao. A necessria disponibilidade em relao s ocorrncias no permite que o tempo do policial seja tomado por tarefas prescritas. A qualificao mesma das ocorrncias (natureza, alcance, riscos, modos de regulao) apreendida pelo prprio interventor. E essas duas dimenses da tarefa da polcia asseguram, ao policial de base, uma autonomia prtica que nem a regra nem a hierarquia podem enquadrar inteiramente. Mais ainda: admitindo-se que no funcionamento policial o recursoAntropotica

crucial a informao, esta provm essencialmente de baixo. Ela recolhida pelos mediadores de primeira linha que filtram aquilo que retransmitem para a organizao. Podemos, assim, falar de "inverso hierrquica" para exprimir que na organizao policial, cada nvel hierrquico bastante dependente da quantidade e da qualidade da informao que o escalo subordinado lhe comunica. Na prtica cotidiana, portanto, a organizao policial est mais segura em gerir e em registrar do que em dirigir a ao dos interventores7. O segundo mecanismo igualmente comum s grandes organizaes burocrticas. A involuo das metas (ou autofinalizao) o efeito do peso da prtica profissional sobre os objetivos realmente perseguidos pela organizao. Quanto mais a prtica profissional dispe de autonomia, mais ela se inclina a substituir os fins que lhes so prescritos do exterior pelosN i t e r i , n. 1 0 / 1 1 , p. 7 - 2 9 , 1./2. sem. 2 0 0 1

10

seus prprios fins. E, alm disso, a desenvolver seus interesses de modo concorrente aos interesses da clientela que supe-se que ela sirva. Esse mecanismo pode produzir-se a partir das exigncias funcionais das tarefas. Desde o primeiro estudo realizado sobre o trabalho policial (WESTLEY, 1970) 8 , evidenciou-se a necessidade do policial que intervm sobre a cena pblica em, antes de tudo, afirmar sua autoridade em relao ao conjunto dos atores, condio sem a qual a interveno corre o risco de degenerar em enfrentamento. Fazer respeitar a lei impe previamente que o prprio policial se faa respeitar. Becker generalizou esses resultados mostrando que, para todo agente responsvel por fazer respeitar as normas, este expediente tornava-se um fim em si mesmo: acaba por ser mais importante para a polcia assegurar sua autoridade per se, do que fazer respeitar tal ou tal regulamentao. Assim, "uma boa parte da sua atividade no consiste diretamente em fazer aplicar a lei, mas sim em obrigar as pessoas das quais ela se ocupa a respeitar essa mesma lei" (BECKER, 1985, p. 181-182). Alm dessas exigncias funcionais, a involuo das metas se alimenta igualmente de todos os interesses imediatos, materiais e corporativos da prtica profissional que rege o aparelho. Por razes relacionadas tanto a uma fraca valorizao interna (em termos de modernizao, de prestgio e de uma suposta eficincia) quanto crueza intrnseca da atividade, a patrulha pedestre de via pblica, sntese da presenAntropotica

a policial e do sentimento de segurana do cidado, tornou-se progressivamente a tarefa mais ingrata aos olhos dos policiais. Assim, tudo ser feito para minimizar sua importncia global e para atribu-la aos policiais mais novos, de patente mais baixa. A efetividade destes mecanismos evidente em Paris, onde a via pblica tornouse monoplio dos policiais auxiliares (recrutas do contingente que escolheram fazer seu servio militar na polcia). Num primeiro nvel, portanto, a involuo das metas faz com que os interesses da instituio sejam substitudos pelos interesses dos seus agentes. Num segundo nvel, predominam a perpetuao da organizao e a permanncia dos seus customs and manners9. Todo o sistema de sanes internas da organizao homologa e consolida esta autofinalizao, de tal modo que todo esforo para reorientar suas prticas para uma produo ou servio oferecidos a uma clientela, aparece como elemento de ruptura do equilbrio interno estabelecido. E, em sentido literal, como subverso, contra as quais sero empregados, de modo eficaz, todos os recursos de opacidade, de inrcia e de desvio que existem em potencial numa organizao burocrtica. 0 terceiro mecanismo mais especificamente policial (ainda que ele seja observado igualmente na administrao penitenciria). Nesse sentido, ele necessita de um desenvolvimento particular. Diferentemente da maioria das grandes empresas, que calculam sua eficincia e produtividade luz de uma produo tangvel (nmero de veculos fabricados, de candidatos que pasN i t e r i , n. 1 0 / 1 1 , p. 7 - 2 9 , 1./2. sem. 2 0 0 1

11 saram no vestibular, de processos resolvidos ou em vias de serem esclarecidos...), a polcia no dispe de indicadores de resultados. Mais exata e profundamente, ela no e no saberia ser submetida a uma obrigao para apresentar resultados, porque ela inteiramente dominada por uma estrita obrigao de se criar meios10. O que define a polcia, diz-se, a deteno de meios de ao no-contratuais: a fora fsica e a coero (interpelao, vigilncia), mas tambm todos aqueles procedimentos que a moral e o cdigo penal condenam em todos, exceto no policial: espionagem, escutas eletrnicas, varejamento, provocao, uso de denunciantes e delatores etc. , assim, lcito ao policial alimentar um trfico de substncias ilcitas para primeiro penetrar e em seguida erradicar uma rede. Por conseguinte, o emprego desses diferentes procedimentos, que so literalmente criminais, est submetido a estritas condies "processuais": o direito policial ou as leis da polcia nada mais so do que o enunciado restritivo daquilo que permitido ao policial, sob condies e formas de controle, "ao contrrio" daquilo que lhe proibido. A ao policial ao mesmo tempo definida e contida por uma rigorosa obrigao de se criar meios. Existem, sem dvida, certos processos tcnicos suficientemente dominados, de forma que a imposio de certos meios (procedimentos, ferramentas, regras etc.) garanta o resultado procurado, como foi o fundamento do taylorismo e da O.S.T.11. ca, este o caso da prtica policial: sabese, retomando a assero de um ministro, que manter a ordem fcil se aceita-se agir como em Varsvia em 1848; mas o equilbrio entre a manuteno da ordem e o respeito dos direitos e liberdades democrticas bem mais difcil de se alcanar (PANDRAUD, 1987). O que verdadeiro para se manter a ordem forte, tambm o para a luta cotidiana contra a delinqncia e para assegurar a ordem pblica local, isto , a "tranqilidade, a salubridade e a segurana" da rua e do bairro, do cidado, enfim, de todos e cada um. A partir do momento em que a polcia se encerra nessa obrigao de se criar meios, cessa de pesar sobre ela uma obrigao de apresentar resultados, a no ser que se coloquem os policiais constantemente frente a dilemas insolveis. Eis o princpio. A prtica eminentemente diferente. Tudo e todos se conjugam: a opinio pblica, a mdia, o ministro, a hierarquia, alm do prprio policial, a partir do momento em que ele tem alguma motivao: o desejo de resolver um "caso especial" ou to-somente a preocupao em "fazer o bem", para fazer pesar sobre a ao policial, paralelamente obrigao de se criar meios, uma necessidade de apresentar resultados. Este "paralelo" instaura uma permanente contradio, fonte, por sua vez, de uma permanente "incerteza", "espada de Dmocles"12, como os prprios policiais a designam, sob dois aspectos. Em primeiro lugar, sob a presso dos resultados esperados, a ao policial est sempre suscetvel ao erro, seja porque, ao assentar-se sobre a obrigao de se criar meios, o policial no obtenha os resultados que sua hierarquia espera dele, seja porque paraN i t e r i , n. 1 0 / 1 1 , p. 7 - 2 9 , 1./2. sem. 2 0 0 1

Est claro que este no o caso, tratandose de processos sociais, onde os meios e os resultados se contrariam com muito mais freqncia. De forma bem sistemtiAntropoltica

12

atingi-lo ele tenha tomado algumas liberdades em relao aos meios prescritos. No primeiro caso, sua passividade e sua ausncia de motivao sero restabelecidos; o segundo a fonte mais certa do "abuso" policial. Em segundo lugar e de forma mais perversa, a sano da ao policial vai depender, em muitos casos, da concluso, aleatria, da ao empreendida. Com uma dinmica burocrtica clssica e com a meta de minimizar as ocorrncias em que sua responsabilidade pode ser questionada, a administrao policial produz continuamente regras e procedimentos prescrevendo as condies normativas da ao. Assim, para uma blitz rodoviria "regulamentar", por exemplo, necessrio que sejam reunidos efetivos e meios materiais claramente definidos. Mas no momento da ao, os policiais no dispem quase nunca do conjunto dos meios prescritos. Se mesmo assim eles realizam a blitz (o desejo de interceptar o delinqente procurado ir freqentemente incit-los a isso), abre-se um leque indeterminado de ocorrncias possveis, cujos extremos so: o delinqente interceptado sem incidentes e os policiais recebero uma carta de felicitaes do diretor do departamento; a pessoa interceptada no era a procurada e ele mesmo ou um ou mais policiais ficam feridos. Abre-se, neste caso, um processo administrativo e, eventualmente, judicirio, procedimento disciplinar. A letra da lei, ignorada por todos no primeiro caso, ser ressuscitada.

Nesse mecanismo, cujos exemplos so inmeros e encarados cotidianamente pelos pociais, a "regra" (o direito, alei) perde todo o seu estatuto de referncia normativa (no sentido forte do termo: aquilo que guia e legitima ex ante a ao policial) para tornar-se um conjunto de restries, de geometria varivel e incerta, sempre questionveis ex post, quando as coisas acabam mal e preciso identificar responsabilidades individuais. O efeito , portanto, duplo: deslegitimao da lei aos olhos daqueles mesmos que tm a responsabilidade de aplic-la; e incerteza generalizada sobre a misso, os objetivos, os meios, enfim, sobre o mandato policial. Em conseqncia disso, observam-se classicamente dois tipos de reao: em alguns se desenvolvem condutas de recuo, de absteno e de passividade; em outros, observa-se, ao contrrio, uma politizao, no sentido de reconstruo sui generis, sobre a base das experincias imediatas, dos objetivos, das misses e dos meios julgados legtimos. A qualificao policial , assim, duplamente sobrepujada: pela inrcia de uns, uma vez que exige um mnimo de investimento profissional; e pela politizao de outros, j que supe uma completa neutralidade ou "laicidade". Autonomia profissional, involuo de metas, contradies internas gerando incerteza generalizada, recuo e politizao. Tudo concorre, na dinmica interna dos aparelhos policiais, para reduzi-los sua qualificao institucional e para gerar uma resistncia eficaz injuno (ou demanda)

Antropoitica

N i t e r i , n. 1 0 / 1 1 , p.

7 - 2 9 , 1./2. sem. 2 0 0 1

13

externa. Os 15 de exuberncia reformadora que, do Estatuto de Formao (de G. Deferre) Lei de Orientao (de Ch. Pasqua), estimularam o Ministrio do Interior, so timos exemplos disso: ningum se aventura a pretender que o funcionamento policial concreto da polcia urbana tenha sido realmente afetado. Diz-se, por vezes, que a Polcia Nacional, alis como outras administraes (principalmente a Educao Nacional), posta teoricamente sob a autoridade do ministro do Interior, seria na prtica co-gerida pelo ministro e pelos profissionais, isto , concretamente pelo face-a-face em disputa da administrao e dos sindicatos. Sustentamos aqui que o que certamente verdadeiro para os elementos materiais da ao policial (imveis, equipamentos, formao, condies de trabalho) encontra exatamente a o seu limite. Levando-se em conta a prpria ao policial, as estratgias operacionais, as prioridades locais, os critrios de abertura e de funcionamento, os modos operatrios, o sistema de sanes (positivas e negativas) da tarefa etc., sustentaramos, de modo mais verossmil, que a polcia autogerida pela prpria corporao. Suas divises e conflitos internos so sobrepostos sem falhas, pela prpria unidade quando se trata de proibir a quaisquer terceiros (seja o chefe de polcia, seja o "cliente" comum) de se introduzir nos "seus assuntos". Mas, de fato, mais que autogerida, a polcia "agerida", ou seja, para alm dos obstculos eficazes que ela ope intruso de terceiros, no se entrev um autor ou um sistema de deciso. O autor aparece manifesto entre os nveis hierrquicos e as especializaes funcionais, cada um reproduzindo, em relao aos outros, o sistema de proteAntropoitica

o erguido pelo conjunto contra o exterior. Desenvolve-se, assim, este novo paradoxo de uma administrao hiper-centralizada, cujo funcionamento real est manifesto em uma aglomerao de feudos, antes de tudo ciosos de sua autonomia. Para o exterior, a polcia funciona como uma caixa-preta; para o interior, ela a justaposio de "microfeudalismos". A anlise sociolgica poderia parar por aqui, na decodificao dos mecanismos e processos pelos quais uma administrao se libera, na prtica, da qualificao que lhe d fundamentos, sem que ningum os delibere, nem os reivindique. Vamos nos aventurar um pouco mais longe, tentando refletir sobre as condies- e os dispositivos pelos quais esses mesmos mecanismos poderiam ser revertidos, de tal modo que no somente o Prncipe, mas tambm a demanda social por segurana, possam encontrar um modo de agir sobre o funcionamento policial. O exemplo das tentativas da polcia comunitria na Amrica do Norte de algum interesse, porm, mais pelos seus limites do que pelos resultados obtidos. O movimento em direo "polcia comunitria" no (somente) proeza de universitrios idealistas. Nele revezaram-se executores pragmticos, eleitos locais e chefes de polcia. Uns e outros em busca de uma legitimidade e de uma eficincia maiores, em relao ao fracasso patente dos procedimentos policiais tradicionais. A violncia policial e sua impunidade colocaram Los Angeles (e tambm outras cidades) a ferro e fogo e a delinqncia aumentou em todos os lugares. Foi preciso, assim, fazerN i t e r i , n. 1 0 / 1 1 , p. 7 - 2 9 , 1./2. sem. 2 0 0 1

14outra coisa e de modo urgente, j que nas cidades desertadas pela classe mdia branca, as minorias tnicas adquiriram um peso eleitoral determinante e assimilaram bem que a "sua" polcia, da em diante, os levaria em conta. Os tempos da "polcia irlandesa" haviam terminado. A alternativa proposta e experimentada em poucos lugares repousa num pequeno nmero de princpios simples: - servios de polcia bem descentralizados, capazes de operar na escala do bairro ou do quarteiro, em ligao com seus residentes; propostas de diagnstico dos "problemas" que se colocam no local num dado momento, em parceria com os outros servios pblicos e o setor associativo; - "estratgias de resoluo de problemas", no to preocupadas em se apropriar do monoplio da "guerra contra o crime", mas, ao contrrio, em ajudar as populaes locais a resolverem, por si mesmas, suas dificuldades, mantendo as iniciativas locais e os programas de preveno. Os resultados obtidos nesse sentido esto mitigados (seguimos aqui SKOGAN, 1993). Os "programas" de polcia comunitria foram cuidadosamente escrutados, a partir de uma avaliao maneira empresarial americana. Separando todos aqueles (muito numerosos) que foram apenas "maquiagem", ressoa das avaliaes mais srias que em nenhum lugar pde-se atestar um resultado significativo em relao delinqncia13. O nmero de crimes e delitos no foi afetado, ao menos no curto prazo. Por outro lado, as experincias mais convincentes testemunham uma diminuio sensvel do sentimento de inseguranAntropoltica

a: h vtimas do mesmo modo, mas elas so melhor assimiladas e mais aceitas. Os fantasmas da insegurana se dissiparam bastante, o cidado inquieto encontrou um interlocutor policial que o escuta e toma medidas. Deste ponto de vista, o benefcio est longe de ter sido negligenciado. Num sentido inverso, porm, nascem novas inquietudes, lembranas dos tempos antigos de uma polcia subprofissionalizada. Porm, ao escutar a populao, a polcia no se arriscaria a ser influenciada pelos formadores de opinio, os grupos majoritrios, os "sedentrios", em detrimento dos sem voz, das minorias, dos "nmades"? Alm disso, esta simbiose buscada entre polcia e populao justamente aquilo que fora combatido na "idade de ouro" da "profissionalizao" policial (anos 60 e 70), visando a erradicar a corrupo, a qual sabemos que ameaa menos diretamente o chefe em servio no seu escritrio do que o guarda civil encarregado de um quarteiro, em contato constante com o aougueiro e o vendedor de carvo. De fato, duas lies essenciais podem ser tiradas dessas experincias. A primeira enuncia as condies necessrias da mudana policial; a segunda aponta aquilo que, independentemente dos arranjos organizacionais, gera problemas substanciais. A primeira condio da mudana evidente, exceto por ser regularmente omitida no contexto francs: s h mudana possvel se a corporao aderir s novas orientaes. No caso norte-americano, a adeso do chefe de polcia local assegurada na medida em que este no um funcionrio temporrio nomeado pelo Centro. Ele recrutado pela municipalidade,N i t e r i , n. 1 0 / 1 1 , p. - , 1./2. sem. 2 0 0 1

15

num mercado de trabalho policial, no qual fez valer, em tese, suas qualificaes em matria de polcia comunitria. Atravs desse mecanismo, introduz-se entre a cidade e o novo chefe de polcia uma relao contratual local. Isso no suficiente e um nmero de iniciativas fracassaram frente hostilidade (paralisao, sabotagem) da hierarquia intermediria. Este fato sublinha a evidncia complementar de que o controle concreto de uma organizao policial (como de todas street levei biireaucracies) no assegurado somente pelo controle que emana da cpula e a aplicao mecnica de receitas de administrao importadas das empresas. Entre a gesto e a direo efetiva intercalam-se a capacidade de decodificar e de pr em movimento as alavancas das aes organizacionais pertinentes. Assinalamos acima a que ponto estas aes podem ser complexas aos olhos dos mecanismos burocrticos espontaneamente em curso. Se a capacidade de ter convico no intil, ela est longe de ser suficiente e, certamente, ser v se todo o sistema de sanes (positivas e negativas, formais e informais) que a organizao emprega no for reorientado. Enquanto a nica medida disponvel para gratificar o patrulheiro merecedor consistir em promov-lo a um servio considerado mais prestigioso (REINER, 1992), ser intil pretender valorizar a patrulha pedestre. Enquanto o nico motivo da carta de felicitaes do diretor (e da foto no jornal local) for "mostrar valentia", intil pregar as virtudes dos programas de preveno

etc. etc. Nesse sentido, notrio que a polcia comunitria esteja ainda procura de um sistema de avaliao e de sanes coerente com suas orientaes. Por fim, no se muda "ura pouco", introduzindo "um pouco" de polcia comunitria numa organizao tradicional, da mesma forma como no se faz "um pouco" de policiamento por quarteiro, mantendo todas as coisas iguais em outras partes. Este o caminho mais seguro para marginalizar a experincia, fazer aparecerem contradies e incompatibilidades com o funcionamento mantido alhures, evidenciar a incoerncia das orientaes e condenar a iniciativa ao fracasso. As tentativas francesas de salpicar algumas aes de "preveno", numa lgica de funcionamento invarivel, so ricas de exemplos em que a Brigada Anti-Criminalidade (BAC) desfaz de noite aquilo que fizeram de dia os policiais responsveis pelos quarteires ou o "club moto" (e vice-versa). Como todo smbolo de autoridade, a polcia conquista sua credibilidade a partir da sua "coerncia". Tudo isso valeria de modo idntico para qualquer mudana, qualquer que fosse sua orientao. O sentido e os riscos da polcia comunitria so uma questo central porque tm como objeto a "relao" que a polcia mantm com o "outro", sob todas essas expresses: o poder, o cidado, a vtima, o delinqente. Nesse sentido, a polcia comunitria introduz um fermento de desequilbrio em relao polcia tradicional e no garantido que ela consiga chegar ao fim do processo iniciado.

Antropoltica

N i t e r i , n. 1 0 / 1 1 , p.

- ,

1./2. sem. 2 0 0 1

162 A MEDIAOOs tratados de polcia tradicionalmente introduzem, na ao policial, uma primeira distino entre a polcia judiciria - que executa a lei penal - e a polcia administrativa - que assegura a ordem pblica (AUBERT; PETIT, 1981, p. 20-23). Essa distino , em muitos sentidos, abstrata e contestvel, mas ela nos pe na pista de uma propriedade sociolgica essencial. Na polcia judiciria (ou polcia criminal), o campo da ao policial estritamente delimitado pelo cdigo penal, que enuncia de modo restritivo os crimes e os delitos, fora dos quais no h lugar para a interveno policial. Os mtodos e os meios da ao policial so prescritos de forma igualmente estrita e limitativa pelo cdigo de procedimento penal (sem o qual as investigaes policiais so tidas como nulas). Enfim, a concluso da ao policial e a sano do crime ou do delito so decididas por um terceiro, um juiz ou um tribunal. Em outras palavras, pelos cdigos utilizados pelos ministrios pblicos - os juizes de instruo e os magistrados do local - a ao policial enquadrada pela autoridade judicial, da qual, historicamente, ela se originou, e em relao qual ela apenas recentemente se tornou autnoma (ainda restam vestgios dessa origem na organizao policial francesa, com a funo de ministrio pblico assegurada pelo comissrio central da cidade frente ao tribunal chamado, justamente, de "tribunal de polcia"). Na polcia administrativa, ao contrrio, se a ao policial seguramentese exerce no quadro das leis que impem formas e condies ao seu exerccio [...], ela tem um carter unilateral, detm um poder de apreciao discricionria e no se encontra ligada por contratos ou direitos adquiridos [...] (AUBERT; PETIT, 1981, p. 20).

Nesse campo, o rgo policial o brao armado da "autoridade policial", isto , da autoridade poltica, ou, mais simplesmente, do poder (local, regional, estatal). Seu objeto essencial a imposio da ordem, tal como ela est definida por esse poder. Nesse sentido, a ao policial est sempre mais ou menos a servio da "utilidade particular daqueles a quem ela confiada" (ver nota 1). Mas a diferena significativa no reside a; pode-se imaginar poderes em que a separao entre sua "utilidade particular" e o "bem de todos" seja mnima. O que caracteriza a ao policial na polcia criminal no a sua subordinao operacional autoridade judiciria, cuja realidade muitos magistrados contestam (DAVENAS, 1988), mas o fato de que seus objetivos (nmeros ou objetos), seus mtodos (processos) e sua concluso (abandono de processos, impronncias, absolvies ou condenaes) so determinados fora do mbito dessa autoridade e que, nesse sentido, a ao policial "mediatizada": isto , "est em relao com outra coisa por um intermedirio". A polcia judiciria emprega competncias prprias e em boa parte exclusivas, a servio de si mesma: a prpria definio de uma "profisso", no sentido sociolgico do termo.N i t e r i , n. 1 0 / 1 1 , p. - , 1./2. sem. 2 0 0 1

Antropoltica

17

considerado "profissional", na relao entre o ator e seu objeto, aquele que mediatizado por um mandato (ou uma demanda), por um saber e por valores, todos os trs atestados e controlados por um terceiro. Um mdico se interdita de intervir se no houver necessidade, salvo exatamente quando ele est em exerccio num setor da polcia administrativa (infncia em perigo, ou internao psiquitrica). Um juramento e uma deontologia enquadram sua ao. Sua ao profissional sob essas trs condies, igualmente submetidas a controle (e, se for o caso, sano). Em sua ausncia, ela vigarice ou violncia. Dir-se- o mesmo, mutatis mutandis, do piloto, do advogado, do educador, do engenheiro, do assistente social, do pesquisador ou do padeiro. Todos, de algum modo, sabem distinguir, em sua rea, quando algum no parece merecedor do "ttulo": h os "profissionais" e os outros; essa distino se opera segundo esses trs critrios: o respeito ao mandato (ou demanda) , a competncia e a deontologia. No saberamos estimar o alcance desta mediao; os policiais so os primeiros a atest-lo, atribuindo sempre polcia judiciria um lugar de prestgio no seio dos aparelhos policiais: no tanto por ela ser mais espetacular, mas sim porque - ramo da ao policial mais suscetvel de satisfazer a esses trs critrios - ela , ao mesmo tempo, aquela cuja legitimidade e profissionalismo so os menos questionados. Se fosse preciso uma outra prova do carter decisivo da mediao na ao policial, ela seria dada pelo ramo da polcia administrativa que, na Frana, especializada na maAntropoltica

nuteno da ordem pblica. O corpo das CRS representa comumente, para o conjunto dos mortais (e mais ainda aos olhos dos seus "usurios" coagidos), o que a polcia pode representar de mais rude e de mais brutal, pura expresso da fora e da coero. Esta representao altamente equivocada. Sustentamos, ao contrrio, que no conjunto dos servios da polcia, possivelmente (na Frana) o corpo das CRS o que mais se aproxima - depois da polcia judiciria - das normas de uma profisso. E o maior fracasso da sua prpria dinmica de profissionalizao o de no ser capaz (ou de no se preocupar) de fazer com que o saibam. De fato, ns o desconhecemos freqentemente, mas a manuteno da ordem 14 uma tcnica orientada por uma doutrina. uma tcnica desde o momento em que, exceto por abrir fogo em qualquer ocasio, a relao de foras entre as foras da polcia e os manifestantes , com freqncia. extremamente desfavorvel. Quando a direo da polcia de Paris se prepara para uma manifestao particularmente difcil e obtm todos os reforos requeridos, ela consegue posicionar "em campo", na melhor das hipteses, quatro ou cinco mil homens que vo "enquadrar", se for o caso, cem mil manifestantes. Se os primeiros detm o controle dos segundos, no pelo simples fato do tamanho dos porretes, mas porque eles empregam competncias coletivas comprovadas. Alm disso, constata-se, nos incidentes mais ou menos trgicos que marcam a histria das manifestaes de rua na Frana, menos a determinao (ou a violncia) dos manifestantes que a competncia, a tcnica, em resumo, o profis-sionalismo dos responsveis pela manuteno da ordem15 (pelo menos - a ressalva imporN i t e r i , n. 1 0 / 1 1 , p. - , 1./2. sem. 2 0 0 1

18tante - quando as instrues propriamente polticas no interferem na conduta operacional da manuteno da ordem). Esta tcnica, fundada no aprendizado de funcionamentos coletivos e disciplinados, orientada por uma doutrina que , por um lado, codificada sob a forma de "doutrina republicana da manuteno da ordem"16 . E, por outro, interiorizada sob a forma de cultura profissional especfica, pelo pessoal da CRS. esta forma que nos interessa aqui porque ela demonstra, no processo de profissionalizao de uma atividade policial pouco valorizada apriori, a busca desta mediao que garante o profissionalismo. Nada mais aparentemente direto, desprovido de toda intermediao, que o enfrentamento fsico entre a polcia e os manifestantes. Todo o esforo de construo doutrinria (cultural, ideolgica) das CRS foi precisamente o de reintroduzir um "terceiro" simblico entre eles prprios e o "adversrio" temporrio. A expresso mais clara disso dada pela autodefinio das CRS, no como fora de represso, mas como "fora de interposio". Bem elaborada por uns e mais rudimentar por outros, esta autodefinio se exprime sempre e basicamente assim: "Ns no somos protagonistas no conflito, ns no temos que conhecer suas particularidades, ns no temos que considerar o carter mais ou menos legtimo das reivindicaes ou a raiva dos manifestantes (e cada um livre para julg-la, como quiser, a ttulo pessoal) . Ns estamos aqui para garantir que as "formas de expresso" deste conflito permaneam nos quadros legais. Ns estamos situados "entre" as partes em conflito,Antropoltica

quaisquer que sejam elas - operrios e patres, funcionrios e Estado, pescadores e comerciantes, camponeses e comisso europia, estudantes e ministro etc. para impedi-las de recorrer violncia. Aqui comea e aqui termina nossa misso". Objetar-se-o, sem dvida, muitos exemplos onde a interveno policial para a manuteno de ordem pareceu ser motivada por intenes menos louvveis. Em certos casos, j mencionados, so as ordens da autoridade poltica que esto em questo. No incomum que a prpria corporao exprima a sua reprovao, mesmo podendo evitar isso: ela tem o sentimento de ter sido manipulada. Em outros casos, a competncia tcnica dos responsveis no local (ou no escritrio de comando) que questionvel, e os ajustes de conta post, para serem discretos, podem contudo ser severos. Existe, enfim, o caso que prova, "ao contrrio", a importncia da posio de interposio: quando, por uma ou outra das eventualidades precedentes ou por falha profissional manifesta, as CRS se encontram numa situao onde eles mesmos se tornaram objeto do conflito. Caso caracterstico de "abuso" onde a manuteno da ordem degenera em enfrentamentos interindividuais, e onde a fora pblica, perdendo suas referncias normativas, bem como sua posio de terceiro num conflito que lhe exterior, ajusta as contas com aquele que se tornou no mais um adversrio temporrio mas um inimigo: no se trata mais de se interpor, mas de castigar. Estilhaam-se, deste modo, todas as normas, tcnicas e doutrinas. Este caso raro e ele implica necessariamente um enfraquecimento da corporao.N i t e r i , n. 1 0 / 1 1 , p. - , 1./2. sem. 2 0 0 1

19

Mais comumente, e isto valida a anlise aqui proposta, a polcia judicial, por um lado, e a polcia da manuteno da ordem, por outro, so designadas como os segmentos de excelncia do aparelho policial francs: a eficcia e a mediao unidas. Chegamos, assim, aos grandes batalhes e ao cerne das dificuldades da polcia francesa (mas a situao nos pases comparveis no significativamente melhor), que a polcia urbana. Seu estudo permite completar, reciprocamente, a demonstrao aqui ensaiada: por ter erradicado toda a possibilidade de mediao entre ela mesma e seu objeto, a polcia urbana perdeu, ao mesmo tempo que toda a capacidade de profissionalizao, todo recurso para a eficincia. O ponto comum entre os aspectos positivos (e os resultados parciais) das experincias de polcia comunitria na Amrica do Norte, e a experincia dos projetos de servio (BERLIOZ, 1990) e de planos locais de segurana na Frana (MONJARDET, 1996, cap. 4), est na reintroduo, como princpio da ao policial, da "demanda social" por segurana. Existem duas formas de romper toda a ligao entre a polcia e a populao, entre a oferta e a demanda de polcia. A mais radical aquela que foi posta em ao na Frana, em 1941: pela estatizao das polcias municipais. Estas, cujos membros tornaram-se funcionrios de uma administrao central, no tiveram mais - de um dia para o outro qualquer conta a prestar ao meio ou cidade onde operavam. Como a lgica de toda administrao central mais voltada para assegurar a conformidade de seusAntropoltica

destacamentos "descentralizados" (como se diz de forma irnica) s suas diretrizes gerais, ao invs de uma adaptao s conjunturas locais, rapidamente o cerco foi fechado. Depois de mais de meio sculo, na Frana, a segurana local se tornou uma "prerrogativa outorgada": somente o Estado responsvel por ela. Concretamente isto significa que no h mais responsvel identificvel, entre o prefeito destitudo de todo poder policial, o comissrio que presta contas somente ao chefe de polcia, e o Centro que edita diretivas nacionais e totaliza estatsticas descontextualizadas. O segundo mtodo aquele que qualifica localmente a polcia somente a servio "da utilidade particular daqueles a quem ela confiada", ou seja, como instrumento de proteo e reproduo do poder municipal em exerccio. G. Tardif (1974) nos deu exemplos saborosos, ou desoladores, da Quebec rural dos anos 60, mas ns mostraramos sem dificuldades exemplos contemporneos nos pases com policiamento municipal. Nos dois casos, que esto em plos opostos nos arranjos organizacionais, a demanda social por polcia igualmente confiscada. No primeiro, pela razo burocrtica. E no segundo, pela qualificao policial. Nos dois casos, no h mais mediao da ao policial e as conseqncias so diretamente mensurveis. H ausncia na falta de qualquer profissionalismo e - conseqentemente - de qualquer eficcia, sejam quais forem os critrios pelos quais tentemos mensur-la. Falta interrogar sobre os caminhos e os meios de reconstruir estas mediaes, evitando aquilo que nela se encontra em potencial: uma submisso demanda dominante (polcia de classe) e/ou corrupo.N i t e r i , n. 1 0 / 1 1 , p. - , 1./2. sem. 2 0 0 1

203 O s CRCULOS VIRTUOSOSA demanda social por segurana e, mais precisamente, por policiamento, no demanda (ou instruo, quando tem-se o poder) do prefeito; nem o que produz o humor editorial da imprensa local. No tampouco, como objetam os policiais que se dizem submetidos a ela, a soma das chamadas e queixas que lhes so dirigidas. No , enfim, como crem, s vezes de boa-f, aqueles que a ela recorreram ou aquilo que revela uma pesquisa de opinio feita com a populao local. Todos esses elementos so indicadores parciais, mas a demanda social por segurana no se resume a isso, assim como no a soma de tudo isso. A demanda social necessariamente uma construo ad hoc, via debate e arbtrio, a partir de uma multiplicidade de demandas parciais, concorrentes e contraditrias. Ela a outra face do diagnstico de segurana, a partir do qual uma poltica policial pode se fundar. Podemos manter aqui, provisoriamente, a metfora mdica do diagnstico. Os despachos do prefeito, as reaes da imprensa, os chamados, as reclamaes, os relatrios dos policiais alocados nos quarteires, os dados das pesquisas, mas tambm o "corrimo" dos guardas dos HLM17, os relatrios de incidentes dos motoristas de nibus, as observaes dos professores e assistentes sociais, as estatsticas dos servios de segurana das grandes reas, as peties dos comerciantes ou dos habitantes de um conjunto habitacional, as reunies das associaes de moradores dos bairros etc. constituem muitos dos sintomas da situao local no campo da segurana, da natureza e da extenso dos problemas daAntropoltica

ordem pblica local. Convm ao primeiro comandante reuni-los e escutar a todos. Perceberemos, ao mesmo tempo, que essas percepes so heterogneas e nutrem expectativas contraditrias. Aqueles que reivindicam um policial permanentemente em frente a sua porta opem-se queles que desconfiam do uniforme. O "sintoma" que cada um carrega denuncia freqentemente o sintoma do outro, em relao ao qual demanda-se o afastamento ou que acusado de no fazer seu trabalho. Mais amplamente, da natureza da ao policial ser requerida para intervir nos conflitos que tecem continuamente o social, os quais cada um procura instrumentalizar em seu proveito e em detrimento do outro, adversrio do momento. Da soma dos "sintomas" exclui-se, portanto, a produo de um "diagnstico" consensual e aqui que a metfora mdica deixa de ser pertinente, como se tratasse somente de uma gripe ou de cncer de mama. Ela gera interesse justamente porque os diferentes saberes mdicos no se ajustam, uma vez que no h consenso sobre o mal e que - ao invs de produzir um diagnstico seguro - procuramos, pela reunio e pelo debate entre os diferentes saberes especializados, um acordo sobre um diagnstico que seja ao menos "razovel", isto , o mais "racional" possvel. Em resumo, analisar a demanda social por segurana no consiste em destacar as indicaes de uma srie de instrumentos de mensurao, mas, estando estes reunidos, consiste em organizar um tipo de regulao por definio plural sobre o seu sentido racional. Os conselhos municipais de preveno da delinqncia teriN i t e r i , n. 1 0 / 1 1 , p. - , 1./2. sem. 2 0 0 1

21am que constituir o espao pblico dessa confrontao, desse debate, dessa regulao. A polcia deve trazer, evidentemente, uma contribuio (dados e especialistas) essencial, porm somente uma "contribuio": no espao pblico a proeminncia no se decreta, ela se constata, de acordo com o caso. Os CCPD ( C o m i t s Communaux de Prvention de la Dlinquance - Comits Municipais de Preveno Delinqncia), at onde podemos sab-lo18, no tiveram esse papel, ou tiveram-no bem mediocremente, na melhor das hipteses. Dentre mltiplas razes, ns nos referiremos aqui somente s razes "policiais". Em primeiro lugar, para a Polcia Nacional do incio dos anos 80, ainda marcada pelos anos Marcellin e, como toda polcia - essencialmente preocupada em marcar sua excelncia no campo repressivo (polcia criminal), o rtulo "preventivo" dissuasivo. Entendido (erroneamente) como alternativa represso, a "preveno" percebida como vaticnio anglico de intelectuais alienados do real, ou confirmao da suposta lassido da esquerda poltica frente delinqncia. Em segundo lugar, os policiais, em funo desde a Libertao, s conheceram uma polcia estatizada, apresentada como um progresso decisivo frente "anarquia" que teria caracterizado as polcias municipais anteriores. E tudo o que parecia um retorno da influncia do prefeito sobre os assuntos policiais, percebido como uma ameaa intolervel. Enfim, por essas e outras razes, o prprio Ministrio do Interior no aumentar o estrago: ter sido preciso esperar o ano de 1990 para que uma circular obrigasse os chefes de servio a participar dos CCPD. A maior parte j o fazia e a obrigao no fez aumentar sensivelmente a qualidade da sua participao, pelo que sabemos. O fundo do problema est, entretanto, em outro lugar: na significao atribuda a algo que tornou-se um slogan: "a segurana assunto de todos". Todas as administraes, instncias e partidos evocados pelo slogan subscrevem-se da mesma forma, tornando-se a justificativa para um gigantesco jogo de passa-anel, sistema generalizado de reenvio, pelo qual cada um questiona as carncias do outro: a polcia "atribui" escola (ou justia, ou aos assistentes sociais), que atribuem aos pais, que atribuem aos locais de moradia, que atribuem ao prefeito, que atribui ao Estado, que atribui ao patronato, que atribui escola etc. Da evidncia de que a segurana assunto de todos, engendra-se o questionamento da responsabilidade do outro muito mais do que a conscincia de uma responsabilidade coletivamente partilhada. A segunda justificativa est na implementao de uma investigao em parceria local para a elaborao de um diagnstico racional da segurana: ela tem por objeto no somente a confrontao e a interpretao dos sintomas, mas tambm a ordenao do debate pblico, fechando-o num campo em que os participantes sejam, ao mesmo tempo, suficientemente representativos, guarnecidos (e legitimados por suas respectivas instncias) para que possam ser discutidas hic et mine a responsabilidade de cada um e a responsabilidade coletiva da prpria investigao, para que ningum possa dela se esquivar.

Antropoltica

N i t e r i , n. 1 0 / 1 1 , p.

- ,

1./2. sem. 2 0 0 1

22Isso quer dizer que o segundo momento da responsabilidade para com a demanda social por segurana - compreendida bem menos como reflexo do que como construo coletivamente produzida e validada - a elaborao, pela mesma instncia e da mesma forma, de um plano local de segurana. Podemos ser breves, j que estamos no gerenciamento elementar: trata-se de determinar as prioridades locais, de conceder os recursos correspondentes, de inscrever as aes no tempo, de organizar as coordenaes, de assegurar a complementaridade das intervenes etc. Podemos referir-nos aqui ao desenvolvimento de um projeto de servio (que vale apenas para as administraes) ou, ao menos, s suas experimentaes bem-sucedidas, que existiram at mesmo na polcia urbana (BERLIOZ, 1990). O papel da investigao coletiva assegurar que cada um elabore um projeto de servio coerente, com base no diagnstico, e ajustar os diferentes projetos de servio uns aos outros. Nesse momento, tendo sido constatada a coerncia do conjunto, a noo-chave aquela da "contratualizao", com a qual19 cada um est comprometido. Ela inseparvel da implementao de um dispositivo de avaliao concebido menos para verificar (ou controlar) o respeito de todos por suas respectivas funes, do que para seguir a concretizao do plano de segurana, medir seus resultados e fundar seu ajustamento peridico ao acontecimento, conjuntura. Isso quer dizer que um "plano" local de segurana no um programa de produo ou de promoo de vendas e que, mesmo a, a metfora empresarial tem seus limites: o social uma construo permanente, pautada por aconAntropoltica

tecimentos, conflitos, imprevistos e isto algo constantemente usado como argumento pela polcia para desqualificar toda pretenso de planificar sua ao e de colocar seus servios sob um contrato - no diminui diante do voluntarismo burocrtico ou poltico. Alm disso, o que aqui demonstramos no tem tanto por objeto impor medidas, programar aes, planificar procedimentos etc. - j que isso os acontecimentos podem desordenar a todo momento - , mas sim, instituir e tornar perene uma "iniciativa", pela qual se constri coletivamente um pensamento (diagnsticos e polticas) racional sobre a ordem pblica local, fundamento e pedra de toque da atuao especfica de cada um. O plano local de segurana nada mais do que a formalizao operacional, no campo da segurana, de uma poltica da cidade, ou seja, da pretenso em sustentar, manter e, se for o caso, restaurar o equilbrio sempre instvel entre, de um lado, as liberdades da cidade e, de outro, a presena e a coerncia dos smbolos de autoridade que tornam possveis essas mesmas liberdades. Isso quer dizer, enfim, que as agncias de segurana, seus parceiros, a instncia local que os dirige e os ordena so da mesma forma permanentemente responsveis pela sua ao (e pela sua inrcia), frente a esse equilbrio instvel, isto , frente populao. No caminho at aqui descrito (diagnstico e plano de ao), o cidado "representado" (pelos eleitos, pelas administraes, pelas associaes), como "beneficirio" (de um servio policial) ou "sujeitado" (objeto da ao policial). preciso ainda que ele seja "cidado", isto , titular de direitos e deveres. Em matriaN i t e r i , n. 1 0 / 1 1 , p. - , 1./2. sem. 2 0 0 1

23de deveres em relao polcia, esta raramente deixa de fazer respeit-los. Vimos que fazer-se respeitar sua primeira preocupao, se no for a condio elementar da sua ao, e ela dispe, para isso, de todos os meios necessrios. Os direitos do cidado em relao polcia so geralmente bem menos assegurados e, a princpio, bem menos conhecidos. Este segundo fato explica em boa parte o primeiro. O cdigo de deontologia da Polcia Nacional enuncia os deveres do policial em relao ao pblico20. Porm, a justia administrativa e, se for o caso, o juiz penal, sancionam a falta policial e colocam, assim, em risco a responsabilidade do Estado. Mas o enunciado das obrigaes dos policiais no pode ser considerado como uma "declarao dos direitos dos cidados" em relao ao servio pblico policial; apenas o seu reverso parcial. Assim, omite-se o primeiro desses direitos, tal como formulado pelo artigo 15 da Declarao dos Direitos do Homem: "a sociedade tem o direito de pedir explicaes a todo agente pblico sobre sua administrao". Esse direito to desconhecido e no-aplicado como essencial, pois ele que funda a qualidade do "servio pblico" da administrao policial, se quisermos compreend-lo em toda sua extenso. No por acaso que a discusso sobre o controle da polcia nos pases anglo-saxes pouco a pouco deslocouse e se focalizou na noo deaccountability. O termo reconhecidamente intraduzvel, porm, a etimologia que remete ao termo "conta"21 indica-nos que se trata exatamente da prescrio do artigo 15: para alm dos dispositivos de controle que reiteram a escalada incessante do uso do projtil e do escudo frente opacidade policial, aAntropoltica

accountability a propriedade daquilo que est sendo avaliado, ou posto em avaliao; de prestar contas sobre os recursos que foram investidos, do emprego que deles foi feito, em resumo, das suas prticas. E de prestar contas no s como o prescreve 2 2 o artigo 18 do Cdigo de Deontologia Policial " autoridade no comando", mas antes e a princpio, "sociedade". No se quer dizer que ser exigido do chefe da polcia local que ele afixe todas as manhs na porta do comissariado o relatrio circunstanciado de toda atividade policial da vspera, mas sim que a atividade policial seja, como aquele e qualquer outro servio pblico, o mais transparente possvel aos olhos do cidado. Esta assero parecer zombaria para uns, por causa da sua excessiva ingenuidade e escandalizar outros, a comear pelos policiais, convencidos de que o segredo condio elementar da eficincia. Nestas reaes, a confuso entre a polcia criminal e o conjunto das prticas policiais, por vezes de boa-f, serve tambm a alguns fins menos nobres do que a luta contra o crime. Se pouco duvidoso que os procedimentos de busca por delinqentes devam ser discretos, se verdade que o segredo profissional tem por razo principal a proteo das pessoas, a administrao policial e os prprios policiais se servem desse mecanismo com prazer, independentemente de qualquer justificativa admissvel, para impor e se impor - segundo a expresso precisa de S. Porra e C. Paoli (1991, p. 121) - uma "obrigao de mutismo", utilizvel tanto para encobrir quaisquer desvios como para se proteger de qualquer investigao. preciso lembrar que, se oN i t e r i , n. 1 0 / 1 1 , p. - , 1./2. sem. 2 0 0 1

24fundador da polcia urbana moderna (Peel, criador da London Metropolitan Police, em 1829) imps o uso do uniforme, se este era tambm na Frana (at bem recentemente) imposto a todos os policiais, qualquer que fosse a sua funo, no era somente para que o cidado pudesse se dirigir facilmente ao policial, nem para assegurar uma dissuaso, mas, a princpio, para colocar sempre e em toda parte o comportamento policial sob o olhar e, portanto, sob o controle do cidado23. Essa exigncia no existe mais nos comissariados; o policial que tinha que usar uniforme est liberado disso. A qualidade de servio pblico da polcia se prova na medida em que ela est somente a servio do pblico, "instituda para o bem de todos e no para a utilidade particular daqueles a quem ela confiada". Vimos acima os processos pelos quais, como em toda administrao, a ao policial pode ser desviada a servio da "utilidade particular" do poder ou da prtica profissional. Tendo em vista esses desvios potenciais, preciso, por razo e tambm pela letra dos artigos 12 e 15 da Declarao dos Direitos do Homem, uma vigilncia particular, de todos e de cada um e sua condio instrumental a transparncia da prtica policial. Os policiais se indignam facilmente com a necessidade dessa vigilncia, que ressentem como suspeita injusta ou manobra interessada, por no compreenderem que a sua prpria indignao que converte o dever de vigilncia em suspeita: "quais so essas prticas das quais ele no saberia prestar contas, o que impede que o comissariado seja uma casa de vidro?". Na verdade, a polcia pode prestar contas do essencial das suas aes, a polcia urbanaAntropoltica

mais do que as outras e os comissariados podem (o mais freqente) ser visitados por qualquer um 24 , o fechamento do aparelho policial mais cultural que funcional. Mas precisamente porque esse fechamento e a opacidade que ele engendra ultrapassam largamente as exigncias de discrio de certas aes policiais, preciso contrapor a isso a igual exigncia de transparncia: quando o ministro faz valer o "segredo como defesa", podemos estar certos de que ele tenta esconder o inconfessvel. Na polcia urbana no h lugar para segredo-defesa, mas a a opacidade no normalmente menor. Uma polcia local realmente engajada na elaborao dos diagnsticos e planos de ao descritos anteriormente j explicitou consideravelmente suas prticas. Resta abrir para o cidado o seu "direito explicao", em se tratando de prticas policiais que o concernem diretamente: de oferecer aos residentes de um conjunto habitacional os meios para saberem por que suas reclamaes no tm resultados (aparente); vtima, os meios para saber o que houve com o seu "caso"; ao investigado, para verificar que as condies legais para a investigao esto reunidas, associao de moradores para compreender por que os horrios dos policiais da rea mudaram e ao pai para saber por que seu filho, detido no comissariado, saiu de l inchado. Em resumo, trata-se de abrir ao cidado, isoladamente ou em grupo, um direito de interpelao que no sirva de pretexto para um processo de desacato autoridade do agente da fora pblica no exerccio de suas funes. Como todos os direitos, este deve ser enquadrado, para no derivar em injria.N i t e r i , n. 1 0 / 1 1 , p. - , 1./2. sem. 2 0 0 1

25Em relao a este ponto, dispe-se - desde a experincia do mediador na Frana at a das police commissions and boards25 nos pases anglo-saxes - de um saber suficientemente escorado para prevenir-se esse risco. Pode-se imaginar, por exemplo, que uma pequena comisso da instncia de segurana local examinaria as "interpelaes", descartaria aquelas manifestamente infundadas e se asseguraria que os outros tenham resposta. Mais amplamente, ela deveria ter por misso advertir a ao poltica sobre o campo da segurana. A transparncia policial tem, portanto, duas faces: uma face pr-ativa, que consiste, para a polcia, em primeiro raciocinar para, em seguida, explicitar sua ao no debate com as outras instncias responsveis coletivamente pela ordem na cidade; e uma face reativa, que consiste em se abrir demanda de explicitao do cidado, interpelao. Fecham-se, assim, as trs condies da mediao da ao policial. Elas so tambm as condies do seu profissionalismo e de sua eficincia. Abandonadas aos seus mecanismos endgenos, a administrao e a prtica profissional policiais fecham-se nos crculos viciosos da burocratizao e da involuo das metas, ao fim dos quais sua ineficincia atestada pela prpria instituio26. Postos em tenso pela demanda social, pelo debate pblico e pela transparncia, a administrao e a prtica profissional policiais podem desenvolver os crculos virtuosos da profissionalizao e da eficincia. Isto compreende-se facilmente. A polcia da manuteno da ordem tem por recurso essencial a fora; a polcia criminal tem como recurso essencial a informao; a polcia urbana pode se valer ocasionalmente de um ou de outro recurso, mas, na sua rotina cotidiana e no essencial da sua ao, seu recurso bsico a autoridade. Como sabemos, a autoridade se distinge do poder, na medida em que este conferido por uma instncia superior, enquanto aquela reconhecida mesmo por aqueles contra a qual se exerce. O poder pode ser contestado e combatido, mas a autoridade se impe, porque ela s existe se for consentida. As famosas "zonas de nodireito", onde a modernidade reproduz o curso dos milagres de outrora e que parecem estar expandindo-se sem parar, no so espaos onde a polcia no pode penetrar; ela sempre os desfrutou e no se priva de investidas com grandes destacamentos da CRS. Esses so os espaos pblicos em que a polcia perdeu todos os seus recursos de autoridade, onde ela no aparece mais como servio pblico (como a escola, o correio ou o posto de sade), mas como puro poder repressivo, desprovido de qualquer outra razo. Ora, essa situao no fruto de um meio delinqente que decidiu se apropriar de um territrio de impunidade, caando a polcia; ela ocorre, ao contrrio, como demonstraram Wilson e Kelling (1994) num famoso artigo, porque a polcia parou (ou nunca comeou) de se interessar pelos problemas do bairro, renunciou a responder demanda social local e perdeu, assim, toda autoridade. Desse modo, o meio delinqente pde se instalar progressivamente e substituir sua ordem. A espiral do declnio se engendra a partir da perda da autoridade local da polcia local.

Antropoltica

N i t e r i , n. 1 0 / 1 1 , p.

- ,

1./2. sem. 2 0 0 1

26CONCLUSOSe apenas escorar seu poder na lei do mais forte, em vez de base-lo numa autoridade substancial, a polcia ser necessariamente vencida logo de sada. Uma vez que seu nico recurso eficaz a autoridade do profissional reconhecido enquanto tal, tudo o que antecede a isso no visa nada mais alm de enunciar as condies mnimas, concretas, da profissionalizao da ao policial na cidade. Como todo servio pblico, a polcia se legitima pela qualidade do servio prestado. preciso dar-lhe os meios que so menos materiais ou jurdicos do que institucionais. E, no caso da polcia urbana, esses pr-requisitos so o conjunto dos dispositivos que instauram (ou restauram) uma relao de responsabilidade entre, de um lado, a polcia e a cidade e, de outro, a mediao da ao policial. Resta aos policiais fazer o resto e, antes de tudo, compreender que esses instrumentos, longe de impedirem sua ao, de multiplicarem os controles ou de conterem sua autonomia, so os prprios recursos de sua legitimidade, autoridade e eficincia. Em todo caso, se isso em algum momento for realizado, o caminho ser longoTraduo: Ceclia Campello do Amaral Mello Apoio tcnico: Cristina Buarque de Hollanda

ABSTRACTThis article analyzes police professional and institutional practices when working with the urban population, specially in Paris and, comparatively, in New York. Analysis is organized aroimd these practices' structural principies: a) contradictions on their objectives: on the one hand, these practices are legitimated by their public, legal institutional character and by the prescriptive conditions ofemployment of their resources. On the other hand, it is exercised under obscure hierarchical and impersonal orientations. b) Police institutional autonomy is limited by many forms of mediation and interdependence: criminal law which defines crimes, criminalprocedure law which defines methods and ways of police action, and obedience to externai decisions (from judges or courts). To decodify mechanisms and procedures by which an administration gets free from its own constraints, the author contrasts vicious to virtuous circuits on which institutional action is based, discussing hoiv these mechanisms coidd be inverted. Keywords: Urban police; institutional practices; social mediation,Antropoltica N i t e r i , n. 1 0 / 1 1 , p. - , 1./2. sem. 2 0 0 1

27NOTAS1

Na Frana, a "instituio" policial definida pelo artigo 12 da Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado: "A garantia dos direitos do homem e do cidado necessita de uma fora pblica; esta fora assim instituda para o bem de todos e no para a utilidade particular daqueles a quem ela confiada".13

por aluso espada suspensa por uma crina de cavalo sobre a cabea de Dmocles, durante um banquete. Escrito em 1996, antes que fosse mensurvel a inverso das tendncias das curvas da delinqncia que marcou os anos 1995-1997. Sabe-se que, aqui ou l, e particularmente em Nova York, as autoridades locais atriburam a si prprias o mrito desse resultado. Esta pretenso dificilmente sustentvel, j que esse movimento observado em todo o mundo ocidental, e, portanto, igualmente nos locais onde as estratgias policiais foram muito diversas, se no opostas (como em Chicago e em Nova York). Alis, atribuindo-se o mrito desse movimento, as polcias se pem numa posio em que podem igualmente ser responsveis pelo prximo movimento contrrio.14

2

N. T.: o termo empregado pelo autor

profession,

cuja traduo literal - profisso - remete noo de uma ocupao determinada da qual se tira o sustento. Acredito que o termo profisso no contm a dimenso daquilo que o autor quer discutir no texto: a "prtica profissional", expresso que optei por empregar na maior parte dos casos.3

N. T.: o termo ilotage refere-se diviso de um bairro em unidades administrativas (ilots, ou quarteires) , cada uma sob a vigilncia de um policial (.lotier). Observe-se que o policiamento por quarteires no a mesma coisa que o policiamento comunitrio.

Ns entendemos aqui "manuteno de ordem" no sentido - especificamente francs - de controle das manifestaes coletivas. Sabemos que, em ingls, maitaining order designa, ao contrrio, a ordem pblica local, isto , a tranqilidade e a segurana da cidade.

4

N.T.: em ingls, no original. N.T.: burgomestre o ttulo do primeiro magistrado municipal das cidades belgas, alems, suas etc.15

5

Existem dois estudos esclarecedores deste ponto em Favre (1990). Sobre a manifestao do 23 de maro de 1979, dos siderrgicos, ver a contribuio de Monet (1990, p. 229-244), e sobre as manifestaes estudantis de novembro-dezembro de 1986, a contribuio de Monjardet (1990, p. 207-228).

6

N.T.: Compagnie Rpublicaine de Scurit (Companhia Republicana de Segurana). Sobre esse primeiro mecanismo, alm dos desenvolvimentos de nosso texto acima citado (cap. 2), iremos nos referir aos estudos de caso apresentados em Gorgeon et al. (1992). Na literatura anglosaxnica, bem mais abundante, pode-se consultar, para a Gr-Bretanha e os Estados Unidos (MANNING, 1977) e para o Canad (ERICSON, 1982).17 16

7

Ver, por exemplo, o depoimento do comissrio J.M.Berlioz na Revue de la Police Nationale, 126, dc. 1987. N.T.: Habitation Loyer Modr: conjuntos n.

8

A pesquisa de campo data de 1950. N.T.: em ingls, no original. N.T.: o termo moyens (meios) tem uma grande variedade de significados em francs e em portugus. Seu significado, no texto, aproxima-se da idia artifcio, astcia, vis, manobra, "jeito". N.T.: Organisation Scientifique du Travail (Organizao Cientfica do Trabalho).19 18

habitacionais para populao de baixa renda. tpico das "polticas pblicas" francesa que, ainda que constantemente tenha-se sentido necessidade, no se disponha at hoje de qualquer avaliao sria sobre o funcionamento de alguns 600 CCPD que supe-se terem sido implantados (os mais antigos h mais de 12 anos). Pode-se compreender que, no domnio da ordem pblica, que pe em questo as liberdades, a "contratualizao" dos servios locais das administraes outorgadas intervm somente aps o N i t e r i , n. 1 0 / 1 1 , p. - , 1./2. sem. 2 0 0 1

9

10

11

12

Expresso que designa o perigo que pode abaterse sobre qualquer um, de uma hora para outra,

Antropoltica

28nihil obstat das autoridades judicirias e da direo da polcia, responsveis por essas liberdades, ou aps abrir a estas uma possibilidade de apelo, tomando, entretanto, precaues para que esse dispositivo no seja o pretexto para os destacamentos locais da polcia e da justia escaparem de novo a toda responsabilidade local.20 24

"abominvel experincia francesa de espies da polcia" (REINER, 1992, p. 58-59). Em Lewiston, cidade mdia do Maine (Estados Unidos), uma das salas municipais encontra-se dentro do comissariado, e o senador faz a suas reunies eleitorais. Este fato, impensvel na Frana, certamente no significa que o conjunto das polcias americanas seja "transparente", nem que o que dito no texto dos comissariados franceses no exclua que exista - principalmente em Paris - alguns servios notrios pela prtica comum da "bofetada", ou seja, do tapa na cara.25

Cdigo de Deontologia da Polcia Nacional, Decreto n a 86.592, de 18 de maro de 1986, ttulo II, artigos 7, 9 e 10.

21

N.T.: compte em francs, da expresso compte,

demander

em portugus, "pedir explicaes". Ver, principalmente para o caso canadense, muito diversificado, a anlise de Stenning (1981). Como bem mostram tanto as "constataes" que abrem o "Estatuto de Formao da Polcia Nacional" de 1982, quanto, quase 15 anos mais tarde, o relatrio Bordry, comandado por Ch. Pasqua em 1993 e que, por essa razo, permaneceu secreto, ou a audincia da Inspeo Geral da Polcia Nacional, o chamado Relatrio Genthial, sobre "a qualidade das relaes entre polcia e populao", de julho de 1995. Nos trs casos, o balano desanimador

22

Artigo 18: "Todo funcionrio da polcia tem o dever de prestar contas autoridade em comando sobre a execuo das misses que recebeu ou, se for o caso, sobre as razes que tornaram sua execuo impossvel".26

23

A criao, em 1842, de seis empregos de "detetive" trabalhando com trajes civis na polcia de Londres suscitou considerveis crticas; em 1868, ainda havia somente 15 (dentre 8 mil policiais): para os responsveis da poca e para a opinio pblica, o policial portando trajes civis s fazia reproduzir a

REFERNCIASAUBERT, J.; PETIT, R. La police em France, service public. Paris: Berger-Levrault, 1981. BECKER, H.S. Outsiders, tudes de sociologie de la dviance. Traduction franaise. Paris: A. M. Mtaill, 1985. BERLIOZ, J. M. La dmarche projet de service dans la Police Nationale. Les Cahiers de la Securit Interieure, Paris, n. 2, p. 97-116, juil.-sept. 1990. DAVENAS, L. Profession: rpression. Paris: Acropole, 1988. ERICSON, R. V. Reproducting of Toronto Press, 1982. order. a study of police patrol work. Toronto: University

FAVRE, P. (Dir). La manifestation. Sciences Politiques, 1990.

Paris: Presses de la Fondation Nationale des

FOGELSOft, R. M. Big-city police. Cambridge: Harvard University Press, 1997.

Antropoltica

29GORGEON, C. et al. Les brigades de roulement en police urbaine: fonctionnement, contraintes et potentialits, rapport de recherche. Paris: IHESI, 1992. LIPSKY, M. Street-level bureaucracy, dilemnas of the individual New York: Russel Sage Foundation, 1980. MANNING, P. K. Police ivork, the social organization MIT Press, 1977. MONJARDET, Dominique. Ce quifait La Dcouverte, 1996. ofpolicing. in public services.

Cambridge: The

la police, sociologie da la force publique.

Paris:

PANDRAUD, R.; AUBERT, E. Rapport au nom de la commision d'enqute relative aux vnements de novembre et dcembre 1986. Journal Officiel, A.N.: 2a session 19861987, Paris, n. 850, 17 juin. 1987. PORRA, S.; PAOLI, C. Code annot de dontologie policire. Paris: LGDJ, 1991. SKOGAN, W. G. La police communautaire aux Etats-Unis. Les Cahiers de la Scurit Intrieure, Paris, n. 13, juil 1993. STENNING, PC. Police commissions and boards in Canada: Research report of the Centre of Criminology. Toronto: Universit de Toronto, 1981. TARDIF, G. Police et politique au Qubec. Montral: Les Editions de 1'Aurore, 1974. WARIN, P. H. Quelle modernisation Automne 1997. des services publics. Paris: La Dcouverte,

WESTLEY, W. W. Violence and the police. Cambridge: The MIT Press, 1970. WILSON, J. Q. ; KELLING, G. L. Vitres casses. Les Cahiers de la Scurit Paris, n. 15, p. 163-180, janv./mars 1994. Intrieure,

Antropoltica

N i t e r i , n. 1 0 / 1 1 , p.

- ,

1./2. sem. 2 0 0 1

31THE PLAINTIFF - A SENSE O F INJUSTICELAURA NADER*

The first idea of this essay is that the search for justice is both fundamental and universal in human culture and society. This observation indicates thatforums for justice must be ubiquitous, as indeed they are The second idea is that styles of lato vary even ivithin the same place in relation to the social and cultural environment, whether hegemonic or not. A final notion - a user theory of law involves thinking about the direction of law as dependent in large measure on ivho is motivated to use the law and for what. It. encompasses the role ofpolitical ideas in regulating process for potential users - the plaintiffs, and in enlarging legal relevance. A sense of injustice may be the force that keeps industry creative and innovative. It also may be the force that keeps the law alive. Thus, it is not compensation that is the sole goal, it is deterrence and it is punishment for wrongdoing. The terms we use shape the direction ofour thoughts -justice philosophers or injustice specialists, rights specialists or wrongs specialists, departments of justice or departments of injustice. Injustice, the life of law? Injustice is at the heart of dissatisfaction with the law, and must be recognized as the motor of change. When the function of law as power equalizer diminishes, the role of law in everyday life decreases. Lawlessness prevails. The absence of prosecution has encouraged an escalation oflaivless behavior among those who capitalize on the inability of the justice system to handle individual claims, and the general unwillingness to support the use of class action, or preventive measure. The foundation of civil justice tort lato is to be found outside the law in the mass condition of global and technological processes. An ethnography that goes beyond courtroom interactive models to include what is at issue - the conjunctions of people and corporations, technological processes, and decisions of power that are embedded in history is what

* Department of Anthropology, University of California, Berkeley, U. S. A.Antropoltica N i t e r i , n. 1 0 / 1 1 , p. 3 1 - 4 4 , 1./2. sem. 2 0 0 1

32we should work toward. If the law is, as Oliver Wendell Holmes once said, uone big anthropological document" - it may be time for lawyers and anthropologists to come together over the larger processes of which only a minutiae reaches the courtroom. In such a light, the civil plaintiffs role will be appreciated as something more than presenting a dispute to be managed. The stakes are very high and the task urgent. Keywords: legal anthropology; a sense of injustice in tort law; the law outside the courtroom; p l a i n t i f f ' s motivations.

INTRODUCTIONMovement in law is often a result of political transformations such as colonialism, religious missionization, or processes of global legal imperialism and borderless multinational economies. The focus of this essay reflects an interest in extensive historical processes in conjunction with anthropological projects that contextualize these processes and imbue them with meaning. I will call attention to a number of additional ideas that have proved useful for understanding the dynamics of law in everyday life, ideas that when they turn to action are the life of law. The first idea is that the search for justice is both fundamental and universal in human culture and society. This observation indicates that forums for justice must be ubiquitous, as indeed they are The second idea is that styles of law vary even within the same place in relation to the social and cultural environment, whether hegemonic or not. A final notion - a user theory of law - involves thinking about the direction of law as dependent in large measure on who is motivated to use the law and for what. It.Antropotica

encompasses the role of political ideas in regulating process for potential users - the plaintiffs, and in enlarging legal relevance. Nearly all of these ideas are now a part of the research literature on law across the social and legal sciences. The specific idea of the justice motive and how it works was introduced into my thinking, through the work of social psychologists (LERiNER 1975, 1980; LERNER; LERNER, 1981). The idea that law varies with changes in the social and cultural environment has been in anthropology at least since Sir Henry Maine (1861) postulated that with shifts in family structures, the law changes from being based on one's status to being rooted in contracts between individuals. The specific idea that law varies' with modes of social control is found in Elizabeth Colson's work in Africa (1953), and the idea that law varies with status has been extensively pursued by sociologist Donald Black (1976). The integrative notion that users of law make or create law is my own elaboration of the work of linguist Edward Sapir on linguistic drift ( 1 9 2 1 ) , the work of American legalN i t e r o i , n. 1 0 / 1 1 , p. 3 1 - 4 4 , 1./2. sem. 2 0 0 1

33historians, Willard Hurst (1981) and Lawrence Friedman and R.V. Percival (1976). In addition, historian Richard Kagan's (1981) work on Spain illuminates the processes whereby numbers and kinds of users expand and contract with changing conditions of political economy. My perspective in this article will be actor oriented, that is plaintiff oriented in the context of controlling processes that are usually latent processes. Furthermore, I indicate further on, it is the very powerful possibility that potential users are able to change the everyday by means of law that nay have generated present anti-law movements, such as tort "reform" movements emanating frown political origin in United States and moving to other points of origin beyond United States borders.

PAST-WORKIn the late 1970s I published a paper entitled, "The Direction of Law and the Development of Extra-Judicial Processes in Nation State Societies" (NADER, 1978). In it I elaborated on the argument that courtsystems that are part of the court-use patterns of nation-state apparatus can be manipulated by the state through administrative means, (as with Alternative Dispute Resolution), or for example, the direction of law can be regulated by direct state blocking of access to courts. In the instance of nation-state societies, the nation defines itself as user by becoming the plaintiff in criminal cases, while the "true" plaintiff(s) become victims. The historical change in criminal cases from plaintiff to victim status, from an active to a passive role, also changed the status of the defendant as object of state action. Most defendants in criminal cases are members of the underclass. In a second paper on legal change, "From Disputing to Complaining" (NADER, 1983), 1 pursued the idea that a change in relationships between litigants could trigger Antropotica

behavioral change. I argued that overtime in nation-states the plaintiff has moved from a position of relative power in community courts (such in seventeenth century New England villages which allowed for procedural means in face-toface disputes), to a relatively powerless role that allows room only for complaining about face to faceless disputes. The evolving role of the consumer in the global market place is a relatively anonymous one. Furthermore, changes in potential litigant role seem to have come about through the change in relations that resulted from the industrialized wage labor process as well as elongation in the product distribution chain. As consumers became distanced from producers, both informal social control such as public opinion, and formal social control as government law escaped their grasp. The result was increased unilateral behavior - complaining or exiting or violence. In addition, in state systems of law, the plaintiff role atrophies because of use monopoly by the state. In other words, the law drifts in the direction of its dominant users (NADER, 1983, p. 91).N i t e r o i , n. 1 0 / 1 1 , p. 3 1 - 4 4 , 1./2. sem. 2 0 0 1

34If the individual plaintiff has been gradually removed from litigation, the next step was to explore the concept of user. In "A User Theory of Law" (NADER, 1984), I focused on the plaintiff in order to loosen the grip of the idea of a judge-determined court, as in the frequent conceptualizing of "judicial decision-making". Conceptually replacing a judge-determined court with an interactive model gives equal sociological significance to all the players in the litigation process and is a corrective for disciplinary biases. If we look at research in the behavioral sciences and ask where the focus of attention has been for each, we would most likely notice that political scientists favor looking at the role of judge and the hierarchy of judicial decision making. Sociologists or criminologists, on the other hand, are attentive to the defendant, while psychologists and anthropologists focus on the plaintiff or the victim. Few are examining larger historic processes. In non-state societies of the sort traditionally studied by anthropologists, the plaintiff is motivated to secure justice and a certain kind of justice because he or she is plaintiff as well as victim. This observation is often ignored in the transplant of Western law, although it has been the cause of major unrest in developing nations around the world. In Zambia, for instance, the state as plaintiff began punishing defendants convicted of cattle rustling by sentencing them to jail, while under traditional law compensation is a central interest for "true" plaintiffs. In such situations, plaintiff energy is frustrated, and in the Zambian instance it was the cause of major riots. It is in the role Antropoitica of plaintiff then that litigation in other societies is conceptualized so differently from ours. An interactive model becomes imperative for a user theory of law. If the users reflect the array of possible users, everyday life is made and changed by the cumulative efforts of users of law. Using U.S. historical legal data, Wiliard Hurst (1981) noticed that what people were litigating about changed from the nineteenth century to the twentieth century, as did, procedural style, but in another sense he noted there was no significant change at all. The users did not change: "Nineteenthcentury litigation involved only limited sectors of the society in any bulk" (HURST, 1981, p. 420). (I will leave the New Deal administrative agencies to one side for a moment.) According to Hurst, there were no more merchants suing fellow merchants than there were in the twentieth-century dockets, and people of small means were not often plaintiffs except in torts or family matters (HURST, 1981, p. 421). If users of courts themselves did not change much in the United States even under conditions of rapid social change, then the 1960s were unusual. In the 1960s, cases involving minority groups, consumer groups, workers, and women began to push their way to litigation. Before proceeding further I would like to say that contrary to popular representation Americans go to great lengths not to litigate. A recent Harvard School of Public Health report notes that too few patients lay claim of medical malpractice. The same is true for serious product defects. Lumping is more common than claiming. But, whenN i t e r o i , n. 1 0 / 1 1 , p. 3 1 - 4 4 , 1./2. sem. 2 0 0 1

35new faces with new cases began to exercise the rights of civil plaintiffs in the late 1960s the alarms went off amongst potential powerful defendants, an observation I will return to momentarily. In 1985 I wrote a piece on "A User Theory of Legal Change as Applied to Gender," in which I mentioned work on Drinking, Homicide, and Rebellion in Colonial Mexican Villages (TAYLOR, 1979). The author discussed gender in relation to litigating parties because of the unusual pattern in 18th century Oaxaca of a high proportion of plaintiffs who were womenwives, sex-partners, and sex rivals, a pattern that was higher than among non-Indians. The point was that in colonial Mexican villages violence was restricted to relationships from which there was least likelihood a spread to factionalism. This restriction functioned as a means to maintain autonomy and to insure autonomy among Indian communities. In my work on user patterns in Oaxaca from 19591969 no change appeared during a period of great changes related to out-rnigration and the opening up of the Zapotec mountain area by a network of roads and airstrips (NADER, 1990). Although Zapotec men and women used the courts for different purposes, the proportion of male and female plaintiffs was about equal. Women make extensive use of the courts to obtain their domestic rights. They sought justice in a public forum. When sets of crosssex cases were examined it was clear that the styles used in these sets varied by type case - from accusatory, to compensatory, remedial and penal. It seemed possible that if remediial cases were dropped from the docket the dominant style might be penal. It is clear that numbers do not tell the whole story about court use. The point here is that the types of cases that appear on the docket are patterned, indicating that law not only controls but is controlled. The process I described is interactive rather than impositional, created by citizen use rather than solely by town officials. There is a share-power theory of law even though the distribution of that power is variable and dynamic. At the district court level there is another model, an impositional model, one in which the state determines what cases it will accept. Unlike village law, which is biased for the plaintiff, and where use is generated by exercise of the justice motive, Mexican state law has a bias against defendants, who are primarily men, and is restrictive of what it will accept from a plaintiff. It becomes clear that the justice motive is frustrated at the district level by the state, although of course within any population there is differential justice motivation. However, the anthropologist learns that with state law we have something new: the justice motive is managed and controlled from a central station. All this from traditional legal anthropology makes it doubly interesting to read statements about the behavior of courts by U.S. scholars, in which authors speak- about courts as if they were persons. In one such article (KRISLOV, 1983), Sam Krislov notes that courts can encourage court use by their narrow or broad understanding of who may

Antropotica

N i t e r o i , n. 1 0 / 1 1 , p.

3 1 - 4 4 , 1./2. sem. 2 0 0 1

36litigate and can generate activity by creating rewards for lawyers, as with contingency fees, and by their control over the supply of lawyers. Accordingly, it is not the plaintiff but the court as dominant user and major player that determines whether litigation contracts or expands. Krislov continues by observing that litigation is also a product of social propensities to litigate, and is often a byproduct of increasing transactions, or the presence of outside alternatives. Thus, he rejects the popular notion that individual plaintiffs are the major actors in generating litigation in favor of the idea of "the Law gives,'' "a recent entry into the domain of Law7." If Krislov and like authors are correct, why, we might ask, if there are so much activity in the 1990s directed to closing access to civil plaintiff litigation?

THE CIVIL PLAINTIFF IN THE CONTEXT OF THE INDUSTRIAL REVOLUTIONregularly point out, this was an era committed to economic growth and expansion, a time in which there was no large industrial work-force, yet. Twentieth century tort law, on the other hand, insists that wrongdoers must accept responsibility. In making the contrast, Friedman attributes the shift to the growth of the insurance industry, since by providing social insurance an injury no longer meant financial ruin. Insurance provided the situation whereby the plaintiff came to expect compensation. Although mega awards are much exaggerated by the media, nineteenth century personal injury recoveries tended to be small in comparison with the