Antonio Labriola - Sobre o materialismo histórico (trechos)

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Antonio Labriola – Sobre o materialismo histórico (trechos selecionados) Capítulo 1 Construam no ar quantos castelos como queiram os verbalistas sobre o significado da palavra matéria, como um sentido ou uma recuperação da metafísica, ou como uma expressão do último resultado hipotético da experiência naturalista. Aqui não estamos no campo da física, da química ou da biologia; buscamos somente as condições explícitas do viver humano enquanto este não é já simplesmente animal. Não se trata agora de induzir ou deduzir algo dos dados da biologia, mas de reconhecer antes que mais nada as peculiaridades do viver humano, que se forma e se desenvolve com o suceder e aperfeiçoar-se das atividades do homem mesmo em condições dadas e variáveis; de encontrar relações de coordenação e de subordinação das necessidades, que são o resultado do querer e do trabalhar. Não se trata de descobrir uma intenção, nem de enunciar uma valorização do preço; se quer evidenciar somente a necessidade do fato. E como os homens, não por escolha, mas porque não podem trabalhar de outro modo, satisfazem primeiro certas necessidades elementares e depois destas desenvolvem outras, refinando-as, e como para satisfazer essas necessidades, sejam as que sejam, encontram e empregam certos meios e instrumentos que se associam de determinadas maneiras, o materialismo da interpretação histórica não é outra coisa que a tentativa de refazer mentalmente, com método, a gênese e a complexidade do viver humano desenvolvido através dos séculos. A novidade de tal doutrina não é diferente da de todas as demais doutrinas que, depois de muitas peripécias no

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Seleção de trechos do capítulo 1 ao 5 do livro Sobre el Materialismo histórico de Antonio Labriola. Tradução de Renato Fernandes.

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Antonio Labriola – Sobre o materialismo histórico (trechos selecionados)

Capítulo 1

Construam no ar quantos castelos como queiram os verbalistas sobre o significado da palavra matéria, como um sentido ou uma recuperação da metafísica, ou como uma expressão do último resultado hipotético da experiência naturalista. Aqui não estamos no campo da física, da química ou da biologia; buscamos somente as condições explícitas do viver humano enquanto este não é já simplesmente animal. Não se trata agora de induzir ou deduzir algo dos dados da biologia, mas de reconhecer antes que mais nada as peculiaridades do viver humano, que se forma e se desenvolve com o suceder e aperfeiçoar-se das atividades do homem mesmo em condições dadas e variáveis; de encontrar relações de coordenação e de subordinação das necessidades, que são o resultado do querer e do trabalhar. Não se trata de descobrir uma intenção, nem de enunciar uma valorização do preço; se quer evidenciar somente a necessidade do fato.

E como os homens, não por escolha, mas porque não podem trabalhar de outro modo, satisfazem primeiro certas necessidades elementares e depois destas desenvolvem outras, refinando-as, e como para satisfazer essas necessidades, sejam as que sejam, encontram e empregam certos meios e instrumentos que se associam de determinadas maneiras, o materialismo da interpretação histórica não é outra coisa que a tentativa de refazer mentalmente, com método, a gênese e a complexidade do viver humano desenvolvido através dos séculos. A novidade de tal doutrina não é diferente da de todas as demais doutrinas que, depois de muitas peripécias no campo da fantasia, chegaram enfim, penosamente, a ficarem presa na prosa da realidade e pararem nesta1.

Capítulo III

(...)

O problema consiste nisso: que nossa doutrina dê ocasião para uma nova crítica das fontes históricas. (...) Despojar os fatos históricos de tais envolturas [ideológicas] que os mesmos fatos se revestem enquanto se desenvolvem equivalerá a fazer uma nova crítica das fontes, no sentido realista da palavra e não no sentido formal de documento; será, em resumo, fazer reagir sobre a notícia das condições passadas o conhecimento de que agora somos capazes, para depois reconstruir aquelas a fundo.

(...) Somente o amor ao paradoxo, inseparável sempre do zelo dos apaixonados divulgadores de uma doutrina nova, pode haver induzido a alguns a crença de que para escrever a história basta colocar em evidência somente o momento econômico (geralmente não muito seguro e com frequência de nenhum modo assegurável), declarando todo o resto

1 Frase de difícil tradução: “a hacer presa em La prosa de la realidad y detenerse em ésta”

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como inútil fardo com que os homens carregam a vontade como acessaria, como simples bagatela ou como um não-ente.

Por isso, e em razão de que na história, a que compreender de maneira total, carne e osso formam um só objeto, como dizia Goethe sobre as coisas universais, nos apresentam três ilusões evidentes.

Em primeiro lugar, é claro que no campo do determinismo histórico-social a mediação das causas aos efeitos, das condições aos condicionados, dos precedentes as consequências, não é nunca evidente a primeira vista, de igual modo que todas estas relações não são nunca evidentes de imediato no determinismo subjetivo da psicologia individual. Neste segundo campo faz tempo que foi relativamente fácil a filosofia abstrata e formal, passando por cima do fatalismo e do livre arbítrio, a evidencia do motivo de qualquer volição, porque, em suma, tanto é vontade quanto é motivada determinação. Porém, mais abaixo dos motivos e do querer está a gênese daqueles e deste e para refazer esta gênese necessitamos sair do campo fechado da consciência para chegar a análise das simples necessidades, as quais por um caminho derivam das condições sociais e por outro se perdem no obscuro fundo das condições orgânicas, até a descendência e o atavismo. Não diferentemente se passa com o determinismo histórico, que começa da mesma forma com os motivos – sejam religiosos, políticos, estéticos, passionais, etc.- e depois de tais motivos devemos retirar as causas das condições do fato que está por baixo. O estudo dessas condições deve ser tão especificado que se coloque bem claro não somente que estas são as causas, mas por que mediação chegam à forma com a qual se revelam à consciência como motivos, cuja origem frequentemente está anulada.

E por isso, resulta evidente esta segunda ilusão, ou seja, que em nossa doutrina não se trata de traduzir novamente em categorias econômicas todas as complicadas manifestações da história, mas de explicar em última instância (Engels) qualquer fato histórico por meio da estrutura econômica que está abaixo (Marx), o que implica análise e redução e depois mediação e composição.

Disso se depreende, em terceiro lugar, que para proceder da estrutura que está abaixo ao conjunto configurado de uma determinada história se necessita o subsídio daquela complexidade de noções e de conhecimentos que, a falta de outro termo, podemos chamar de psicologia social. Com isso não quero referir a fantasiosa existência de uma psique social, nem a filosofar sobre um pretenso espírito coletivo que por suas próprias leis, independentes da consciência dos indivíduos e de suas relações materiais e reconhecidas se explique e se manifeste na vida social. Isso é puro misticismo. Nem tampouco pretendo referir-me a aqueleas tentativas de generalização combinatória pelas quais se escrevem tratados de psicologia social e cuja ideia consiste em transferir e aplicar a um sujeito imaginário, que se chama consciência social, as categorias e as formas da psicologia individual. E, finalmente, tampouco aludo àquele amontoado de denominações

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semiorgânicas e semipsicológicas pelas quais o ente sociedade, ao modo de Schäffle, adquire cérebro, medula espinhal, sensibilidade, sentimento, consciência, vontade e outras coisas desse estilo. Refiro-me a coisas mais modestas e prosaicas: daquelas concretas e precisas formas de espírito pelas quais nos aparecem tão como eram feitos os plebeus de Roma de uma determinada época, os artesãos de Florença quando explodiu o movimento dos Ciompi, ou aqueles camponeses da França dos quais surgiu, segundo a expressão de Taine, a anarquia espontânea de 1789, aqueles camponeses que, convertidos depois em trabalhadores livre e pequenos proprietários ou aspirantes a propriedade, se transformaram em instrumentos automáticos da reação. Esta psicologia social, que ninguém pode reduzir a abstratos cânones porque na maior parte dos casos é somente descritiva, é o que os historiadores, romancistas e os ideólogos de todo tipo até agora viram e conheceram como objeto exclusivo de seus estudos e de suas criações. A esta psicologia, que é a específica consciência dos homens em condições sociais dadas, se referem os agitadores, os oradores e os difusores de ideias. Nós sabemos que esta psicologia é o aporte, o derivado, o efeito de determinadas condições sociais de fato; uma classe determinada, numa determinada situação, pelos serviços que presta, pela sujeição que esta sujeita, pelo domínio que exerce, sendo que classe, serviço, sujeição e domínio supõem esta ou aquela determinada forma de produção e de distribuição dos meios imediatos da vida ou seja, uma específica estrutura econômica. Esta psicologia social, por natureza sempre circunstancial, não é expressão do processo abstrato e genérico do chamado espírito humano: é sempre formação específica de condições específicas.

Para nós é indiscutível o princípio de que as formas de consciência não determinam o ser do homem, mas que este modo de ser determina precisamente a consciência (Marx). Porém, estas formas da consciência, como estão determinadas pelas condições de vida, são também história. Esta não é somente a anatomia econômica, mas todo conjunto que esta anatomia reveste e cobre, até os reflexos multicoloridos da fantasia. Ou, dizendo de outro modo, não há um fato na história que não tenha sua origem nas condições da infraestrutura econômica; porém não há um fato na história que não esteja precedido, acompanhado e seguido de determinadas formas de consciência, seja esta supersticiosa ou experiente, ingênua ou reflexiva, madura ou nova, impulsiva ou amestrada, caprichosa ou explicativa.

Capítulo 4

(...)

A história é o fato do homem enquanto homem pode criar e aperfeiçoar seus instrumentos de trabalho e com tais instrumentos, pode criar um ambiente artificial que depois reagem em seus complexos efeitos sobre ele e pouco a pouco se modifica, é ocasião e condição de seu desenvolvimento. (...) Não há espaço aqui, em nossa doutrina, nem para confundir-se

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com o darwinismo, nem para retomar a concepção de uma forma qualquer, mítica, mística ou metafórica, de fatalismo. Porque se é verdade que a história se levanta sobretudo do desenvolvimento da técnica, isto é, se é verdade que por efeito dos sucessivos descobrimentos dos instrumentos se geram as sucessivas divisões de trabalho, e com estas as desigualdades, aos quais o sentido mais ou menos estáveis consiste no chamado organismo social, também é verdade que o descobrimento de tais instrumentos é causa e efeito ao mesmo tempo daquelas condições e formas de vida interiores que nós, isolando-as na abstração psicológica, chamamos fantasia, intelecto, razão, pensamento, etc. Produzindo sucessivamente os diversos ambientes sociais, isto é, os sucessivos terrenos artificiais, o homem produziu ao mesmo tempo as modificações de si mesmo, e nisso consiste a grave lacuna [hueco serio], a razão concreta, o fundamento positivo do que, por várias combinações fantásticas e com várias arquiteturas lógicas, dá lugar nos ideólogos à noção de progresso do espírito humano.

(...)

Tudo o que aconteceu na história é obra do homem; porém, não foi, nem é, senão por raríssimas vezes, por escolha crítica ou arbítrio racional; antes foi e é por necessidade, que, determinada pelas necessidades e ocasiões externas, gera experiência e desenvolvimento dos órgãos internos e externos. Entre estes órgãos está também o intelecto e a razão, que são por sua vez o resultado e consequência da experiência repetida e acumulada. A formação integral do homem, dentro do desenvolvimento histórico, não é já um dado hipotético, nem uma simples conjectura, mas uma verdade intuitiva e evidente. As condições do processo que gera progresso podem reduzir-se a uma série de explicações, e nós, até certo ponto, temos diante de nós o esquema de todos os desenvolvimentos históricos entendidos morfologicamente. Esta doutrina é a negação concisa e definitiva de toda ideologia, porque é a negação explícita de toda forma de racionalismo, entendendo-se por tal o preconceito de que as coisas em sua existência e explicação respondem a uma norma, a um ideal, a um valor, a um fim, seja de modo explícito ou implícito. Todo o sentido das coisas humanas é uma soma, ou melhor dito, é tantas séries de condições como os homens se fizeram e se colocaram por si na experiência acumulada na variável convivência social, porém não apresenta nem a aproximação a uma meta pré-definida, nem um desvio de um princípio originário de perfeição e de felicidade. O mesmo progresso não implica senão a noção de coisa empírica e circunstanciada que atualmente se faz clara e precisa em nossas mentes, porque, pelo desenvolvimento até agora atingido, estamos em grau de avaliar o passado e de prever, ou seja de entrever, em certo sentido e certa medida, o futuro.

Capítulo V

(...) O tempo histórico não transcorre uniformemente para todos os homens. O simples suceder-se das gerações não foi nunca o indício da regularidade e da intensidade do

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processo. O tempo como medida abstrata de cronologia e das gerações sucedendo-se em termos aproximativos de anos não dão critério nem aportam indicações de lei ou de processo. Até o presente, os desenvolvimentos foram variados, pois várias foram as obras realizadas numa mesma unidade de tempo. Entre tais formas variadas de desenvolvimento há afinidades; melhor dizendo, há similaridade de móveis ou, melhor ainda, há analogia de tipo, isto é, homologia. E tanto é assim que as formas mais avançadas podem, pelo simples contato ou com a violência, acelerar o desenvolvimento das formas atrasadas. Porém o importante é compreender que o progresso, cuja noção não somente é empírica, mas sempre circunstanciada e por isso limitada, não influencia sobre o curso das coisas humanas como um destino ou um fardo, nem como um mandato de lei. E por isso, nossa doutrina não pode representar toda a história do gênero humano numa visão de perspectiva unitária que repita, mutatis mutandis, a filosofia histórica do destino como se representa desde Santo Agostinho a Hegel ou, melhor, desde o profeta Daniel ao senhor De-Rougemont.

Nossa doutrina não pretende ser a visão intelectual de um grande plano ou destino, mas somente um método de investigação e de concepção. Marx não falou de sua descoberta a não ser como um fio condutor. E por esta razão, precisamente, é análoga ao darwinismo, que é também um método, e não é, nem pode ser, uma moderna repetição da construída e construtiva Naturphilosophie de Schelling e seus companheiros.